Acessibilidade / Reportar erro

DMO na diálise peritoneal: o que o BRAZPD nos ajuda a compreender

O Estudo Brasileiro de Diálise Peritoneal II (BRAZPD II) foi um marco na pesquisa clínica, visto que foi a primeira grande coorte na América Latina a mostrar características dos pacientes em diálise peritoneal (DP), práticas clínicas, técnicas e suas correlações com resultados clínicos. Participaram do estudo 122 clínicas de diferentes partes do país, com um total de 9.905 pacientes, durante o período de dezembro de 2004 a janeiro de 2011.

Os dados coletados dessa coorte deram origem a outros estudos, resultando em 33 artigos publicados e 627 citações, o que mostra o impacto e a importância do BRAZPD na comunidade nefrológica.

As publicações sobre o distúrbio do metabolismo mineral e ósseo (DMO) em DP, a maioria realizada com pequeno número de pacientes, datam de 1982. Esses estudos foram em grande parte de associação e abordaram a fisiopatologia da osteodistrofia renal (OR), a concentração de cálcio (Ca) no dialisado e o uso de quelantes de fósforo à base de Ca, dentre outros. No passado, as possibilidades de controlar as alterações bioquímicas em DP eram restritas, basicamente se resumindo ao uso de carbonato de cálcio (CaCO3) para controle da hiperfosfatemia e no manejo da concentração de Ca no banho de diálise para tratamento de hipercalcemia. Posteriormente, na década de 1990, foram acrescentadas as drogas calcitriol e sevelamer para o tratamento de hiperparatireoidismo secundário (HPTS) e, em 2016, cinacalcete e paricalcitol.

Recentemente, o BJN publicou mais dois estudos oriundos do BRAZPD:

1. "Alta prevalência de distúrbios bioquímicos minerais e ósseos na doença renal crônica em uma coorte de diálise peritoneal nacional: as metas das diretrizes são muito difíceis de alcançar?"11 Weissheimer R, Bucharles SGE, Truyts CAM, Jorgetti V, Figueiredo AE, Barrett P, et al. High prevalence of biochemical disturbances of chronic kidney disease - mineral and bone disorders (CKD-MBD) in a nation-wide peritoneal dialysis cohort: are guideline goals too hard to achieve?. Braz J Nephrol. 2021 Apr 21; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0147
https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-20...
.

Esse artigo, com um seguimento de pacientes durante 12 meses, possibilitou mostrar a prevalência das alterações metabólicas dos pacientes em DP, que foram semelhantes às dos pacientes em hemodiálise (HD). Com relação ao percentual de pacientes que alcançou as metas estabelecidas pelo KDOQI, diretriz vigente da época, houve uma pequena variação entre o início e o fim do estudo. Os resultados mostraram que 50% dos pacientes alcançaram as metas para Ca e P, e somente 26% dos pacientes a meta para PTH, apesar do uso de CaCO3, sevelamer e calcitriol. Outro fato relevante foi o aumento de pacientes com hipercalcemia, provavelmente pelo uso do dialisado com concentração de Ca 3,5 mEq/L, associado ao uso de quelantes de fósforo à base de Ca. Considerando o período de registro dos dados desse estudo, ponderamos alguns fatores que provavelmente dificultaram o alcance de melhores metas: dosagem e reposição de 25(OH)vitamina D, que foi feita em somente 25% dos pacientes, pouca disponibilidade de drogas para tratamento do DMO, agravadas pelo excesso de burocracia para a liberação.

Esse estudo aponta que, assim como os pacientes em HD, os pacientes em DP apresentam DMO importantes e necessitam de um controle mais efetivo, visando diminuir o risco de mortalidade e melhorar a qualidade de vida.

2. "Mortalidade cardiovascular em diálise peritoneal: o impacto dos distúrbios minerais"22 Truyts C, Custodio M, Pecoit-Filho R, Moraes TP, Jorgetti V. Cardiovascular mortality in peritoneal dialysis: the impact of mineral disorders. Braz J Nephrol. 2021 Feb 08; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0040
https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-20...
.

O BRAZPD permitiu analisar o DMO em 65-70% dos pacientes em DP de todo o Brasil, com uma amostra de 4.424 pacientes incidentes. Vale ressaltar que, para esse estudo, foram criados 2 modelos para avaliar a associação do Ca, P, PTH e mortalidade cardiovascular, de acordo com as faixas ideais preconizadas pelo KDOQI e pelo KDIGO. Os resultados mostraram que o P elevado e o PTH baixo, para ambas as diretrizes, estavam associados com mortalidade cardiovascular. Outro achado interessante (dados não mostrados) foi a incidência das doenças ósseas: doença de baixa remodelação (PTH < 150 pg/mL) acometeu 30% dos pacientes, considerando as duas diretrizes; e doença de alta remodelação acometeu 39% dos pacientes, conforme o KDOQI, e 16% dos pacientes, conforme o KDIGO. Esses resultados mostraram a diversidade do DMO em DP, sendo que a incidência de doença adinâmica é menor do que o pressuposto, havendo um número importante de pacientes com doença de alta remodelação.

Nas duas últimas décadas, inúmeros trabalhos têm mostrado a associação entre DMO e mortalidade cardiovascular, responsável por 50% dos óbitos de pacientes dialíticos. A maioria desses estudos foi realizada em pacientes na fase pré-diálise ou em hemodiálise (HD). Os achados dos pacientes em DP nem sempre são coincidentes com os demais, exceto para os resultados do fósforo, que está associado com mortalidade, tanto em concentração muito baixa quanto em muito alta.

Esses dois artigos mencionados contribuíram para o conhecimento e manejo do DMO nos pacientes em DP até 2011. Atualmente, como acontece nos pacientes em HD, faz-se necessário aumentar os conhecimentos dos distúrbios minerais e suas implicações em pacientes em DP, como a calcificação vascular, o risco de fraturas, a incidência e tratamento de osteoporose, dentre outros. Dessa forma, realmente poderemos oferecer aos pacientes um tratamento individualizado, diminuindo a mortalidade cardiovascular, o risco de fraturas e outras complicações.

Alguns recursos são sugeridos no tratamento do DMO em pacientes em DP, como, por exemplo:

  1. Limitar uso de quelantes de fósforo à base de Ca, evitando balanço positivo de Ca e complicações como calcificação vascular e calcifilaxia33 Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO). KDIGO 2017 Clinical practice guideline update for the diagnosis, evaluation, prevention, and treatment of chronic kidney disease-mineral and bone disorder (CKD-MBD). Kidney Int Suppl. 2017 Jul;7(1):1-59.;

  2. Adequar a concentração de Ca no banho de diálise, com o uso de solução a 2.5 % mEq/L para pacientes com PTH < 150 pg/mL44 Moraes TP, Bucharles SGE, Ribeiro SC, Frumento R, Riella MC, Pecoits-Filho R. Low-calcium peritoneal dialysis solution is effective in bringing PTH levels to the range recommended by current guidelines in patients with PTH levels < 150 pg/dL. Braz J Nefrol. 2010 Jul/Sep;32(3):275-80.;

  3. Evitar níveis de PTH < 150 pg/mL e P abaixo do preconizado, que se associam a um maior risco de peritonite e mortalidade55 Yang Y, Da J, Jiang Y, Yuan J, Zha Y. Low serum parathyroid hormone is a risk factor for peritonitis episodes incident peritoneal dialysis patients: a retrospective study. BMC Nephrol. 2021 Jan;22(1):44.,66 Hong YA, Kim JH, Kim YK, Chang YK, Park CW, Kim SY, et al. Low parathyroid hormone level predicts infection-related mortality in incident dialysis patients: a prospective cohort study. Korean J Intern Med. 2020 Jan;35(1):160-70.;

  4. Considerar maior risco de mortalidade por todas as causas com fosfatase alcalina (FA) ≧100 IU/L e PTH <100 pg/mL77 Chen Z, Zhang X, Han F, Xie X, Hua Z, Huang X, et al. High alkaline phosphatase and low intact parathyroid hormone associate with worse clinical outcome in peritoneal dialysis patients. Perit Dial Int. 2021 Mar;41(2):236-43.;

  5. Considerar reposição de 25(OH)vitamina D, quando necessário88 Pi HC, Ren YP, Wang Q, Xu R, Dong J. Serum 25-hydroxyvitamin D level could predict the risk for peritoneal dialysis-associated peritonitis. Perit Dial Int. 2015 Dec;35(7):729-35.;

  6. Avaliar o risco de fraturas, que contribui para o aumento da mortalidade, por meio da densitometria óssea (DXA)99 Iseri C, Carrero JJ, Evans M, Felländer-Tsai L, Berg H, Runesson B, et al. Major fractures after initiation of dialysis: incidence, predictors and association with mortality. Bone. 2020 Apr;133:115242..

Concluindo, necessitamos olhar para os pacientes em DP com um cuidado maior, para que mais metas do controle do DMO sejam atingidas, resultando em maior sobrevida e melhor qualidade de vida para esses pacientes.

References

  • 1
    Weissheimer R, Bucharles SGE, Truyts CAM, Jorgetti V, Figueiredo AE, Barrett P, et al. High prevalence of biochemical disturbances of chronic kidney disease - mineral and bone disorders (CKD-MBD) in a nation-wide peritoneal dialysis cohort: are guideline goals too hard to achieve?. Braz J Nephrol. 2021 Apr 21; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0147
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0147
  • 2
    Truyts C, Custodio M, Pecoit-Filho R, Moraes TP, Jorgetti V. Cardiovascular mortality in peritoneal dialysis: the impact of mineral disorders. Braz J Nephrol. 2021 Feb 08; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0040
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0040
  • 3
    Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO). KDIGO 2017 Clinical practice guideline update for the diagnosis, evaluation, prevention, and treatment of chronic kidney disease-mineral and bone disorder (CKD-MBD). Kidney Int Suppl. 2017 Jul;7(1):1-59.
  • 4
    Moraes TP, Bucharles SGE, Ribeiro SC, Frumento R, Riella MC, Pecoits-Filho R. Low-calcium peritoneal dialysis solution is effective in bringing PTH levels to the range recommended by current guidelines in patients with PTH levels < 150 pg/dL. Braz J Nefrol. 2010 Jul/Sep;32(3):275-80.
  • 5
    Yang Y, Da J, Jiang Y, Yuan J, Zha Y. Low serum parathyroid hormone is a risk factor for peritonitis episodes incident peritoneal dialysis patients: a retrospective study. BMC Nephrol. 2021 Jan;22(1):44.
  • 6
    Hong YA, Kim JH, Kim YK, Chang YK, Park CW, Kim SY, et al. Low parathyroid hormone level predicts infection-related mortality in incident dialysis patients: a prospective cohort study. Korean J Intern Med. 2020 Jan;35(1):160-70.
  • 7
    Chen Z, Zhang X, Han F, Xie X, Hua Z, Huang X, et al. High alkaline phosphatase and low intact parathyroid hormone associate with worse clinical outcome in peritoneal dialysis patients. Perit Dial Int. 2021 Mar;41(2):236-43.
  • 8
    Pi HC, Ren YP, Wang Q, Xu R, Dong J. Serum 25-hydroxyvitamin D level could predict the risk for peritoneal dialysis-associated peritonitis. Perit Dial Int. 2015 Dec;35(7):729-35.
  • 9
    Iseri C, Carrero JJ, Evans M, Felländer-Tsai L, Berg H, Runesson B, et al. Major fractures after initiation of dialysis: incidence, predictors and association with mortality. Bone. 2020 Apr;133:115242.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2021
  • Aceito
    14 Abr 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com