Acessibilidade / Reportar erro

A dimensão informacional na regulação do contexto de privacidade em interações sociais mediadas por dispositivos móveis celulares1 1 Este artigo é produto de uma pesquisa mais ampla, intitulada “Percepções sobre usos e apropriações de dispositivos comunicacionais móveis nas práticas interacionais contemporâneas: um estudo com jovens universitários brasileiros”, a qual foi desenvolvida com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Edital Universal – CNPq nº 14/ 2014 – Processo: 449466/2014-4.

La dimensión informacional en la regulación del contexto de privacidad en interacciones sociales mediadas por dispositivos móviles celulares

Resumo

Neste artigo, buscamos compreender como usuários de dispositivos móveis celulares percebem o contexto de privacidade em situações cotidianas e, a partir desta percepção, se e como eles ajustam suas respectivas performances nas interações sociais mediadas. Para tanto, resgatamos conceitos sobre privacidade, compreendendo aspectos psicossociais deste fenômeno, e utilizamos o Privacy Process Model (PPM), um modelo analítico que permite a análise de comportamentos interacionais através da regulação da privacidade em quatro diferentes dimensões: informacional. social. psicológica e física. Em nossa análise, utilizamos relatos de jovens universitários da região Nordeste brasileira, usuários de dispositivos móveis celulares. visando a identificação de quais estratégias são habitualmente utilizadas para regular o contexto de privacidade, tendo em vista, neste caso, a dimensão informacional – ou seja, a dimensão que abrange a seleção e a apropriação de recursos e de aplicativos presentes nestes dispositivos para a realização das trocas informacionais.

Palavras-chave
Privacidade; Interações sociais; Modelo de Processo de Privacidade; Dispositivos móveis; Jovens universitários

Resumen

En este artículo, buscamos comprender cómo los usuarios de dispositivos móviles celulares perciben el contexto de privacidad en situaciones cotidianas y, a partir de esta percepción, si y cómo ellos ajustan sus respectivas performances en las interacciones sociales mediadas. Para esto, rescatamos conceptos sobre privacidad, comprendiendo aspectos psicosociales de este fenómeno, y utilizamos el Privacy Process Model (PPM), un modelo analítico que permite el análisis de comportamientos interactivos a través de la regulación de la privacidad en cuatro diferentes dimensiones: informacional. social. psicológica y física. En nuestro análisis, utilizamos relatos de jóvenes universitarios de la región nordeste brasileña, usuarios de dispositivos móviles celulares, buscando la identificación de qué estrategias son habitualmente utilizadas para regular el contexto de privacidad, teniendo en vista, en este caso, la dimensión informacional – es decir, la dimensión que abarca la selección y la apropiación de recursos y de aplicaciones presentes en estos dispositivos para la realización de los intercambios informacionales.

Palabras clave
Privacidad; Interacciones sociales; Modelo de Proceso de Privacidad; Dispositivos móviles; Jóvenes universitários

Abstract

In this paper, we seek to understand how users of cellular mobile devices perceive the privacy context in everyday situations and, from this perception, if and how they adjust their respective performances in mediated social interactions. To do so, we retrieve concepts about privacy, including psychosocial aspects of this phenomenon, and use the Privacy Process Model (PPM), an analytical model that allows the analysis of interactional behaviors through the regulation of privacy in four different dimensions: informational. social. psychological and physical. In our analysis, we used reports from university students from the Brazilian northeast region, users of cellular mobile devices, aiming to identify which strategies are usually used to regulate the privacy context, considering, in this case, theinformationaldimension – that is the dimension that covers the selection and appropriation of resources and applications present in these devices for the accomplishment of informational exchanges.

Keywords
Privacy; Social interactions; Privacy Process Model; Mobile devices; Young university students

Introdução

O crescente panorama de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) conectadas à Internet na atualidade gera, entre outros desdobramentos, uma grande oferta de ambientes digitais que possibilitam a experimentação de novas formas de exposição de si e de sociabilidade. Diferente das interações face a face, nas quais os interagentes compartilham do mesmo ambiente físico para a realização de trocas simbólicas dialógicas, nas interações mediadas por TICs estas trocas ocorrem através de aparatos técnicos que estendem as interações no espaço-tempo (THOMPSON, 2011THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.). Ou seja, os indivíduos não precisam estar necessariamente em um mesmo espaço ou em uma mesma temporalidade para interagir uns com os outros. Esta mudança na relação com o tempo e o espaço nas interações faz com que as intimidades do mundo doméstico ou mesmo as relações de amizade ou profissionais adquiram significados diferentes quando estamos presentes e interagindo com outros em ambientes físicos ou digitais.

Em uma sociedade conectada e móvel, as esferas públicas e privadas se hibridizam e se influenciam, em maior ou menor grau, na forma como produzimos e consumimos informações uns para os outros (CARON; CARONIA, 2007CARON, A. H.; CARONIA, L. Moving cultures: mobile communication in everyday life. Québec: McGill-Queen’s University Press, 2007.). Com os dispositivos comunicacionais móveis, e através das diferentes aplicações que estão presentes nestes aparatos, como Facebook, Instagram, YouTube, WhatsApp, entre outras, os indivíduos passam a construir uma singular, e cada vez mais complexa, miríade de narrativas sobre si e de práticas interacionais, assentadas em esquemas representacionais e experiências sociais mediadas pelo uso de dispositivos e de ambientes tecnológicos de última geração (RIBEIRO, 2016aRIBEIRO, J. C. Controle de informações sociais em ambientes digitais: repercussões na construção da narrativa de si. In: FERNANDEZ, E.; DONARD, V. (Orgs.). O psicólogo frente ao desafio tecnológico: novas identidades, novos campos, novas práticas. Recife: Editora UFPE; UNICAP, 2016a, p.87-99.).

Seja comentando nas publicações de amigos, compartilhando fotos da sala de aula, fazendo check-ins ao longo de uma viagem ou conversando em diferentes aplicativos, as pessoas produzem e consomem um grande fluxo de informações e referenciais simbólicos que, em certa medida, transformam não só o modo como interagimos, mas, de forma mais ampla, o modo como estamos concebendo o mundo ao nosso redor.

Em um contexto socioeconômico no qual as viagens são frequentes e as pessoas levam novas tecnologias móveis com elas, mais e mais lugares se tornam ambientes potenciais para comunicações. O espaço começa a se mover e o “onde” perde a imobilidade de um local específico para se tornar uma espécie de aura que acompanha o usuário. Uma real definição de ambos os espaços, público e privado, está em andamento, com base na interpenetração, ou mesmo na aparente mistura dos espaços público e privado, profissional e íntimo

(CARON; CARONIA, 2007CARON, A. H.; CARONIA, L. Moving cultures: mobile communication in everyday life. Québec: McGill-Queen’s University Press, 2007., p.15-16 – Tradução nossa)2 2 Do original: “In a socio-economic context in which travel is frequent and people take portable, mobile new technologies with them, more and more places become potential locations for communications. Space begins to move, and the “where” loses the immobility of a specific location to become a sort of aura that accompanies the user. A real definition of both public and private spaces is underway, based on interpenetration, or even apparent blending, of public and private, professional and intimate spaces”. .

Neste cenário pós-massivo (LEMOS, 2010LEMOS, A. Celulares, funções pós-midiáticas, cidade e mobilidade. Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian Journal of Urban Management), v.2, n.2, p.155-166, 2010.), no qual a comunicação passa a ser descentralizada e pode ser realizada de forma síncrona ou assíncrona através de diferentes aparatos técnicos pessoais, a privacidade se torna um tópico amplamente discutido em diversas perspectivas, seja governamental, legal, econômica ou científica. No campo acadêmico, especificamente, a privacidade está presente em disciplinas como Filosofia, Sociologia, Psicologia, Comunicação, Ciência Política, Direito, Arquitetura, entre outras, cada qual observando aspectos e particularidades que irão permear seus respectivos interesses de investigação.

Com o intuito de compreender como a percepção do contexto de privacidade pode afetar a performance dos indivíduos ao longo de interações mediadas por TICs, em particular aquelas possibilitadas pelos usos dos dispositivos móveis celulares, efetuamos inicialmente uma revisão da literatura sobre o conceito da privacidade a partir de estudos direcionados à exploração dos aspectos psicossociais deste fenômeno (WESTIN, 1967WESTIN, A. Privacy and freedom. New York: Athenaeum, 1967.; ALTMAN, 1975ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975.; DERLEGA; CHAIKIN, 1977DERLEGA V. J.; CHAIKIN A. L. Privacy and self-disclosure in social relationships. Journal of Social Issues, v.33, n.3, p.2-115, 1977.; BURGOON, 1982BURGOON, J. K. Privacy and communication. In: BURGOON, M. (Ed.). Communication Yearbook 6. Beverly Hills, CA: Sage Publications, 1982, p.206-249.; MARGULIS, 2003MARGULIS, S. T. On the status and contribution of Westin’s and Altman’s theories of privacy. Journal of Social Issues, v.59, n.2, p.411-429, 2003.; NISSENBAUM, 2010NISSENBAUM, H. Privacy in context: technology, policy, and the integrity of social life. Stanford: Stanford University Press, 2010.; BOYD; MARWICK, 2011BOYD. D.; MARWICK, A. Social privacy in networked publics: Teens’ Attitudes, Practices, and Strategies. 2011. Disponível em: <https://www.danah.org/papers/2011/SocialPrivacyPLSC-Draft.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
https://www.danah.org/papers/2011/Social...
; DIENLIN, 2014DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014.).

Após a digressão sobre o conceito de privacidade, baseado no modelo analítico proposto por Dienlin (2014)DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014., apresentamos o Privacy Process Model (PPM) – uma abordagem que integra teorias e achados empíricos de pesquisas sobre privacidade em um único modelo que auxilia pesquisadores na compreensão e na avaliação deste fenômeno em diferentes situações sociais (sejam elas em presença física imediata ou mediadas por tecnologias). A partir do modelo proposto por Dienlin (2014)DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014., buscamos compreender quais foram os comportamentos adotados por usuários de dispositivos móveis celulares a partir da percepção do contexto de privacidade nas interações mediadas. A análise conta com depoimentos provenientes de uma pesquisa realizada com jovens universitários, entre 18 a 25 anos, em seis cidades da região Nordeste do Brasil.

Privacidade enquanto um processo de regulação

Para Westin (1967)WESTIN, A. Privacy and freedom. New York: Athenaeum, 1967., a privacidade pode ser entendida como um tipo de retirada ou separação voluntária e temporária que um indivíduo pode ter do restante da sociedade, seja de forma física ou psicológica. Desta retirada, surgem condições específicas de privacidade, tais como o isolamento, o anonimato, a intimidade e a reserva, cada qual composta por suas próprias características. Por isolamento, entende-se a possibilidade de se ver livre da presença imediata e/ou vigilância do(s) outro(s). Já o anonimato seria a possibilidade de não se identificar para outro(s). A intimidade, por sua vez, seria a liberdade de escolher com quem desejamos manter relações e trocar informações que podem ser consideradas particulares. Por fim, a reserva seria uma limitação ou seleção do que é ou não exposto de si para os outro(s).

Os estudos realizados por Westin (1967)WESTIN, A. Privacy and freedom. New York: Athenaeum, 1967. serviram como ponto de partida para o psicólogo social Irwin Altman, que estendeu o conceito de privacidade a partir da ênfase na regulação que o indivíduo teria desta separação, a depender do contexto e das pessoas envolvidas em uma determinada situação social. Altman (1975)ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975. parte de estudos sobre penetração social para investigar questões relacionadas ao espaço pessoal, à territorialidade, à aglomeração e à privacidade. Nas investigações acerca da privacidade, especificamente, Altman (1975)ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975. identificou que a regulação das fronteiras entre os indivíduos seria baseada em qualidades oposicionais entre a acessibilidade e a inacessibilidade.

A interação social é a interação contínua ou dialética entre as forças que levam as pessoas a se unirem e a se separarem. Há momentos em que as pessoas querem estar sozinhas e sem contato com outros e há momentos em que os outros as procuram para ouvir e serem ouvidas, para conversar e serem escutadas. Assim, a privacidade não é apenas um processo de “manter fora” ou “deixar entrar”; ela envolve uma síntese de estar em contato com outros e estar fora de contato com outros. O desejo de interação social ou não interação muda ao longo do tempo e em diferentes circunstâncias. A ideia de privacidade como um processo dialético, portanto, significa que há um equilíbrio de forças opostas – para ser aberto e acessível aos outros e ser desligado ou fechado para os outros – e que a força líquida dessas forças concorrentes mudam ao longo do tempo

(ALTMAN, 1975ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975., p.23 – Tradução nossa)3 3 Original de: “Social interaction is the continuing interplay or dialectic between forces driving people to come together and to move apart. There are times when people want to be alone and out of contact with others and there are times when others sought out, to be heard and to hear, to talk and to listen. Thus, privacy is not solely a “keep out” or “let in” process; it involves a synthesis of being in contact with others and being out of contact with others. The desire for social interaction or noninteraction changes over time and with different circumstances. The idea of privacy as a dialectic process, therefore, means that there is a balancing of opposing forces – to be open and accessible to others and to be shut off or closed to others – and that the net strength of these competing forces changes over time”. .

Palen e Dourish (2003)PALEN, L; DOURISH, P. Unpacking ‘privacy’ for a networked world. In: Proceedings of the SIGCHI conference on human factors in computing systems, Fort Lauderdale, New York: ACM, 2003. p.129-136. Disponível em: <https://dourish.com/~dourishc/publications/2003/chi2003-privacy.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
https://dourish.com/~dourishc/publicatio...
apontam que este processo de regulação das fronteiras não se trataria de uma simples aplicação de regras, mas de um gerenciamento contínuo entre diferentes esferas de ação e graus de exposição de si. Esta abordagem ameniza uma visão estanque e dicotômica da privacidade, vista como uma simples abertura ou fechamento do acesso a algo/alguém. Ou seja, partindo das perspectivas de Westin (1967)WESTIN, A. Privacy and freedom. New York: Athenaeum, 1967. e de Altman (1975)ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975., poderíamos dizer que a privacidade, para além de um processo voluntário de separação, seria, ao mesmo tempo, um fenômeno flexível ou até mesmo elástico, uma vez que sua regulação seria contextual; isto é, o que seria considerado privado para um indivíduo, uma sociedade ou até mesmo uma cultura, poderia variar consideravelmente a depender de como se configurassem as situações interacionais em outros contextos.

Burgoon (1982)BURGOON, J. K. Privacy and communication. In: BURGOON, M. (Ed.). Communication Yearbook 6. Beverly Hills, CA: Sage Publications, 1982, p.206-249., por sua vez, avança nos estudos de Altman demonstrando como a privacidade pode ser regulada a partir de quatro diferentes dimensões: informacional, social, psicológica e física. Por privacidade informacional, entende-se o controle no qual as pessoas podem ter sobre o que será ou não compartilhado sobre eles em diferentes meios comunicacionais. Já a privacidade social seria a capacidade de decidir ou escolher com quem quer ou não interagir socialmente. A privacidade psicológica aparece associada a questões internas dos indivíduos sobre como se sentem em relação a informações que são livres para expressar. A privacidade física, por sua vez, definiria o ajuste de fronteiras físicas/espaciais entre as pessoas, seja a distância ou mesmo o uso de elementos concretos para isolar ou distanciar algo/alguém (DIENLIN, 2014DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014.).

Estudos sobre a regulação da privacidade em contextos digitais (NISSENBAUM, 2010NISSENBAUM, H. Privacy in context: technology, policy, and the integrity of social life. Stanford: Stanford University Press, 2010.; BOYD, 2014BOYD, D. It’s complicated: the social lives of networked teens. New Haven: Yale University Press, 2014.; NEJM, 2016NEJM, R. Exposição de si e gerenciamento da privacidade de adolescentes nos contextos digitais. 2016, 266 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador.) demonstram como os usos e as apropriações das TICs nas interações podem afetar o modo como a privacidade é percebida e, consequentemente, como os atores irão selecionar meios e recursos para performar uns para outros a partir desta percepção (GOFFMAN, 1985GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.). Na atualidade, a regulação da privacidade tem uma relação interdependente com a mediação tecnológica na qual as interações ocorrem, que não podem ser encaradas como neutras neste processo. A permanência, a replicabilidade, a escalabilidade e a buscabilidade das informações (BOYD; MARWICK, 2011), que são trocadas através da mediação tecnológica e ambientes digitais, modificam as dinâmicas interacionais, uma vez que estas mesmas informações, que antes eram mais efêmeras ou ficavam restritas a ambientes físicos específicos, ganham escala e mobilidade em rede, uma vez que podem a ser acessadas em diferentes lugares e temporalidades.

Nissenbaum (2010)NISSENBAUM, H. Privacy in context: technology, policy, and the integrity of social life. Stanford: Stanford University Press, 2010., por exemplo, aponta que, na atualidade, a integridade contextual seria a chave para alcançar a privacidade. Ou seja, em um contexto contemporâneo, mediado por tecnologias digitais, o tipo de informação que está sendo compartilhada, os papéis sociais dos indivíduos envolvidos na interação e a forma como esta informação é transmitida podem alterar o fluxo informacional e, consequentemente, a própria percepção da privacidade.

The Privacy Process Model (PPM)

Para compreender como a percepção da privacidade, em interações mediadas por dispositivos móveis celulares, pode afetar no modo como os indivíduos irão se expor e interagir uns com os outros no dia a dia, sugerimos aqui o PPM como um possível modelo analítico para esta questão. Partindo da privacidade enquanto uma separação/distanciamento do(s) outro(s) que pode ser caracterizada em diferentes condições (WESTIN, 1967WESTIN, A. Privacy and freedom. New York: Athenaeum, 1967.), com ajustes contínuos nas fronteiras individuais (ALTMAN, 1975ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975.) e tendo quatro dimensões, informacional, social, psicológica e física (BURGOON, 1982BURGOON, J. K. Privacy and communication. In: BURGOON, M. (Ed.). Communication Yearbook 6. Beverly Hills, CA: Sage Publications, 1982, p.206-249.), Dienlin (2014)DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014. propôs um modelo analítico da privacidade tendo alguns elementos-chave, conforme expresso na Figura 1.

Figura 1
The Privacy Process Model

O contexto da privacidade (privacy context) estaria relacionado ao grau da privacidade, o qual, segundo Dienlin (2014)DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014., pode ser mensurável. Ou seja, seria a situação dada que pode ser avaliada de forma descritiva e objetiva pelo indivíduo. A percepção da privacidade (privacy perception), por sua vez, seria a capacidade dos indivíduos de perceberem o contexto no qual estão envolvidos e, a partir daí, compararem o status de privacidade deste contexto com o status de privacidade desejado. A depender da percepção do contexto, os indivíduos assumiriam, então, um comportamento de privacidade (privacy behavior), ou seja, se as pessoas estivessem em uma situação que julgassem como mais privada, poderiam ficar, consequentemente, mais dispostas a compartilhar informações ou a realizar ações que não fariam em uma situação que julgassem ter menos privacidade.

Ainda segundo o PPM, seria possível para o indivíduo algum nível de controlabilidade (controllability) do contexto de privacidade e, a posteriori, do comportamento de privacidade, contudo, não seria possível ter controle sobre a percepção da privacidade. Segundo Dienlin (2017)______. The psychology of privacy: Analyzing processes of media use and interpersonal communication. 2017, 200 f. Tese (Doutorado em Psicologia). University of Hohenheim. Stuttgart, Alemanha., se o status do contexto e o status desejado de privacidade não são correspondentes, as pessoas se sentiriam insatisfeitas e tenderiam a buscar um equilíbrio através de ajustes no contexto ou no seu comportamento. Para exemplificar uma situação na qual o status de privacidade do contexto se apresenta de forma diferente do status desejado para o indivíduo, imaginemos uma determinada circunstância na qual este indivíduo recebe uma ligação importante em seu dispositivo móvel celular, contudo, encontra-se em uma reunião de trabalho. Ao perceber que, naquele contexto, não há a possibilidade de, simplesmente, retirar as outras pessoas da reunião, o indivíduo pode buscar ajustar aspectos do contexto (exemplo: pedir para sair da sala e ir para um local no qual possa atender a ligação sem ser monitorado/vigiado por outros) ou, então, ajustar aspectos do seu comportamento (exemplos: pedir licença para atender no próprio ambiente, contudo falar com a voz mais baixa para não atrapalhar a reunião; ou colocar o celular no modo silencioso e ignorar a ligação; ou mesmo optar por enviar uma mensagem de texto para explicar para seu interagente a situação a qual se encontra).

Dienlin (2017)______. The psychology of privacy: Analyzing processes of media use and interpersonal communication. 2017, 200 f. Tese (Doutorado em Psicologia). University of Hohenheim. Stuttgart, Alemanha. defende a importância de se estudar a privacidade tendo em vista sua complexidade e suas diferentes dimensões. Nesta perspectiva, o autor descreve as principais implicações do modelo PPM em sete axiomas:

1. Qualquer situação dada (contexto de privacidade) leva a um senso particular de intimidade e confidencialidade (percepção de privacidade). 2. Quanto maior o nível de percepção de privacidade, mais pessoas se envolverão em um ato posterior de exposição de si (comportamento de privacidade). 3. Para o contexto de privacidade, bem como para a percepção de privacidade, as dimensões da privacidade informacional, social, psicológica e física podem ser diferenciadas. 4. Para a percepção de privacidade, bem como para o comportamento de privacidade, as pessoas percebem o status atual da privacidade, que comparam com o status desejado de privacidade. 5. Se houver uma discrepância entre o status atual e o status desejado, as pessoas se engajam automaticamente no processo de regulação de privacidade. No processo de regulação de privacidade, as pessoas buscam alterar o contexto de privacidade ou o comportamento de privacidade. 6. Para que a regulação de privacidade possa ocorrer, a controlabilidade do contexto de privacidade ou do comportamento de privacidade deve ser justificada. 7. Todos os elementos devem ser avaliados não de forma normativa, mas em uma heurística descritiva

(DIENLIN, 2017______. The psychology of privacy: Analyzing processes of media use and interpersonal communication. 2017, 200 f. Tese (Doutorado em Psicologia). University of Hohenheim. Stuttgart, Alemanha., p.38 – Tradução nossa)4 4 Do original: “1. Any given situation (privacy context) leads to a particular sense of intimacy and confidentiality (privacy perception). 2. The higher the level of privacy perception, the more people will engage in a subsequent act of self-disclosure (privacy behavior). 3. For the privacy context as well as for the privacy perception, the dimensions of informational, social, psychological, and physical privacy can be differentiated. 4. For the privacy perception as well as for the privacy behavior, people perceive a current status of privacy, which they compare with a desired status of privacy. 5. If there is a discrepancy between current status and desired status, people engage automatically in a privacy regulation process. In the privacy regulation process, people aim to change either the privacy context or the privacy behavior. 6. In order for a privacy regulation to be able to take place, the controllability of either privacy context or privacy behavior needs to be warranted. 7. All elements shall be assessed not in a normative but in a descriptive heuristic”. .

Partindo do modelo proposto pelo PPM, fizemos, neste artigo, uma análise qualitativa exploratória baseada em relatos de jovens universitários da região Nordeste do Brasil, usuários de dispositivos móveis celulares. Nosso objetivo foi compreender como, em determinadas situações sociais descritas pelos participantes, a percepção do contexto de privacidade foi determinante para seu comportamento na dimensão informacional das interações mediadas por dispositivos móveis celulares. Ou seja, partimos do pressuposto de que em interações mediadas por estes dispositivos, os indivíduos teriam a percepção de um maior controle (mas não absoluto) da privacidade – isto é, os indivíduos conseguiriam uma regulação de elementos do contexto e seus respectivos comportamentos –, algo que considerariam mais difícil, embora não impossível, em contextos de interação com presença física imediata ou face a face.

Método

Para nossa análise, utilizamos dados provenientes de uma pesquisa qualitativa exploratória (DESLAURIERS, 2008DESLAURIERS, J. O delineamento da pesquisa qualitativa. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.; SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, P. B. Metodologia de pesquisa. São Paulo: Mc-Graw-Hill, 2006.) mais ampla, que examinou percepções de jovens universitários do Nordeste brasileiro sobre os usos e apropriações da comunicação digital móvel, bem como suas possíveis implicações nas práticas interacionais cotidianas. Ao todo foram 120 entrevistados, de sete centros universitários instalados em seis cidades da região Nordeste do país, sendo três capitais e três cidades do interior, conforme tabela a seguir:

Tabela 1
Amostra utilizada para a análise

Os participantes da pesquisa foram acessados em uma amostragem por conveniência (ou acessibilidade) a partir das redes de contatos dos pesquisadores. Dos 120 participantes, 61 eram homens e 59, mulheres, com idades variantes entre 18 a 25 anos (M = 21,26 anos / Mediana = 23 anos). A coleta dos dados foi realizada através da realização de sessões individuais de entrevistas em formato semiestruturado (com aproximadamente 30 minutos de duração), que foram gravadas e posteriormente transcritas para textos em formato digital. Antes da gravação das entrevistas, realizou-se uma explicação sobre os propósitos da pesquisa e, em seguida, foi solicitado a todos os participantes que assinassem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, registrando a concordância em participar da investigação.

As sessões de entrevistas seguiram um roteiro previamente elaborado, que teve como base o modelo desenvolvido por Ribeiro (2016b)______. Percepções sobre usos e apropriações de dispositivos comunicacionais móveis nas práticas interacionais contemporâneas: um estudo com jovens universitários portugueses. Relatório de pesquisa de pós-doutorado não publicado. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2016b. em sua investigação sobre percepções dos usos dos dispositivos móveis por jovens universitários portugueses. As falas dos participantes foram trabalhadas por meio de análise de conteúdo (BARDIN, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, LDA, 2009.) a partir dos sistemas categóricos propostos por Ribeiro (2016b)______. Percepções sobre usos e apropriações de dispositivos comunicacionais móveis nas práticas interacionais contemporâneas: um estudo com jovens universitários portugueses. Relatório de pesquisa de pós-doutorado não publicado. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2016b., buscando a detecção de aspectos e indicadores qualitativos que viabilizassem a compreensão das percepções, significados e expectativas construídos pelos participantes sobre os usos e apropriações dos dispositivos móveis (telefones celulares) e sobre suas possíveis implicações nas práticas interacionais cotidianas.

As transcrições das entrevistas foram analisadas e categorizadas através de um aplicativo de análise qualitativa de dados, o ATLAS.TI5 5 Site oficial do ATLAS.TI: <http://atlasti.com>. Acesso em: 9 de abr. 2018. (versão 8), para sistemas operacionais iOS e Windows. O ATLAS.TI permitiu a distribuição, o tratamento e a visualização de dados (segmentos textuais) de forma clara, direta e detalhada através da geração de relatórios. Dessa forma, os dados transcritos foram trabalhados em dois momentos: o de rotulação dos dados a partir dos eixos temáticos previstos pelas categorias teóricas e o de análise dos dados com base nos conceitos e discussões trazidas pela literatura.

A análise desenvolvida neste artigo partiu da seleção de respostas, provenientes das entrevistas realizadas na pesquisa mais ampla, em que os participantes descreveram situações e comportamentos que foram adotados a partir da percepção do contexto de privacidade nas interações cotidianas via dispositivos móveis (telefones celulares).

Percepção do contexto de privacidade informacional

Com base no modelo PPM proposto por Dienlin (2014)DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014. e outros estudos sobre comunicação móvel (ZHAO; ELESH, 2008ZHAO, S.; ELESH, D. Copresence as ‘being with’. Information Communication and Society, Londres, v.11, n.4, 2008.; BOYD; MARWICK, 2011; AYRES; RIBEIRO, 2015; RIBEIRO, 2016b______. Percepções sobre usos e apropriações de dispositivos comunicacionais móveis nas práticas interacionais contemporâneas: um estudo com jovens universitários portugueses. Relatório de pesquisa de pós-doutorado não publicado. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2016b.; AYRES, 2016AYRES, M. Comunicação em aplicativos móveis de instant messengers: usos e apropriações do WhatsApp entre jovens universitários. 2016. 147 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA.; NEJM, 2016NEJM, R. Exposição de si e gerenciamento da privacidade de adolescentes nos contextos digitais. 2016, 266 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador.), analisamos, a partir dos relatos da nossa pesquisa, se os usuários de dispositivos móveis celulares identificam particularidades na percepção do contexto de privacidade em situações nas quais utilizam estes aparatos e se há, também, uma sensação de maior controle do fluxo informacional através do uso de recursos específicos presentes nestes dispositivos e seus aplicativos.

De acordo com os relatos dos entrevistados, a seleção de um determinado recurso disponível em seu aparelho celular (exemplos: ligação por voz, mensagem de texto, foto ou vídeo) e/ou de um aplicativo específico (exemplos: WhatsApp, Snapchat, Instagram, Facebook), para estabelecer interações, está vinculada diretamente à percepção da privacidade do ambiente físico e da situação social em que se encontram. Se estão presentes em uma sala de aula ou mesmo assistindo um filme no cinema, por exemplo, situações as quais são monitorados continuamente ou que demandam interações focadas (GOFFMAN, 2010______. Comportamentos em lugares públicos. Petrópolis: Vozes, 2010.), os participantes relatam que o uso da modalidade de texto seria uma estratégia plausível para não dar acesso à informação ou mesmo interromper a atenção daqueles que porventura estivessem compartilhando o mesmo espaço físico no momento. Sobre estes aspectos, destacamos algumas falas:

Prefiro as mensagens lidas, porque em muitos casos eu não posso escutar as mensagens de voz. Como eu já citei: eu posso estar na sala de aula, eu posso estar em um ambiente externo... Enfim, para manter a privacidade eu não poderia escutar a mensagem por voz, então eu sempre dou preferência a mensagem por texto mesmo

(Participante masculino, 22 anos, universitário da UFBA, Salvador/BA).

A vantagem é que você pode ver [...] Tipo [...] Você pode ver as mensagens sem risco de exposição, que outras pessoas tenham acesso, que às vezes pode acontecer com o áudio

(Participante masculino, 20 anos, universitário da UFBA, Salvador/BA).

Estes relatos se aproximam com achados da pesquisa empírica realizada por Ayres (2016)AYRES, M. Comunicação em aplicativos móveis de instant messengers: usos e apropriações do WhatsApp entre jovens universitários. 2016. 147 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA. sobre usos e apropriações do WhatsApp, na qual a modalidade de texto apareceu como a mais utilizada entre jovens universitários de Salvador (BA) e região metropolitana.

Os entrevistados da nossa pesquisa também sinalizaram ter dificuldades em saber, a priori, o lugar e o contexto exato onde seus interagentes se encontram no momento da interação mediada por celulares – o que implicaria, novamente, na seleção, em alguns casos, da modalidade de texto ao invés de ligações por voz ou mensagens de áudio. Esta dificuldade mostra-se comum nas interações mediadas por dispositivos móveis celulares que, hoje conectados à internet, ampliam e reforçam o que Boyd e Marwick (2011) denominam como contexto colapsado, ou seja, um contexto composto por diversas audiências invisíveis que podem ter acesso às informações que compartilhamos de forma voluntária ou não através do uso de dispositivos móveis celulares e/ou ambientes digitais.

Neste contexto colapsado, os relatos demonstram que as ligações por voz ou os envios de mensagens de áudio tendem a ser preteridos a depender da pessoa com quem estejam interagindo ou mesmo da situação que se encontram. Um dos participantes, por exemplo, diz que “É mais para quem você tá enviando, é algo mais direto para quem você tá enviando, um áudio a pessoa pode ouvir muito alto e se for algo sigiloso aquilo vai perder esse, esse segredo, digamos assim, da mensagem”. (Participante masculino, 22 anos, universitário da UFC, Quixadá/CE). Ou seja, para não gerar constrangimentos ou mesmo permitir que outras pessoas, que não estejam engajadas na interação, acessem as informações que estão sendo trocadas, os usuários tendem a enviar mensagens de texto como uma estratégia de controle do contexto de privacidade. A comunicação móvel complexifica este cenário, uma vez que mesmo conhecendo o interagente e os aspectos de suas rotinas, não é possível afirmar com precisão onde ele se encontra e se, naquele instante, se mostra disponível para dar continuidade à interação pretendida.

Ao tratar sobre casos nos quais utilizam os recursos e aplicativos de fotografia e vídeo (como o Instagram e o Snapchat) em seus dispositivos móveis celulares, os participantes demonstram preocupação com algumas implicações da exposição de si nestas situações. Algumas falas, por exemplo, apontam que, ao mesmo tempo que possuem um certo controle sobre o que vão expor ou não através das fotografias e vídeos (através da seleção e edição das imagens), percebem uma falta de controle sobre o registro e o compartilhamento realizados por outros. As colocações dos participantes a seguir são exemplares neste sentido:

Então, é como eu falei, depende do momento. Eu não gosto, por exemplo, que fiquem tirando foto de mim para ficar postando em grupo, por exemplo

(Participante masculino, 24 anos, universitário da UNIT, Itabaiana/SE).

Eu falo: oxe! Tão me filmando? Isso vai pra onde? Com quem vai tá isso? Mas hoje todo mundo é fotografado e filmado e a gente nem sabe, né? Deve ter um monte de fotos e vídeos da gente que a gente não deve ter nem consciência

(Participante feminina, 19 anos, universitária da UFRB, Cachoeira/BA).

Entretanto, quando estes registros e compartilhamentos são realizados por pessoas consideradas íntimas, como familiares, parceiros(as) e/ou amigos(as), a preocupação com a exposição de si nas fotografias e vídeos é atenuada, mas ainda se mostra latente. Como apontam as duas participantes abaixo:

Depende da situação e da pessoa né que, se for um estranho me fotografando: que é isso? [Risos]. Mas se for um amigo, acho que não tem problema nenhum

(Participante feminina, 18 anos, universitária da UFC, Fortaleza/CE).

Depende de quem for a câmera. Se for de alguém conhecido, de boa, entendeu? Em certos casos, eu até me sinto incomodada se for uma situação constrangedora para mim, mas desconhecidos, eu fico sem ter reação... Fico até preocupada

(Participante feminina, 18 anos, universitária da UFS, Aracaju/SE).

Sobre a possibilidade técnica de acesso a outros indivíduos através de um dispositivo móvel celular, os participantes de nossa pesquisa identificam aspectos positivos e negativos que podem variar a depender da situação. Para alguns deles, seria uma vantagem ter acesso rápido ao outro, independente do momento e do lugar, quando desejasse estabelecer interações; entretanto, a depender da pessoa ou da situação, este acesso rápido e contínuo poderia ser encarado como um ponto negativo, uma vez que o usuário poderia não estar disponível ou mesmo interessado em estabelecer aquela interação (QUAN-HAASE; COLLINS, 2008QUAN-HAASE, A.; COLLINS, J. L. I’m there, but I might not want to talk to you. Information, Communication & Society, v.11, p. 526-543, 2008.).

As implicações deste acesso contínuo ao(s) outro(s) nas interações mediadas por dispositivos móveis celulares aparentam, conforme algumas das falas analisadas, desencadear uma sensação de menor controlabilidade do contexto de privacidade, uma vez que uma interação sendo iniciada (através do envio de uma mensagem de texto, áudio, entre outros) gera uma expectativa de reciprocidade entre os interagentes que pode ser reforçada por meio de sinalizações, que indicam que um determinado usuário está conectado ou mesmo utilizando seu dispositivo naquele momento (como ocorre em alguns aplicativos de instant messenger e sites de redes sociais). Esta sensação de “falta de privacidade” foi identificada em nossa pesquisa, como podemos observar nas seguintes falas:

Você está sujeito a ser sempre ligado a alguém, mesmo que você não queira. Alguém tem sempre alguma forma de chegar até você [...] então você não tem o momento [...] quer dizer, você tem o momento da solidão a partir do momento em que as pessoas não te respondem, por exemplo. Mas você não tem uma certa liberdade de, [...] de sumir um pouco assim [...] digamos assim

(Participante feminina, 23 anos, universitária da UFBA, Salvador/BA).

Eu diria que você perde um pouco a [...] indisponibilidade. Por exemplo: se você quiser ler um livro, ou só ficar na praia, fazer qualquer coisa – aí quando você volta, tem 300 mensagens no WhatsApp [...]. Então as pessoas para quem você pode estar disponível, elas sempre querem que você esteja sempre disponível. E se você não impor um limite assim, você vira escravo do celular, de estar sempre respondendo imediatamente o que as outras pessoas querem

(Participante feminina, 23 anos, universitária da UFBA, Salvador/BA).

Mesmo com a possibilidade de escolher o que e com quem compartilhar determinadas informações, o contato perpétuo (KATZ; AAKHUS, 2002KATZ, J. E.; AAKHUS, M. A. Perpetual contact: mobile communication, Private Talk, Public Performance. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002.), proveniente das relações estabelecidas através de dispositivos comunicacionais móveis (e em especial, dos dispositivos celulares), parece reforçar a percepção de uma constante disponibilidade para a socialização – o que pode gerar, por exemplo, quebras nas expectativas sociais entre os interagentes e, de modo mais amplo, desestabilizações no processo interacional vivenciado entre eles.

Conclusão

Propomos neste artigo a análise da percepção do contexto de privacidade informacional a partir de relatos de jovens universitários do Nordeste brasileiro que utilizam dispositivos móveis celulares nas interações cotidianas. Para isso, resgatamos o conceito de privacidade, enquanto a possibilidade de separação ou de distanciamento voluntário e temporário dos indivíduos na sociedade a partir de diferentes condições (isolamento, intimidade, anonimato e reserva), nas quais podem regular suas fronteiras pessoais tendo como base quatro dimensões referenciais: informacional, social, psicológica e física.

Para analisar estes relatos, partimos do modelo PPM proposto por Dienlin (2014DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014., 2017)______. The psychology of privacy: Analyzing processes of media use and interpersonal communication. 2017, 200 f. Tese (Doutorado em Psicologia). University of Hohenheim. Stuttgart, Alemanha., que apresenta como a percepção do contexto de privacidade em uma determinada situação social, em conjunto com a regulação do status atual e desejado de privacidade, podem agenciar as ações dos indivíduos em interações sociais face a face ou mediadas. Nesta perspectiva, estes indivíduos teriam a capacidade de controlar ou ajustar elementos do contexto e de seus comportamentos, contudo não seria possível controlar a percepção associada à experiência da situação. O modelo PPM serviu como um guia, não só para orientar o olhar sobre o processo da construção social da privacidade, mas para compreendermos que ela vai além de um aspecto informacional.

A partir dos relatos obtidos, identificamos alguns aspectos que se mostram relacionados com as performances interacionais efetivadas através de dispositivos móveis celulares, os quais devem ser investigados com mais profundidade em estudos futuros. Sobre a seleção do meio (exemplos: instant messenger, sites de redes sociais e aplicativos de live streaming) e da modalidade informacional (texto, foto, vídeo e áudio), enquanto estratégia do controle do contexto de privacidade, notamos que os usuários levam em consideração: (a) o ambiente físico e a situação social que estão presentes em conjunto com a percepção do contexto de privacidade (enquanto uma comparação do status atual com o status desejado de privacidade); (b) o ambiente físico e a situação social onde, possivelmente, seu interagente se encontra; (c) o grau de intimidade entre os interagentes; e (d) o que desejam comunicar na troca simbólica efetuada com os interagentes. Aqui, não apontamos estes fatores como únicos, mas como pontos importantes que identificamos nas falas dos participantes e que indicam possíveis motivações em torno das escolhas e dos usos de determinados meios e modalidades informacionais presentes nos dispositivos móveis celulares – gerando ações (comportamentos) resultantes destas escolhas.

Sobre a exposição de si, através do compartilhamento de fotos e vídeos em aplicativos como o Instagram e Snapchat, por exemplo, os participantes relatam ter uma sensação de maior controle sobre a imagem pretendida de si, uma vez que podem editar e selecionar o que querem ou não publicar nos ambientes digitais. Contudo, demonstram, ao mesmo tempo, preocupação com o contexto colapsado, a partir do registro e o compartilhamento de fotos e vídeos por outros usuários. Por outro lado, quando estão em um contexto onde há a presença de familiares e amigos (ou seja, pessoas consideradas mais íntimas), por exemplo, as preocupações com estes registros e compartilhamentos de fotos e vídeos são atenuadas.

Os participantes também relataram que a acessibilidade técnica ao outro, por meio dos dispositivos móveis celulares, é encarada de forma positiva quando desejam ter contato rápido ou imediato com outros interagentes. Entretanto, nas situações em que são demandados para a interação, esta acessibilidade pode ser encarada negativamente, uma vez que podem estar em situações em que não estão disponíveis ou mesmo não desejam interagir. Ou seja, este ponto de tensão entre acessibilidade técnica e disponibilidade social complexifica e problematiza a noção de always on (TURKLE, 2008TURKLE, S. Always on/always on you: The tethered self. In: KATZ, J. E. (Ed.). Handbook of Mobile Communication Studies, Cambridge, MA. MIT Press, 2008, p.121-137.) e a noção de privacidade enquanto processos dicotômicos de acesso ou não a algo/alguém.

Por fim, reforçamos a ideia de que a experiência de privacidade, realizada a partir dos usos de dispositivos móveis celulares e vivenciada em interações via sites de redes sociais, instant messengers, entre outros aplicativos de compartilhamento de conteúdos e relacionamentos, não pode ser encarada como algo exclusivo ou individual. Em concordância com Petronio (2002)PETRONIO, S. Boundaries of privacy: dialectics of disclosure. Albany: State University of New York Press, 2002., apontamos que os indivíduos seriam, na contemporaneidade, coproprietários das informações privadas de si e de outros. Deste modo, evitamos aqui a compreensão da privacidade enquanto um fenômeno absoluto, e compreendemos que há uma escala na qual, a depender da situação vivenciada, o indivíduo pode perceber mais ou menos privacidade. Esta reflexão também demonstra a importância de discussões sobre como os indivíduos controlam e circulam informações que consideram privadas entre si.

  • 1
    Este artigo é produto de uma pesquisa mais ampla, intitulada “Percepções sobre usos e apropriações de dispositivos comunicacionais móveis nas práticas interacionais contemporâneas: um estudo com jovens universitários brasileiros”, a qual foi desenvolvida com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Edital Universal – CNPq nº 14/ 2014 – Processo: 449466/2014-4.
  • 2
    Do original: “In a socio-economic context in which travel is frequent and people take portable, mobile new technologies with them, more and more places become potential locations for communications. Space begins to move, and the “where” loses the immobility of a specific location to become a sort of aura that accompanies the user. A real definition of both public and private spaces is underway, based on interpenetration, or even apparent blending, of public and private, professional and intimate spaces”.
  • 3
    Original de: “Social interaction is the continuing interplay or dialectic between forces driving people to come together and to move apart. There are times when people want to be alone and out of contact with others and there are times when others sought out, to be heard and to hear, to talk and to listen. Thus, privacy is not solely a “keep out” or “let in” process; it involves a synthesis of being in contact with others and being out of contact with others. The desire for social interaction or noninteraction changes over time and with different circumstances. The idea of privacy as a dialectic process, therefore, means that there is a balancing of opposing forces – to be open and accessible to others and to be shut off or closed to others – and that the net strength of these competing forces changes over time”.
  • 4
    Do original: “1. Any given situation (privacy context) leads to a particular sense of intimacy and confidentiality (privacy perception). 2. The higher the level of privacy perception, the more people will engage in a subsequent act of self-disclosure (privacy behavior). 3. For the privacy context as well as for the privacy perception, the dimensions of informational, social, psychological, and physical privacy can be differentiated. 4. For the privacy perception as well as for the privacy behavior, people perceive a current status of privacy, which they compare with a desired status of privacy. 5. If there is a discrepancy between current status and desired status, people engage automatically in a privacy regulation process. In the privacy regulation process, people aim to change either the privacy context or the privacy behavior. 6. In order for a privacy regulation to be able to take place, the controllability of either privacy context or privacy behavior needs to be warranted. 7. All elements shall be assessed not in a normative but in a descriptive heuristic”.
  • 5
    Site oficial do ATLAS.TI: <http://atlasti.com>. Acesso em: 9 de abr. 2018.

Referências

  • ALTMAN, I. Environment and social behavior: personal space, privacy, crowding and territory. Monterey, CA: Brooks Cole, 1975.
  • AYRES, M. Comunicação em aplicativos móveis de instant messengers: usos e apropriações do WhatsApp entre jovens universitários. 2016. 147 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA.
  • AYRES, M.; RIBEIRO, J. C.; A Representação de si em interações sociais mediadas por instant messengers: O Caso WhatsApp. In: XXXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, Rio de Janeiro, 2015. Anais.. Disponível em: <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-0273-1.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
    » http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-0273-1.pdf
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70, LDA, 2009.
  • BOYD. D.; MARWICK, A. Social privacy in networked publics: Teens’ Attitudes, Practices, and Strategies. 2011. Disponível em: <https://www.danah.org/papers/2011/SocialPrivacyPLSC-Draft.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
    » https://www.danah.org/papers/2011/SocialPrivacyPLSC-Draft.pdf
  • BOYD, D. It’s complicated: the social lives of networked teens. New Haven: Yale University Press, 2014.
  • BURGOON, J. K. Privacy and communication. In: BURGOON, M. (Ed.). Communication Yearbook 6 Beverly Hills, CA: Sage Publications, 1982, p.206-249.
  • CARON, A. H.; CARONIA, L. Moving cultures: mobile communication in everyday life. Québec: McGill-Queen’s University Press, 2007.
  • DERLEGA V. J.; CHAIKIN A. L. Privacy and self-disclosure in social relationships. Journal of Social Issues, v.33, n.3, p.2-115, 1977.
  • DESLAURIERS, J. O delineamento da pesquisa qualitativa. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
  • DIENLIN, T. The Privacy Process Model. In: GARNETT, S.; HALFT, S.; HERZ, M. MÖNIG, J. M. Medien und Privatheit [Media and privacy]. Passau: Stutz, p.105-122, 2014.
  • ______. The psychology of privacy: Analyzing processes of media use and interpersonal communication. 2017, 200 f. Tese (Doutorado em Psicologia). University of Hohenheim. Stuttgart, Alemanha.
  • GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana Petrópolis: Vozes, 1985.
  • ______. Comportamentos em lugares públicos Petrópolis: Vozes, 2010.
  • KATZ, J. E.; AAKHUS, M. A. Perpetual contact: mobile communication, Private Talk, Public Performance. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002.
  • LEMOS, A. Celulares, funções pós-midiáticas, cidade e mobilidade. Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian Journal of Urban Management), v.2, n.2, p.155-166, 2010.
  • MARGULIS, S. T. On the status and contribution of Westin’s and Altman’s theories of privacy. Journal of Social Issues, v.59, n.2, p.411-429, 2003.
  • NEJM, R. Exposição de si e gerenciamento da privacidade de adolescentes nos contextos digitais 2016, 266 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
  • NISSENBAUM, H. Privacy in context: technology, policy, and the integrity of social life. Stanford: Stanford University Press, 2010.
  • PALEN, L; DOURISH, P. Unpacking ‘privacy’ for a networked world. In: Proceedings of the SIGCHI conference on human factors in computing systems, Fort Lauderdale, New York: ACM, 2003. p.129-136. Disponível em: <https://dourish.com/~dourishc/publications/2003/chi2003-privacy.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
    » https://dourish.com/~dourishc/publications/2003/chi2003-privacy.pdf
  • PETRONIO, S. Boundaries of privacy: dialectics of disclosure. Albany: State University of New York Press, 2002.
  • QUAN-HAASE, A.; COLLINS, J. L. I’m there, but I might not want to talk to you. Information, Communication & Society, v.11, p. 526-543, 2008.
  • RIBEIRO, J. C. Controle de informações sociais em ambientes digitais: repercussões na construção da narrativa de si. In: FERNANDEZ, E.; DONARD, V. (Orgs.). O psicólogo frente ao desafio tecnológico: novas identidades, novos campos, novas práticas Recife: Editora UFPE; UNICAP, 2016a, p.87-99.
  • ______. Percepções sobre usos e apropriações de dispositivos comunicacionais móveis nas práticas interacionais contemporâneas: um estudo com jovens universitários portugueses. Relatório de pesquisa de pós-doutorado não publicado. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2016b.
  • SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, P. B. Metodologia de pesquisa São Paulo: Mc-Graw-Hill, 2006.
  • THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
  • TURKLE, S. Always on/always on you: The tethered self. In: KATZ, J. E. (Ed.). Handbook of Mobile Communication Studies, Cambridge, MA. MIT Press, 2008, p.121-137.
  • WESTIN, A. Privacy and freedom New York: Athenaeum, 1967.
  • ZHAO, S.; ELESH, D. Copresence as ‘being with’. Information Communication and Society, Londres, v.11, n.4, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2017
  • Aceito
    01 Abr 2018
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) Rua Joaquim Antunes, 705, 05415-012 São Paulo-SP Brasil, Tel. 55 11 2574-8477 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: intercom@usp.br