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Rituximab na síndrome nefrótica idiopática: ainda à espera de evidências mais robustas

Gomes et al.11. Gomes R, Mosca S, Bastos-Gomes M, Correia-Costa L, Rocha L, Teixeira A, et al. Rituximab therapy for childhood onset idiopathic nephrotic syndrome: experience of a Portuguese tertiary center. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0056pt.
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apresentam na edição atual do BJN um relatório sobre os desfechos promissores alcançados com o uso de rituximab (RTX) em 16 pacientes nefróticos, pediátricos e adolescentes, de Portugal. Seus achados demonstram uma redução na frequência de recidivas, uma diminuição na dosagem de esteroides e melhorias no índice de massa óssea dos pacientes após o RTX, o que é consistente com a literatura existente.

Desde a publicação do estudo de 2004 sobre a remissão da síndrome nefrótica (SN) com o uso de RTX para púrpura trombocitopênica22. Benz K, Dotsch J, Rascher W, Stachel D. Change of the course of steroid-dependent nephrotic syndrome after rituximab therapy. Pediatr Nephrol. 2004;19:794–7. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s00467-004-1434-z.
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, a literatura sobre RTX na SN aumentou significativamente. A jornada desde o uso incidental até a prática baseada em evidências tem sido longa e difícil.

No contexto do RTX na síndrome nefrótica idiopática (SNI), dois fatores representam desafios e dificultam o estabelecimento de recomendações robustas baseadas em evidências. Primeiro, há uma falta de estratificação mais específica da SN. Na era da biologia molecular e de descobertas notáveis na genética da SN, está se tornando cada vez mais evidente que a SN, incluindo a síndrome nefrótica sensível a esteroides (SNSE), abrange um espectro de doenças com múltiplos fenótipos33. Saleem MA. Molecular stratification of idiopathic nephrotic syndrome. Nat Rev Nephrol. 2019;15(12):750–65. doi: http://dx.doi.org/10.1038/s41581-019-0217-5 PubMed PMID: 31654044.
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. Estudos recentes de associação genômica ampla identificaram vários loci de risco HLA e não HLA envolvidos na imunidade adaptativa na SNSE de início na infância44. Gauckler P, Shin J, Alberici F, Audard V, Bruchfeld A, Busch M, et al. Rituximab in adult minimal change disease and focal segmental glomerulosclerosis - What is known and what is still unknown? Autoimmun Rev. 2020;19(11):102671. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.autrev.2020.102671 PubMed PMID: 32942039.
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. Portanto, a caracterização clínica tradicional baseada na resposta inicial à terapia com corticosteroides, no número de recidivas ao longo do tempo ou na dependência de esteroides pode não delinear adequadamente grupos homogêneos em termos de patogênese da doença e, consequentemente, respostas terapêuticas. Além disso, o uso relativamente recente do RTX como opção de tratamento levou a variações substanciais nos esquemas de tratamento, incluindo diferenças na dosagem, número de infusões, medicamentos de manutenção após o RTX, duração do acompanhamento e critérios de seleção de casos55. Chan EY, Yap DY, Colucci M, Ma LA, Parekh RS, Tullus K. Use of rituximab in childhood idiopathic nephrotic syndrome. CJASN. 2023;18(4):533–48. http://dx.doi.org/10.2215/CJN.08570722 PubMed PMID: 36456193.
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Apesar da complexidade da literatura, Chan et al.55. Chan EY, Yap DY, Colucci M, Ma LA, Parekh RS, Tullus K. Use of rituximab in childhood idiopathic nephrotic syndrome. CJASN. 2023;18(4):533–48. http://dx.doi.org/10.2215/CJN.08570722 PubMed PMID: 36456193.
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realizaram uma extensa revisão que identificou fatores associados à eficácia do tratamento com RTX na SNI. A revisão constatou que os melhores desfechos do tratamento foram associados à idade mais avançada no momento da administração do RTX, etnia branca em crianças, uso de medicamentos de manutenção após o RTX, cursos repetidos de RTX e perfis imunológicos basais favoráveis (incluindo um número maior de células T reguladoras circulantes e subconjuntos menores de células T estimuladas por mitógenos)55. Chan EY, Yap DY, Colucci M, Ma LA, Parekh RS, Tullus K. Use of rituximab in childhood idiopathic nephrotic syndrome. CJASN. 2023;18(4):533–48. http://dx.doi.org/10.2215/CJN.08570722 PubMed PMID: 36456193.
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. Por outro lado, a resistência a esteroides, a dependência de múltiplos medicamentos, a baixa dosagem de RTX sem medicação de manutenção concomitante e a rápida repopulação do total de células B de memória foram associadas a um maior risco de recidiva. Observou-se que a sensibilidade a esteroides (SE) antes da administração do RTX está fortemente correlacionada com os efeitos favoráveis do tratamento com RTX, não apenas em crianças pequenas e adolescentes, mas também em adultos66. Chen DP, Helmuth ME, Smith AR, Canetta PA, Ayoub I, Mucha K, et al. Age of onset and disease course in biopsy-proven minimal change disease: an analysis from the cure glomerulonephropathy network. Am J Kidney Dis. 2022;20: 1–12. PubMed PMID: 36608921.. Além disso, foi observada uma remissão mais longa em pacientes que usaram exclusivamente prednisona antes de receber RTX77. Trautmann A, Boyer O, Hodson E, Bagga A, Gipson DS, Samuel S, et al. IPNA clinical practice recommendations for the diagnosis and management of children with steroid-sensitive nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol. 2023;38(3):877–919. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s00467-022-05739-3 PubMed PMID: 36269406.
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. Em um grande estudo retrospectivo, foi constatado que cada agente poupador de esteroides (APE) adicional utilizado antes do RTX esteve associado a um aumento de 19% no risco de recidiva após o tratamento com RTX88. Chan EY, Tullus K. Rituximab in children with steroid sensitive nephrotic syndrome: in quest of the optimal regimen. Pediatr Nephrol. 2021;36(6):1397–405. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s00467-020-04609-0 PubMed PMID: 32577808.
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. Esses achados destacam a importância de considerar a sensibilidade prévia dos pacientes aos esteroides e o número de usos anteriores de APE como fatores potenciais que influenciam os desfechos do tratamento com RTX.

Em 2023, a International Pediatric Nephrology Association (IPNA) publicou recomendações sobre o tratamento da SNI, que incluíam o uso de RTX. Essas recomendações foram desenvolvidas com base nas Declarações RIGHT (Reporting Items for Practice Guidelines in Healthcare) para Diretrizes Práticas. O desenvolvimento da diretriz envolveu três grupos: um grupo de liderança central, um grupo de especialistas externos e um painel de votação de 32 nefrologistas pediátricos com experiência no manejo da SNI77. Trautmann A, Boyer O, Hodson E, Bagga A, Gipson DS, Samuel S, et al. IPNA clinical practice recommendations for the diagnosis and management of children with steroid-sensitive nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol. 2023;38(3):877–919. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s00467-022-05739-3 PubMed PMID: 36269406.
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. Essa abordagem é particularmente adequada quando há uma variação metodológica considerável na metodologia da literatura disponível e a opinião de especialistas pode fornecer informações valiosas sobre o campo.

As recomendações da IPNA cobrem de forma abrangente todos os aspectos relevantes do uso de RTX na SNI, incluindo indicações, dosagem, esquema de tratamento e uso de medicamentos de manutenção após o RTX. De acordo com essas recomendações, o RTX é indicado como uma opção de segunda linha a ser considerada após um curso de tratamento com pelo menos um outro APE. Isso difere da posição de alguns autores que defendem o RTX como opção de primeira linha, particularmente em pacientes com doença mais leve, que podem potencialmente responder a esteroides ou a outras opções de APE melhor estabelecidas55. Chan EY, Yap DY, Colucci M, Ma LA, Parekh RS, Tullus K. Use of rituximab in childhood idiopathic nephrotic syndrome. CJASN. 2023;18(4):533–48. http://dx.doi.org/10.2215/CJN.08570722 PubMed PMID: 36456193.
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Ao enfatizar a necessidade de tratamento prévio com APE antes de considerar o RTX, as recomendações da IPNA fornecem uma abordagem mais conservadora para a utilização do RTX na SNI, considerando os potenciais benefícios e riscos associados a essa opção terapêutica.

A maioria dos estudos sugere que o RTX é razoavelmente seguro em curto prazo e relativamente eficaz em comparação com outros APE, como também demonstrado por Gomes et al.11. Gomes R, Mosca S, Bastos-Gomes M, Correia-Costa L, Rocha L, Teixeira A, et al. Rituximab therapy for childhood onset idiopathic nephrotic syndrome: experience of a Portuguese tertiary center. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0056pt.
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. No entanto, ao contrário de outras terapias imunossupressoras, há uma falta de dados de acompanhamento de longo prazo sobre o uso de RTX na SNI. Para abordar essa lacuna, a European Society of Pediatric Nephrology (ESPN) realizou uma pesquisa em 84 centros, envolvendo 1328 crianças, para reunir informações sobre a hipogamaglobulinemia associada ao RTX e suas potenciais consequências na SNI99. Zurowska A, Drozynska-Duklas M, Topaloglu R, Bouts A, Boyer O, Shenoy M, et al. Rituximab-associated hypogammaglobulinemia in children with idiopathic nephrotic syndrome: results of an ESPN survey. Pediatr Nephrol. 2023;38(9):3035–42. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s00467-023-05913-1 PubMed PMID: 37014530.
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. Essa pesquisa fornece informações valiosas, pois reflete a prática comum de nefrologistas pediátricos fora dos protocolos de pesquisa e inclui um número robusto de pacientes. Embora não tenha sido possível calcular a frequência da hipogamaglobulinemia devido às limitações de desenho do estudo, a hipogamaglobulinemia persistente foi observada em 30 das 34 infecções graves e quatro pacientes foram a óbito.

Os estudos epidemiológicos com foco na SNI nas últimas décadas têm sido limitados. Em uma coorte canadense de 631 pacientes acompanhados por uma mediana de 3,9 anos, nenhum óbito foi relatado1010. Carter SA, Mistry S, Fitzpatrick J, Banh T, Hebert D, Langlois V, et al. Prediction of short- and long-term outcomes in childhood nephrotic syndrome. Kidney Int Rep. 2019;5(4):426–34. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ekir.2019.12.015 PubMed PMID: 32280840.
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. Em um estudo nacional realizado no Japão, incluindo 2.099 crianças com SNI acompanhadas por 1 a 4 anos, dois óbitos ocorreram durante o período do estudo, com apenas um óbito associado à SNI1111. Kikunaga K, Ishikura K, Terano C, Sato M, Komaki F, Hamasaki Y, et al. High incidence of idiopathic nephrotic syndrome in East Asian children: a nationwide survey in Japan (JP-SHINE study). Clin Exp Nephrol. 2017;21(4):651–7. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s10157-016-1319-z PubMed PMID: 27590892.
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. Portanto, a diretriz para o tratamento da SNI desaconselha fortemente o uso de terapias de alto risco. No entanto, para pacientes de difícil tratamento que tenham sofrido toxicidade com terapias anteriores, existe a necessidade de explorar opções de tratamento mais eficazes. Se o RTX pode resolver esse dilema permanece um tópico de debate contínuo. Os nefrologistas pediátricos têm enfrentado desafios na orientação de seus pacientes e na tentativa de individualizar abordagens de tratamento com base nas evidências científicas disponíveis.

Em meio a esse debate em andamento, as recomendações da IPNA são oportunas. Elas ponderam cuidadosamente os riscos e benefícios e fornecem um guia prático para a prática atual, ao mesmo tempo em que estabelecem a base para futuros estudos científicos.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    07 Jul 2023
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