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Afetar e ser afetado pelo acontecimento: coberturas jornalísticas da Aids e impactos sociais

Afectar y ser afectado por el acontecimiento: coberturas periodísticas sobre la SIDA y los impactos sociales

Resumo

Neste artigo, o objetivo é discutir a Aids como acontecimento disruptor, em duas dimensões: sobre as relações sociais e sobre as coberturas jornalísticas que dela têm sido feitas. Deriva dessa condição seu caráter exemplar para a exploração da noção do poder de afetação de certos acontecimentos. As reflexões sobre o poder disruptor - e por isso mesmo emblemático - da Aids como acontecimento que afeta e é afetado pela vida social e pelas coberturas jornalísticas que se dão a partir de algumas investigações sobre o tema que temos desenvolvido já há mais de duas décadas. Quando surgiu como acontecimento problemático, a Aids forçou mobilizações médico-científicas e sociais diversas na tentativa de compreendê-la, movimento que afetou significativamente a cobertura noticiosa sobre a síndrome e os acontecimentos por ela desencadeados.

Palavras chave:
Jornalismo; Acontecimento; Narrativa; Aids; Poder de Afetação

Resumen

En este artículo, discutimos la SIDA como un acontecimiento disyuntor en dos dimensiones: sobre las relaciones sociales y sobre la cobertura periodística de la misma que se han hecho. Deriva de esta condición su carácter ejemplar para la explotación de la noción de poder de afectación de determinados acontecimientos. Nuestras reflexiones sobre el poder disyuntor - y por lo tanto emblemático - del SIDA como un acontecimiento que afecta y es afectado por la vida social y por la cobertura periodística se realizará a partir de algunas investigaciones sobre el tema que ya hemos desarrollado durante más de dos décadas. Al surgir como acontecimiento problemático, la SIDA obligó a muchos movimientos médico-científicos y sociales en un intento de entenderla, movimiento que afectó significativamente la cobertura de noticias sobre la síndrome y los acontecimientos desencadenados por la misma.

Palabras clave:
Periodismo; Acontecimiento; Narrativa; SIDA; Poder de Afectación

Abstract

In this article we discuss AIDS as a disruptor happening in two dimensions: on social relations and on the news coverage of it that have been made. Derives from this condition their exemplary character to explore the notion of the power of affecting of certain happenings. Our reflections about the disruptor power - and for that very emblematic - of AIDS, as a happening that affects and is affected by the social life, and the media coverage will be based on some research on the subject that we have already developed for more than two decades. When it emerged as problematic happening AIDS has forced many medical-scientific and social mobilizations in an attempt to understand it, (a) movement that significantly affected news coverage about the syndrome and the happenings it triggered.

Keywords:
Journalism; Happening; Narrative; AIDS; Power of Affecting

Introdução: algumas premissas para entender o problema

Pensar o Jornalismo em suas complexas operações de noticiar eventos diversos, inclusive levando em conta as muitas negociações de sentido com outros atores sociais aí implicadas, tem sido um exercício para o qual muitas pesquisas têm recorrido ao conceito de acontecimento. Para além de antigas concepções do fato como a matéria-prima do Jornalismo as novas investigações percebem no conceito de acontecimento e nas nuances necessárias para melhor problematizá-lo um campo fértil do ponto de vista heurístico - portanto envolvendo desafios teóricos e metodológicos - para elucidar relações certamente mais complexas do que certas tradições conceituais que se debruçam sobre o Jornalismo têm conseguido alcançar.

O poder de afetação dos acontecimentos, como indicam alguns autores (QUÉRÉ, 2005QUÉRÉ, Louis. Entre o facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação, Lisboa, n.6, v.1, p.59-75, 2005.), não se aparta do seu caráter hermenêutico, da sua capacidade de lançar luzes sobre si mesmos, como também sobre as dinâmicas do mundo no qual "eclodem", trazendo à tona questões do passado e perspectivas para o futuro. Lançados ao mundo, os acontecimentos se inscrevem ainda na dialética agir-sofrer (RICOEUR, 1994______. Tempo e narrativa - Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.;1997______.Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas: Papirus, 1997.), pois ao mesmo tempo em que atuam sobre as pessoas, promovendo deslocamentos de seu estar nos mundos natural e social, também têm seu curso alterado, inclusive pelas mesmas pessoas que o padeceram. Em função dessa dinâmica, novas narrativas individuais são tecidas, assim como os acontecimentos são enredados em tramas causais, em disputas de sentido sobre, afinal, quais são os seus significados. Nessa perspectiva, acontecimentos podem ser reivindicados ou recusados como concernentes a esferas pessoais, institucionais ou outras, prestando-se a jogos de poder e outras dinâmicas da vida social. Ao fim, parece certo que alguns acontecimentos, especialmente aqueles de grande impacto, jamais deixam de estar em curso, sendo permanentemente resignificados.

Tomamos a Aids, desde sua aparição pública, no início dos anos 1980, como acontecimento paradigmático das condições que acima listamos sobre os acontecimentos. Do seu surgimento aos dias atuais, a Aids tem deslocado verdades médicas e científicas, desafiado a capacidade de cura para algumas doenças, lançado problemas sobre preconceitos sociais diversos, especialmente aqueles ligados às relações de gênero, e mais particularmente à homofobia (CARVALHO, 2009CARVALHO, Carlos Alberto de. Visibilidades mediadas nas narrativas jornalísticas: a cobertura da Aids pela Folha de S.Paulo de 1983 a 1987. São Paulo: Annablume, 2009.,2012______. Jornalismo, homofobia e relações de gênero. Curitiba: Appris, 2012.,LEAL; CARVALHO, 2012)LEAL, Bruno Souza e CARVALHO, Carlos Alberto de . Jornalismo e homofobia no Brasil: mapeamentos e reflexões. São Paulo: Intermeios, 2012., além de produzir uma série de acontecimentos correlatos que gravitam em torno das diversas problemáticas por ela suscitadas. Nossa proposta é discutir a Aids como acontecimento disruptor, em duas dimensões: sobre as relações sociais e sobre as coberturas jornalísticas que dela têm sido feitas. Deriva dessa condição seu caráter exemplar para a exploração da noção do poder de afetação de certos acontecimentos.

Apesar de não ser o propósito trabalhar especificamente com um recorte empírico, nossas reflexões sobre o poder disruptor - e por isso mesmo emblemático - da Aids como acontecimento que afeta e é afetado pela vida social e pelas coberturas jornalísticas se darão a partir do acionamento de algumas investigações sobre o tema que temos desenvolvido já há mais de duas décadas. Metodologicamente, cada pesquisa teve que se haver com peculiaridades e mesmo partiram de indagações diferentes em cada momento, mas mantiveram em comum o fundo problematizador que a Aids instaurou para o universo da produção e circulação de narrativas jornalísticas. Desse modo, a homofobia é uma dessas temáticas que a Aids dá a ver desde o seu surgimento. Da perspectiva dos acontecimentos, se em outras empreitadas nos detivemos, por exemplo, em certas possibilidades e vicissitudes de pensá-los a partir de sua natureza acidental ou programada (CARVALHO, 2012______. Jornalismo, homofobia e relações de gênero. Curitiba: Appris, 2012.), aqui o poder de afetação é o que efetivamente nos move como problema.

Pensar o acontecimento em seu poder de afetação, além da dialética agir-sofrer, e mesmo como condição para melhor compreendê-lo em seu poder também hermenêutico, implica o reconhecimento da sua historicidade. Aqui estamos tomando a noção de historicidade a partir dePaul Ricoeur (1994______. Tempo e narrativa - Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.,1995______. Tempo e narrativa - Tomo II. Campinas: Papirus, 1995.,1997______.Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas: Papirus, 1997.,2007)______.A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007., que a situa como uma dimensão intimamente articulada com a problemática das interconexões entre tempo, memória e narrativa. Ora, se os acontecimentos naturais e sociais afetam pessoas e são elas as responsáveis por interpretá-los, estamos diante de outro desafio, também a ser enfrentado a partir de proposições deRicoeur (1991)RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991., qual seja, o de que, em certa medida, o próprio ser humano é um "acontecimento", no sentido desenvolvido em "O si-mesmo como um outro" de que as transformações físicas, éticas e morais pelas quais passamos no percurso de uma vida são melhor compreendidas pela investigação da dialética mesmidade-ipseidade1 1 De forma sumária, a dialética ipseidade-mesmidade é inscrita nas reflexões de Paul Ricoeur sobre o que permaneceria o mesmo em nós, por exemplo como traço de caráter, e aquilo que se modifica no confronto entre nossas experiências e o reconhecimento da alteridade, do Outro. Eticamente somos implicados a nos percebermos sempre como um Outro, condição de compromisso com nossas trajetórias e as alheias. .

Colocada a equação em outros termos, o poder de afetação dos acontecimentos aparece como um motor para as próprias transformações físicas e psicossociais que experimentamos em nossas trajetórias individuais e sociais, como adiante exploraremos no que diz respeito aos movimentos que a Aids ajudou a desencadear e/ou fortalecer. Assim, nossos corpos, em sua inevitável transformação ao longo dos anos, constituem uma importante narrativa sobre nossas experiências. Mirar uma fotografia de um corpo jovem e atlético, fixando-se somente no aparente, nos conta potencialmente sobre saúde, futilidade, hedonismo, um determinado padrão de beleza socialmente construído e demais valores sociais, éticos e morais aí implicados. Do mesmo modo a mirada superficial sobre a fotografia de um corpo velho, "desgastado" pelo tempo, nos narra potencialmente uma história de sofrimentos, derrotas e conquistas, experiência de vida, calejamento pelas lidas e também valores sociais, éticos e morais sobre a velhice. Em suma, a dialética ipseidade-mesmidade é atravessada pelas potencialidades narrativas encerradas em nossos corpos, o que, no primeiro momento do acontecimento Aids foi um dos aspectos mais dramáticos dentre as demais narrativas que a partir dos corpos foram tecidas, sempre levando em conta a dialética agir-sofrer e o poder de afetação do acontecimento.

Do que acima se expôs o acontecimento em seu poder de afetação será aqui abordado evitando-se quaisquer ranços de certos traços deterministas que costumam aflorar quando dos "efeitos" produzidos por acontecimentos sobre as dimensões individuais e sociais. Do mesmo modo, não nos interessa pensar trajetórias de vida como acontecimentos tomados pelo viés das dicotomias que opõem o psicológico e o social. Inspirados em Paul Ricoeur pensamos os entrecruzamentos entre acontecimentos naturais e sociais com a vida em sua dimensão acontecimental como aquilo que comporta, dialeticamente, as extensões sociais e psicológicas fora dos marcos das sobredeterminações de uma sobre a outra. É somente a partir dessa possibilidade que entenderemos como a Aids instaura, simultaneamente, por exemplo, terrenos férteis para a proliferação de discursos e práticas homofóbicas e para a contestação desses mesmos regimes de poder.

Nossas reflexões sobre o poder de afetação dos acontecimentos percorrerá dois caminhos teóricos para finalmente tecer considerações sobre coberturas jornalísticas que têm a Aids - acontecimento maior - e seus acontecimentos correlatos como objeto de difusão. Um primeiro gesto será entender como o acontecimento em seu poder de afetação coloca em cena múltiplos atores sociais na tentativa de desvendá-lo. Na sequência lembramos alguns dos principais momentos que constituem a historicidade da Aids, com especial atenção para a homofobia. Ao analisarmos os modos como o Jornalismo tem sido tensionado não nos deteremos especificamente em uma análise clássica das narrativas, mas nos valeremos de alguns exemplos por nós explorados em pesquisas diversas com o intuito de ilustrar a Aids como acontecimento paradigmaticamente compreendido como esclarecedor sobre o poder de afetação. Em certo sentido, tentaremos, em circularidade, indicar mais um conjunto de questões do que aprofundamentos.

Poder de afetação e a dialética agir-sofrer

Uma primeira pergunta se faz aqui, na esteira das contribuições deRicoeur (1997)______.Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas: Papirus, 1997.acerca da "consciência histórica": é possível ter uma dimensão das modificações que, no futuro, um determinado acontecimento que surge fortemente no presente promoverá? Longe de qualquer exercício de futurologia vulgar, a pergunta instaura uma problemática complexa: diante de acontecimentos que surgem colocando em xeque estruturas aparentemente fixas, consolidadas ou assim demonstrando ser, nota-se a articulação mais imediata de atores sociais em busca das interpretações sobre eles, como condição de garantir que suas posições sobre tais acontecimentos transformem-se naquelas que hegemonicamente dirão sobre eles para as gerações futuras.

Claro está que alguns cuidados são necessários para evitar determinismos. Primeiro, que os acontecimentos não podem ser atribuição exclusiva de figuras proeminentes, a exemplo de atribuir a Hitler a "responsabilidade histórica" sobre o Nazismo, esquecendo-se de todos os fatores conjunturais que levaram a Alemanha daquele período a chancelar a política adotada pelo ditador. Segundo, mesmo quando uma liderança desperta como a "responsável" por determinado acontecimento, não há possibilidade de que ela detenha controle absoluto sobre os desdobramentos dos acontecimentos que estimulou, pois estes serão parte de um debate social mais amplo, condição mesmo para a sua sobrevivência ou perecimento. Terceiro, os acontecimentos podem conter em si as indicações de suas potencialidades e ameaças a posições sociais já no momento de sua eclosão, mas pelas razões anteriores, seu controle absoluto não é jamais possível. As três condições não são as únicas que compõem a dialética agir-sofrer implicada no nascimento e percurso de um acontecimento, mas nos servem como ilustração para os propósitos aqui perseguidos.

Colocado como problema para o historiador, o acontecimento representa desafios que não estão simplesmente na ordem da sua possível reconstituição, mas especialmente se apresenta como um desafio teórico e metodológico. Segundo Ricoeur,

[...] na medida em que o historiador está implicado na compreensão e na explicação dos acontecimentos passados, um acontecimento absoluto não pode ser atestado pelo discurso histórico. A compreensão - mesmo a compreensão de um outro singular na vida cotidiana - não é nunca uma intuição direta, mas uma reconstrução. A compreensão é sempre mais que a simples simpatia (RICOEUR, 1994______. Tempo e narrativa - Tomo I. Campinas: Papirus, 1994., p.140).

Situado nestes termos o desafio ao historiador, temos que os acontecimentos, na verdade, nem mesmo pertencem exclusivamente ao passado, pois sua vinda ao presente, embora pelas mãos do pesquisador, é potencialmente a manutenção da "vida" daquele acontecimento que ainda desafia. Em outros termos, não somente ao particular ofício do historiador, mas provavelmente a um grupo social mais amplo, aqueles acontecimentos submetidos ao escrutínio continuam mantendo seu poder de afetação. Não por acaso, é bastante conhecido o slogam "conhecer o passado para evitar cometer os mesmos erros no presente, garantindo assim um futuro menos equívoco". Mas há ainda um aspecto fundamental a explorar, qual seja, o de que não existir um acontecimento absoluto aponta para o caráter sempre provisório de quaisquer interpretações sobre seus significados. Ou dito de maneira distinta, não se trata apenas da impossibilidade de resgate da totalidade de um acontecimento, ainda que este tenha sido fartamente documentado, mas do fato de que uma interpretação tende a convocar outra, posto, inclusive, que dar sentido a acontecimentos passados se faz com base em condições do presente e pensando-se em projeções futuras. O jargão "conhecer o passado para evitar erros" pode, assim, ser lido também como a tentativa de, a partir de um acontecimento, prescrever normas para o presente e projetar ações para o futuro, indicando a infinitude da dialética agir-sofrer implicada nos acontecimentos.

Nessa direção é que tomamos de empréstimo aRicoeur (1997, p.359 e seguintes)______.Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas: Papirus, 1997.a noção de "hermenêutica de uma consciência histórica", destacando que nos interessa aqui também pensar sobre a possibilidade de uma "hermenêutica de uma consciência do presente", que, claro, estaria intimamente vinculada à noção anterior. Sempre coerente com sua "filosofia da ação", diz-nos Ricoeur:

Acerca da realidade do passado, mal podemos ultrapassar, na visão direta do que foi, o jogo precedente de perspectivas fragmentadas entre a reefetuação no Mesmo, o reconhecimento da Alteridade e a assunção do Análogo. Para ir mais adiante, é preciso tomar o problema pela outra extremidade, e explorar a idéia de que essas perspectivas fragmentadas possam reencontrar uma espécie de unidade plural, se a reunirmos sob a idéia de uma percepção do passado, levada até a de um ser-afetado pelo passado. Ora, essa idéia só ganha sentido e força quando oposta à de fazer história. Pois ser afetado é também uma categoria do fazer. [...] É, pois, na dimensão do agir (e do padecer, que é o seu corolário) que o pensamento da história vai cruzar suas perspectivas, sob o horizonte da idéia de mediação imperfeita (RICOEUR, 1997______.Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas: Papirus, 1997., p.359-360, com destaque do autor).

Apesar de nossas reflexões não se inscreverem nos marcos das preocupações teóricas e metodológicas do ofício de historiador, elas são fortemente comprometidas com a noção de historicidade anteriormente aludida, o que nos leva a pensar o agir-sofrer em conjunto com a perspectiva do poder de afetação presente em todos os acontecimentos, que nos é caro como condição de inteligibilidade das próprias forças que se põem em campo na interpretação deles. Se a Aids, para retomarmos nosso foco de atenção, foi uma "novidade" quando do seu surgimento, não eram novas as possíveis consequências nefastas guardadas em memórias individuais e coletivas sobre a exclusão causada por doenças como a hanseníase (SONTAG, 1989SONTAG, Susan. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.). Essa "hermenêutica de uma consciência histórica" surge, assim, como parte da dialética agir-sofrer, levando a uma "hermenêutica da consciência do presente" que fez com que a Aids mobilizasse atores sociais que a sofriam, direta ou indiretamente, rumo a uma ação que evitasse os horrores de um passado relativo a outras doenças que também geraram exclusão e preconceito. Nesse sentido, o que efetivamente sempre está em jogo é o futuro, pois é nele que habitaremos, nessa atividade de sísifo em que o passado é também o segundo imediatamente anterior ao agora e o futuro o segundo imediatamente posterior.

Em que pese, portanto, o acento ricoeuriano nas preocupações teóricas e metodológicas com o labor historiográfico, suas reflexões nos alertam sobre a natureza dos acontecimentos como potencialidades, sempre. Radicalizando, não chega exatamente ao status de acontecimento aquele (s) evento (s) que não se inscreve (m) na dialética agir-sofrer, pois dele (s) é difícil afirmar qualquer poder de afetação. Perseguindo novas pistas sobre o acontecimento em seu poder de afetação, encontramos emLouis Quéré (2005)QUÉRÉ, Louis. Entre o facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação, Lisboa, n.6, v.1, p.59-75, 2005.uma contribuição de viés mais sociológico, mas igualmente centrada em uma perspectiva da ação, na qual o agir-sofrer também se apresenta como fundamental:

Uma parte da compreensão do acontecimento advém da passibilidade que lhe devemos. Passibilidade não é passividade, no sentido ordinário do termo. [...] Pelo contrário, é a passibilidade que faz com que a confrontação com um acontecimento assuma dimensões de provação, isto é, de travessia, na qual, aquele a quem o acontecimento acontece, seja um indivíduo seja um colectivo, se expõe, corre riscos, perigos, põe em causa a sua identidade (QUÉRÉ, 2005QUÉRÉ, Louis. Entre o facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação, Lisboa, n.6, v.1, p.59-75, 2005., p.66).

A partir destes termos, parece-nos possível a síntese que perseguimos: o poder de afetação dos acontecimentos está precisamente no fato de que, ao afetarem pessoas e/ou coletividades, eles acionam memórias e consciências, fazendo com que o sofrer seja a mola propulsora que leva ao agir. Se em Quéré, no texto que ora utilizamos como referência, a narratividade não se coloca como questão central, ela é uma das guias fundamentais no pensamento ricoeuriano, a quem somos mais tributários neste exercício reflexivo. Consequentemente, outra síntese nos é necessária: todo acontecimento exige uma narração e o próprio gesto narrativo é, definitivamente, parte constituinte da dialética agir-sofrer e indicativo essencial do poder de afetação do acontecimento. Como nos recorda Ricoeur, ainda nos marcos das questões com as quais se debatem os historiadores, "assim, pelo fato de que são narrados, os acontecimentos são singulares e típicos, contingentes e esperados, desviantes e tributários de paradigmas, mesmo que de modo irônico" (RICOEUR, 1994______. Tempo e narrativa - Tomo I. Campinas: Papirus, 1994., p.295).

Em nossa perspectiva, narrar o acontecimento, envolvê-lo em uma intriga, é parte constituinte das tentativas de desvendá-lo, mas também de colocá-lo sob marcos interpretativos a partir dos quais indivíduos e/ou grupos buscam conexões com o passado, a compreensão do presente e a construção de futuros possíveis. Esclarece-nos, desse modo, a análise de José Rebelo:

Em "Événement et sens", um ensaio publicado no nº 2 da revista Raisons Pratiques, Paul Ricoeur enuncia três fases na génese e no desenvolvimento do acontecimento. A primeira corresponde à emergência da ocorrência propriamente dita. A segunda corresponde à procura de sentido. A terceira, à diluição do acontecimento na narrativa construída a seu propósito. A narrativa não aparece, pois como dispositivo de restituição de um passado, mas como tratamento último ao qual o acontecimento é sujeito e pela qual o acontecimento, com aquilo que provoca, é incorporado ao mundo vivido. Mais radical ainda, Jocelyne Arquemburg estima que a narrativa está presente em todas as fases do processo. Está presente na emergência do acontecimento por via dos actores, das testemunhas, dos media, que nos dão, dele, uma primeira definição. Está presente na controvérsia suscitada pelo acontecimento, por via de todos aqueles que tentam apropriar-se do respectivo sentido. Está presente na irrupção das consequências, por via dos que investem na sua gestão (REBELO, 2005REBELO, José. Apresentação. Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação, Lisboa, nº 6, v. 1, p.55-58. 2005., p.56).

Concordamos integralmente com a proposição de Jocelyne Arquemburg e vemos nela aquilo que efetivamente faz dos acontecimentos, especialmente aqueles problemáticos (QUÉRÉ, 2005QUÉRÉ, Louis. Entre o facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação, Lisboa, n.6, v.1, p.59-75, 2005.), como entendemos a Aids, portadores das potencialidades de afetação. Uma visada sobre a historicidade do surgimento e evolução da Aids, incluindo modos como ela foi problematizadora para as coberturas jornalísticas, nos levará a uma compreensão melhor delineada sobre poder de afetação e dialética agir-sofrer como equações desafiadoras na elucidação de alguns acontecimentos, a partir de situações concretamente experimentadas no "mundo vivido", como indicado por José Rebelo.

A Aids em sua historicidade: impactos sociais e coberturas jornalísticas

Provavelmente a Aids foi a primeira doença de grande impacto que surgiu e teve sua evolução inicial - ou a formação discursiva médica e social sobre seus significados, como bem indicaKeneth Rochel de Camargo Jr. (1994)CAMARGO JR., Kenneth Rochel de. As ciências da Aids e a Aids das ciências: o discurso médico e a construção da Aids. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ABIA: IMS, UERJ, 1994.- sob os olhares atentos da cobertura jornalística. Olhar que, pelo fato de o acontecimento maior HIV/Aids se prolongar como problematizador desde o seu surgimento, jamais deixou de estar atento, capturando todos os acontecimentos desencadeados a partir da epidemia. Se em um primeiro momento o impacto da Aids esteve relacionado ao desconhecimento sobre a "doença misteriosa", de origem ignorada, a partir da descoberta do vírus causador e do engano inicial - ainda hoje não superado em longo estrato do imaginário social - de que a epidemia estaria restrita a "grupos de risco", atualmente gravita em torno dela um impressionante cipoal de questões. Como superar preconceitos, políticas públicas de combate e prevenção aliadas a garantias de tratamento universal e quebra de patentes de medicamentos são apenas alguns dos desafios enfrentados e que podemos denominar de acontecimentos desencadeados a partir da Aids.

Uma das tentativas de organização dos embates em torno da Aids e dos acontecimentos por ela provocados tem se dado a partir da identificação de temas que prevaleceram em diversas fases de compreensão da síndrome e seus impactos, como indica Vanda Lúcia Vitoriano do Nascimento:

A primeira fase, dos anos 1970 a 1981, concerne à disseminação silenciosa do vírus. A segunda, diz respeito à epidemia propriamente dita e engloba os anos de 1981 a 1985. A terceira fase (1985 a 1988) foi por ele [Jonathan Mann] denominada de "epidemia de respostas sociais, culturais e econômicas à aids", sendo caracterizada pelos níveis excepcionalmente altos de estigma, preconceito, discriminação e, por vezes, de repulsa coletiva. As características da terceira fase fazem-se presentes ainda hoje. O Programa Conjunto das Nações Unidas para a Aids - UNAIDS (...) considera que o estigma, o preconceito e a discriminação relacionados à epidemia são fenômenos universais, ocorrendo nos níveis político, institucional, social e psicológico, em todas as regiões e países do mundo (NASCIMENTO, 2009NASCIMENTO, Vanda Lúcia Vitoriano do. AIDS e direitos humanos: práticas sociais em situações de discriminação. Curitiba: Juruá, 2009., p.23, com destaques da autora).

Em que pese o risco da perda de filigranas e sutilezas com a adoção de critérios de periodização ou fases na historicização da Aids, o que temos é um quadro revelador do poder de afetação e mobilização que a síndrome trouxe no seu bojo. A ela não foi possível ficar indiferente, mesmo quando supostamente sob a proteção garantida por estar fora dos "grupos de risco", à medida que o contágio poderia ocorrer com sangue contaminado em uma rotina médica ou tratamento odontológico, por exemplo. Se o pânico inicial revelou-se desmedido, afinal chegou-se mesmo a cogitar o fim da humanidade em consequência de uma doença de rápido espraiamento global (O'NEILL, 1994O'NEILL, John. A AIDS e o pânico globalizante. In: FEATHERSTONE, Mike (Org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. p.349-363.), ele não significou somente sequelas negativas, mas contraditoriamente serviu como mote, na lógica da dialética agir-sofrer o acontecimento, para a criação de uma consciência, também ela global, da existência de preconceitos sexistas, sexuais, de raça, por nível econômico e outros fatores. À medida que a Aids foi evoluindo ela não suscitou somente debates nos campos médico e científico, mas fez ver mobilizações sociais vindas de esferas não relacionadas aos saberes institucionalizados, embora com estes se aliando em momentos estratégicos.

Da ideia inicial de "grupos de risco", gerada equivocadamente pelo fato de a Aids primeiramente ter sido identificada entre homossexuais, prostitutas, usuários de drogas injetáveis, hemofílicos e haitianos, o maior prejuízo social e simbólico recaiu sobre as homossexualidades masculinas, tornando mais visível a homofobia muitas vezes mal disfarçada em violências físicas e simbólicas. Se foi fortuita a identificação de homossexuais como "grupo de risco", pelo fato de um mesmo médico ter atendido um conjunto dessas pessoas no início da disseminação mais abrangente da Aids (CARVALHO, 2009CARVALHO, Carlos Alberto de. Visibilidades mediadas nas narrativas jornalísticas: a cobertura da Aids pela Folha de S.Paulo de 1983 a 1987. São Paulo: Annablume, 2009.), não foi obra do acaso o recrudescimento da homofobia, assim como também demandou estratégias a reação contra os preconceitos e a busca por direitos de tratamento médico, ficando a cargo, no início, majoritariamente, de grupos ligados à defesa de direitos dos gays. Em seu poder de afetação, o acontecimento Aids gerou, contraditoriamente, o sentimento homofóbico de finalmente se promover um "holocausto gay" (SEDGWICK, 1990SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the closet. Los Angeles: University of California Press, 1990.) e o aumento da visibilidade das lutas pelos direitos dos homossexuais, assim como da própria homossexualidade como componente da diversidade humana (GIDDENS, 2005GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.).

Na esteira do seu formidável poder de afetação e capacidade de acionamento da dialética agir-sofrer a Aids mobilizou, como já indicamos, diversos atores dos mundos médicos e científicos, ligados tradicionalmente ao controle social das doenças, assim como atores de outras esferas de saber quase sempre ignorados quando da mitigação de efeitos danosos de doenças de impacto social, como psicólogos, sociólogos e assistentes sociais, além de grupos não identificados com essas esferas de institucionalidade. Desse modo, muito cedo os grupos de apoio e prevenção ao HIV/Aids se espalharam Brasil afora, ao mesmo tempo em que se tornou consenso entre todos os envolvidos que somente a prevenção, por meio da divulgação massiva de métodos adequados, seria capaz de conter o avanço da epidemia.

O recurso à publicidade pelo sistema de vigilância epidemiológica para controlar e prevenir a disseminação da AIDS desloca o espaço de discussão para uma esfera onde habitualmente outros desejos e interesses se expressam. Diversos sujeitos e fatores históricos se articulam na ampliação do universo dos falantes sobre o vírus e a doença. É uma epidemia de informações no espaço social da comunicação (LIMA, 2006LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de. Aids: uma epidemia de informações. 2.ed. Rio de Janeiro: E-Papers, 2006., p.24).

A ideia de epidemia de informações reflete não somente o lado positivo da busca por soluções como medicamentos, métodos de prevenção ou mesmo a cura, mas também o espraiamento, como rastilho de pólvora, de todas as formas de preconceito contra os soropositivos. Em nosso envolvimento com a temática HIV/Aids e homofobia em diversas pesquisas empreendidas nas duas últimas décadas o poder de afetação da Aids como acontecimento maior e dos acontecimentos que se desenvolveram a partir dela é esclarecedor sobre como acontecimentos problemáticos não somente perduram em seus processos de busca de significados e resignificações, como tensiona de forma permanente a cobertura jornalística. Desse modo, como demonstraram estudos sobre a cobertura da Aids em jornais brasileiros, no momento de sua aparição pública, ela oscilou entre a tentativa de equilíbrio e sobriedade, buscando evitar o pânico, e manchetes escandalosas que escancaravam a homofobia, ao estilo de "peste gay" ou "câncer rosa" (FAUSTO NETO, 1999FAUSTO NETO, Antônio. Comunicação e mídia impressa - estudos sobre a Aids. São Paulo: Hacker Editores, 1999.). Em pesquisa realizada em jornais de quatro países,Nelson Traquina (2005)TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística - uma comunidade interpretativa transnacional. v. II. Florianópolis: Insular, 2005.identifica na cobertura da Aids, no ano de 1993, a tendência à adoção de estratégias muito próximas entre eles, como uso de fontes oficiais e adoção dos mesmos critérios de noticiabilidade, reforçando a noção da atividade jornalística nos marcos da proposta de uma "comunidade interpretativa".

Na cobertura por nós investigada que a Folha de S.Paulo fez da Aids entre os anos de 1983 e 1987 evidencia-se o poder de afetação deste acontecimento sobre o Jornalismo, o que não ocorreu somente em função das próprias preocupações daquele jornal, mas também das pressões exercidas por outros atores sociais para que o tratamento dado a soropositivos evitasse preconceitos e desumanizações. Em editorial publicado em 1985, portanto em momento crucial da definição dos discursos médico-científicos e sociais sobre a Aids, a Folha assim se posiciona:

Nesse contexto, a responsabilidade dos órgãos de comunicação de massa é magnificada. A importância de se buscar toda a informação, por mais fortes e preconceituosas que sejam as forças em jogo, não pode subestimar-se. Se o assunto é polêmico, todas as fontes devem ser valorizadas e cotejadas, sem distinção de grupos institucionais, acadêmicos ou comunitários. Cabe à imprensa, em todas as suas formas, empenhar-se para que nada fique oculto, mas também para que as revelações se dêem num clima de esclarecimento e tranqüilidade, evitando o pânico e o sensacionalismo (CARVALHO, 2009CARVALHO, Carlos Alberto de. Visibilidades mediadas nas narrativas jornalísticas: a cobertura da Aids pela Folha de S.Paulo de 1983 a 1987. São Paulo: Annablume, 2009., p.104).

Classificada pela Folha como "doença social", a Aids se mostra, na verdade, como um acontecimento diante do qual não foi possível ficar impassível. Se a homofobia foi desde o primeiro momento um elemento central da cobertura - ainda que raramente assim nomeada - as narrativas acionaram, naquele primeiro momento, movimentos sociais, ONG's, médicos e outros especialistas como vozes autorizadas a dizer sobre a síndrome, suas consequências e formas de enfrentamento. No entanto, por razões que foram dos preconceitos à invisibilidade determinada pelo risco do "contágio social", raras foram as ocasiões em que os próprios soropositivos tiveram voz ativa nas narrativas daquela cobertura da Folha. Em pesquisa posterior (MÍDIA E HOMOFOBIA, 2008MÍDIA E HOMOFOBIA. Relatório de pesquisa. Universidade Federal de Minas Gerais/Ministério da Saúde/Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime: Belo Horizonte/Brasília, 2008.), embora a Aids não fosse o objeto único de investigação, percebese uma mudança de estratégia na cobertura da Aids, com menor importância atribuída as ONG's e outras formas de ativismo, prevalecendo nas narrativas jornalísticas vozes mais técnicas, como médicos e cientistas, mas ainda "silenciando" quem convive com o HIV no organismo.

A propósito das relações entre HIV/Aids e homofobia, chamou-nos atenção que, mesmo após mais de três décadas do equívoco de atribuir "exclusividade" da Aids a homossexuais, dentre os outros grupos de risco, a cobertura jornalística continua a indicar correlações diretas entre eles. Em pesquisa sobre as interconexões entre HIV/Aids e homofobia nos jornais Estado de Minas, O Globo e Folha de S.Paulo uma série de narrativas nas quais a incidência da Aids entre homossexuais masculinos e homens que fazem sexo com homens mantém a ideia equivocada de "grupos de risco", seja como problema a ser superado, seja como expressão de pensamento de pessoas ouvidas nas narrativas. Essa permanência na cobertura jornalística pode ser compreendida face a pesquisas de outra natureza, por exemplo, empreendidas na Espanha por Fernando Villaamil Pérez (2010), indicando que a homofobia é um elemento central na determinação da vulnerabilidade de alguns grupos de homossexuais masculinos em condições de violência física e simbólica. Ainda que não seja tão comum ouvir as pessoas portadoras do HIV, a pesquisa com os três jornais indica, comparativamente às duas investigações que citamos anteriormente, que em parte quebrou-se o tabu de esconder-se com medo dos preconceitos ainda fortes que são dirigidos a soropositivos. Encontramos, assim, algumas narrativas nas quais pessoas soropositivas são ouvidas ou mesmo a razão de construção do texto (CARVALHO; LAGE, 2012______. Jornalismo, homofobia e relações de gênero. Curitiba: Appris, 2012.).

Os corpos, após o sucesso da medicação com o coquetel que inibe a replicação do HIV, mantendo os usuários, quando não sofrem rejeição aos componentes dos medicamentos, em condições de saúde idênticas às de qualquer pessoa com doença crônica, já não mais "denunciam" a Aids como nos primeiros anos de difusão da epidemia. Novas narrativas corporais são assim tecidas, em que a dialética ipseidade-mesmidade segue o curso quase idêntico ao de qualquer outra pessoa, claro, mantendo-se as especificidades de cada história de vida. O Jornalismo, no entanto, enfrenta desafios de cobertura distintos a cada nova descoberta de tratamento, a cada sucesso parcial na busca por uma vacina, a cada novidade no campo das lutas pela prevenção e pelo acolhimento humanitário dos portadores do HIV, dentre outros acontecimentos desencadeados pela Aids.

Conclusão

Refletir sobre o poder de afetação dos acontecimentos e a dialética agir-sofrer que lhe é adjacente nos permite ir além na compreensão sobre o próprio estatuto dos acontecimentos, mas particularmente interessa às nossas investigações sobre o Jornalismo ao promover importantes deslocamentos sobre modos tradicionais e reducionistas de concepção do acontecimento em estudos da área. O risco mais evidente, inclusive por ser o mais recorrente, é a redução do acontecimento à noção de fato, este compreendido como aquilo que supostamente portaria em si a objetividade daquilo a que se refere (GENRO FILHO, 1987GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê!, 1987.). Como buscamos evidenciar, a noção de acontecimento, enriquecida pelos aportes das tradições de estudos historiográficos e sociológicos, indica que o Jornalismo não dá a ver "irrupções em uma superfície lisa", na infeliz proposição deAdriano Duarte Rodrigues (1993)RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento. In: TRAQUINA. Nelson (Orgs.). Jornalismo: questões, teorias e "estórias". Lisboa: Vega, 1993. p.27-33.sobre os acontecimentos, mas lida com complexas ocorrências cuja historicidade jamais pode ser desprezada. Acontecimentos com poder de afetação são, nessa perspectiva, inscritos em jogos de interpretação permanentes, remetem à consciência do passado e simultaneamente lançam luzes sobre uma potencial consciência do presente, projetando futuros possíveis.

A historicidade implica ainda ao acontecimento ser apanhado pela armação de intrigas, ser narrado, como condição mesmo dos processos de inteligibilidade dos seus significados. Mas não só, à medida que o potencial de infinitamente narrar um acontecimento é revelador das disputas de sentido em torno dos seus significados, dos seus impactos relativos à dialética agir-sofrer. O acontecimento que não cessa de acontecer, inclusive ao promover acontecimentos correlatos, como vimos no caso exemplar da Aids, aponta para a ação de uma multiplicidade de atores sociais que, ao serem afetados pelo acontecimento, sobre ele agem, buscando evitar algumas de suas possíveis consequências e mesmo tentando controlar as consequências, aqui pensadas não como mera relação de causalidades ou de jogos fortuitos, mas como estratégias delineadas a partir dos eventos.

Ao Jornalismo como prática social não é possível ficar impassível diante de acontecimentos dessa ordem, jogando luzes sobre a sua condição de um dos atores sociais fortemente envolvidos pelo poder de afetação e pela dialética agir-sofrer. Ao pesquisador, no entanto, não é suficiente verificar o Jornalismo em sua dimensão de prática social se a entendermos simplesmente como o acionamento de um conjunto de regras de narrar, de procedimentos de escolha do que noticiar, das pressões institucionais aí envolvidas e outros olhares empobrecedores que um conjunto de "teorias" sobre o Jornalismo tem se limitado a debater.

A questão mais profícua que deve ser colocada, portanto, diz de um novo modo de análise do Jornalismo, no qual as práticas estejam inseridas no conjunto de problemas mais amplos que as complexas e intrincadas relações sociais no entorno do acontecimento permitem ver. A historicidade do próprio Jornalismo, nessa perspectiva, não pode ser desprezada, pois está nela o elemento mais rico para a compreensão das contradições e idiossincrasias dessa atividade humana e social. Historicidade que convoca, necessariamente, o reconhecimento de que também as tentativas de compreensão do Jornalismo devem ser pautadas pela lógica dos fluxos temporais. Como o Jornalismo sempre apanha os acontecimentos por meio de narrativas, estar atento a elas é o primeiro cuidado teórico-metodológico. É necessário, assim sendo, identificar como se dá a armação da intriga, quais são as relações de temporalidade acionadas, quais são as personagens implicadas, na condição de fontes ou agentes que auxiliam a contar a história, dentre outros elementos capazes de, a partir dos acontecimentos narrados, esclarecer sobre eles e, dialeticamente, tomá-los como esclarecedores sobre os modos de ser do Jornalismo.

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    De forma sumária, a dialética ipseidade-mesmidade é inscrita nas reflexões de Paul Ricoeur sobre o que permaneceria o mesmo em nós, por exemplo como traço de caráter, e aquilo que se modifica no confronto entre nossas experiências e o reconhecimento da alteridade, do Outro. Eticamente somos implicados a nos percebermos sempre como um Outro, condição de compromisso com nossas trajetórias e as alheias.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2014
  • Aceito
    13 Ago 2015
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