Acessibilidade / Reportar erro

Prevalência das inversões nos íntrons 1 e 22 do gene do fator VIII e inibidores em pacientes do sul do Brasil

RESUMO

Introdução:

O desenvolvimento de anticorpos (inibidores) contra o fator exógeno é a principal complicação do tratamento de hemofilias. Tanto fatores genéticos quanto não genéticos estão relacionados com o surgimento dos inibidores. Entre os fatores genéticos, o tipo de mutação que originou a doença é um dos mais importantes. Os objetivos do presente estudo foram estabelecer a prevalência das inversões nos íntrons 1 e 22 do gene do fator VIII em pacientes com hemofilia A grave, correlacionando-a com o desenvolvimento de inibidores, bem como comparar os resultados encontrados com dados da literatura mundial.

Método:

Foram analisados pacientes hemofílicos A graves não aparentados quanto à presença da inversão no íntron 1 (n = 77) e da inversão no íntron 22 (n = 39), utilizando a técnica de reação em cadeia dapolimerase (PCR). A detecção do inibidor foi realizada pelo teste de mistura; a sua quantificação, pelo método de Bethesda.

Resultados:

As prevalências das inversões nos íntrons 1 e 22 foram de 2,6% e 41%, respectivamente. Nenhum paciente com a inversão no íntron 1 apresentou inibidores, enquanto 26,3% dos pacientes com a inversão no íntron 22 desenvolveram os anticorpos.

Conclusão:

O número reduzido de pacientes com a inversão no íntron 1 não permitiu a aplicação de teste estatístico para a correlação com o risco de desenvolvimento de inibidores. A inversão no íntron 22 do gene do fator VIII não se associou ao maior risco de desenvolvimento de inibidores na amostra analisada (p = 1).

Unitermos:
hemofilia A; inibidores dos fatores de coagulação sanguínea; fator VIII; mutação; biologia molecular

ABSTRACT

Objectives:

The development of antibodies (inhibitors) against exogenous factors is the main complication in the treatment of hemophilia. Both genetic and non-genetic factors are related to inhibitor development. Among the genetic factors, the type of mutation that caused the disease is one of the most important. The objectives of the present study were to establish the prevalence of inversions in introns 1 and 22 of the factor VIII gene in patients with severe hemophilia A, correlating these with inhibitor development, and to compare the results with data from the literature.

Method:

Unrelated severe hemophilia A patients were analyzed for the presence of inversions in intron 1 (n = 77) and intron 22 (n = 39) by polymerase chain reaction (PCR). Detection of the inhibitor was performed by the mixing test and its quantification was performed by the Bethesda method.

Results:

The prevalence of inversions in introns 1 and 22 was 2.6% and 41%, respectively. No patient with inversions in intron 1 had inhibitors, whereas 26.3% of patients with inversions in intron 22 developed inhibitors.

Conclusion:

Due to the small number of patients with inversions in intron 1, it was not possible to perform a statistical test for the correlation with risk of inhibitor development. Inversions in intron 22 of the factor VIII gene were not associated with an increased risk of inhibitor development in the analyzed samples (p = 1).

Key words:
hemophilia A; blood coagulation factor inhibitors; factor VIII; mutation; molecular biology

RESUMEN

Introducción:

El desarrollo de anticuerpos (inhibidores) contra elfactor exógeno es la principal complicación del tratamiento de hemofilias. Tanto factores genéticos como no genéticos están relacionados con la aparición de los inhibidores. Entre los factores genéticos, el tipo de mutación que originó la enfermedad es uno de los más importantes. El objetivo de este estudio fue establecer laprevalencia de las inversiones en los intrones 1 y 22 del gen del factor VIII en pacientes con hemofilia A severa, relacionándola con el desarrollo de inhibidores, así como comparar los resultados encontrados con datos de la literatura en el mundo.

Método:

Pacientes con hemofilia A severa no emparentados fueron analizados cuanto a la presencia de inversión en el intrón 1 (n = 77) y de la inversión en el intrón 22 (n = 39), usando la técnica de reacción en cadena de lapolimerasa. La detección del inhibidor fue realizada por el estudio de mezclas; su cuantificación, por el método Bethesda.

Resultados:

La prevalencia de las inversiones en los intrones 1 y 22 fueron 2,6% y 41%, respectivamente. Ningúnpaciente con la inversión en el intrón 1 presentó inhibidores, mientras 26,3% de los pacientes con la inversión en el intrón 22 desarrollaron anticuerpos.

Conclusión:

El pequeno número de pacientes con inversión en el intrón 1 no permitió la aplicación de la prueba estadística para correlación con el riesgo de desarrollo de inhibidores. La inversión en el intrón 22 del gen del factor VIII no se asoció a un mayor riesgo de desarrollo de inhibidores en la muestra analizada (p = 1).

Palabras clave:
hemofilia A; inhibidores de factor de coagulación sanguínea; factor VIII; mutación; biología molecular

INTRODUÇÃO

O tratamento da hemofilia consiste na reposição endovenosa do fator deficiente. A formação de inibidores [anticorpos policlonais da classe de imunoglobulina G (IgG)] contra o fator exógeno é a complicação mais grave da terapia de reposição em pacientes com hemofilia®. Os pacientes acometidos passam a não responder à infusão do fator deficiente e apresentam episódios hemorrágicos de difícil controle.

Entre 10% e 30% dos pacientes com hemofilia A desenvolvem inibidores ao tratamento, enquanto a incidência entre aqueles com hemofilia B é muito mais baixa, ao redor de 1%-5%(22 Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Manual de Hemofilia. 2. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2015.). A produção de inibidores é influenciada por fatores tanto genéticos quanto não genéticos(33 Iorio A, Barbara AM, Makris M, et al. Natural history and clinical characteristics of inhibitors in previously treated haemophilia A patients: a case series. Haemophilia. 2017; 23(12): 255-63.,44 Lovgren KM, S0ndergaard H, Skov S, Wiinberg B. Non-genetic risk factors in haemophilia A inhibitor management - the danger theory and the use of animal models. Haemophilia. 2016; 22(5): 657-66.). Os principais fatores genéticos são o tipo de mutação que causou a doença e a suscetibilidade genética das moléculas de superfície celular envolvidas na resposta imune, como as moléculas do complexo principal de histocompatibilidade, os receptores de linfócitos T e os receptores de citocinas, assim como várias moléculas imunomoduladoras(55 Astermark J. Why do inhibitors develop? Principles of and factors influencing the risk for inhibitor development in haemophilia. Haemophilia. 2006; 12(3): 52-60.).

As mutações associadas ao risco mais elevado de desenvolvimento de inibidores são aquelas que impedem a síntese da proteína endógena (mutações nulas) e estão relacionadas com o fenótipo grave da doença. Essas são as grandes deleções, mutações nonsense e (para hemofilia A) mutações de inversão nos íntrons 1 e 22(55 Astermark J. Why do inhibitors develop? Principles of and factors influencing the risk for inhibitor development in haemophilia. Haemophilia. 2006; 12(3): 52-60.,66 Oldenburg J, Picard JK, Schwaab R, Brackmann HH, Tuddenham EGD, Simpson E. HLA genotype of patients with severe haemophilia A due to intron 22 inversion with and without inhibitors of factor VIII. Thromb Haemost. 1997; 77(2): 238-42.).

Estima-se que mais de 40% dos casos graves de hemofilia A sejam causados por inversões no gene do fator VIII(77 Payne AB, Miller CH, Kelly FM, Soucie JM, Hooper WC. The CDC hemophilia A mutation project (CHAMP) mutation list: a new online resource. Hum Mutat. 2013; 34(2): E2382-91.).

OBJETIVOS

O objetivo deste estudo foi estabelecer a prevalência das inversões nos íntrons 1 e 22 do gene do fator VIII em uma amostra de pacientes com hemofilia A do estado do Paraná, Brasil, correlacionando essas mutações com a presença de inibidores contra o fator VIII e sua quantificação na mesma população.

MÉTODO

Os participantes do estudo tinham hemofilia A e foram cadastrados no Centro de Hematologia e Hemoterapia do estado do Paraná. Procurou-se selecionar pacientes de famílias diferentes porque indivíduos hemofílicos de uma mesma raiz familiar exibem a mesma mutação causadora da doença. Trata-se de um estudo experimental observacional, analítico e transversal.

Os inibidores foram detectados por meio do teste de mistura. O método de Bethesda foi utilizado para quantificar inibidores e classificar amostras como de baixa/alta resposta; isto é, quando os inibidores tivessem níveis persistentes < 5 unidades Bethesda (UB)/ml ou acima de 5 UB/ml em resposta à exposição a um fator exógeno, respectivamente. Essa classificação correlaciona-se com a severidade clínica, uma vez que os pacientes com < 5 UB/ml geralmente respondem a um aumento na dose de fator infundida, enquanto aqueles com mais de 5 UB/ml necessitam do uso de um agente de by-pass para o controle dos episódios de sangramento(22 Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Manual de Hemofilia. 2. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2015.).

A reação em cadeia da polimerase (PCR) utilizando transcrição reversa foi aplicada para identificar a inversão no íntron 22(88 Rossetti LC, Radic CP, Larripa IB, De Brasi CD. Genotyping the haemophilia inversion hotspot by use of inverse PCR. Clin Chem. 2005; 51(7): 1154-8.); a PCR rápida, para identificar a inversão no íntron 1(99 Bagnall RD, Waseem N, Green PM, Gianelli F. Recurrent inversion breaking intron 1 of the factor VIII gene is a frequent cause of severe haemophilia A. Blood. 2002; 99(1): 168-74.).

As frequências de prevalência obtidas neste estudo foram comparadas com aquelas de artigos publicados no PubMed nos últimos 10 anos, mediante a seleção de estudos com o maior número de participantes. O teste de frequência qui-quadrado (c2) foi aplicado com um a de 5%, e simulações aleatórias de Monte Carlo foram realizadas nas situações em que os pressupostos do teste de frequência não foram atendidos. Os testes foram realizados por meio da plataforma R. A diferença estimada entre variáveis categóricas foi feita usando o teste exato de Fischer, com um nível de significância mínimo de 5%.

A pesquisa foi conduzida de acordo com a Declaração de Helsinki Revisada em 2008, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Os pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Um total de 45 pacientes com hemofilia A severa foi testado para inversão no íntron 22, sendo 39 não aparentados; 84 participantes foram testados para inversão no íntron 1, sendo 77 não aparentados. A prevalência de inversão no íntron 22 entre indivíduos não aparentados foi 41% e não exibiu diferença significativa (c2 = 1,13; p = 0,3)(1010 Margaglione M, Castaman G, Morfini M, et al. The Italian AICE-genetics hemophilia A database: results and correlation with clinical phenotype. Haematologica. 2008; 93: 722-8.). A prevalência de inversão no íntron 1 entre pacientes não aparentados foi 2,6% e também não mostrou diferença significativa (c2 = 0,05; p = 1,18)(1111 Schröder J, El-Maarri O, Schwaab R, Müller CR, Oldenburg J. Factor VIII intron-1 inversion: frequency and inhibitor prevalence. J Thromb Haemost. 2006; 4(5): 1141-3.).

Leiria et al. (2009)(1212 Leiria LB, Roisenberg I, Salzano FM, Bandinelli E. Introns 1 and 22 inversions and factor VIII inhibitors in patients with severe haemophilia A in southern Brazil. Haemophilia. 2009; 15: 309-13.) estudaram 107 pacientes com hemofilia A também no sul do Brasil, mas no estado do Rio Grande do Sul, e relataram uma prevalência de 46% e 3% para inversões nos íntrons 22 e 1, respectivamente.

A prevalência de inibidores em pacientes aparentados e não aparentados com inversão no íntron 22 foi 26,3% e não mostrou diferença significativa (c2 = 0,01;p = 0,9)(1010 Margaglione M, Castaman G, Morfini M, et al. The Italian AICE-genetics hemophilia A database: results and correlation with clinical phenotype. Haematologica. 2008; 93: 722-8.). Entretanto, uma diferença significativa (c2 = 26; p < 0,01) foi observada entre pacientes com inversão no íntron 1(1111 Schröder J, El-Maarri O, Schwaab R, Müller CR, Oldenburg J. Factor VIII intron-1 inversion: frequency and inhibitor prevalence. J Thromb Haemost. 2006; 4(5): 1141-3.).

Embora não utilizados neste estudo, aplicativos para a construção de heredogramas, como o Sistema de Elaboração e Gerenciamento de Heredogramas (SEGH), podem facilitar a classificação dos pacientes em aparentados e não aparentados e tornar a coleta de amostras dos não aparentados mais efetiva, uma vez que na presença de múltiplos membros familiares acometidos, a coleta adequada de história familiar é tarefa árdua(1313 Corrêa LA. Desenvolvimento de uma aplicação web para construção de heredogramas e gerenciamento de dados de pacientes [thesis]. Curitiba: Faculdades Pequeno Príncipe; 2012.).

Em relação ao comportamento dos inibidores nos 45 pacientes testados para inversão no íntron 22, a prevalência de inibidores nos pacientes com e sem inversão (19 e 26 pacientes, respectivamente) foi muito semelhante: 26,3% (n = 5) e 26,9% (n = 7), respectivamente. Desse modo, nenhuma diferença foi observada na distribuição da inversão no íntron 22 de acordo com a presença de inibidor (p = 1) (Figura 1), nem em relação ao grau de resposta (p = 0,41) (Figura 2). Os dois pacientes com inversão no íntron 1 não apresentaram inibidor.

FIGURA 1
Inversão no íntron 22 e comportamento dos inibidores contra o fator VIII (positivo/negativo)

FIGURA 2
Inversão no íntron 22 e taxa de resposta aos inibidores (alta/baixa)

As causas do desenvolvimento do inibidor permanecem indefinidas em relação aos vários fatores etiológicos possíveis.

CONCLUSÃO

A inversão no íntron 22 do gene do fator VIII não esteve associada ao maior risco de desenvolvimento de inibidores na amostra analisada, enquanto o pequeno número de pacientes com inversão no íntron 1 não permitiu a aplicação de um teste estatístico para determinar sua associação com o risco de desenvolvimento de inibidores.

AGRADECIMENTOS

À Prof. Dr. Margareth Castro Ozelo, da Universidade Estadual de Campinas, e ao Prof. Dr. Johannes Oldenburg, da Universität Würzburg, pela confecção das análises moleculares e pela autorização para publicação de resultados.

REFERENCES

  • 1
    Castaldo G, D'Argenio V, Nardiello P, et al. Haemophilia A: molecular insights. Clin Chem Lab Med. 2007; 45(4): 450-61.
  • 2
    Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Manual de Hemofilia. 2. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2015.
  • 3
    Iorio A, Barbara AM, Makris M, et al. Natural history and clinical characteristics of inhibitors in previously treated haemophilia A patients: a case series. Haemophilia. 2017; 23(12): 255-63.
  • 4
    Lovgren KM, S0ndergaard H, Skov S, Wiinberg B. Non-genetic risk factors in haemophilia A inhibitor management - the danger theory and the use of animal models. Haemophilia. 2016; 22(5): 657-66.
  • 5
    Astermark J. Why do inhibitors develop? Principles of and factors influencing the risk for inhibitor development in haemophilia. Haemophilia. 2006; 12(3): 52-60.
  • 6
    Oldenburg J, Picard JK, Schwaab R, Brackmann HH, Tuddenham EGD, Simpson E. HLA genotype of patients with severe haemophilia A due to intron 22 inversion with and without inhibitors of factor VIII. Thromb Haemost. 1997; 77(2): 238-42.
  • 7
    Payne AB, Miller CH, Kelly FM, Soucie JM, Hooper WC. The CDC hemophilia A mutation project (CHAMP) mutation list: a new online resource. Hum Mutat. 2013; 34(2): E2382-91.
  • 8
    Rossetti LC, Radic CP, Larripa IB, De Brasi CD. Genotyping the haemophilia inversion hotspot by use of inverse PCR. Clin Chem. 2005; 51(7): 1154-8.
  • 9
    Bagnall RD, Waseem N, Green PM, Gianelli F. Recurrent inversion breaking intron 1 of the factor VIII gene is a frequent cause of severe haemophilia A. Blood. 2002; 99(1): 168-74.
  • 10
    Margaglione M, Castaman G, Morfini M, et al. The Italian AICE-genetics hemophilia A database: results and correlation with clinical phenotype. Haematologica. 2008; 93: 722-8.
  • 11
    Schröder J, El-Maarri O, Schwaab R, Müller CR, Oldenburg J. Factor VIII intron-1 inversion: frequency and inhibitor prevalence. J Thromb Haemost. 2006; 4(5): 1141-3.
  • 12
    Leiria LB, Roisenberg I, Salzano FM, Bandinelli E. Introns 1 and 22 inversions and factor VIII inhibitors in patients with severe haemophilia A in southern Brazil. Haemophilia. 2009; 15: 309-13.
  • 13
    Corrêa LA. Desenvolvimento de uma aplicação web para construção de heredogramas e gerenciamento de dados de pacientes [thesis]. Curitiba: Faculdades Pequeno Príncipe; 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2019
  • Revisado
    05 Jul 2019
  • Aceito
    05 Ago 2019
  • Publicado
    20 Dez 2019
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica, Rua Dois de Dezembro,78/909 - Catete, CEP: 22220-040v - Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 - 3077-1400 / 3077-1408, Fax.: +55 21 - 2205-3386 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: jbpml@sbpc.org.br