Acessibilidade / Reportar erro

Efeito de dietas vegetarianas na função renal em pacientes com doença renal crônica sob tratamento não-dialítico: Uma revisão do escopo

Resumo

As dietas de proteína vegetal (VPDs, do inglês vegetable protein diets) em pacientes com doença renal crônica (DRC) podem estar relacionadas a ações biológicas benéficas e possivelmente ao impacto clínico. Esta é uma revisão de escopo que reúne estudos que avaliaram o efeito de uma dieta vegetariana na função renal em adultos com DRC sob tratamento não-dialítico. O desfecho analisado foi o impacto na função renal avaliado pela TFGe ou pelo clearance de creatinina. O MEDLINE (acessado via PubMed) foi pesquisado até 8 de Setembro de 2020. Os dados foram extraídos por dois revisores independentes, que também avaliaram a qualidade dos estudos. De 341 artigos recuperados, foram incluídos na análise 4 estudos avaliando 324 pacientes. Um estudo mostrou que uma dieta vegetariana hipoproteica suplementada com cetoanálogos teve benefícios em relação a uma dieta hipoproteica convencional, enquanto os outros três estudos não demonstraram diferença na função renal entre as dietas avaliadas. São necessários estudos adicionais a fim de avaliar os benefícios de dietas vegetarianas para maiores recomendações no manejo da DRC.

Descritores:
Dieta Vegetariana; Insuficiência Renal Crônica; Tratamento Conservador

Abstract

Vegetable protein diets (VPDs) in chronic kidney disease (CKD) patients may be related to beneficial biological actions and possibly clinical impact. This is a scoping review that merge studies that evaluated the effect of a vegetarian diet on kidney function in adults with CKD under non-dialysis treatment. The evaluated outcome was the impact in renal function assessed by eGFR or creatinine clearance. MEDLINE (accessed by PubMed) was searched up to September 8, 2020. Data were extracted by two independent reviewers, who also assessed the quality of the studies. Of 341 retrieved articles, 4 studies assessing 324 patients were included in the analysis. One study showed that a very low-protein ketoanalogue-supplemented vegetarian diet had benefits in relation to a conventional low-protein diet, while the other three studies demonstrated no difference in kidney function between the evaluated diets. Additional studies are needed to assess the benefits of vegetarian diets for further recommendations in CKD management.

Keywords:
Diet; Vegetarian; Renal Insufficiency; Chronic; Conservative Treatment

Introdução

A doença renal crônica (DRC) é definida por uma redução da função renal, ou seja, uma taxa de filtração glomerular (TFG) inferior a 60 mL/min por 1,73 m2, ou por marcadores de dano renal, ou ambos, por pelo menos 3 meses, independentemente da causa subjacente. Diabetes e hipertensão são as principais causas de DRC11 Webster AC, Nagler EV, Morton RL, Masson P. Chronic kidney disease. Lancet. 2017 Mar;389(10075):1238-52.. Testes simples de sangue e urina podem detectar a DRC, e tratamentos de baixo custo podem retardar a progressão da doença, reduzir o risco de derrame e ataques cardíacos, e melhorar a qualidade de vida22 Hill NR, Fatoba ST, Oke JL, Hirst JA, O’Callaghan CA, Lasserson DS, et al. Global prevalence of chronic kidney disease - a systematic review and meta-analysis. PLoS One. 2016 Jul;11(7):e0158765..

O manejo dietético é um tratamento reconhecido para a DRC. A National Kidney Foundation recomenda a restrição proteica com ou sem análogos de cetoácidos para adultos com DRC 3-5 sem diabetes, que são metabolicamente estáveis e sob supervisão clínica rigorosa, para reduzir o risco de doença renal em estágio final (DRET) e óbito, e melhorar sua qualidade de vida33 Ikizler TA, Burrowes JD, Byham-Gray LD, Campbell KL, Carrero JJ, Chan W, et al. KDOQI clinical practice guideline for nutrition in CKD: 2020 update. Am J Kidney Dis. 2020 Sep;76(3 Suppl 1):S1-S107.. Para estes pacientes, o nível de ingestão proteica pode ser reduzido com segurança para 0,55 a 0,6 g de proteína/kg por dia33 Ikizler TA, Burrowes JD, Byham-Gray LD, Campbell KL, Carrero JJ, Chan W, et al. KDOQI clinical practice guideline for nutrition in CKD: 2020 update. Am J Kidney Dis. 2020 Sep;76(3 Suppl 1):S1-S107.. Se necessário, uma redução adicional na ingestão proteica para 0,3 a 0,4 g de proteína/kg por dia pode ser alcançada com a adição de análogos de cetoácidos para garantir um equilíbrio suficiente de aminoácidos essenciais. Em pacientes diabéticos adultos com DRC 3-5, recomenda-se uma ingestão dietética de proteínas de 0,6-0,8 g/kg de peso corporal por dia para manter um estado nutricional estável e otimizar o controle glicêmico33 Ikizler TA, Burrowes JD, Byham-Gray LD, Campbell KL, Carrero JJ, Chan W, et al. KDOQI clinical practice guideline for nutrition in CKD: 2020 update. Am J Kidney Dis. 2020 Sep;76(3 Suppl 1):S1-S107..

A fonte proteica também pode ser relevante no manejo da DRC44 Anderson CAM, Nguyen HA, Rifkin DE. Nutrition interventions in chronic kidney disease. Med Clin North Am. 2016 Sep;100(6):1265-83.. Dietas de proteína vegetal (VPDs) em pacientes com DRC podem ter ações biológicas positivas e benefícios clínicos por meio de alguns mecanismos sugeridos. Há evidências de que as VPDs podem reduzir a expressão da renina-angiotensina55 Frigolet ME, Torres N, Tovar AR. Soya protein attenuates abnormalities of the renin-angiotensin system in adipose tissue from obese rats. Br J Nutr. 2012 Jan;107(1):36-44. e diminuir o desenvolvimento e a progressão da DRC, presumivelmente por meio de efeitos favoráveis sobre a TFG66 Iwasaki K, Gleiser CA, Masoro EJ, McMahan CA, Seo EJ, Yu BP. The influence of dietary protein source on longevity and age-related disease processes of Fischer rats. J Gerontol. 1988 Jan;43(1):B5-B12.. As VPDs também estão associadas à diminuição dos níveis de fosfato sérico e fator de crescimento de fibroblastos 23 em pacientes com DRC que não recebem diálise, e à redução de toxinas urêmicas77 Patel KP, Luo FJG, Plummer NS, Hostetter, TH, Meyer TW. The production of p-cresol sulfate and indoxyl sulfate in vegetarians versus omnivores. Clin J Am Soc Nephrol. 2012 Jun;7(6):982-8., inflamação88 Haghighatdoost F, Bellissimo N, Totosy de Zepetnek JO, Rouhani MH. Association of vegetarian diet with inflammatory biomarkers: a systematic review and meta-analysis of observational studies. Public Health Nutr. 2017 Oct;20(15):2713-21., e hipertensão99 Beilin LJ, Rouse IL, Armstrong BK, Margetts BM, Vandongen R. Vegetarian diet and blood pressure levels: Incidental or causal association? Am J Clin Nutr. 1988 Sep;48(3 Suppl):806-10.. As VPDs podem então ser utilizadas para reduzir a carga de fósforo e, potencialmente, a progressão da DRC nesses pacientes33 Ikizler TA, Burrowes JD, Byham-Gray LD, Campbell KL, Carrero JJ, Chan W, et al. KDOQI clinical practice guideline for nutrition in CKD: 2020 update. Am J Kidney Dis. 2020 Sep;76(3 Suppl 1):S1-S107.. Além disso, o aumento da ingestão de fontes de proteína vegetal em vez de animal também pode reduzir a carga ácida e a acidose metabólica44 Anderson CAM, Nguyen HA, Rifkin DE. Nutrition interventions in chronic kidney disease. Med Clin North Am. 2016 Sep;100(6):1265-83., o que teria um impacto positivo no manejo da doença. Portanto, o objetivo desta revisão é reunir estudos que avaliem o efeito de uma dieta vegetariana na função renal em adultos com DRC sob tratamento não-dialítico.

Metodologia

Critérios de elegibilidade e estratégia de busca

Todos os artigos relevantes, independentemente do idioma, foram identificados por meio de pesquisa no MEDLINE (acessado via PubMed) até 8 de Setembro de 2020. A estratégia de busca MEDLINE foi a seguinte: (vegetarian OR vegetarian diet OR plant based OR plant based diet OR vegetarianism) AND (chronic kidney disease OR chronic renal disease OR renal insufficiency OR kidney insufficiency). Todos os estudos potencialmente elegíveis foram considerados para esta revisão de escopo.

Critérios de elegibilidade

Foram incluídos estudos comparando uma dieta vegetariana a uma não vegetariana em adultos com DRC em tratamento não-dialítico. O desfecho analisado foi o impacto na função renal avaliado pela TFGe (mL/min/1,73 m2) ou pelo clearance de creatinina (mL/min). Foram excluídos os estudos de revisão e em animais. Um estudo que avaliou gestantes também foi excluído por envolver uma população com características e necessidades diferentes.

Dois investigadores (A.V.V. e L.S.C.) avaliaram de forma independente os artigos recuperados. Primeiro, foram avaliados os títulos e resumos. Se o resumo não fornecesse informações suficientes a respeito dos critérios de elegibilidade, o texto completo do artigo era avaliado. Os revisores não foram ocultados aos autores, instituições ou periódicos de artigos. Os mesmos investigadores conduziram de forma independente a extração de dados. As divergências foram resolvidas por consenso ou por um terceiro revisor (B.B.N.).

Foram extraídas as seguintes características do estudo: nome do autor, ano de publicação, desenho e objetivo do estudo, grupos de intervenção e controle, duração do acompanhamento, estágio da DRC, TFGe (mL/min/1,73 m2) ou clearance de creatinina (mL/min), idade (anos), sexo, índice de massa corporal (IMC) e outros desfechos e resultados relevantes.

Avaliação da qualidade

O risco de viés foi avaliado de forma independente por dois autores (A.V.V. e L.S.C.) nos domínios: viés de seleção (geração de sequência aleatória, ocultação de alocação), viés de desempenho (cegamento de participantes e de pessoal), viés de detecção (cegamento de avaliação dos desfechos), viés de atrito (dados dos desfechos incompletos), viés de relato (relato seletivo), e outros vieses utilizando a ferramenta da Cochrane de avaliação de risco de viés1010 Higgins JPT, Altman DG, Gøtzsche PC, Jüni P, Moher D, Oxman AD, et al. The Cochrane Collaboration’s tool for assessing risk of bias in randomized trials. BMJ. 2011 Oct;343:d5928.. Todos os domínios foram pontuados como (1) baixo risco de viés, (2) pouco claro, ou (3) alto risco de viés. As divergências foram resolvidas por consenso ou por um terceiro revisor (B.B.N).

Resultados

A pesquisa bibliográfica resultou em 341 artigos potencialmente relevantes. Destes, 329 foram excluídos com base no título e no resumo, e foram analisados 21 estudos para avaliação de texto completo. Foram incluídos quatro estudos nesta revisão de escopo, após a aplicação dos critérios de elegibilidade (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma de seleção do estudo.

Características do estudo

As características dos estudos são apresentadas na Tabela 1. O ano de publicação variou de 1998 a 2018. Dos 4 estudos incluídos em nossa análise, 1 foi um ensaio clínico controlado randomizado1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76., 2 foram estudos crossover1212 Moe SM, Zidehsarai MP, Chambers MA, Jackman LA, Radcliffe JS, Trevino LL, et al. Vegetarian compared with meat dietary protein source and phosphorus homeostasis in chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2011 Feb;6(2):257-64.,1313 Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80., e 1 teve um desenho transversal1414 Chang CY, Chang HR, Lin HC, Chang HH. Comparison of renal function and other predictors in lacto-ovo vegetarians and omnivores with chronic kidney disease. J Am Coll Nutr. 2018 Jan;37(6):466-71.. Os tamanhos das amostras variaram de 8 a 207 pacientes.

Tabela 1
Características dos estudos incluídos na revisão

Um dos estudos1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76. mostrou que uma dieta vegetariana hipoproteica suplementada com cetoanálogos teve benefícios em relação a uma dieta vegetariana hipoproteica convencional. Após 15 meses de acompanhamento, 13% dos pacientes no grupo de dieta vegetariana atingiram o desfecho primário (início da terapia renal substitutiva ou uma redução de >50% na TFGe inicial) versus 42% no grupo de dieta hipoproteica (P<0,001). O início da terapia renal substitutiva foi menos necessário no grupo de dieta vegetariana (11% versus 30%; P<0,001). Após ajuste para o outro preditor significativo de desfecho (TFGe, índice de massa corporal, proteína C reativa e terapia com inibidor da enzima de conversão da angiotensina/bloqueador do receptor da angiotensina), a dieta vegetariana hipoproteica suplementada com cetoanálogos permaneceu associada a uma menor probabilidade de atingir o desfecho1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76.. Além disso, a dieta vegetariana também foi associada a melhorias metabólicas neste estudo1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76..

Três dos estudos1212 Moe SM, Zidehsarai MP, Chambers MA, Jackman LA, Radcliffe JS, Trevino LL, et al. Vegetarian compared with meat dietary protein source and phosphorus homeostasis in chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2011 Feb;6(2):257-64.

13 Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80.
-1414 Chang CY, Chang HR, Lin HC, Chang HH. Comparison of renal function and other predictors in lacto-ovo vegetarians and omnivores with chronic kidney disease. J Am Coll Nutr. 2018 Jan;37(6):466-71. demonstraram que não há diferença na função renal, medida pela TFGe (mL/min/1,73 m2) ou pelo clearance de creatinina (mL/min), entre uma dieta vegetariana e uma dieta à base de carne (Tabela 1).

Risco de viés entre estudos

Um dos estudos1414 Chang CY, Chang HR, Lin HC, Chang HH. Comparison of renal function and other predictors in lacto-ovo vegetarians and omnivores with chronic kidney disease. J Am Coll Nutr. 2018 Jan;37(6):466-71. não foi avaliado pela ferramenta da Cochrane de avaliação de risco de viés55 Frigolet ME, Torres N, Tovar AR. Soya protein attenuates abnormalities of the renin-angiotensin system in adipose tissue from obese rats. Br J Nutr. 2012 Jan;107(1):36-44. por se tratar de um estudo transversal, o que não permite uma avaliação confiável do desfecho. Os outros estudos1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76.

12 Moe SM, Zidehsarai MP, Chambers MA, Jackman LA, Radcliffe JS, Trevino LL, et al. Vegetarian compared with meat dietary protein source and phosphorus homeostasis in chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2011 Feb;6(2):257-64.
-1313 Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80. foram classificados como alto risco de vieses de desempenho e detecção (os grupos estavam cientes da intervenção que estavam recebendo - mudança na dieta) e baixo risco de vieses de seleção, atrito, relato e outros.

Discussão

Os resultados desta revisão indicam que é provável que uma dieta vegetariana hipoproteica suplementada com cetoanálogos possa ter benefícios em pacientes com DRC avançada1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76.. Entretanto, apenas um dos estudos avaliados comprovou esta associação, enquanto os outros três não mostraram diferença significativa na função renal entre as dietas vegetariana e não vegetariana1212 Moe SM, Zidehsarai MP, Chambers MA, Jackman LA, Radcliffe JS, Trevino LL, et al. Vegetarian compared with meat dietary protein source and phosphorus homeostasis in chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2011 Feb;6(2):257-64.

13 Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80.
-1414 Chang CY, Chang HR, Lin HC, Chang HH. Comparison of renal function and other predictors in lacto-ovo vegetarians and omnivores with chronic kidney disease. J Am Coll Nutr. 2018 Jan;37(6):466-71..

Alguns metabólitos responsáveis por desfechos adversos na DRC podem ser reduzidos em pacientes que aderem a uma dieta vegetariana, tendo um impacto positivo no manejo da doença1515 Chaveau P, Koppe L, Combe C, Lasseur C, Trolonge S, Aparicio M. Vegetarian diets and chronic kidney disease. Nephrol Dial Transplant. 2019 Feb;34(2):199-207.. Na doença renal em estágio terminal, o acúmulo de toxinas urêmicas, como o indoxil sulfato (IS), ácido indol-3-acético, p-cresil sulfato (PCS) e N-óxido de trimetilamina (TMAO), está relacionado à progressão da DRC e à mortalidade1313 Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80.. Estes metabólitos são produtos de degradação de aminoácidos e aminas que não são excretados pelo rim danificado. As dietas vegetarianas têm menor teor de lecitina, colina e l-carnitina, o que pode resultar em uma menor produção de TMAO. Além disso, uma dieta vegetariana com um índice de proteína/fibra mais baixo pode reduzir os níveis de PCS e IS1616 Cases A, Cigarrán-Guldrís S, Mas S, Gonzalez-Parra E. Vegetable-based diets for chronic kidney disease? It is time to reconsider. Nutrients. 2019 Jun;11(6):E1263..

A exposição a toxinas urêmicas também pode afetar a microbiota. Um microbioma intestinal disbiótico na DRC favorece o supercrescimento de patobiontes, como bactérias que produzem toxinas urêmicas. Na disbiose, a permeabilidade da barreira intestinal é aumentada, o que está associado à inflamação sistêmica, aos desfechos cardiovasculares adversos e à progressão da DRC1919 Salmean YA, Segal MS, Langkamp-Henken B, Canales MT, Zello GA, Dahl WJ. Foods with added fiber lower serum creatinine levels in patients with chronic kidney disease. J Ren Nutr. 2013 Dec;23:e29-e32.. Uma dieta rica em fibras, como uma dieta vegetariana/vegana, pode fornecer uma microbiota intestinal saudável e pode melhorar a disbiose associada à DRC. Consequentemente, a inflamação sistêmica e o estresse oxidativo em pacientes que aderem a esta dieta podem ser reduzidos1818 Guldris SC, Parra EG, Amenós AC. Gut microbiota in chronic kidney disease. Nefrologia. 2017 Fev;37(1):9-19.,1919 Salmean YA, Segal MS, Langkamp-Henken B, Canales MT, Zello GA, Dahl WJ. Foods with added fiber lower serum creatinine levels in patients with chronic kidney disease. J Ren Nutr. 2013 Dec;23:e29-e32..

Outro mecanismo tem sido sugerido para os benefícios associados a uma dieta vegetariana. Um estudo que incluiu pacientes com transplante renal mostrou que uma dieta à base de proteína de soja por 5 semanas melhorou a função endotelial, mediada por um aumento na razão L-arginina/dimetil arginina assimétrica (ADMA), independentemente de mudança no perfil lipídico, estresse oxidativo ou isoflavonas2020 Cupisti A, Ghiadoni L, D’Alessandro C, Kardasz I, Morelli E, Panichi V, et al. Soy protein diet improves endothelial dysfunction in renal transplant patients. Nephrol Dial Transplant. 2007 Jan;22(1):229-34..

A progressão da DRC também pode estar relacionada ao teor de fósforo da dieta, que é baixo em dietas vegetarianas. Isto pode ser explicado pelo fato deste tipo de dieta ser praticamente isenta de aditivos contendo fósforo, que são amplamente utilizados em alimentos processados, tais como carne e aves2121 Sherman RA, Mehta O. Phosphorus and potassium content of enhanced meat and poultry products: implications for patients who receive dialysis. Clin J Am Soc Nephrol. 2009 Aug;4(8):1370-3.. Comparado ao fósforo de alimentos não processados, o fósforo em aditivos tem uma biodisponibilidade maior, pois é quase totalmente absorvido pelo trato intestinal1717 Lau WL, Kalantar-Zadeh K, Vaziri ND. The gut as a source of inflammation in chronic kidney disease. Nephron. 2015 Mar;130(2):92-8.,2222 Kalantar-Zadeh K, Gutekunst L, Mehrotra R, Kovesdy CP, Bross R, Shinaberger CS. Understanding sources of dietary phosphorus in the treatment of patients with chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2010 Mar;5(3):519-30.. Embora esta revisão não tenha sido projetada para avaliar os níveis de fósforo, é importante mencionar que um dos estudos incluídos demonstrou que apenas 1 semana de uma dieta vegetariana levou a uma redução dos níveis de fósforo sérico e FGF-2312. Esta associação também existe com dietas não estritamente vegetarianas, mas com uma porcentagem maior de proteínas de origem vegetal2323 Scialla JJ, Appel LJ, Wolf M, Yang W, Zhang X, Sozio SM, et al. Plant protein intake is associated with fibroblast growth factor 23 and serum bicarbonate levels in patients with chronic kidney disease: the chronic renal insufficiency cohort study. J Ren Nutr. 2012 Jul;22(4):379e1-388.e1..

Algumas limitações foram identificadas nos estudos avaliados. Primeiro, o desenho transversal do estudo de Chang et al. (2018)1414 Chang CY, Chang HR, Lin HC, Chang HH. Comparison of renal function and other predictors in lacto-ovo vegetarians and omnivores with chronic kidney disease. J Am Coll Nutr. 2018 Jan;37(6):466-71. não permite uma associação de causa e efeito. O estudo de Moe et al. (2010)1212 Moe SM, Zidehsarai MP, Chambers MA, Jackman LA, Radcliffe JS, Trevino LL, et al. Vegetarian compared with meat dietary protein source and phosphorus homeostasis in chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2011 Feb;6(2):257-64. permite uma avaliação mais confiável da intervenção, uma vez que houve um período de washout entre os mesmos participantes, mas o período de intervenção foi curto (7 dias) e o tamanho da amostra, pequeno (n=8). No estudo de Soroka et al. (1998)1313 Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80., o acompanhamento foi mais longo (6 meses), mas também teve um tamanho de amostra pequeno (n=9).

O estudo prospectivo, randomizado e controlado de Garneata et al. (2016)1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76. foi o estudo com o maior número de participantes e realizado por um tempo mais longo. Os pacientes no braço de intervenção receberam uma dieta vegetariana hipoproteica (VLPD, por sua sigla em inglês; 0,3 g de proteína/kg de corpo ideal/dia) suplementada com cetoanálogos de aminoácidos essenciais. Os autores discutem que os efeitos benéficos da dieta vegetariana parecem ser mediados pela melhora de complicações metabólicas da DRC avançada, como o equilíbrio de nitrogênio, distúrbios do metabolismo mineral, acidose metabólica e inflamação, em vez de pelo impacto na TFG. No entanto, há também algumas limitações do estudo. O grupo controle recebeu uma dieta contendo 0,6 g de proteína/kg por dia, o que é incomum em muitas partes do mundo.

Garneata et al. (2016)1111 Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76. relatam que o efeito mais benéfico da dieta hipoproteica suplementada com análogos de cetoácido de aminoácidos essenciais pode ser a redução de toxinas urêmicas. Os cetoácidos não têm o grupo amino ligado ao carbono de um aminoácido, permitindo que sejam convertidos em seus respectivos aminoácidos sem fornecer nitrogênio adicional. Uma dieta com 0,3 a 0,4 g de proteína por quilograma por dia, suplementada com cetoácidos e aminoácidos essenciais, reduz a produção de produtos metabólicos potencialmente tóxicos, bem como a carga de potássio, fósforo e possivelmente sódio, enquanto ainda fornece cálcio.

Há evidências de que uma dieta que fornece 0,3 g/kg/dia de proteína vegetal associada a uma mistura de aminoácidos essenciais e cetoanálogos reduziu os níveis de glicose no sangue e a produção de glicose endógena, e melhorou a sensibilidade à insulina em seis pacientes com DRC estágios 4 e 52424 Rigalleau V, Combe C, Blanchetier V, Aubertin J, Aparicio M, Ginet H. Low protein diet in uremia: effects on glucose metabolism and energy production rate. Kidney Int. 1997 Apr;51(4):1222-7., corroborando os benefícios de uma dieta vegetariana.

Em conclusão, há poucas evidências comparando dietas vegetarianas e não vegetarianas em adultos com DRC em tratamento não-dialítico, e apenas um estudo relatou efeitos significativos na TFG. São necessários estudos adicionais para avaliar os benefícios de dietas vegetarianas por meio de ensaios clínicos randomizados controlados de larga escala para possível inclusão em recomendações clínicas para o manejo da DRC. Para alcançar um resultado confiável, seria interessante tomar medidas para garantir a adesão dos participantes à dieta.

Aplicação prática

A aplicação prática deste trabalho é reunir estudos que avaliem as dietas vegetarianas para o manejo da DRC. A VLPD vegetariana suplementada com cetoanálogos é uma opção para melhorar alguns parâmetros importantes na evolução da doença, porém são necessários estudos adicionais para determinar se ela é superior a outros tipos de dieta.

Esta pesquisa não recebeu nenhum subsídio específico de agências de financiamento públicas, comerciais ou sem fins lucrativos.

References

  • 1
    Webster AC, Nagler EV, Morton RL, Masson P. Chronic kidney disease. Lancet. 2017 Mar;389(10075):1238-52.
  • 2
    Hill NR, Fatoba ST, Oke JL, Hirst JA, O’Callaghan CA, Lasserson DS, et al. Global prevalence of chronic kidney disease - a systematic review and meta-analysis. PLoS One. 2016 Jul;11(7):e0158765.
  • 3
    Ikizler TA, Burrowes JD, Byham-Gray LD, Campbell KL, Carrero JJ, Chan W, et al. KDOQI clinical practice guideline for nutrition in CKD: 2020 update. Am J Kidney Dis. 2020 Sep;76(3 Suppl 1):S1-S107.
  • 4
    Anderson CAM, Nguyen HA, Rifkin DE. Nutrition interventions in chronic kidney disease. Med Clin North Am. 2016 Sep;100(6):1265-83.
  • 5
    Frigolet ME, Torres N, Tovar AR. Soya protein attenuates abnormalities of the renin-angiotensin system in adipose tissue from obese rats. Br J Nutr. 2012 Jan;107(1):36-44.
  • 6
    Iwasaki K, Gleiser CA, Masoro EJ, McMahan CA, Seo EJ, Yu BP. The influence of dietary protein source on longevity and age-related disease processes of Fischer rats. J Gerontol. 1988 Jan;43(1):B5-B12.
  • 7
    Patel KP, Luo FJG, Plummer NS, Hostetter, TH, Meyer TW. The production of p-cresol sulfate and indoxyl sulfate in vegetarians versus omnivores. Clin J Am Soc Nephrol. 2012 Jun;7(6):982-8.
  • 8
    Haghighatdoost F, Bellissimo N, Totosy de Zepetnek JO, Rouhani MH. Association of vegetarian diet with inflammatory biomarkers: a systematic review and meta-analysis of observational studies. Public Health Nutr. 2017 Oct;20(15):2713-21.
  • 9
    Beilin LJ, Rouse IL, Armstrong BK, Margetts BM, Vandongen R. Vegetarian diet and blood pressure levels: Incidental or causal association? Am J Clin Nutr. 1988 Sep;48(3 Suppl):806-10.
  • 10
    Higgins JPT, Altman DG, Gøtzsche PC, Jüni P, Moher D, Oxman AD, et al. The Cochrane Collaboration’s tool for assessing risk of bias in randomized trials. BMJ. 2011 Oct;343:d5928.
  • 11
    Garneata L, Stancu A, Dragomir D, Stefan G, Mircescu G. Ketoanalogue-supplemented vegetarian very low-protein diet and CKD progression. J Am Soc Nephrol. 2016 Jul;27(7):2164-76.
  • 12
    Moe SM, Zidehsarai MP, Chambers MA, Jackman LA, Radcliffe JS, Trevino LL, et al. Vegetarian compared with meat dietary protein source and phosphorus homeostasis in chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2011 Feb;6(2):257-64.
  • 13
    Soroka N, Silverberg DS, Greemland M, Birk Y, Blum M, Peer G, et al. Comparison of a vegetable-based (soya) and an animal-based low-protein diet in predialysis chronic renal failure patients. Nephron. 1998;79(2):173-80.
  • 14
    Chang CY, Chang HR, Lin HC, Chang HH. Comparison of renal function and other predictors in lacto-ovo vegetarians and omnivores with chronic kidney disease. J Am Coll Nutr. 2018 Jan;37(6):466-71.
  • 15
    Chaveau P, Koppe L, Combe C, Lasseur C, Trolonge S, Aparicio M. Vegetarian diets and chronic kidney disease. Nephrol Dial Transplant. 2019 Feb;34(2):199-207.
  • 16
    Cases A, Cigarrán-Guldrís S, Mas S, Gonzalez-Parra E. Vegetable-based diets for chronic kidney disease? It is time to reconsider. Nutrients. 2019 Jun;11(6):E1263.
  • 17
    Lau WL, Kalantar-Zadeh K, Vaziri ND. The gut as a source of inflammation in chronic kidney disease. Nephron. 2015 Mar;130(2):92-8.
  • 18
    Guldris SC, Parra EG, Amenós AC. Gut microbiota in chronic kidney disease. Nefrologia. 2017 Fev;37(1):9-19.
  • 19
    Salmean YA, Segal MS, Langkamp-Henken B, Canales MT, Zello GA, Dahl WJ. Foods with added fiber lower serum creatinine levels in patients with chronic kidney disease. J Ren Nutr. 2013 Dec;23:e29-e32.
  • 20
    Cupisti A, Ghiadoni L, D’Alessandro C, Kardasz I, Morelli E, Panichi V, et al. Soy protein diet improves endothelial dysfunction in renal transplant patients. Nephrol Dial Transplant. 2007 Jan;22(1):229-34.
  • 21
    Sherman RA, Mehta O. Phosphorus and potassium content of enhanced meat and poultry products: implications for patients who receive dialysis. Clin J Am Soc Nephrol. 2009 Aug;4(8):1370-3.
  • 22
    Kalantar-Zadeh K, Gutekunst L, Mehrotra R, Kovesdy CP, Bross R, Shinaberger CS. Understanding sources of dietary phosphorus in the treatment of patients with chronic kidney disease. Clin J Am Soc Nephrol. 2010 Mar;5(3):519-30.
  • 23
    Scialla JJ, Appel LJ, Wolf M, Yang W, Zhang X, Sozio SM, et al. Plant protein intake is associated with fibroblast growth factor 23 and serum bicarbonate levels in patients with chronic kidney disease: the chronic renal insufficiency cohort study. J Ren Nutr. 2012 Jul;22(4):379e1-388.e1.
  • 24
    Rigalleau V, Combe C, Blanchetier V, Aubertin J, Aparicio M, Ginet H. Low protein diet in uremia: effects on glucose metabolism and energy production rate. Kidney Int. 1997 Apr;51(4):1222-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2021
  • Aceito
    25 Out 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com