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'Troca de Família': espiando as famílias, enxergando a sociedade * Vera Regina Veiga França Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG; pesquisadora do GRIS/UFMG (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade) e bolsista do CNPq. Formada em Comunicação/Jornalismo, mestre em Comunicação, doutorou-se em Ciências Sociais pela Université René Descartes, Paris 5, e fez estágio de pós-doutorado na École des Haustes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, França). Atua nas áreas de Teorias da Comunicação, Metodologia de pesquisa em Comunicação, Comunicação e Cultura Midiática. E-mail: veravfranca@yahoo.com.br

'Troca de Família': espiando familias, viendo la sociedad

Resumo

Este texto apresenta uma leitura do programa televisivo Troca de Família, apresentado pela Rede Record. Sua análise nos incita a rever as características dos reality shows, inserindo-os na dinâmica mais ampla dos valores e dos embates sociais e no quadro da cultura. Por meio da análise de uma troca, propomos investigar o modo como as mães se inserem no novo lar e as relações estabelecidas por elas nas novas famílias. À luz do conceito de performance, e tendo desenvolvido uma grade analítica a partir dos acontecimentos fixos e centrais do programa, deparamo-nos com a convivência conflituosa entre dois modelos de família bastante distintos. No desenrolar da relação, mais do que o papel da mãe, atuaram os modelos culturais que instruíam a performance dos participantes e ressaltaram suas diferenças e contradições.

Palavras chave
Reality show; Modelos culturais; Sociabilidade; Diferença; Troca de Família

Resumen

Este artículo presenta una lectura de la serie de televisión Troca de Família, transmitida por la Rede Record. El análisis nos insta a revisar las características de los reality shows, colocándolos en la dinámica más amplia de valores y conflictos sociales y en el contexto de la cultura. A través del análisis de un episodio, vamos a investigar cómo las madres viven en el nuevo hogar y las relaciones establecidas por ellas en las nuevas familias. A la luz del concepto de performance y un grado analítico a partir de los eventos centrales y fijos de lo programa, percibimos la coexistencia conflictiva entre dos modelos familiares muy diferentes. En el curso de la relación, más que el papel de la madre, los modelos culturales instruyeron el desempeño de los participantes y destacaron sus diferencias y contradicciones.

Palabras clave
Reality shows; Modelos culturales; Sociabilidad; Diferencia; Troca de Família

Abstract

This paper presents a reading of the television show Troca de Família, broadcast by Rede Record. The analysis of this reality show urges us to review the characteristics of reality shows, placing them in the broader dynamic of values and social conflicts and in the context of culture. Through the analysis of an episode, we propose to investigate how mothers insert in the new home and the relations that they establish in new families. Illuminated by performance concept and after we have developed an analytical grid based on fixed and central program events, we are faced with the conflicting coexistence between two very different family models. During the relationship, more than the role of the mother, acted cultural models that instructed the performance of the participants and highlighted their differences and contradictions.

Keywords
reality show; cultural models; sociability; difference; troca de família

Introdução: uma perspectiva de leitura dos reality

O programa televisivo Troca de Família, produzido pela Rede Record de 2006 a 2011, se inscreve num gênero hoje bastante presente e já familiar em vários países, que é o reality show. Inaugurado por alguns programas criados ao longo dos anos 1990, esse gênero teve precursores em décadas anteriores, porém, é nesse início do século 21, que ele se estende e se consolida, representando, em larga medida, a nova face da televisão.

Como toda novidade, essa linha de programação despertou não apenas um grande interesse de público, mas também da comunidade de pesquisadores. Para falar do Troca de Família devemos, portanto, nos situar minimamente nesse terreno já bastante palmilhado, recuperando as características centrais do gênero e os principais aspectos salientados pelos estudiosos1 1 Ver ANDACHT (2002, 2003), CAMPANELA (2012), CASTRO (2006), DUARTE (2003), FECHINE (2009), HELLER (2009) e ROCHA (2012). .

O eixo temático dos reality é evidenciado na própria nomeação que recebeu: exibir/ explorar a dimensão espetacular (fantástica) contida na vida cotidiana das pessoas comuns. Seu conteúdo se refere à exposição dessas pessoas (do "homem ordinário"), representando a si mesmas no enfrentamento de situações corriqueiras (comer, dormir) e/ou extremadas (passar por provas e perigos, viver em confinamento). A atuação dos participantes no papel de si mesmos, bem como a concretude das experiências vividas, constituem os elementos de realidade desses programas; as reações imprevistas, a maneira e as dificuldades para lidar com desafios e tensões conferem a sua espetacularidade. Diferentemente das emissões jornalísticas, que procuram fazer uma leitura da realidade exterior, aqui, as situações são produzidas; constituem algo como um laboratório experimental. E se há uma produção que visa explorar os atrativos e atiçar o interesse, nesses programas, não se trata de uma história inventada nem de papéis fictícios, como acontece na produção ficcional tradicional: as pessoas estão, de fato, vivendo e reagindo a um dado contexto e situação; suas lágrimas, seu suor, seu medo e alegria foram provocados por situações vividas ali2 2 Sinais que Andacht (2003a) caracteriza como de natureza indicial: o suor registra o esforço do corpo, os gritos de medo apontam a presença da forte emoção etc.. .

Inúmeras indagações vêm sendo suscitadas por esse tipo de programa, relacionadas ao seu estatuto de realidade, à sua linguagem e gênero, ao tipo de atrativo que apresentam à audiência, aos valores que evocam e sobre os quais se assentam, à sua inserção no quadro social mais amplo.

Questiona-se, entre outros aspectos, a sua dimensão de real, apontando tanto a presença e interferência da emissora, por meio de sua equipe de produção (o BBB, por exemplo, estaria se parecendo cada vez mais com as novelas da Globo)3 3 Segundo Yvana Fechine, dirigidos ou não, os participantes do BBB cumprem papéis e etapas muito próximos da narrativa ficcional, sendo que a "própria Globo reconhece que o programa é assistido como se fosse uma novela da vida real" (FECHINE, 2009, p.159). quanto o caráter "encenado" da atuação dos participantes, encarnando tipos e papeis. Sem aprofundar esta discussão sobre o que é o "real" da realidade (seria uma possível espontaneidade, a ausência de influências, o mundo "externo" à mídia?), acentuamos, no entanto, que é exatamente aí – na encenação de papeis, na utilização de modelos aceitos, de discursos disponíveis – que a sociedade penetra na televisão; se torna matéria-prima retrabalhada pela representação.

Assim, não nos interessa perguntar o quanto de realidade existe no Troca de Família, mas como ele está ligado – e o que ele nos diz – da sociedade na qual se insere e da qual constitui um dos momentos.

A definição do gênero dos reality shows esbarra na sua natureza híbrida. Ao pensarmos nos dois gêneros básicos que estabelecem a matriz dos diferentes formatos televisivos, informação e ficção, nos damos conta de que tais programas são constituídos pela mistura. Nós assistimos indivíduos que convivem, que circulam, que agem e reagem; apreendemos signos que desempenham uma clara função indicial/informativa. Mas também vemos a evidente presença e influência dos formatos ficcionais (e das representações simbólicas) instruindo a conformação dos reality; conforme o tipo de programa, percebemos claramente a influência da linguagem da telenovela, de programas de auditório, de filmes de aventura. Em vários estudos, autores apontam, nos reality shows brasileiros e latino-americanos, a forte presença do traço melodramático, pela configuração maniqueísta, com o uso de pares antinômicos e tipos exemplares, pela exploração das emoções e, sobretudo, das tramas amorosas e dos enredos dramáticos (ROCHA, 2009ROCHA, Cristine. Reality TV e reality show: ficção e realidade na televisão. E-compós: Revista da Associação Brasileira de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v.12, n.3, p.116, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/387/380>. Acesso em: 16 nov. 2011.
http://www.compos.org.br/seer/index.php/...
).

Hoje, gênero híbrido já não é um distintivo, mas um traço geral dos programas televisivos; a mistura informação/entretenimento cada vez mais se naturaliza pelos dois lados, e se programas ficcionais, de entretenimento, primam pela busca das marcas do real, programas informativos, por seu lado, exploram elementos ficcionais, de entretenimento (vide a discussão sobre o infotainment4 4 No Brasil, Itania Gomes (2009) trabalha com o termo infotainment, que é tratado pela autora como um neologismo. Segundo Gomes (2009), o termo se constrói sobre a junção de duas expressões que caracterizam duas áreas (até então distintas) da produção cultural, a informação e o entretenimento. ). Sobre os reality, o que podemos constatar é sua consolidação enquanto um gênero próprio, agregando diferentes divisões internas. Assim, é com essa constituição híbrida, misturada que devemos pensar em nosso programa, o Troca de Família.

Outro aspecto que desperta o interesse dos pesquisadores é o grande sucesso de público que tais programas vêm alcançando pelo mundo todo: nem sempre o mesmo formato faz igual sucesso em todos os países, mas um ou outro se adaptam bem em culturas específicas, e, em determinados momentos, chegam a provocar verdadeiros fenômenos de audiência.

Alguns autores convocam conceitos da psicanálise, particularmente o voyeurismo (e seu par, o exibicionismo) para explicar a audiência ávida e atenta dos programas5 5 Rocha (2009), por meio da noção de "voyeurismo midiático", ressalta a possibilidade criada pelos reality shows de acompanhar o que se passa na privacidade de outras pessoas, outras casas, outros estilos de vida. "Assim, são coletados hábitos, histórias e comportamentos, diferentes formas de viver" (ROCHA, 2009, p.3). . Tal explicação, centrada na psicologia individual, não justifica, no entanto, a eclosão desse fenômeno neste momento (e não em outros).

Ainda nos anos 1960, E. Morin (1977)MORIN, Edgar. Os Olimpianos. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo – Neurose. 4ªed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977., analisando a atração suscitada pelos astros hollywoodianos, os "olimpianos", fez uso dos conceitos (também da psicanálise) de projeção e identificação. Em trabalho anterior (França, 2014FRANÇA, Vera V. Celebridades: identificação, idealização ou consumo? In: FRANÇA, V. et al. (Orgs.). Celebridades do século XXI: transformações no estatuto da fama. Porto Alegre: Sulina, 2014. p.15-36.), discutimos a pertinência atual desses conceitos – do mecanismo de projeção para explicar a atração por ídolos cada vez mais passageiros e desprovidos de grandiosidade, do mecanismo de identificação para sustentar a relação de interesse por figuras ordinárias que, via de regra, aparecem para serem escarnecidas e alvo de chacotas. Em substituição (ou complementando as noções de projeção e a identificação, que talvez já não se apliquem tanto), sugerimos que talvez devêssemos falar de "transferência" – um mecanismo de triangulação, no qual o terceiro aparece no lugar do segundo (o "tu" imediato) como depositário de nossos desejos e frustrações. Admiração e crítica se superpõem, numa relação de adesão e distanciamento. Nesse sentido, o interesse pela pessoa comum (alguém "como nós") aspirando pela visibilidade, fama, riqueza (como nós também aspiramos) é uma forma segura de torcermos pelo (seu/nosso) êxito e exorcizarmos o (seu/nosso) fracasso. Nessa transferência, nesse deslocamento (é ele, não sou eu; junto com ele, sou eu), vislumbramos a intervenção da cultura, a presença dos valores contemporâneos de visibilidade, fama, sucesso – assim como a dificuldade e a luta por sobrevivência numa sociedade competitiva e individualista.

Por esse caminho, a relação com a audiência e o sucesso desses programas (e de quaisquer outros, diga-se de passagem) não é explicada a partir de suas características próprias, internas, nem por fatores da personalidade humana, mas pelo contexto sóciocultural e pelo universo de valores da sociedade. Fugimos de uma explicação psicologista e inserimos nossa leitura em um enquadramento sócio-cultural. A análise de um produto comunicativo, ainda que não se desdobre em estudos específicos de recepção, deve ser marcada pela compreensão de que esse objeto de estudo não constitui um elemento isolado, mas parte de uma cadeia interacional, dialogando, de forma hipotética, com sua audiência potencial e com a sociedade no qual se insere.

Chegamos assim a uma outra perspectiva de análise dos reality shows, que é a que realmente nos interessa, e nos indica um caminho pelo qual promovemos nossa leitura do Troca de Família. Trata-se de pensar os programas em diálogo com os valores sociais, e de alguma maneira, como "laboratórios", como extratos ou "situações exemplares"6 6 Não no sentido de servir de exemplo, de modelo, mas de exemplificar aquilo que se passa para além do programa e das telas da tevê. da nossa sociedade. Numa relação de reflexividade, a televisão nos fala da sociedade que a produz e para a qual ela fornece representações.

Entendemos que os reality shows trazem marcas sociais (nos dão a ver os valores sociais) sob duas perspectivas. Primeiramente, ao representar seu próprio papel, conscientes da visibilidade e, em alguns tipos de programas, buscando a adesão e o voto da audiência, os participantes fazem escolhas dentro do cardápio de desempenho de papéis disponível na sociedade, escolhendo os modelos que supõem de maior aceitação. Essa escolha, portanto, é indicativa de algo que terá valor social, provocará aceitação e adesão da sociedade. Como segundo aspecto, e entendendo a própria formatação dos programas enquanto uma narrativa social, uma das tantas narrativas que uma sociedade produz para falar de si mesma (assim como os mitos nas sociedades primitivas), poderemos analisar a própria proposta de programa enquanto uma estruturação de sentido que se utiliza de modelos narrativos correntes e ecoa questões sentidas e vividas socialmente.

Este, então, é o caminho e são as diretrizes que orientaram nossa leitura do programa Troca de Família, um estudo desenvolvido sobre um conjunto de emissões que teve como objetivo central investigar as representações dos papéis da mãe e da família na quarta temporada desse reality show7 7 O resultado do estudo foi apresentado em relatório de pesquisa A representação de papéis no reality show Troca de Família (SOUZA, 2011), dentro do projeto Práticas comunicativas, valores e instituições, desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS/UFMG), sob a coordenação de Vera França e com financiamento do CNPq. . No presente texto, trabalhando com a hipótese de que o papel da mãe é central para a construção narrativa do programa, propusemo-nos a investigar, em uma emissão específica, o modo como as mães se inserem no novo ambiente interativo e se relacionam com as novas famílias. O caso estudado foi exibido em fevereiro de 2011, e as mães que trocaram de família foram uma defensora de animais e a esposa de um peão de rodeio.

Para o estudo do programa, delineamos um roteiro de análise que nos permitiu observar o desempenho das participantes no decorrer do programa. Para tanto, buscamos analisar sua performance, bem como os papéis sociais assumidos e os valores evocados durante a troca. O roteiro partiu dos acontecimentos centrais e fixos8 8 São eles: apresentação das participantes e das famílias; encontro com a nova família; ambientação na nova casa; passeios; festa; encontro das mães; reencontro das famílias e leitura da carta. de cada troca e permitiu a esquematização da trajetória das participantes no programa e das informações sobre cada troca. Na perspectiva de Goffman (1985GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 5a ed. Petrópolis: Vozes, 1985., 2010)_______. Comportamento em lugares públicos. Petrópolis: vozes, 2010., entendemos a performance como nosso desempenho frente ao nosso interlocutor; a maneira como administramos nossa aparência e comportamento em função das expectativas do papel assumido, mas também do outro da relação. A noção de performance, portanto, pensa o desempenho do sujeito em interação com seu outro imediato, mas também com o Outro social (modelos culturais).

Antes de promover a análise, devemos, porém, apresentar e descrever o programa, destacando seus traços principais, suas características distintivas, aspectos pelos quais se diferenciam de outros reality.

'Troca de Família': dinâmica do programa

Lançado em 2006, pela rede Record, o Troca de Família é a versão brasileira do reality norte-americano Trading Spouses, do canal FOX. O programa manteve os mesmos moldes da versão dos Estados Unidos: duas famílias completamente diferentes convivem com uma mãe substituta (eventualmente com um pai) por uma semana. Durante este tempo, as novas mães têm que se inserir no cotidiano uma da outra e decidir como a família de inserção vai gastar o prêmio de R$ 25 mil, atribuído pelo programa a cada uma delas. As primeiras temporadas do programa foram exibidas as terças, às 23h, e tinham uma hora de duração. A partir da quarta e última9 9 O Troca de Família voltou a ser exibido pela Rede Record em setembro de 2015. No entanto, a emissora tem exibido reprises dos principais episódios das quatro temporadas, sendo que em alguns casos, as participantes da troca vão ao estúdio do programa e conversam com a apresentadora Chris Flores sobre sua vida pós-troca. temporada, o programa ganhou duas horas de duração, sendo exibido primeiramente como um quadro do dominical Tudo é Possível e a partir de 2011, as terças e quintas, às 23h.

Independentemente das mudanças de horário e de duração, o programa manteve a mesma dinâmica. Sua construção narrativa é marcada pelos dias, sendo que algumas atividades desempenhadas pelos participantes são estabelecidas pela atração: preparação de uma festa pela mãe substituta para a nova família, escrita da carta que define como a família de inserção gastará o prêmio, encontro entre as mães e troca das cartas.

O primeiro dia de gravações ocorre na casa das famílias e tenta mostrar a rotina dos participantes e as expectativas da troca. No segundo dia, as mães vão ao encontro das novas famílias, sendo que durante cinco dias elas se inserem na rotina familiar do novo lar. Ao final do programa, os participantes falam sobre o significado de terem participado do reality, se aconteceram mudanças, como perceberam a experiência, como se viram e como viram a família com a qual conviveram.

Para driblar o pouco tempo de duração dos episódios, a edição é muito dinâmica. Percebemos que há um trabalho dos editores para que a transição dos acontecimentos aconteça sem grandes quebras, o que facilita o acompanhamento dos fatos por parte do público. O programa apresenta vários recursos audiovisuais que dão à trama mais movimento, como a troca de planos das câmeras e dramaticidade, por meio da trilha sonora, da repetição de imagens, de enquadramentos em detalhe e a exposição de depoimentos emocionados.

A cada troca, a edição constrói a narrativa a partir de determinados enquadramentos. Ela privilegia alguns acontecimentos, oferecendo ao espectador certas formas de apreensão dos fatos, disponibilizando certas possibilidades significativas. Ao enquadrar, o programa emoldura certas situações de interação tendo como base esquemas interpretativos que guiam a edição. Assim, o choro, as brigas, os momentos de emoção ganham muito mais destaque do que as situações corriqueiras.

Outro elemento importante dessa construção são os depoimentos dos participantes10 10 Tanto as mães quanto os outros membros da família são chamados a depor sobre os acontecimentos e a expressar suas opiniões, sentimentos e expectativas. , ao longo dos dias, usados tanto para legitimar certos acontecimentos quanto para atribuir novas interpretações aos fatos. O depoimento também se destaca como momento de interação dos participantes com o público, pois a oportunidade de falar da troca permite que eles repensem determinadas atitudes e acabem, em alguns casos, alterando sua performance.

Como em todos os demais programas que se inserem no gênero reality show, o elemento "pessoas reais, representando-se a si mesmas numa situação de interação" constitui o traço distintivo. No conjunto deles, a estrutura das versões de maior sucesso é relativamente simples. A maioria funciona como um concurso ou gincana, no qual os participantes competem entre si e são eliminados no decorrer do programa, restando ao final apenas um vencedor. Troca de Família, no entanto, mantém algumas particularidades, a começar pela própria dinâmica do programa, que não se assemelha nem a uma gincana nem a um concurso, nos quais os participantes são eliminados. Aqui, o maior desafio não é vencer os outros competidores, mas conseguir conviver com as diferenças impostas pelo novo lar. Não há, assim, vencedores ou perdedores, mas um jogo de interações no qual as mães substitutas têm que aprender a lidar com a nova rotina e adentrar o espaço da vida privada de uma família totalmente diferente da sua. Ao mesmo tempo, os outros membros da família também são convocados a lidar com as diferenças e receber a mãe substituta nesse espaço tão pessoal que é o lar. O prêmio também aparece como diferencial, já que a participação no programa, desde que sejam cumpridas as regras do jogo e a participante não desista do desafio, já garante seu recebimento.

Dentre alguns elementos identificadores dos reality shows, apontados por Duarte (2003)DUARTE, Elizabeth Bastos. Reflexão sobre os reality shows. In: XII Encontro da COMPÓS. Recife, 2003. Anais... Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1037.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2011.
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, elegemos quatro para uma breve caracterização e distinção do Troca de Família. O primeiro é o cenário do jogo que, de acordo com a autora, nos reality shows, isola os participantes do mundo exterior. Neste item, o Troca de Família inova, já que ao invés de um cenário montado pela produção e isolado do mundo externo, propõe que as famílias abram as portas dos próprios lares, que se constituem como o palco por excelência da convivência. Essa abertura é a prova maior do alto grau de exposição a que estas famílias se sujeitam – afinal o lar é uma das maiores expressões de nossa intimidade. O único isolamento imposto pelo programa é o das mães em relação as suas famílias e vice-versa.

Outra característica apontada por Duarte se refere às regras do jogo, que vão reger a convivência dos participantes, as disputas e as atividades que eles têm de desempenhar. Assim como outros reality shows, o Troca de Família tem regras claras que conduzem a dinâmica da troca. As mães têm que viver por uma semana na casa, não podem falar com suas famílias, têm que produzir uma festa e decidir como será a divisão do prêmio, além de gastar seu prêmio conforme a decisão da outra mãe. Porém, mais do que as regras do jogo, consideramos que as regras sociais são as principais configuradoras das relações estabelecidas entre os participantes, uma vez que o desempenho da mãe, dos filhos e do marido reflete valores, interesses e comportamentos sociais dos sujeitos que se configuram nas relações cotidianas. O desafio ali é ser mãe/pseudo-esposa numa outra família; portanto, os papeis de mãe, mulher, família se tornam centrais.

Duarte também destaca o papel do apresentador dentro do programa. Estes atuam no jogo como atores sociais e discursivos, já que desempenham diferentes funções na condução da trama, instituindo outro nível de manipulação dentro do jogo. Porém, diferentemente do que acontece em outros reality shows, a apresentadora11 11 Na quarta temporada foi Amanda Françoso. do Troca de Família não interfere diretamente no jogo, já que não estabelece nenhum contato com os participantes, apenas com o público. Arriscaríamos a dizer que, se há outros atores sociais interferindo durante a troca, são os cinegrafistas ou os produtores que estão em contato direto com os participantes na casa.

Por fim, Duarte destaca o papel do telespectador como agente da trama. Segundo a autora, em muitos reality shows, o público "intervém verdadeiramente na trama: disso decorre que, de atores sociais e receptores, eles passam a atores discursivos que, embora anônimos, contribuem nesse tipo de construção discursiva, tanto como enunciadores como atores" (DUARTE, 2003DUARTE, Elizabeth Bastos. Reflexão sobre os reality shows. In: XII Encontro da COMPÓS. Recife, 2003. Anais... Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1037.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2011.
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. p.6). Vários reality shows se destacam por este aspecto: Ídolos, A Fazenda e Big Brother Brasil são alguns deles. No entanto, tal elemento não é encontrado no Troca de Família, já que o telespectador não pode interferir diretamente no programa. Mesmo com a baixa interatividade, não podemos desconsiderar o público como um fator importante, já que os participantes, mesmo não dependendo do voto para receber o prêmio, levam em consideração, durante sua performance, a opinião dos telespectadores que os assistem, já que eles têm em mente a ideia de um público ideal, que está assistindo o programa e que tem certas expectativas em relação a seu desempenho.

O peão e a defensora dos animais

Para fins desse artigo, escolhemos um episódio específico – uma troca efetuada em fevereiro de 201112 12 Essa troca, que compôs a quarta temporada do programa, foi ao ar nos dias 16 e 18 de fevereiro de 2011. , que ocorreu entre a família Silva e a família Garcia Tavares. Dentre as várias questões estimuladas por nossa grade analítica, definimos como eixo condutor da presente reflexão indagações referentes à forma de inserção e às relações estabelecidas pelas mães nas famílias trocadas. Que papel elas assumiram? Como se deu seu desempenho? Como se viram e viram o outro – a nova família?

Para responder a tais indagações, é necessário apresentar inicialmente o perfil das mães, as características das respectivas famílias, a sequência de situações vividas por elas.

A família Silva vive em Tupã, interior de São Paulo, e se apresenta como uma típica família sertaneja. Rinaldo da Silva, 36 anos, é peão de rodeio e o provedor da família. Casado com Adriana Balmorisco da Silva, 31 anos, ele é conhecido no mundo dos rodeios como Formiguinha. O casal tem dois filhos: Raquel, 14 anos, e Rafael, 12 anos. Adriana é uma mulher simples, uma mãe presente, que cuida dos filhos, do marido e da casa, e se define como uma "mãezona"; os filhos e o marido falam dela como o alicerce da família. Os "Silva" têm um bom padrão de vida, fruto dos prêmios que Formiguinha ganhou nas competições. A vida da família é marcada pelo cotidiano rural, sendo que eles dividem o tempo entre a casa na cidade e o sítio.

Em São Paulo, capital, vive a família Garcia Tavares. O pai, Marcelo Tavares, 39 anos, é despachante aduaneiro. A mãe, Fernanda Lopes Garcia, 32 anos, é ativista e diretora de uma ONG de proteção aos animais. O casal tem uma filha de 10 anos, Maria Fernanda. Moram também na casa uma amiga de Fernanda, que atua com ela na ONG, com um filho de 13 anos. A casa também funciona como um abrigo para cães e gatos, com a presença de seis gatos e oito cães. A ativista é vegetariana e se define como uma mulher pouco tolerante com os erros das pessoas, mas muito tolerante com os animais. A família de classe média tem uma casa antiga. Fernanda conta que deixou um apartamento bom, com segurança, piscina e sauna para alugar uma casa "ruim", que tivesse espaço para os animais.

A troca de modo geral foi bem conflituosa, principalmente no que diz respeito ao relacionamento entre Fernanda e Formiguinha. A divergência de opiniões começou no caminho para a casa do peão, em torno do "sofrimento" do boi nos rodeios. Este assunto foi recorrente em várias conversas e brigas do pai com a nova mãe. Na outra família, em São Paulo, Adriana se espantou ainda no aeroporto com a movimentação da cidade. Ao chegar à casa dos Garcia Tavares, ela se assustou com a quantidade de animais e se mostrou incomodada com a presença dos gatos nos móveis e em vários cômodos da casa. Adriana reclamou ainda do cheiro dos animais e do barulho, mas isso não gerou nenhum conflito, embora a nova mãe aparecesse em momentos de choro e ansiosa para o retorno à sua casa.

Em Tupã, o assunto principal foi o rodeio, com argumentos de ambos os lados sobre os maus tratos e sobre os cuidados e treinamento dos bois. Outro assunto muito discutido foi o vegetarianismo, Formiguinha tentando convencer Fernanda a comer carne, esta apontando o absurdo de "comer o amigo".

Durante a troca, Fernanda foi a três rodeios, mesmo contra sua vontade. No primeiro, ela se mostrou insatisfeita na festa e chegou a torcer publicamente pelo boi: "Touro, touro", gritou, ao que Formiguinha retrucou: "você vai ser linchada!". Nos outros dois, mesmo não concordando com a festa, ela foi com trajes típicos13 13 Camisa xadrez, bota e chapéu. e em um deles, onde houve um rodeio mirim e Rafael (filho de Formiguinha) montou, a nova mãe se mostrou aflita e torceu pela vitória do "filho".

Adriana conseguiu se inserir bem no cotidiano familiar dos Garcia Tavares, assumiu as tarefas domésticas e o cuidado com Maria Fernanda, que ela considerou "uma menina carente de mãe". Já em Tupã, Fernanda não se dedicava tanto aos cuidados da casa e da alimentação da família, o que incomodou Formiguinha. O relacionamento de Fernanda com as crianças foi bom, apesar dela não demonstrar o mesmo cuidado de Adriana com os filhos.

Enquanto Fernanda conhecia o cotidiano rural, Adriana adentrava o cotidiano agitado da família paulista. Ela foi levada para um passeio cultural, visitando uma feira de adoção e o Masp (Museu de Arte de São Paulo) – do qual não gostou. Adriana também não gostou do metrô e da movimentação da cidade. Apesar de não demonstrar para a família sua insatisfação, Adriana revelava em seus depoimentos seu descontentamento com o novo lar e suas críticas à casa suja e desorganizada.

No quinto dia, enquanto a festa sertaneja, organizada por Adriana, conquistou os Garcia Tavares, a festa de Fernanda só intensificou os conflitos entre ela e Formiguinha. Durante toda a troca, nem Formiguinha nem Fernanda pareceram dispostos a mudar de opinião, ou ao menos levar em consideração a argumentação do outro. O objetivo de cada um era persuadir o "adversário" do seu ponto de vista; seus argumentos eram permeados por representações e estereótipos tanto dos rodeios e dos peões, como dos ativistas e das ONGs em defesa dos animais.

Ao fim da troca, as mães se encontraram para a entrega das cartas. Apesar de terem conversado pouco, ambas afirmaram que não se tornariam amigas. A chegada de volta ao lar foi emocionante, cada uma acentuando a valorização da própria família. As cartas não agradaram muito as famílias, principalmente aos Garcia Tavares, já que Adriana definiu Fernanda como uma mãe ausente, que colocava os animais em primeiro lugar. A ativista sentiu-se ofendida e retrucou de forma grosseira, falando da falta de educação da família Silva.

A busca do desentendimento

Para melhor situar o quadro relacional estabelecido, é interessante destacar, primeiramente, algumas características do próprio programa. Como todo reality, ele escolhe mães de verdade, famílias de verdade, e a ocorrência de uma troca e convivência efetivas entre eles. Há claramente um script, regras e pontuações, criando momentos e situações de interesse, suspense, apreensão: o primeiro encontro, a festa, a leitura da carta. Para isso contribuem a fala da apresentadora, a trilha sonora (música country, barulhos da cidade e do meio rural), a seleção de imagens (o choro de Adriana, flashes da "loucura" da metrópole, imagens fortes de rodeio). Mas o aspecto definidor da proposta do programa é a escolha de famílias de perfis antagônicos14 14 Em outros programas, viu-se a escolha de uma mãe palmeirense e uma mãe corintiana; uma mulher ciumenta e Gretchen; uma catadora de lixo e uma mulher rica etc. . No presente caso, tivemos uma defensora de animais na família de um peão de rodeio, e uma mãe dedicada ao lar numa família na qual a respectiva mãe desempenhava um papel menos convencional.

Este é então um primeiro elemento a ser destacado: a ênfase na diferença. Não se trata apenas da convivência de desconhecidos, como ser mãe em outra família, mas da convivência num quadro cultural contrastante. A proposta se encaixa bem no quadro da contemporaneidade, marcado não apenas pela intensa dinâmica intercultural, mas também pela incitação permanente à afirmação de uma identidade individual ("seja você mesmo"), à busca da autenticidade e da satisfação, à defesa das escolhas pessoais. Se apresentar como uma mãezona ou como pouco tolerante com as pessoas (já que "elas têm consciência, ao contrário dos animais") ganha igual legitimidade; a cidade e o campo são defendidos sem nenhuma hierarquia (pelo menos pelos participantes).

Nesse contexto, o Troca de Família poderia ter como propósito a investigação de como se dá a administração das diferenças ou o embate entre elas. A escolha do programa é pela segunda opção: seja pela seleção das famílias, seja pelas ênfases da edição e pelas intervenções e comentários da apresentadora, seu foco não recai no entendimento, mas no conflito. Assim como outras emissões, que exploram brigas, disputas, pancadaria (de programas de auditório às cenas de barraco das telenovelas), também aqui, o interessante parece ser o embate destruidor, conforme anunciado pela apresentadora, ao introduzir as cenas de Fernanda e Formiguinha: "o futuro não promete ser promissor"; "vai ser palco de muita discussão"; "promete mais desentendimento".

Não dizemos nenhuma novidade ao registrar essa perspectiva – porém, é preciso nos dar conta de seu alcance. A existência de tais programas mostra não apenas o interesse em assistir a brigas e desentendimentos (seu apelo de audiência), mas sua valorização. A sociedade valoriza a positividade na afirmação da própria diferença (e verdade), assim como aceita inclusive a disputa e briga para defender o próprio lugar, as opiniões pessoais, num movimento que alcança perigosamente a intolerância.

O que pode desencadear a equação intolerância – conflito – violência, que se dá a ver também em outro tipo de produção midiática, as reportagens policiais. Os reality shows se avizinham do clima e do cenário retratado diariamente pela imprensa em torno da violência urbana e familiar, dos crimes de gênero, da guerra do tráfico, entre outros flashes sombrios da vida cotidiana. O "real" da tevê tem grande intimidade com a violência como marca das relações e da sociabilidade.

Avançando agora na análise da performance dos participantes, sobretudo das mães, percebemos que elas procuram exercer, na nova família, o mesmo papel que desempenhavam na sua família de origem, continuando a defender seu próprio ponto de vista, a apreciar ou criticar o novo ambiente em função daquele a que estavam acostumadas, em vez de tentar um deslocamento ou uma negociação. O resultado é o estranhamento, o conflito – e a rejeição. A inserção de Adriana na família Garcia Tavares é aparentemente mais tranquila, mas apenas aparentemente; ela mal suporta o que ela caracteriza como sujeira e desorganização da casa, não aprecia nada do que lhe mostram da vida na grande cidade, chora, diz que mal aguenta terminar os dias. E na sua carta, critica o desempenho da outra mãe, que ela não havia conhecido ainda.

Fernanda, na família Silva, não assumiu as funções da mãe ausente, e aproveitou para marcar fortemente seu lugar de combate e de militância. Um aspecto interessante pôde ser observado: a defensora dos animais e sua família não eram propriamente vegetarianas. Em seu depoimento inicial, ela indica um esforço que estavam fazendo para retirar a carne do cardápio cotidiano ("estamos indo aos poucos, deixamos de comer carne na segunda; no final do ano, já é um boizinho a menos"). Na nova família, e como argumento para realçar suas posições, ela assumiu com muito mais convicção do que sua vida anterior traduzia, a crítica ao consumo da carne. Ou seja, o lugar de fala do programa estimulou sua intransigência – e não o contrário.

Um aspecto interessante (nessa edição analisada, mas também observada em outras), é que a relação da mãe com os novos filhos é relativamente boa; aliás, é onde vemos uma maior harmonia. Adriana se aproximou de Maria Fernanda, cuidou dela, e teve pena, julgando-a (a partir de sua perspectiva) uma filha carente. Fernanda, apesar de não cuidar da casa e da comida como aquela a quem substituía, se deu bem com as crianças, e inclusive torceu e se preocupou com Rafael quando o menino participou de um rodeio mirim. Esse ponto indica a menor discrepância no papel social de mãe; há diferenças no desempenho de tarefas, mas não na relação afetiva. Quanto ao papel da mãe na organização da casa, o programa mostrou um conflito de modelos (e uma questão de gênero), pois o desempenho de Fernanda tensionou claramente o enquadramento dado à mulher, de se ocupar da comida, da limpeza da casa etc.

Por outro lado, e se inicialmente nossa hipótese de análise do programa era quanto à centralidade do papel de mãe, percebemos que ele foi secundário na construção do enredo e na trama dos relacionamentos. Não foi enquanto mãe, na relação com os filhos, que a inserção nas famílias encontrou seu ponto nevrálgico. Os conflitos aconteceram a partir do lugar social e da perspectiva cultural defendida pelas mães e famílias. Adriana não saiu para o embate; foi bem aceita pela família, e não protagonizou conflitos. No entanto, foi bem explícita no seu julgamento: "não gosto desse lugar". Fernanda, estimulada por Formiguinha, assumiu uma posição mais belicosa; como foi evidenciado no momento da festa, ela não conseguiu conviver com pessoas e valores tão discrepantes dos seus. E seu comentário final15 15 "Berço, mãe e educação, quem teve, teve. Quem nasceu sem mãe e dormiu no caixote de laranja dá nessa merda", afirmou Fernanda. foi preconceituoso e de profundo desrespeito para com a família e as crianças com quem partilhara sua semana de troca.

Finalizando nossa reflexão, e nos limites deste texto, ressaltamos o lugar e a importância dos reality shows enquanto sintomas de nossa sociedade, tela na qual valores, interesses, perspectivas culturais eclodem e se dão a ver. As representações estão presentes em nosso dia a dia; mais do que uma inventora de representações, como muitos defendem, entendemos que a mídia propaga e reforça representações e tendências encontradas no seu contexto social. E a leitura do Troca de Família confirma essa compreensão; por mais que o programa intervenha na construção da realidade que ele mostra, e inclusive manipule algumas passagens e acontecimentos, ele dialoga e nos apresenta comportamentos, falas e ações que reconhecemos socialmente. Participantes buscam no cenário mais amplo seu modelo de ação e performance. Assim, quando olhamos para o papel da mãe e o destaque dado ao cuidado e educação dos filhos, percebemos que o programa não revela novas representações, mas recorre e acentua as expectativas vigentes. O mesmo acontece com a representação de família, reforçada pelo programa enquanto unidade básica de convivência, lugar do afeto, da segurança, do amor.

Percebemos também que o programa atua como espaço de visibilidade – pessoal, na medida em que as famílias, ao aceitarem participar do programa, para além do prêmio, estavam estimuladas por algum desejo de visibilidade. Mas, sobretudo, a visibilidade e a defesa de um modo de vida, de um padrão cultural. O embate de Fernanda e Formiguinha, mais que um conflito de duas pessoas, se constituiu como o embate de perspectivas culturais. A maneira de tratar a diferença também se mostra como sintoma do que existe hoje na sociedade. Assim, o programa não é um lugar externo à sociedade que a ela se impõe; ele é um dos lugares onde ela se dá a ver e se constrói. Mais do que uma crítica à televisão, o programa incita uma leitura crítica do momento em estamos vivendo.

  • *
    A primeira versão deste trabalho foi apresentada ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade, no XXI Encontro da Compós,na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012.
  • 1
    Ver ANDACHT (2002________. Uma aproximação analítica do formato televisivo do reality show Big Brother. Galáxia, São Paulo, v.6, p.145-164, outubro 2003a. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1339/829>. Acesso em: 05 jan. 2016.
    http://revistas.pucsp.br/index.php/galax...
    , 2003)ANDACHT, Fernando Torres. El reality show: una perspectiva analítica de la television. Bogotá: Norma, 2003. 144p., CAMPANELA (2012)CAMPANELA, Bruno. Os olhos do grande irmão: uma etnografia dos fãs do Big Brother Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2012., CASTRO (2006)CASTRO, Cosette. Porque os reality shows conquistam audiencias? São Paulo: Paulus, 2006., DUARTE (2003)DUARTE, Elizabeth Bastos. Reflexão sobre os reality shows. In: XII Encontro da COMPÓS. Recife, 2003. Anais... Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1037.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2011.
    http://www.compos.org.br/data/biblioteca...
    , FECHINE (2009)FECHINE, Yvana. A programação da TV no cenário de digitalização dos meios: Configurações que emergem dos reality shows. In: FREIRE FILHO, João (Org.). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.139-170., HELLER (2009)HELLER, Dana. Bailando ao redor do mundo: o apelo global dos formatos dos reality shows de dança. In: FREIRE FILHO, João (Org). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.111-138. e ROCHA (2012)ROCHA, Cristine. Reality TV e reality show: ficção e realidade na televisão. E-compós: Revista da Associação Brasileira de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v.12, n.3, p.116, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/387/380>. Acesso em: 16 nov. 2011.
    http://www.compos.org.br/seer/index.php/...
    .
  • 2
    Sinais que Andacht (2003a)________. Uma aproximação analítica do formato televisivo do reality show Big Brother. Galáxia, São Paulo, v.6, p.145-164, outubro 2003a. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1339/829>. Acesso em: 05 jan. 2016.
    http://revistas.pucsp.br/index.php/galax...
    caracteriza como de natureza indicial: o suor registra o esforço do corpo, os gritos de medo apontam a presença da forte emoção etc..
  • 3
    Segundo Yvana Fechine, dirigidos ou não, os participantes do BBB cumprem papéis e etapas muito próximos da narrativa ficcional, sendo que a "própria Globo reconhece que o programa é assistido como se fosse uma novela da vida real" (FECHINE, 2009FECHINE, Yvana. A programação da TV no cenário de digitalização dos meios: Configurações que emergem dos reality shows. In: FREIRE FILHO, João (Org.). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.139-170., p.159).
  • 4
    No Brasil, Itania Gomes (2009)GOMES, Itania Maria Mota. O infotainment na televisão. In: XVIII COMPÓS. Belo Horizonte, 2009. Anais... Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1154.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011.
    http://www.compos.org.br/data/biblioteca...
    trabalha com o termo infotainment, que é tratado pela autora como um neologismo. Segundo Gomes (2009)GOMES, Itania Maria Mota. O infotainment na televisão. In: XVIII COMPÓS. Belo Horizonte, 2009. Anais... Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1154.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011.
    http://www.compos.org.br/data/biblioteca...
    , o termo se constrói sobre a junção de duas expressões que caracterizam duas áreas (até então distintas) da produção cultural, a informação e o entretenimento.
  • 5
    Rocha (2009)ROCHA, Cristine. Reality TV e reality show: ficção e realidade na televisão. E-compós: Revista da Associação Brasileira de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v.12, n.3, p.116, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/387/380>. Acesso em: 16 nov. 2011.
    http://www.compos.org.br/seer/index.php/...
    , por meio da noção de "voyeurismo midiático", ressalta a possibilidade criada pelos reality shows de acompanhar o que se passa na privacidade de outras pessoas, outras casas, outros estilos de vida. "Assim, são coletados hábitos, histórias e comportamentos, diferentes formas de viver" (ROCHA, 2009ROCHA, Cristine. Reality TV e reality show: ficção e realidade na televisão. E-compós: Revista da Associação Brasileira de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v.12, n.3, p.116, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/387/380>. Acesso em: 16 nov. 2011.
    http://www.compos.org.br/seer/index.php/...
    , p.3).
  • 6
    Não no sentido de servir de exemplo, de modelo, mas de exemplificar aquilo que se passa para além do programa e das telas da tevê.
  • 7
    O resultado do estudo foi apresentado em relatório de pesquisa A representação de papéis no reality show Troca de Família (SOUZA, 2011SOUZA, F. C. A representação de papéis no reality show Troca de Família. 2011. 103f. Monografia. (Graduação em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais.), dentro do projeto Práticas comunicativas, valores e instituições, desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS/UFMG), sob a coordenação de Vera França e com financiamento do CNPq.
  • 8
    São eles: apresentação das participantes e das famílias; encontro com a nova família; ambientação na nova casa; passeios; festa; encontro das mães; reencontro das famílias e leitura da carta.
  • 9
    O Troca de Família voltou a ser exibido pela Rede Record em setembro de 2015. No entanto, a emissora tem exibido reprises dos principais episódios das quatro temporadas, sendo que em alguns casos, as participantes da troca vão ao estúdio do programa e conversam com a apresentadora Chris Flores sobre sua vida pós-troca.
  • 10
    Tanto as mães quanto os outros membros da família são chamados a depor sobre os acontecimentos e a expressar suas opiniões, sentimentos e expectativas.
  • 11
    Na quarta temporada foi Amanda Françoso.
  • 12
    Essa troca, que compôs a quarta temporada do programa, foi ao ar nos dias 16 e 18 de fevereiro de 2011.
  • 13
    Camisa xadrez, bota e chapéu.
  • 14
    Em outros programas, viu-se a escolha de uma mãe palmeirense e uma mãe corintiana; uma mulher ciumenta e Gretchen; uma catadora de lixo e uma mulher rica etc.
  • 15
    "Berço, mãe e educação, quem teve, teve. Quem nasceu sem mãe e dormiu no caixote de laranja dá nessa merda", afirmou Fernanda.

Programa analisado:

  • DEFENSORA DE ANIMAIS SE MUDA PARA CASA DE PEÃO. Troca de Família. São Paulo: Rede Record. 16 de fevereiro de 2011. Programa de TV.
  • MÃES TROCAM CARTAS E VOLTAM PARA CASA. Troca de Família. São Paulo: Rede Record. 18 de fevereiro de 2011. Programa de TV

Referências

  • ANDACHT, Fernando Torres. El reality show: una perspectiva analítica de la television. Bogotá: Norma, 2003. 144p.
  • ________. Uma aproximação analítica do formato televisivo do reality show Big Brother. Galáxia, São Paulo, v.6, p.145-164, outubro 2003a. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1339/829>. Acesso em: 05 jan. 2016.
    » http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1339/829
  • CAMPANELA, Bruno. Os olhos do grande irmão: uma etnografia dos fãs do Big Brother Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2012.
  • CASTRO, Cosette. Porque os reality shows conquistam audiencias? São Paulo: Paulus, 2006.
  • DUARTE, Elizabeth Bastos. Reflexão sobre os reality shows. In: XII Encontro da COMPÓS. Recife, 2003. Anais.. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1037.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2011.
    » http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1037.pdf
  • FECHINE, Yvana. A programação da TV no cenário de digitalização dos meios: Configurações que emergem dos reality shows. In: FREIRE FILHO, João (Org.). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.139-170.
  • FRANÇA, Vera V. Celebridades: identificação, idealização ou consumo? In: FRANÇA, V. et al. (Orgs.). Celebridades do século XXI: transformações no estatuto da fama. Porto Alegre: Sulina, 2014. p.15-36.
  • GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana 5a ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
  • _______. Comportamento em lugares públicos Petrópolis: vozes, 2010.
  • GOMES, Itania Maria Mota. O infotainment na televisão. In: XVIII COMPÓS. Belo Horizonte, 2009. Anais.. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1154.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011.
    » http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1154.pdf
  • HELLER, Dana. Bailando ao redor do mundo: o apelo global dos formatos dos reality shows de dança. In: FREIRE FILHO, João (Org). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.111-138.
  • MORIN, Edgar. Os Olimpianos. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo – Neurose 4ªed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977.
  • ROCHA, Cristine. Reality TV e reality show: ficção e realidade na televisão. E-compós: Revista da Associação Brasileira de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v.12, n.3, p.116, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/387/380>. Acesso em: 16 nov. 2011.
    » http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/387/380
  • SOUZA, F. C. A representação de papéis no reality show Troca de Família 2011. 103f. Monografia. (Graduação em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2015
  • Aceito
    30 Dez 2015
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