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Censo Brasileiro de Nefrologia 2019: um guia para avaliar a qualidade e a abrangência da terapia renal substitutiva no Brasil. Como estamos e como podemos melhorar?

O censo de diálise da Sociedade Brasileira de Nefrologia do ano de 201911 Neves PDMM, Sesso RCC, Thomé FS, Lugon JR, Nascimento MM. Inquérito brasileiro de diálise 2019. Braz J Nephrol [Internet]. 2021 Jan 29; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002021005010303&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0161
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coloca em perspectiva a situação da doença renal crônica e seu impacto no sistema de saúde do Brasil. Os dados do censo apontam avenidas para melhorar a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes em tratamento por diálise no Brasil.

A participação voluntária em torno de 40% das clínicas de diálise do país é um importante marco. O formato digitalizado da coleta dos dados deve ter desempenhado um importante papel na qualidade da informação obtida. A melhoria do gerenciamento dos dados nas clínicas deve contribuir para aumentar ainda mais o percentual de participação das clínicas de diálise nos censos dos próximos anos. Um elevado grau de adesão ao censo - no momento, maior do que a adesão ao sistema do Datasus - propicia às clínicas poder comparar metas de qualidade de tratamento com indicadores médios ao nível do país. Além do uso para as práticas clínicas, os dados mostrados na publicação do censo brasileiro de diálise fornecem evidências para guiar políticas públicas de saúde.

Os dados mostram aumento da prevalência e da incidência de pacientes em tratamento por diálise em relação ao ano anterior. Há diferenças regionais, indicando maior prevalência onde há maior cobertura do sistema de saúde. A menor proporção de doentes renais em estados como Paraíba e Maranhão, que estão entre as menores renda per capita do país, pode ser devido à menor cobertura assistencial dos pacientes com doença renal crônica nessas regiões, resultando em menor acesso dos pacientes a tratamento nefrológico precoce e, particularmente, ao acesso vascular por fístula arteriovenosa para hemodiálise de manutenção.

O censo reporta queda na mortalidade de pacientes submetidos a hemodiálise no país. Essa redução tem acontecido gradativamente ao longo dos anos. Seria interessante documentar a causa das mortes, a fim de entender fatores que contribuíram para essa redução da mortalidade, como, por exemplo, fatores associados a um melhor controle de infecções e melhor controle de doenças cardiovasculares nos pacientes.

Um dado preocupante é o uso crescente de cateter de longa permanência e próteses nos últimos anos em lugar do uso de fístula arteriovenosa (FAV). Não foi reportado o percentual de fístulas arteriovenosas; porém, com a estabilidade na proporção de uso de cateter temporário, deduz-se que não houve aumento do uso de FAV. Os dados chamam atenção para a necessidade de um programa nacional similar ao programa Fistula First, promovido nos Estados Unidos22 Lok CE. Fistula first initiative: advantages and pitfalls. Clin J Am Soc Nephrol. 2007 Sep;2(5):1043-53. DOI: https://doi.org/10.2215/CJN.01080307
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. O encaminhamento mais precoce dos pacientes com doença renal crônica ao nefrologista, em conjunto com iniciativas que estimulem a colaboração entre nefrologistas e cirurgiões vasculares, poderia contribuir para um aumento do percentual de pacientes com FAV no início da hemodiálise, resultando em melhor sobrevida desses pacientes.

De 2005 a 2019, o número de pacientes em diálise crônica mais que dobrou (de 65.129 para 139.691). As estimativas indicam que o número de pacientes em diálise crônica deverá continuar aumentando nos próximos anos. Os dados dos Estados Unidos, por exemplo, apontam que haverá aumento na prevalência de doença renal crônica até 2030, independentemente do aumento na prevalência de diabetes e obesidade33 McCullough KP, Morgenstern H, Saran R, Herman WH, Robinson BM. Projecting ESRD incidence and prevalence in the United States through 2030. J Am Soc Nephrol. 2019 Jan;30(1):127-35. DOI: https://doi.org/10.1681/ASN.2018050531
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. No Brasil, a prevalência de diabetes e obesidade vem aumentando com a transição epidemiológica. Segundo dados do sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), houve aumento de 34% na prevalência de diabetes entre 2006 e 201944 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. VIGITEL Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020.. Maior prevalência de hipertensão arterial sistêmica também foi observadao, com um aumento de 22% nesse período. Isso significa que devemos nos preparar para um grande aumento no número de pacientes em falência renal nos próximos anos.

O censo demonstra que há baixa demanda de diálise peritoneal no Brasil, já que, apesar de a maioria dos centros ter essa opção de tratamento, menos de 7% dos pacientes acaba optando por essa terapia. Sabemos que o modelo econômico proposto pelo SUS ao método está distante do que é viável para a maioria das clínicas. Nos Estados Unidos (EUA), mudanças nas políticas de reembolso de diálise levaram a um crescimento sem precedentes no uso da diálise peritoneal (DP) desde 201155 Lin E, Cheng XS, Chin KK, Zubair T, Chertow GM, Bendavid E, et al. Home dialysis in the prospective payment system era. J Am Soc Nephrol. 2017 Oct;28(10):2993-3004.. Em comparação com a hemodiálise (HD) intermitente, a DP é mais custo-efetiva e menos exigente tecnicamente, além de ser mais viável em ambientes rurais e remotos66 Wang V, Maciejewski ML, Coffman CJ, Sanders LL, Lee SYD, Hirth R, et al. Impacts of geographic distance on peritoneal dialysis utilization: refining models of treatment selection. Health Serv Res. 2017 Feb;52(1):35-55. e estar associada a uma melhor preservação da função renal residual77 Jansen MAM, Hart AAM, Korevaar JC, Dekker FW, Boeschoten EW, Krediet RT, et al. Predictors of the rate of decline of residual renal function in incident dialysis patients. Kidney Int. 2002 Sep;62(3):1046-53.. Essa baixa prevalência de pacientes em diálise peritoneal no Brasil pode levar a uma desmotivação ainda maior dos centros; assim, menos residentes serão treinados na técnica - levando a um ciclo vicioso e prejudicial dos pacientes com doença renal crônica avançada.

O censo de diálise da SBN tem sido importante para a comunidade nefrológica, mas poderá melhorar nos próximos anos. É interessante, por exemplo, obter dados sobre deficiência de ferro, independentemente dos níveis de hemoglobina, considerando a evidência de que esse marcador está associado a piores desfechos, havendo ou não anemia. Os dados sobre níveis dos pacientes revelam a importância de informações sobre o conteúdo de potássio usado nos dialisatos nas clínicas de hemodiálise. Será um grande avanço a obtenção de dados da transição do paciente em estágios avançados de doença renal crônica para o início da hemodiálise, considerando os necessários ajustes de medicamentos e o preparo do paciente em diversos aspectos para o início da terapia renal substitutiva. O censo de diálise da SBN é um importante instrumento para a melhoria da qualidade do tratamento dos pacientes com falência renal em terapia renal substitutiva no Brasil. É importante que a comunidade nefrológica utilize os dados do censo em benefício dos pacientes e apoie o censo no envio dos dados e na divulgação dos resultados.

Agradecimentos

Agradeço ao professor Thyago Proença de Moraes pelo auxilio na elaboração do texto.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2021
  • Aceito
    27 Abr 2021
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