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Diálise peritoneal de início urgente no Brasil: excelentes resultados, pouca aplicação

O início não planejado da diálise peritoneal (DP), também conhecido como DP de início urgente, foi inicialmente definido pela Sociedade Internacional de Diálise Peritoneal (ISPD, por sua sigla em inglês) como quando a terapia é iniciada dentro de 14 dias após a inserção do cateter peritoneal1. Mais recentemente, Blake e Jain propuseram que o termo DP de início urgente deveria ser usado apenas para os casos em que haja urgência clínica genuína para iniciar a terapia dentro de 72 horas após a inserção do cateter de Tenckhoff22 Blake PG, Jain AK. Urgent start peritoneal dialysis defining what it is and why it matters. Clin J Am Soc Nephrol. 2018 Aug;13(8):1278-9. DOI: https://doi.org/10.2215/CJN.02820318
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. Diferentes pontos de corte para o início do tratamento têm sido utilizados em estudos que comparam os desfechos de pacientes com início não planejado ou planejado do tratamento. No entanto, os resultados têm se mostrado semelhantes, independentemente deste fato.

Uma recente revisão sistemática e meta-análise avaliando a viabilidade e segurança da DP não planejada não encontrou diferença na mortalidade, peritonite, infecção no sítio de saída, ou sobrevida da técnica de DP em comparação com a DP planejada. Entretanto, observou-se uma maior incidência de extravazamento do cateter e disfunção mecânica no grupo de início não planejado33 Xieyi G, Xiaohong T, Xiaofang W, Zi L. Urgent-start peritoneal dialysis in chronic kidney disease patients: A systematic review and meta-analysis compared with planned peritoneal dialysis and with urgent-start hemodialysis. Perit Dial Int J Int Soc Perit Dial. 2021 Apr;41(2):179-93. DOI: https://doi.org/10.1177/0896860820918710
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. Estes achados não diferem das ainda poucas publicações brasileiras sobre o tema44 Pilatti M, Theodorovitz VC, Hille D, Sevignani G, Ferreira HC, Vieira MA, et al. Urgent vs. planned peritoneal dialysis initiation: complications and outcomes in the first year of therapy. Braz. J. Nephrol. 2022 Oct/Dec;44(4):1-8. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2021-0182
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,55 Calice-Silva V, Tonial BC, Ferreira HC, Nerbass FB. Urgent vs. early-start peritoneal dialysis: patients’ profile and outcomes. Braz. J. Nephrol.. 2021 Jan/Mar;43(1):110-4. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0011
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, e são agora corroborados por Muller e Ponce em uma análise de coorte retrospectiva com mais de trezentos pacientes66 Müller JVC, Ponce D. Infectious and mechanical complications in planned-start vs. urgent-start peritoneal dialysis: a cohort study. Braz J Nephrol. 2022 Jul 04; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2021-0287en
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. Os autores compararam diferentes desfechos de 206 pacientes que iniciaram a DP em até 72 horas (não planejada) após a implantação do cateter com aqueles de 99 pacientes cuja terapia teve início após sete dias da inserção (definida pelos autores como planejada) entre 2014 e 2020. Entre os principais resultados, constatou-se que a técnica e a sobrevida do paciente foram semelhantes em ambos os grupos e que o extravazamento foi mais frequente com o início não planejado da DP66 Müller JVC, Ponce D. Infectious and mechanical complications in planned-start vs. urgent-start peritoneal dialysis: a cohort study. Braz J Nephrol. 2022 Jul 04; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2021-0287en
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Outra contribuição singular do trabalho de Muller e Ponce é a identificação das causas etiológicas da infecção, permitindo a determinação da microbiota de seus pacientes e aumentando as chances de sucesso do tratamento, o que impacta na sobrevida da técnica e do paciente66 Müller JVC, Ponce D. Infectious and mechanical complications in planned-start vs. urgent-start peritoneal dialysis: a cohort study. Braz J Nephrol. 2022 Jul 04; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2021-0287en
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. Dado o impacto da identificação microbiana nos desfechos dos pacientes e no sucesso do tratamento, as diretrizes atualizadas da ISPD sobre peritonite recomendam uma porcentagem de cultura negativa inferior a 15% ao ano, o que é um desafio para muitos serviços de DP em nosso país, devido à falta de laboratórios especializados nesses procedimentos77 Li PK, Chow KM, Cho Y, Fan S, Figueiredo AE, Harris T, et al. ISPD peritonitis guideline recommendations: 2022 update on prevention and treatment. Perit Dial Int. 2022 Mar;42(2):110-53. DOI: https://doi.org/10.1177/08968608221080586
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Infecções e complicações mecânicas são as duas principais razões para falha da técnica e saída da terapia na DP. Embora o estudo de Muller e Ponce tenha demonstrado que o extravazamento é mais comum com o início não planejado da DP, isto não é um indicador de falência da técnica ou saída da terapia. Não houve preditores de falha técnica e complicações mecânicas identificadas neste estudo, e a presença de diabetes foi o único preditor de eventos de peritonite (HR 2,02; IC95%: 1,25-3,25; P= 0,04). Os preditores de óbito foram idade mais avançada e níveis mais baixos de albumina. Apesar desses resultados encorajadores, a DP é pouco utilizada como terapia renal substitutiva (TRS) em nosso país. Segundo o último Censo Brasileiro de Diálise, embora 48% dos 252 centros participantes ofereçam a DP como opção para TRS, apenas 5,8% dos pacientes em diálise eram tratados por esta modalidade. Este percentual vem diminuindo ao longo dos anos88 Nerbass FB, Lima HN, Thomé FS, Vieira Neto OM, Sesso R, Lugon JR. Censo brasileiro de diálise 2021. Braz. J. Nephrol. 2022 Nov 04; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0083pt
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Portanto, avaliar porque a DP tem sido subutilizada em nosso país é importante. Considerando a falta de vagas para HD em algumas regiões e a extensão territorial do país, a DP pode ser uma opção segura para o tratamento da doença renal em estágio terminal em uma situação de urgência, quando há falta de tempo para se preparar para o início da diálise. Infelizmente, esta é uma situação comumente enfrentada em nossa prática clínica diária devido a DRC não diagnosticada ou a um diagnóstico tardio da mesma. Além disso, existem algumas barreiras conhecidas, tais como dificuldades na colocação do cateter de DP, menor reembolso em comparação com a hemodiálise, falta de conhecimento dos nefrologistas para prescrever e lidar com complicações da modalidade, altos custos para a entrega de suprimentos e falta de conhecimento do paciente sobre esta terapia e suas vantagens.

Considerando o número crescente de pacientes com necessidade de TRS no Brasil e o elevado peso econômico da hemodiálise ao sistema de saúde, as partes interessadas e o governo devem trabalhar juntos para desenvolver estratégias que superem as barreiras acima e melhorem o atendimento aos pacientes. A implementação de um programa de DP não planejada é uma excelente estratégia para aumentar a difusão da DP, principalmente pela otimização da utilização desta modalidade de TRS em nosso país, permitindo que mais pessoas recebam tratamento e tenham melhores resultados.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2023
  • Aceito
    17 Jan 2023
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