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O que é o sagrado no Instagram? Sacralização, dessacralização e ressacralização na cultura midiática

¿Qué es lo sagrado en el Instagram? Sacralización, desacralización y resacralización en la cultura mediática

Resumo

A partir dos postulados dos Estudos do Imaginário referentes à permanência dos mitos na contemporaneidade e da inerência do sagrado à situação humana, investigamos as formas de expressão que esse sagrado pode tomar na cultura midiática. Escolhemos, como material de estudo, fotografias publicadas no Instagram marcadas com a hashtag “sagrado”. Utilizamos a leitura simbólica seguida de uma leitura dos elementos contextuais de cada publicação para inferir as possíveis associações que os usuários fazem com a noção de sagrado, contrastando-as com possíveis hierofanias. Concluímos que as fotografias examinadas podem indicar processos simultâneos de sacralizações, ressacralizações e dessacralizações.

Palavras-chave
Comunicação; Imaginário; Instagram; Sagrado; Dessacralização

Resumen

A partir de los postulados de los Estudios del Imaginario referentes a la permanencia de los mitos en la contemporaneidad y de la inherencia de lo sagrado a la situación humana, investigamos las formas de expresión que ese sagrado puede tomar en la cultura mediática. Elegimos, como material de estudio, fotografías publicadas en el Instagram marcadas con el hashtag “sagrado”. Utilizamos la lectura simbólica seguida de una lectura de los elementos contextuales de cada publicación para inferir las posibles asociaciones que los usuarios hacen con la noción de sagrado, contrastándolas con posibles hierofanías. Concluimos que las fotografías examinadas pueden indicar procesos simultáneos de sacralizaciones, resacralizaciones y desacuerdos.

Palabras clave
Comunicación; Imaginario; Instagram; Sagrado; Desacralización

Abstract

From Imaginary Studies postulates referring to the permanency of myths in contemporary times and the inherence of the sacred with regard to the human situation, we have investigated the ways of expression this sacred quality may assume in media culture. As study objects, we have chosen pictures posted on Instagram featuring the hashtag “sacred”. We have made use of symbolic interpretation followed by an interpretation of the contextual elements of each post in order to infer all possible associations that users make with the idea of sacred, and comparing them with possible hierophanies. We have concluded that the pictures examined may indicate simultaneous processes of sacralization, desacralization and resacralization.

Keywords
Communication; Imaginary; Instagram; Sacred; Desacralization

Introdução

O sagrado é, talvez, a primeira e mais importante construção do imaginário. A consciência da morte, ao elaborar respostas através da produção de imagens simbólicas, já é por si só uma projeção da experiência humana que vai além da finalidade utilitarista; no entanto, algumas dessas imagens são especialmente dotadas de algo que as inscreve num eixo não apenas à parte da indiferenciação cotidiana, como também capaz de modificar as condições banais de existência: são as imagens do sagrado, carregadas de valores dispostos numa hierarquia capaz de nos orientar em meio à pluralidade de apelos internos e externos que nos chegam no dia-a-dia.

As redes sociais são hoje grandes fontes desses apelos; seu uso é particularmente vigoroso no Brasil, líder de usuários, considerando-se todas as redes1. Somente no Instagram, são publicados mundialmente 80 milhões de fotografias diariamente. Todo esse desejo de expressão de pontos de vista mobiliza uma escala de valores passível de ser remetida, senão ao sentimento de sagrado numa acepção restrita, pelo menos a certos aspectos que provêm de seus elementos racionalizados.

O sagrado, como toda a imagem simbólica, é capaz de comunicar conteúdos inacessíveis pelos processos racionais. É de difícil exame porque o simbólico não é uma característica que lhe pertença e sim uma condição para que ele aconteça, ou seja, o simbólico não é localizável materialmente porque depende de certas condições do ser imaginante. No entanto, trabalhamos com o postulado de que esse acontecimento subjetivo possa deixar rastros identificáveis quando examinado sob certos parâmetros. Acreditamos ainda que, embora a imagem técnica, quando considerada isoladamente, não tenha necessariamente nada em comum com a imagem simbólica, é capaz sempre de revelar algumas daquelas marcas deixadas pela motivação visceral do seu realizador, qual seja, um impulso oriundo de um estrato mais ou menos profundo do imaginário.

A fotografia é uma imagem técnica de rápida produção; apenas poucos centésimos de segundos decorrem entre ver e decidir apertar o botão do dispositivo fotográfico que vai registrar a cena. Hoje, a essa velocidade de produção, soma-se o compartilhamento extremamente fácil da fotografia. Certamente, a inflação de imagens a que se referiu Durand (1994)______. L’Imaginaire. Essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris: Hatier, 1994. tem conhecido seu paroxismo nesses tempos em que cada usuário das comunicações é não só receptor de mensagens, mas também um potente emissor. Sim, pode-se dizer que a banalização da imagem técnica contribui para o esvaziamento da imagem simbólica; no entanto, qualquer fenômeno massivo deve ser observado com atenção, pois certamente é sintoma de algum outro importante evento do imaginário. No caso, a inflação de imagens técnicas pode não ser simplesmente resultado do esvaziamento do simbolismo e, sim, também uma reação a esse esvaziamento, uma tentativa de compensar em quantidade a qualidade que está se enfraquecendo.

Neste artigo, nos propomos a examinar o processo de esvaziamento/compensação em um lócus que privilegia o compartilhamento massivo de imagens técnicas pessoais, particulares: o Instagram, rede social especializada em fotografias e vídeos. O Brasil ocupa, no Instagram, a segunda posição, com 50 milhões de usuários ativos, atrás apenas dos Estados Unidos, de um total mundial de 800 milhões de usuários. Trata-se de um aplicativo para telefones celulares que permite produzir e distribuir fotografias e vídeos disponibilizados aos demais usuários do mesmo aplicativo. A publicação da imagem pode ser acompanhada de hashtags2 2 Hashtags são palavras-chave antecedidas do sinal , recurso que é geralmente usado para aumentar as possibilidades de a imagem ser visualizada por um maior número de pessoas. Podemos inferir, assim, que as fotografias (e vídeos que, não obstante, não serão objeto de nossa atenção nesse trabalho) são rapidamente produzidos e compartilhados no Instagram, rapidez essa capaz de indicar impulsos; o desejo de que a expressão desse impulso seja conhecida por um grande número de pessoas é traído ao mesmo tempo pelo alcance da rede social escolhida e pelo uso de hashtags que potencializam a visibilidade da publicação.

Ao mesmo tempo em que a rapidez da produção e compartilhamento dessas imagens é reveladora de impulsos, elementos fundamentais quando se trata de examinar o imaginário, a ânsia de publicização vai na contramão da experiência da imagem simbólica nos termos em que é entendida por Durand (1964)DURAND, G. L’imagination symbolique. Paris: PUF, 1964., que supõe uma revelação pessoal cuja descrição não apenas é impossível de ser feita pelo sujeito imaginante, como também é desnecessária e inútil, já que, por si só, não modificará em nada a experiência simbólica, sua ou dos outros. Forma-se, assim, uma equação que conjuga as variáveis da diluição do simbolismo do sagrado com a ansiedade de comunicar experiências através de imagens técnicas. Combinaremos alguns aspectos dessas duas variáveis para compreender o sentido do sagrado na cultura midiática manifesta através das publicações de fotografias no Instagram.

Os princípios heurísticos com os quais trabalhamos são os seguintes: a produção simbólica tem precedência sobre os demais modos de operação do imaginário, racionalidade incluída (DURAND, 2011______. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 2011.); o imaginário possui vários níveis e formas de manifestação, desde as mais universais e menos numerosas até as mais particulares e numerosas, comparáveis à estrutura raízes-tronco-folhas de uma árvore (WUNENBURGER, 2002WUNENBURGER, J. La vie des images. Grenoble: PUG, 2002.); o mito é uma das formas de organização de imagens simbólicas mais próximas do subsolo original e incognoscível, articulando um “primeiro esboço de racionalização” (DURAND, 2011______. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 2011.) com o símbolo indizível; o mito é, ainda, a primeira aparição do sagrado (ELIADE, 1992aELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992a.); o sagrado, sentimento nascido diante do inteiramente desconhecido (OTTO, 1985OTTO, R. O sagrado. Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985.), é elemento ordenador do caos (ELIADE, 1992b______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. ).

Dessacralização, centralidade da mídia e terror da história

O sagrado é uma experiência além da religião, embora essa derive daquela, segundo Eliade (1992b)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. . Otto (1985, p.11)OTTO, R. O sagrado. Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985., um dos autores influenciadores de Eliade (1992b)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. , busca abstrair da noção de sagrado o elemento moral e o elemento racional, retendo apenas o que seria o sentido primitivo do sagrado, “[...] completamente inacessível à compreensão conceitual [e que] constitui algo inefável”. Esse elemento, tomado isoladamente, é chamado por Otto (1985, p. 12) de numinoso, “um estado de alma” só acessível através da experiência, de modo que a única forma de comunicá-la a é “[...] tentando chamar a atenção do ouvinte para a mesma e fazer-lhe encontrar em sua vida íntima o ponto onde ela surge e se torna então consciente”.

Otto (1985, p.11), ao explicar os sentidos da palavra sagrado, sublinha que ela indica “[...] interpretação e avaliação do que existe no domínio exclusivamente religioso”. Eliade (1992b, p.17 – Grifos do autor)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. relativiza essa ressalva, introduzindo o termo hierofania:

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. [...] Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo de “ordem diferente” - de uma realidade que não pertence ao nosso mundo - em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, profano.

Para Eliade (1992b)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. , sagrado e profano se complementam; isso torna possível verificar os rastros do sagrado no cotidiano banal. Não obstante, as ilações de Otto (1985)OTTO, R. O sagrado. Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. são úteis para a compreensão de aspectos vinculados ao sagrado que podem eventualmente encontrar meios de objetivação nas produções culturais, profanas.

O numinoso, em Otto (1985, p.55)OTTO, R. O sagrado. Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985., é alheio aos elementos racionalizáveis do sagrado; é um “sentimento de ser criatura” que leva à “diminuição e aniquilamento do eu”, mas não pelos motivos que usualmente associamos à auto depreciação, como a avaliação moral, a consciência de ter cometido alguma transgressão e, sim, pela “[...] presença do numen” (OTTO, 1985OTTO, R. O sagrado. Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985., p.55) que traz a “consciência da profanidade absoluta” (OTTO, 1985OTTO, R. O sagrado. Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985., p.55). Ora, se o numen provoca a clareza acerca do profano em seu mais alto grau, o profano é necessário para se alcançar o numen, pois o sagrado só poderá possuir esse atributo em meio ao profano. Assim, longe de se repelirem, sagrado e profano formam uma indissolúvel coincidentia oppositorum que somente às custas de um grande esforço racional será cindida.

É nesse caminho de construção da inteligibilidade do sagrado que se inscreve o mito. Segundo Eliade (1992a)ELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992a., a narrativa mítica descreve a primeira aparição do sagrado, o que ocorreu no começo de tudo, no começo dos tempos; ela explicita os elementos do sagrado, ainda que de modo altamente inacessível à compreensão racional, já que não trabalha com as estruturas temporais lineares do começo-meio-fim ou suas variantes de estilo em que flashbacks ou mesmo o fim podem se antecipar ao começo, estruturas estas implícitas no esquema causa-consequência. Aliás, a identificação desse esquema numa suposta narrativa mítica serve apenas para nos certificar de que não estamos compreendendo o mito.

Quando são detectadas causas e consequências na narrativa mítica, provavelmente ela está sendo reduzida às referências que se detêm, ou seja, a fatos externos a ela, históricos ou não. Esse hábito de leitura do mito remonta ao evemerismo, que buscava a inteligibilidade das narrativas em motivos projetivos, biográficos ou históricos; tais procedimentos retiram do mito seu caráter simbólico profundo que, a exemplo do numinoso, é transformador e não pode ser apreendido fora da experiência. Quando se está diante do mito em sentido estrito, há que se respeitar sua constituição em coincidentia oppositorum, guardiã do mistério, fiadora do sagrado; assim como ocorre com o numinoso e com tudo o que é simbólico, não se explica o mito: vive-se-lo.

Em vários de seus estudos, Eliade (1992aELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992a., 1992b______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. , 1994______. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1994., 2000)______. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000. postula, senão mostra, a continuidade, na vida contemporânea, das mitologias arcaicas. Sabemos que o mito não se apresenta hoje da mesma maneira que nos primórdios; embora ele sobreviva ao processo de racionalização que o expulsa da vida alegadamente civilizada, há modificações importantes nos seus modos de se apresentar, modificações essas que não se ligam todas à escolha da racionalidade em detrimento de outros saberes, mas que fazem parte de um ciclo (latência - surgimento - fortalecimento - decadência - latência) ao qual o dinamismo social submete o mito, como mostra Durand (1996)______. Introduction à la mythodologie: mythes et sociétes. Paris, Albin Michel, 1996.. O distanciamento entre sagrado e numinoso, com sua racionalização em instituição religiosa, pode ser sintoma do enfraquecimento da coincidentia oppositorum no mito que acaba se plasmando em manifestações menos complexas, já que a institucionalização do sagrado demite o mito de seu papel de nos introduzir no mistério.

Isso, é claro, não impede a ocorrência das hierofanias, talvez não exatamente como compreendidas por Eliade (1992b)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. , mas bastante enfraquecidas, de modo que no seio mesmo da vida cotidiana, encarnando-se subitamente nos objetos prosaicos, o sagrado ressurge, ainda que... dessacralizado! A discussão sobre a qualidade desse sagrado é espinhosa; não temos elementos para afirmar que em algum outro momento, anterior e melhor do que este, a humanidade foi realmente mais próxima da experiência simbólica transformadora, mas é possível que realmente estejamos imersos numa cultura abissalmente distante do sagrado.

Não é de hoje que se afirma a centralidade da mídia no prolongamento contemporâneo das mitologias arcaicas. Já na década de 1960, Eliade identificava uma versão moderna dos heróis mitológicos nos personagens de histórias em quadrinhos. Os estudos sobre a televisão realizados por Cazeneuve (1974)CAZENEUVE, J. L’homme téléspectateur. Paris: Denöel-Gonthier, 1974., poucos anos depois, davam conta da eficácia desse meio para a narração de conteúdos mitológicos. No Brasil, em 1982, Fischer (1993)FISCHER, R. M. O mito na sala de jantar. Leitura interpretativa do discurso infanto-juvenil sobre televisão. Porto Alegre: Movimento, 1993. desenvolveu, na área da Educação, talvez a primeira pesquisa brasileira relacionando a comunicação de massa à sobrevivência de mitos e ritos na contemporaneidade. Atualmente, é senso comum nos estudos de Comunicação brasileiros afirmar o papel mítico da mídia, mas ainda há muitas consequências a serem tiradas dessa afirmação e, sobretudo, é necessário um esforço para escapar à desgastada oposição entre apocalípticos e integrados (ECO, 1976ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1976.): ou bem as pesquisas constatam que o mito é uma realidade falsa, construída ideologicamente para manipular as massas, num arremedo das teorias do discurso na trilha de Barthes (1999)BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Editores, 1999., ou bem acreditam que o mito na mídia resolve os desequilíbrios do imaginário, conforme uma mal compreendida fenomenologia do imaginário proposta por Maffesoli (1995MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. , 2008______. Iconologies. Nos idol@tries postmodernes. Paris: Albin Michel, 2008., 2012) ______. O tempo retorna. Formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2012..

A investigação do papel da mídia sobre os processos de dessacralização e ressacralização nos pede atenção crítica. Contrera (2005, p.118) afirma: “A mídia é o novo ‘centro do mundo’, exercendo o poder totêmico em torno do qual a sociedade busca se agregar. Tudo para lá converge e ela nos devora com seus mil olhos eletrificados”. O “centro do mundo”, sabe-se, é o espaço do sagrado. Eliade (1992b)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. afirma que, no espaço profano, aparentemente homogêneo, se inserem rupturas que o sacralizam. Esses espaços são reconhecíveis pela presença de símbolos que ligam a terra com suas profundezas e com o céu, verdadeiros Axis mundi (a árvore, o templo, a escada, a montanha etc.). O homem religioso, segundo Eliade (1992b, p.43)______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992b. , tem de estar no centro: “Sejam quais forem as dimensões do espaço que lhe é familiar e no qual ele se sente situado - seu país, sua cidade, sua aldeia, sua casa - , o homem religioso experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Cosmos”. Evidentemente, não se está fazendo referência a um centro geográfico; o centro é instituído lá onde o sagrado decide se manifestar. Então, se temos um centro, temos um sagrado – seja-o em sentido lato ou estrito –, enquanto o espaço profano está nas margens, no caos.

É notável que as tecnologias da comunicação, embora apontadas como as confirmadoras da desvalorização do centro (TRAFANGLIA apud VATTIMO, 2002VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p.XV), potencialmente acolhedoras das margens que são, não fazem mais do que sublinhar a importância de uma organização do mundo a partir de um ponto – na contemporaneidade, o conjunto palma da mão/telefone celular parece desempenhar esse papel.

Eliade (2000, p.20)______. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000. destaca que o processo civilizatório se deu a partir da laicização dos mitos, pois “[...] as sociedades modernas definem-se como tal, justamente pelo facto de terem levado bastante longe a dessacralização da vida e do cosmos”; no entanto, o sagrado, enquanto constante antropológica, não é facilmente extirpável do humano, de modo que “[...] a novidade do mundo moderno traduz-se por uma revalorização ao nível profano dos antigos valores sagrados” (ELIADE, 2000______. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000., p.20). É nesse sentido que a mídia pode se apresentar como um novo centro do mundo, conforme Contrera (2005)CONTRERA, M. Ontem, hoje e amanhã: sobre os rituais midiáticos. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n.28, p.115-123, dez. 2005., e que os valores sagrados, embora possam estar apartados do numinoso, ainda são detectáveis nas práticas socioculturais contemporâneas através das hierofanias.

A imagem simbólica do centro é um bom indício dessa sobrevivência do sagrado no seio do espaço profano, mas o sagrado tem também sua temporalidade própria, indiferente à história. O tempo mítico é um tempo sui generis, pois não tem antes nem depois. Um dos motivos do desprezo do homem moderno civilizado pelo homem arcaico e primitivo é justamente a recusa desse último de fazer a história, aceitando viver a história imposta pelo mito. De fato, Eliade (1992a)ELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992a. vê no saber mítico o sintoma de um terror da história, uma recusa do homem arcaico em aceitar a condição histórica e seus riscos, preferindo a integração com a natureza. Já o homem moderno teria a liberdade de fazer a história, mas seria uma liberdade ilusória, já que se trata de uma história de cujas decisões muitos poucos participam.

Assim, nas profundezas de seu espírito, o homem moderno também vive o terror da história e tem a nostalgia do tempo mítico no seu horizonte. Há alguns sintomas sociais disso que podemos notar na cultura contemporânea. Eliade (1992a, 1992b, 1994, 2000)ELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992a., ao longo de sua obra, de modo mais ou menos esparso, aponta vários deles; nos deteremos, aqui, em dois indicadores desse desconforto contemporâneo com a história: a imitação de modelos e a busca por evasões (distrações, espetáculos).

A imitação de modelos é “[...] uma tendência que se pode chamar, de uma forma geral, humana, a saber: transformar uma existência em paradigma e uma personagem histórica em arquétipo” (ELIADE, 2000______. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000., p.25). Para o autor, a imitação de modelos aponta para um descontentamento com a história pessoal, local, uma vontade de transcender o seu momento e aceder a um tempo em que as coisas tenham o frescor dos inícios. Não é difícil encontrar na cultura midiática figuras históricas encarnando heróis e criaturas exemplares; se antes isso se era mais intenso nos cenários políticos desenhados pelo jornalismo, agora se espraiou por diversos outros setores da sociedade: uma despretensiosa blogueira pode atrair milhares de seguidores com suas opiniões pessoais sobre moda e fitness; um artista que publica fotos de seu cotidiano também. A título de ilustração, no momento em que escrevo, a cantora norte-americana Taylor Swift (@taylorswift) conta com 75.900.000 seguidores no Instagram; o Papa Francisco (@franciscus), com 2.300.000.

A laicização dos mitos colocada em curso pela história redunda na dessacralização dos atos humanos que repetiriam os gestos dos deuses através do “trabalho, do amor, da guerra”. A esse respeito, Eliade (2000, p.29)______. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000. afirma:

A autêntica ‘queda no tempo’ começa com a dessacralização do trabalho; é apenas nas sociedades modernas que o homem se sente prisioneiro da sua profissão, porque já não consegue escapar ao tempo. [Por isso] esforça-se por ‘sair do tempo’ nas suas horas livres; donde o número vertiginoso de distracções inventadas pelas civilizações modernas.

Eliade (2000)______. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000. escreveu essas palavras em 1953, num dos textos que depois seria incluído na compilação que, em 1957, resultou no livro Mitos, sonhos e mistérios. Se já então o número de distrações era visto como vertiginoso, o que dizer de nossos dias, quando chegamos ao ponto da estimulação non stop que nos fazem os gadgets disputando constantemente nossa atenção? Mais uma vez, o desejo de pular para fora do tempo histórico se presentifica; o sagrado, não encontrando mais exemplares do Homo religiosus para se manifestar, tem um reduto possível em comportamentos míticos disfarçados pelo profano.

Aproximação metodológica

É indiscutível que o sagrado tem passado por metamorfoses, mesmo se considerado uma estrutura constitutiva da consciência e não simplesmente um estágio da sua evolução, como bem sublinha Wunenburger (2009)______. Le sacré. Paris: PUF, 2009.. Segundo o autor, essas mudanças são muitas vezes mal nomeadas pela palavra dessacralização: “Esse termo abrange, com efeito, situações variadas e não dá conta da multiplicidade contemporânea das formas de ressacralização” (WUNENBURGER, 2009______. Le sacré. Paris: PUF, 2009., p.89-90 – Tradução nossa3 3 No original francês: “Ce terme embrasse, en effet, des situations variées et rend mal compte de la multiplicité contemporaine des formas de resacralisation”. ). Assim, enquanto as profundezas do imaginário permanecem estáveis, o sagrado tem seu sentido deslocado de uma simbólica para outra de acordo com as coerções históricas, culturais, sociais, em consonância com os postulados de Durand (2011)______. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 2011., plasmando-se em comportamentos míticos, já que o mito é o meio de o símbolo se apresentar organizadamente à vivência.

Em busca de indícios materiais desses comportamentos míticos sobreviventes, mostraremos alguns usos da hashtag “sagrado” no Instagram, observando sua potencialidade de representar rastros de hierofanias possíveis, tomando como balizas as características espaço-temporais do mito anteriormente referidas: imagens simbólicas do centro (as várias possibilidades de representação da Axis mundi) e nostalgia da perfeição dos primórdios (imitação de modelos, fuga da história).

A escolha de uma hashtag tão literal tem a intenção de considerar, ainda que de modo mínimo, a noção de sagrado que anima o próprio autor da publicação. Trata-se, aqui, de uma ilustração e não de um corpo empírico que é analisado em busca de provas ou refutações de hipóteses.

Na nossa busca4 4 Realizada em 20 abr. 2016. , obtivemos como resultado 56.861 publicações. A palavra sagrado é grafada da mesma maneira em português e em espanhol, de modo que esses resultados incluem publicações originadas em países que falam qualquer uma dessas duas línguas. O aplicativo apresenta em destaque nos resultados da busca, nove fotografias entre as mais populares (ou seja, que mais receberam likes, curtidas) marcadas por seus autores com a palavra pesquisada. Em seguida a essas nove fotografias, são apresentadas as publicações mais recentes.

As nove publicações apresentadas como resultado da busca pela hashtag sagrado foram as seguintes:

Figura 1
Captura de tela do aplicativo Instagram com os resultados da busca pela hashtag

Dentre as publicações destacadas, sete têm sua origem no Brasil, uma em Porto Rico e duas na Espanha.

Como procedimento metodológico, adotamos aqui o que estamos chamando de leitura simbólica, que não recorre às técnicas tradicionais de interpretação de fotografia. Essas envolvem a análise de elementos de linguagem (enquadramento, exposição, composição etc.), conjugados com análise semiótica, levando em conta, por exemplo, a conotação dos elementos que aparecem na foto, associações que eles trazem à mente, relação dos elementos uns com os outros, conhecimentos culturais necessários para compreender suas referências (PENN, 2002PENN, G. Análise semiótica de imagens paradas. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Orgs.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ: Vozes, p.319-342, 2002.). Os estudos que temos feito a respeito das conexões entre fotografia e imaginário nos levam a especular que essa decupagem da fotografia em unidades menores significantes, procedimento típico das análises de discurso e de conteúdo, não é capaz de dar conta da presença do mito no material estudado porque anula a possibilidade da experiência simbólica que é, como vimos antes, total e súbita.

Por ora, podemos assim descrever a leitura simbólica: lançamos ao material de estudo um olhar ao mesmo tempo sintético e imersivo, num estado de receptividade à fotografia examinada, tomando o cuidado de concentrar a atenção visual sobre ela, suspendendo os pensamentos a fim de se deter o fluxo de racionalização a que estamos habituados no trabalho analítico. Note-se que a suspensão dos pensamentos não é a suspensão da atenção; pelo contrário, é a concentração profunda num só ponto com o propósito de afastar todas as outras distrações daquilo que se observa. Num segundo momento, examinamos a impressão profunda que nos causou a interação com a imagem visual, tentando colocá-la em palavras. Associações com os indicadores de rastros hierofânicos cosmológicos são feitas somente num terceiro momento, recorrendo-se ao exame dos textos que acompanham as fotografias num quarto momento.

Reconhecemos que esse método oferece o perigo do “delírio da interpretação”, acusação que Caillois (1979, p.18) dirige aos que atribuem uma importância decisiva ao “resíduo irredutível” que fatalmente é deixado de fora quando se analisa um mito a partir de um sistema de explicação. No entanto, parece-nos que nenhum pesquisador, empirista ou não, está livre desse perigo. Com o que chamamos de leitura mítica, buscamos honestamente evitar a tentação de forçar os fatos a princípios a priori, dando espaço em primeiro lugar para que o material de estudo seja veículo da imagem simbólica. O propósito principal é escapar do jogo decodificatório e tocar os beirais do símbolo antropologicamente motivado.

Na elaboração do texto que relata a leitura simbólica, não seguimos cronologicamente as quatro etapas acima descritas, embora no procedimento de leitura sua ordem tenha sido respeitada. Entendemos que a escrita, sendo inevitavelmente codificada, mobiliza de modo avassalador a racionalidade. Tentar recompor no discurso verbal a experiência simbólica seria não só artificial como também inútil: artificial porque, fatalmente, terminada a suspensão do pensamento, as associações com as referências culturais e com as informações textuais seriam anteriores à descrição da revelação do símbolo; inútil porque a experiência simbólica é antes de mais nada uma experiência, ou seja, não pode ser imposta a outrem (no caso, o leitor).

Procedendo a uma leitura simbólica das fotografias publicadas, cruzadas com os pequenos textos que as acompanham, pudemos identificar sintomas dos dois tipos de hierofanias cosmológicas referidos anteriormente, embora em desproporcionalidade quantitativa: uma publicação é remissível à territorialidade sagrada (saída do espaço profano) e sete são remissíveis à nostalgia do tempo primordial. Dentre essas últimas, seis são associáveis à simbólica da exemplaridade e a sétima é simultaneamente associável à exemplaridade e ao desejo de saída do tempo histórico através da intensificação (diversional) do momento. Temos, ainda, uma publicação destacada à qual não foi possível associar de modo mais conclusivo nenhuma simbólica capaz de remeter a rastros do sagrado no profano contemporâneo. Detalharemos a seguir os achados da leitura simbólica.

O que é o sagrado no Instagram

Iniciemos pelo grupo de fotografias que remete à motivação majoritária das hierofanias nesse estudo, qual seja, a do terror da história. A primeira fotografia destacada nesse grupo foi publicada na conta @hugogloss, mostrando o retrato de uma designer de joias brasileira ao lado de quatro escapulários por ela desenhados:

Figura 2

O texto que acompanha as imagens diz: “A adorada designer @carlamorim... apresentou hoje para as brasilienses a esperada coleção #Sagrado!!! Dentre as peças de cunho religioso, destaque para os novos escapulários que são sempre objeto de desejo”5 5 @hugogloss [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016. . Podemos inferir aqui a associação da noção de sagrado que o autor da publicação faz com a iconologia cristã, mas é de se notar que o acento emocional não se coloca sobre o religioso e sim sobre a personalidade da designer (que é “adorada”) e sobre o consumo das joias (que são “desejadas”). A artista se desloca do plano comum para um plano especial; a adoração que lhe é dirigida, retórica ou não, imuniza-a das vicissitudes humanas. Sua arte talvez não possa ser imitada, mas pode ser comprada e servir de passaporte para a fuga da miséria do cotidiano. Colocada sobre o pano de fundo das hierofanias indicadas mais acima, essa publicação é reconduzível a uma fuga da opressão da história através da eleição de modelos garantidores da possibilidade de se escapar do tempo. No entanto, para além do já sabido desgaste da potência simbólica da exemplaridade, nesse caso, o modelo não comparece como algo a ser imitado, e, sim, como fornecedor de um ingresso no seu próprio mundo através de um objeto por ele criado.

Nessa outra publicação destacada, a variação da manifestação do modelo a ser seguido se faz pela a auto atribuição da exemplaridade:

Figura 3

A imagem mostra um homem jovem, portando óculos escuros, com o torso nu de modo a exibir músculos e tatuagens, promovendo uma associação fácil de sua figura à dos heróis, mais belos e mais fortes do que as pessoas comuns. O comentário do autor da publicação, que também é a personagem retratada na fotografia, diz: “Que venha uma semana incrível. gratidão. aceitação. paz. sagrado”6 6 @djarthurvalleti [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016. . Especulamos que a postagem não apenas fala das atitudes ou estados de espírito que o autor tem ou deseja ter, como também essas atitudes ou estados de espírito são aconselhadas aos seguidores7 7 Referimo-nos, aqui, ao usuário que se inscreve para visualizar as publicações atualizadas de outros usuários, por ele escolhidos, na página home da sua conta, mas, sem dúvida, a palavra “seguidor” se associa facilmente à ideia de “exemplo”, “modelo”. , de modo que o autor se propõe desempenhar o papel de exemplo.

Uma terceira publicação destacada também traz uma peculiar manifestação do modelo:

Figura 4

Seguindo a trilha que vai da iconologia pai/filho às profundezas do sagrado, chega-se facilmente à arquetipologia do Pai, o criador. Deus até pode ter ficado nas brumas da ancestralidade humana, mas sua lembrança persiste na figura do adulto que ampara e instrui a criança – o seu modelo exemplar. Mas, se buscarmos algumas informações a mais na postagem, veremos que esse papel tem também aqui alguma mudança que hesitamos em minimizar. A autora dessa postagem é uma mulher, provavelmente esposa e mãe do homem e do menino que aparecem na fotografia. O comentário que ela mesma escreveu à postagem diz: “Meus mestres! Amores que me ajudam a ser uma pessoa melhor no dia a dia!”8 8 @jumarconatoddv [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr 2016. . Embora a mirada arquetipológica sobre essa publicação nos leve até o Pai Supremo, o olhar sobre as circunstâncias revela que o sentimento do sagrado em jogo é o de uma mulher em relação ao próprio marido e filho, chamando-os mesmo de seus “mestres”. Temos, ainda, a constante antropológica da busca de ordenamento do caos através da observância de certos princípios; no entanto, esses princípios não são doados intencionalmente pelo modelo, o que tornaria possível imitá-lo, mas são compreendidos a partir de lições que a convivência com os modelos proporciona.

A lição como materialização do modelo sacralizador surgiu nas nossas especulações também ao examinarmos as seguintes publicações destacadas com a hashtag “sagrado”.

Figura 5

Figura 6

A Figura 5 apresenta o frame de um vídeo divulgado por uma instituição situada em São Paulo, Brasil, dedicada, segundo a apresentação de sua homepage no Instagram, a terapias integradas, harmonização de ambientes, limpeza e reequilíbrio energético. O texto da imagem publicada diz: “Vendo filmes violentos, programas policiais e se envolvendo emocionalmente com tudo o que tem uma frequência negativa, você acaba atraindo tudo aquilo para sua vida: seu cérebro pensa que está acontecendo com você”9 9 @cura_quantica [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016. . Aqui, está-se bem longe da personalização do modelo e a lição é o único sintoma do terror da história, instigando o seguidor a não se expor às produções culturais e profanas (“filmes violentos, programas policiais”) que o submeteriam à queda no tempo (“frequência negativa”).

A Figura 6 apresenta um grupo - sete moças, um rapaz e uma senhora - de pé em uma sala, possivelmente de aula. Observa-se que as pessoas estão bem próximas umas das outras, sendo que cinco das moças chegam mesmo a se enlaçarem pela cintura. Associando-se essa cena à ideia da hashtag que a acompanha (#sagrado), não estará distante a imagem da cumplicidade afetiva que pode unir um grupo, lançando-o, pela transcendência proporcionada pelo amor, fora do tempo comum. No entanto, mesmo que essa ideia possa valer para uma parte da foto, ela não corresponde ao sentimento que se tem observando a imagem inteira; o toque dissonante é dado pela postura da senhora: mãos cruzadas à frente do corpo, descansando sobre o baixo-ventre, sem nenhum gesto em direção aos que a rodeiam. Também o rapaz posicionado à sua esquerda (na extremidade direita da fotografia), mantendo as mãos nos bolsos, parece se distanciar do resto do grupo, apesar de ofertar um grande sorriso à câmera.

A leitura da legenda nos informa que o grupo é constituído por alunos de uma universidade de Porto Rico e por uma correspondente da empresa de notícias CNN que fez uma intervenção em uma disciplina do curso de Relações Públicas, do qual eles são estudantes. Em vez de nos ajudar a especular sobre as motivações profundas que unem a noção de sagrado a essa imagem, a legenda apenas confunde mais ainda: se a senhora é uma profissional bem-sucedida, o que a qualifica como exemplo a ser seguido, por que estaria tão deslocada do centro da foto? Os gestos do corpo do grupo não a acolhem, não a reverenciam e parece mesmo que ela foi a última a se lhe juntar, talvez mesmo com certa relutância. A cumplicidade do grupo não a inclui. Antes de concluírmos que sagrado definitivamente não remete a mais nada, clicamos no nome do autor da publicação para conhecer sua homepage e nos deparamos com a informação de que se trata da Universidad del Sagrado Corazón, situada em Santurce, Porto Rico. Ou seja, nesse caso, a hashtag foi usada tão somente para indicar o local geográfico e institucional em que a fotografia foi obtida. Nós havíamos incluído essa publicação inicialmente no grupo da exemplaridade porque havíamos lido antes a legenda que informa a presença de alguém supostamente mais experiente, capaz, então, de doar a lição. É interessante como nesse caso a leitura simbólica não confirmou essa leitura dos indicadores contextuais.

As outras duas publicações destacadas se associam à convencionalidade da relação entre o sagrado e a religião, no caso, cristã:

Figura 7

Figura 8

Nessas duas publicações, se explicitam como atributos da exemplaridade a devoção e a mediação.

A Figura 7 traz o filho de Maria, ou seja, o próprio Deus, misteriosamente encarnado num homem, Jesus Cristo. A exemplaridade portada por Jesus e Maria é bem conhecida na tradição cristã. Jesus Cristo seria o Deus feito homem a fim de salvar a humanidade, que teria n’Ele um exemplo a ser seguido. O texto que acompanha a publicação retratada na Figura 7 traz a transcrição do salmo 8610 10 Livro da primeira parte da Bíblia (Antigo Testamento), constituído de salmos e cantos proféticos que hoje são utilizados como orações e hinos de louvor. e é encimado por uma frase que reforça a imagem: “Rezar com os salmos: a ti, senhor, elevo minha alma”11 11 Tradução livre do espanhol, cujo original é “Orar con los salmos: a ti señor, elevo mi alma”. @elartereligioso [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016. , ou seja, rezar como Jesus Cristo é o caminho para escapar à queda no tempo (elevar a alma).

A Figura 8 representa a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, uma das várias configurações de Maria, considerada a mãe de Deus. A sabedoria popular brasileira recomenda: “Peça à mãe e o Filho dará”. O texto grafado sobre a própria imagem publicada recupera o poder protetor de Nossa Senhora: “Dai-nos a benção, oh mãe querida, Nossa Senhora Aparecida”, evidenciando, assim, o destaque ao atributo da mediação que acompanha a exemplaridade.

A Figura 9 traz uma fotografia cujo tema é associável ao que contemporaneamente se chama de matar o tempo, ou seja, abolir o tempo através da diversão:

Figura 9

Dois rapazes, um deles sorrindo, com a cabeça levemente inclinada em direção ao outro, que passa o braço em volta de seus ombros e parece evitar um sorriso. Esse último rapaz, que também é o mais alto, inclui em sua indumentária vários adornos: colar de corrente metálica, anel grosso na mão direita, outros dois aneis na mão esquerda, pulseiras feitas de sementes ou de madeira, boné, camiseta preta com estampa. Sua mão esquerda adota uma variante da posição hang loose, característica de uma vasta gama de grupos, desde paraquedistas e surfistas até adeptos do estilo heavy metal e hip-hop, de modo geral significando “pega leve”, “está de boas”. Isso basta para indicar a associabilidade dessa postagem à reminiscência de um desejo mítico de saída do tempo comum através da diversão, do relaxamento das pressões impostas pelo tempo histórico.

Mergulhando-se na codificação do discurso verbal, somos informados de que o autor da postagem é o rapaz à esquerda e que a foto foi tirada numa casa de chá (La Teteria) em Úbeda, na Espanha. Essa casa se descreve como “[...] um lugar diferente para desfrutar de um ambiente descontraído, ouvindo o melhor da música (muitas vezes ao vivo) e provar os chás orientais mais característicos”12 12 Tradução nossa do original espanhol: “[...] un lugar diferente en el que disfrutar de un ambiente relajado y distendido, escuchando la mejor música (muchas veces en directo) y probando los tés orientales más característicos”. Disponível em: http://www.guiadelocio.com/jaen/tarde-y-noche/ubeda/la-teteria. Acesso em: 6 maio 2016). . Reforça-se, assim, nossa inferência inicial de que matar o tempo motiva a junção da hashtag “sagrado” a essa publicação. No entanto, uma outra informação acrescenta o tema da exemplaridade a essa motivação: o rapaz à direita é Sho-Hai, um conhecido rapper espanhol que se apresentou naquela noite na teteria em questão. Posar ao lado do astro da música é entrar um pouco na sua dimensão, escapar da banalidade pelo contato com alguém que encarna o supra-real, é furtar-se, enfim, à mesquinhez do profano. Como no caso da publicação apresentada na Figura 1, a encarnação da exemplaridade, aqui, se mostra mais como franqueadora da saída do profano do que como modelo de imitação.

Dentre as nove publicações destacadas, encontramos apenas uma associável a uma hierofania do tipo Axis mundi, remissível ao desejo mítico de saída do espaço profano e instituição de um espaço sagrado ordenado:

Figura 10

A associação com o sagrado nessa publicação acontece pela via religiosa, já que a fotografia apresenta o interior de uma igreja cristã. A autoria da publicação é de uma revista brasileira de arquitetura; seus objetivos comerciais deixam pensar que a hashtag “sagrado” desempenha aí um papel utilitarista, auxiliando a pesquisa de quem busca ideias para seus projetos de arquitetura, design, decoração. No entanto, diferente da publicação apresentada na Figura 6, a hashtag foi escolhida para qualificar a imagem e não simplesmente para lhe indicar as coordenadas geográficas ou institucionais. É previsível que se remeta o assunto representado visualmente nessa fotografia ao espaço sagrado, nos limites do qual o caos se ordena. O ordenamento do caos nessa publicação se constrói pela suavidade dos tons, todos na mesma paleta bege, e pela disposição dos objetos de modo a formar linhas paralelas.

Espaço profano, tempo sagrado: é para isso que nos parece apontar o exame dessas publicações.

Considerações finais

Que fotografias trazendo assuntos com temas tão díspares tenham sido marcadas por seus autores com a mesma palavra, sagrado, pode ser curioso à primeira vista, mas não surpreende as vertentes arquetipológicas dos estudos do imaginário, que encontram num subsolo comum a toda experiência humana, a matriz dinâmica e fértil da produção simbólica. Aceitando-se a premissa eliadiana do sagrado como intrínseco à condição antropológica, geradora dos valores organizadores da existência, é de se perguntar que formas toma esse sagrado à altura do processo civilizatório em que a liberdade é associada ao esclarecimento intelectual capaz de tudo explicar, negando, portanto, o mistério que o sagrado implica.

Corroborando-se o postulado da permanência do mito e do sagrado ao qual ele reenvia independente da época histórica em curso, é necessária a introdução de matizes de fertilidade simbólica a fim de se verificarem e compreenderem as hierofanias contemporâneas. Durand (2011)______. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 2011. já indicou essas gradações de fertilidade com a noção de “trajeto do sentido”, situando num polo as forças pulsionais, constitutivas do subsolo antropológico em que se abrigam os arquétipos e, noutro polo, as forças sociais, onde se plasmam as fenotipias do imaginário. Na dinâmica entre esses polos, se situaria a produção simbólica. É certo, então, que as manifestações mais evidentes do simbolismo, aquelas tomadas como material de estudo para as Ciências Sociais Aplicadas, guardam relação necessária com o subsolo fértil e invariante.

O sagrado, animado que é pelo elemento arquetipal numinoso, precisa se desenvencilhar do indizível, da necessidade de revelar-se; só assim consegue sobreviver sob as camadas do edifício civilizatório no qual não têm lugar as zonas de sombra, associadas à ignorância, à superstição. Sobram, então, seus sintomas sociais que, destituídos do seu cerne de sentido, se multiplicam freneticamente como que para compensar o vazio introduzido entre si e a raiz arquetípica. É para esse esvaziamento dessacralizador que apontam as milhares de publicações pessoais no Instagram marcadas com a palavra sagrado.

No entanto, além de apontar para o vazio deixado pelo numinoso, a quantidade fabulosa dessas publicações também autoriza pensarmos num processo de ressacralização, devolvendo ao sagrado o que lhe foi retirado e mesmo de sacralização, instituindo novas maneiras de se relacionar com o desejo mítico de saída do espaço-tempo profano. A instantaneidade das trocas na cultura midiática e a incompreensibilidade de seus processos técnicos são comparáveis à magia; o sequestro da atenção que os meios tecnológicos realizam encontra ressonância no transe místico.

O esforço racional da cisão entre sagrado e profano foi exercido durante os milênios na busca do progresso, do desenvolvimento, do aprimoramento das faculdades intelectivas. A fotografia participou desse processo, sendo mesmo uma de suas realizações bem-sucedidas, e a cultura midiática parece ter sido seu paroxismo: finalmente, tudo pode ser sagrado, ou seja, nada mais o é.

Não é possível saber se a hashtag “sagrado” foi além do signo (junção mais ou menos arbitrária entre um significante e um significado) nas publicações do Instagram que ilustram esse trabalho, mas foi possível verificar que o desejo mítico de libertação da história profana se manifestou abundantemente. Nos casos em que a encarnação do modelo recaiu sobre indivíduos contemporâneos - a designer, o rapper, o DJ -, o acento não está sobre seu exemplo e sim sobre seu poder de abrir o caminho para o tempo mítico em que a morte não ameaça. Já o espaço sagrado não recebeu tanta atenção; isso pode ser apenas incidental, dada a pequena extensão do material empírico aqui estudado, mas podemos também especular se as tecnologias das comunicações instantâneas não terão sido capazes de eliminar o problema do caos amorfo, instaurando a ubiquidade do cosmos. Ou será que, pelo contrário, o caos tomou todos os espaços possíveis, impossibilitando a irrupção do sagrado? Num caso, a ubiquidade do sagrado terá sido obtida às custas da repressão do profano; noutro, terá sido o profano que refreou o sagrado. Qualquer uma das duas hipóteses é assustadora porque supõe um enorme recalcamento, implicando a grande violência do seu retorno.

  • 1
    Segundo a pesquisa “Futuro Digital em Foco Brasil 2015” (Digital Future Focus Brazil 2015), divulgada pela empresa comScore, especializada em mensuração de audiência, os brasileiros são os usuários que mais gastam tempo nas redes sociais. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/nas-redes/post/brasileiros-gastam-650-horas-por-mes-em-redes-sociais-567026.html. Acesso em: 12 nov. 2018. Available at: http://blogs.oglobo.globo.com/nas-redes/post/brasileiros-gastam-650-horas-por-mes-em-redes-sociais-567026.html. Accessed on: 12 nov. 2018.
  • 2
    Hashtags são palavras-chave antecedidas do sinal
  • 3
    No original francês: “Ce terme embrasse, en effet, des situations variées et rend mal compte de la multiplicité contemporaine des formas de resacralisation”.
  • 4
    Realizada em 20 abr. 2016.
  • 5
    @hugogloss [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016.
  • 6
    @djarthurvalleti [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016.
  • 7
    Referimo-nos, aqui, ao usuário que se inscreve para visualizar as publicações atualizadas de outros usuários, por ele escolhidos, na página home da sua conta, mas, sem dúvida, a palavra “seguidor” se associa facilmente à ideia de “exemplo”, “modelo”.
  • 8
    @jumarconatoddv [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr 2016.
  • 9
    @cura_quantica [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016.
  • 10
    Livro da primeira parte da Bíblia (Antigo Testamento), constituído de salmos e cantos proféticos que hoje são utilizados como orações e hinos de louvor.
  • 11
    Tradução livre do espanhol, cujo original é “Orar con los salmos: a ti señor, elevo mi alma”. @elartereligioso [publicação pessoal]. Instagram. Acesso em: 20 abr. 2016.
  • 12
    Tradução nossa do original espanhol: “[...] un lugar diferente en el que disfrutar de un ambiente relajado y distendido, escuchando la mejor música (muchas veces en directo) y probando los tés orientales más característicos”. Disponível em: http://www.guiadelocio.com/jaen/tarde-y-noche/ubeda/la-teteria. Acesso em: 6 maio 2016).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2017
  • Aceito
    14 Nov 2018
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