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O mapeamento da unidade funcional hepática: uma ferramenta para diagnóstico e pesquisa

Mapping the functional liver unit: an aid tool for diagnosis and research

Resumos

INTRODUÇÃO: Diversas teorias têm sido apresentadas para uma unidade morfofuncional hepática. OBJETIVO: O objetivo do presente artigo é estabelecer um critério para melhor compreender a morfofisiologia e as alterações hepáticas por meio de um método prático, com base na correlação do metabolismo predominante e do padrão de circulação porto-central. MÉTODOS: Este trabalho apresenta um modelo de grade de estudo morfológico (GEM), concebido com a utilização do software Microsoft® PowerPoint, e demonstra sua aplicação no diagnóstico histopatológico e na interpretação da fisiopatologia hepática. RESULTADOS: A aplicação da GEM em três casos clinicopatológicos permitiu uma análise mais apurada das lesões hepáticas distribuídas nas diversas áreas circulatórias e zonas metabólicas do lóbulo hepático, demarcadas com a grade, e possibilitou melhor entendimento da fisiopatologia em cada caso, bem como a correlação do diagnóstico histopatológico com os dados clínicos. DISCUSSÃO: A GEM demonstra a importância do zoneamento metabólico, com a definição de um septo virtual interlobular. A aplicação desse modelo de grade mostrou a assimetria lobular do fígado e sua correspondência a diferentes regiões do lóbulo clássico, permitindo melhor definição dos limites da unidade morfofuncional com suas respectivas áreas de predominância metabólica. CONCLUSÃO: A GEM permite uma análise integrada do fígado, relacionando sua microanatomia com diferentes padrões circulatórios e gradientes metabólicos, sendo um instrumento útil para o diagnóstico histopatológico. A grade de estudo deverá ser utilizada em situações que não envolvem distorções da arquitetura hepática, desde que sua aplicabilidade dependa da relação entre os espaços porta e da veia centrolobular como pontos de referência.

Fígado; Morfologia; Fisiologia; Histopatologia; Circulação sanguínea; Metabolismo


INTRODUCTION: Several theories have been proposed for the morphofunctional analysis of the liver. OBJECTIVE: The purpose of this paper is to establish a standard and pratical procedure to understand the liver morphophysiology and hepatic alterations, based on the correlation of the predominant metabolism with the porto-central circulation pattern. METHODS: This study presents a grid model of morphological study (GMMS), designed with the use of Microsoft® PowerPoint software. Furthermore, it demonstrates its application in histopathological diagnosis and interpretation of liver physiopathology. RESULTS: The GMMS application in three clinicopathological cases allowed a more accurate analysis of liver lesions from several circulatory and metabolic areas of the liver lobe, which were defined in the grid accordingly. Moreover, it allowed a better understanding of the pathophysiology in each case and the correlation of histopathology diagnosis with clinical data. DISCUSSION: The GMMS shows the importance of the metabolic zoning with the definition of a virtual interlobular septum. The GMMS application demonstrates the lobular asymmetry in the liver and its correspondence with different areas of the regular lobe, enabling a better definition of morphofunctional unit boundaries and its respective areas of metabolic predominance. CONCLUSION: The GMMS allows an integrated analysis of the liver by correlating its microanatomy with different circulatory and metabolic gradients, which provides a useful tool for histopathological diagnosis. The GMMS should be used in cases that do not involve abnormalities in the liver structure since its implementation depends on the relationship between the portal spaces and the centrilobular vein as reference points.

Liver; Morphology; Physiopathology; Histopathology; Blood circulation; Metabolism


ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL PAPER

O mapeamento da unidade funcional hepática: uma ferramenta para diagnóstico e pesquisa

Mapping the functional liver unit: an aid tool for diagnosis and research

Porphirio José Soares FilhoI; Ângela Cristina Gouvêa CarvalhoII; Maria Angélica Guzmán-SilvaIII

IMestre em Anatomia Patológica pela Universidade Federal Fluminense (UFF); professor adjunto do Departamento de Patologia da UFF

IIMestra em Anatomia Patológica pela UFF; professora adjunta do Departamento de Patologia da UFF

IIIDoutora em Patologia Experimental pela UFF; professora associada do Departamento de Patologia da UFF

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Porphirio José Soares Filho Departamento de Patologia Faculdade de Medicina – UFF Rua Marquês de Paraná, 303 – Centro CEP: 24030-900 – Niterói-RJ Tel.: (21) 2629-9122 Fax: (21) 2629-9128 e-mail: porphiriofilho@yahoo.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: Diversas teorias têm sido apresentadas para uma unidade morfofuncional hepática.

OBJETIVO: O objetivo do presente artigo é estabelecer um critério para melhor compreender a morfofisiologia e as alterações hepáticas por meio de um método prático, com base na correlação do metabolismo predominante e do padrão de circulação porto-central.

MÉTODOS: Este trabalho apresenta um modelo de grade de estudo morfológico (GEM), concebido com a utilização do software Microsoft® PowerPoint, e demonstra sua aplicação no diagnóstico histopatológico e na interpretação da fisiopatologia hepática.

RESULTADOS: A aplicação da GEM em três casos clinicopatológicos permitiu uma análise mais apurada das lesões hepáticas distribuídas nas diversas áreas circulatórias e zonas metabólicas do lóbulo hepático, demarcadas com a grade, e possibilitou melhor entendimento da fisiopatologia em cada caso, bem como a correlação do diagnóstico histopatológico com os dados clínicos.

DISCUSSÃO: A GEM demonstra a importância do zoneamento metabólico, com a definição de um septo virtual interlobular. A aplicação desse modelo de grade mostrou a assimetria lobular do fígado e sua correspondência a diferentes regiões do lóbulo clássico, permitindo melhor definição dos limites da unidade morfofuncional com suas respectivas áreas de predominância metabólica.

CONCLUSÃO: A GEM permite uma análise integrada do fígado, relacionando sua microanatomia com diferentes padrões circulatórios e gradientes metabólicos, sendo um instrumento útil para o diagnóstico histopatológico. A grade de estudo deverá ser utilizada em situações que não envolvem distorções da arquitetura hepática, desde que sua aplicabilidade dependa da relação entre os espaços porta e da veia centrolobular como pontos de referência.

Unitermos: Fígado, Morfologia, Fisiologia, Histopatologia, Circulação sanguínea, Metabolismo

ABSTRACT

INTRODUCTION: Several theories have been proposed for the morphofunctional analysis of the liver.

OBJECTIVE: The purpose of this paper is to establish a standard and pratical procedure to understand the liver morphophysiology and hepatic alterations, based on the correlation of the predominant metabolism with the porto-central circulation pattern.

METHODS: This study presents a grid model of morphological study (GMMS), designed with the use of Microsoft® PowerPoint software. Furthermore, it demonstrates its application in histopathological diagnosis and interpretation of liver physiopathology.

RESULTS: The GMMS application in three clinicopathological cases allowed a more accurate analysis of liver lesions from several circulatory and metabolic areas of the liver lobe, which were defined in the grid accordingly. Moreover, it allowed a better understanding of the pathophysiology in each case and the correlation of histopathology diagnosis with clinical data.

DISCUSSION: The GMMS shows the importance of the metabolic zoning with the definition of a virtual interlobular septum. The GMMS application demonstrates the lobular asymmetry in the liver and its correspondence with different areas of the regular lobe, enabling a better definition of morphofunctional unit boundaries and its respective areas of metabolic predominance.

CONCLUSION: The GMMS allows an integrated analysis of the liver by correlating its microanatomy with different circulatory and metabolic gradients, which provides a useful tool for histopathological diagnosis. The GMMS should be used in cases that do not involve abnormalities in the liver structure since its implementation depends on the relationship between the portal spaces and the centrilobular vein as reference points.

Key words: Liver, Morphology, Physiopathology, Histopathology, Blood circulation, Metabolism

Introdução

A diversidade funcional hepática e sua assimetria microanatômica dificultam sua interpretação, ocorrendo divergências conceituais na padronização de sua unidade morfofuncional. A estrutura anatômica lobular do fígado e suas unidades funcionais, em alguns animais, dispõem-se de maneira desordenada e tamanho variado com limites imprecisos(5). O conceito de lóbulo hepático como estrutura individualizada é difícil de ser sustentado devido à imprecisão entre as unidades funcionais, o que faz com que o fígado seja considerado estruturalmente contínuo(21). O primeiro relato de uma unidade funcional hepática foi feito por Wepffer, em 1665(9), e até hoje ocorrem tentativas de criar uma proposta ideal que permita entender a estrutura e as funções hepáticas.

O reconhecimento da heterogeneidade funcional hepática data de meados do século XVII, em estudo relacionado com secreção e excreção biliar(1). Várias propostas têm sido criadas desde então, algumas de significativa importância, como a unidade microanatômica de Kiernan(9), também chamada de lóbulo clássico, mas que apresenta limitações com respeito à dinâmica circulatória e ao metabolismo hepático. Posteriormente, Mall(11) descreveu o lóbulo portal, cujo elemento central é o espaço porta, considerado uma variante do lóbulo biliar descrito anteriormente por Brissaud e Sabourin(3). Em 1954, Rappaport et al.(16) propõem o modelo acinar, com ênfase na hemodinâmica e com base na circulação venosa porta intra-hepática, contribuindo para a compreensão das alterações histopatológicas hepáticas. Os padrões da microcirculação hepática mostram que eles refletem o tipo de metabolismo desempenhado pelos hepatócitos por zonas, o que permitiu lançar o conceito de lóbulo metabólico(10). A partir de técnicas enzimohistoquímicas, foram observadas incoerências nos principais conceitos apresentados anteriormente, com relação à estrutura lobular funcional e microanatômica hepática(19, 23). Posteriormente, foi proposto que os sinusoides das áreas septal e portal formam um inflow front para manter o sangue em fluxo constante, constituindo uma superfície hemodinâmica encurvada equipotencial na direção porto-central, representada pelos ramos terminais da veia porta com seus gradientes circulatórios porto-central e porto-portal(13, 25).

A importância do estudo tridimensional para o entendimento do metabolismo hepático torna-se evidente na reconstrução da unidade funcional em cortes seriados(22). A dificuldade na interpretação do tecido hepático independe do sentido de corte ou da clivagem do material. Os pontos de referência ficam basicamente relacionados com a veia centrolobular e os espaços porta, entre os quais se podem traçar linhas imaginárias e presumir a periferia do lóbulo.

O tecido hepático apresenta uma estrutura aparentemente organizada, mas em determinados mamíferos, como humanos e roedores, apresenta-se mal definido e metabolicamente heterogêneo. A partir do estudo do fígado de ratas, em recentes trabalhos experimentais(4, 7, 8, 15), ficou evidente a necessidade de se estabelecer um método prático que permita o estudo da unidade funcional hepática, tendo como base os parâmetros microanatômicos e metabólicos fundamentais para o entendimento das funções e alterações hepáticas.

O presente trabalho apresenta uma proposta fundamentada em conceitos atuais de unidade morfofuncional hepática, possibilitando determinar com relativa precisão zonas relacionadas com o perfil metabólico(18, 19), associado ao conceito de septo vascular(13) e em regiões baseadas na hemodinâmica microcirculatória porto-central(22).

A criação do modelo da grade de estudo morfológico (GEM) tem por objetivo produzir uma ferramenta prática para auxiliar o entendimento da fisiopatologia hepática, contribuindo para o estudo morfológico e o diagnóstico.

Material e métodos

Desenho da GEM

Para idealizar a GEM, partimos de uma plataforma de base anatômica, correspondendo ao lóbulo clássico de Kiernan, que foi dividido em três segmentos de conformação em diamante, tendo como referência espaços porta e veias centrolobulares (Figura 1A).



A partir de um segmento no formato em diamante (um terço do lóbulo clássico), separamos duas metades, mantendo relação com o aporte de sangue do espaço porta e o fluxo venoso para a veia centrolobular e seus respectivos gradientes de oxigênio, nutrientes e metabólitos. Quando comparada com a unidade hexagonal clássica de Kiernan, a área de interesse corresponde a um sexto desse total, o que nos permite definir as regiões lobulares de maior interesse para a avaliação dos parâmetros metabólicos e enzimáticos. Essa área triangular fica situada entre dois espaços porta e uma veia central e forma a GEM, com duas zonas metabólicas e duas regiões de padrões circulatórios diferentes, situadas entre dois espaços porta. O limite entre os lóbulos, definido nos seus extremos angulares por dois espaços porta, representa o septo vascular virtual (Figura 1B).

Após a definição dos pontos de referência portais e venoso central, dividimos a GEM ao meio e configuramos duas estruturas geométricas, separadas no formato de dois triângulos opostos e ajustáveis, em que cada um tem duas regiões circulatórias (área sinusoidal septal [SiSe] e área sinusoidal portal [SiPo]) e duas zonas metabólicas (região metabólica paraportal [RePp] e região metabólica paracentral [RePc]) (Figura 2A). Esses parâmetros permitem identificar em cada triângulo quatro áreas de acordo com a zona metabólica e o padrão circulatório, a saber: sinusoide portal-região paraportal (SiPo-RePp), sinusoide portal-região paracentral (SiPo-RePc), sinusoide septal-região paraportal (SiSe-RePp) e sinusoide septal-região paracentral (SiSe-RePc) (Figura 2B).



Integração da GEM à imagem

A GEM, constituída por dois triângulos, foi sobreposta à imagem a ser analisada no Microsoft® PowerPoint e foi ajustada à estrutura lobular hepática, tendo como pontos de referência a veia centrolobular e, nos outros dois extremos angulares, os espaços porta. A base dos triângulos localiza o septo vascular virtual entre os espaços porta, formando um total de oito áreas de estudo, ou seja, quatro por estrutura triangular, designadas nos triângulos TA e TB.

Aplicação da GEM

Pesquisa experimental

No estudo morfológico, cada bloco parafinado continha quatro fragmentos de tecido hepático de rata, correspondendo cada um deles a um único lobo. Dos blocos foram obtidos cortes histológicos, que foram corados por hematoxilina e eosina (HE). Para a documentação das imagens, foi utilizada câmara digital Canon G-10 acoplada a microscópio Zeiss Axioplan, com objetivas plan-apocromáticas de 10× e 20× (Plan-Akroplan), e as imagens gravadas no formato TIF com 14,7 MP efetivos foram usadas para implantação da GEM.

Em cada lobo, foram escolhidas cinco regiões, produzindo um total de 20 grades, com dois triângulos ajustados de acordo com os parâmetros metabólicos e circulatórios. Com a implantação da GEM no material experimental, pode-se efetuar a avaliação da morfologia tissular e celular em áreas padronizadas, permitindo-nos avaliar as alterações teciduais, considerando regiões metabólicas e circulatórias(19, 20).

Diagnóstico histopatológico

A GEM foi utilizada em três casos de biópsia hepática, duas a céu aberto e uma por agulha, enviadas para avaliação histopatológica com diagnósticos de esteatoepatite não alcoólica (NASH), esteatoepatite colestática e hepatite crônica por hepatovírus C. O material fixado em formaldeído tamponado a 10% foi cortado na espessura de 4 mm em lâminas de vidro, sendo posteriormente corado com HE e algumas técnicas especiais para rotina diagnóstica do fígado, como o ácido periódico Schiff (PAS), PAS/diastase, reticulina de Gomori, tricrômico de Gomori e azul da Prússia (Gomori modified iron stain). O estudo morfológico foi efetuado em quatro imagens microscópicas, analisando a estrutura hepática associada à GEM (Figuras 3A-D). A partir da grade inserida à imagem, foi possível dividir o segmento de estudo por padrões metabólicos e circulatórios de acordo com o inflow front e o conceito de septo vascular.


 





Resultados

Relato de casos

CASO 1

Paciente do sexo masculino, 12 anos de idade, com hepatoesplenomegalia a esclarecer. Foi constatada a negatividade para Leishmania no material de medula óssea com padrão reacional. Efetuou-se cirurgia com retirada de baço volumoso (1.780 g) e fragmento de bordo inferior do lobo hepático esquerdo (0,8 × 0,4 × 0,4 cm). A análise microscópica do baço foi conclusiva para linfohistiocitose hematofagocitária.

Microscopia hepática

Inicialmente, o estudo do tecido hepático revelou quadro de NASH associada à leve colestase, com expansão fibrosa portal (estágio 2 – Sociedade Brasileira de Patologia [SBP] ) e proliferação ductular. Ausência de malignidade ou infiltração. Notar que entre as condições sistêmicas associadas à NASH inclui-se o uso de medicamentos.

Após inserir a GEM à imagem microscópica, podem-se definir duas zonas de predominância metabólica correspondendo a RePp e RePc, em que, respectivamente, ocorrem os processos metabólicos oxidativos energéticos e os de detoxicação hepática, sendo, nesse caso, a RePp o local onde foi observada a esteatose com presença frequente de macrovesículas e esporádica de microvesículas, além de atrofia e necrose hepatocelular, proliferação fibroblástica e expansão conjuntiva portal no septo virtual interlobular (Figura 3B). Na RePc, local onde habitualmente ocorre a neutralização de substâncias químicas e biológicas, observaram-se alterações citoplasmáticas representadas por tumefação e homogeneização citoplasmática, presença de halo claro próximo à membrana celular, alterações essas que podem estar associadas a processos de detoxicação de fármacos ou de substâncias tóxicas. Esse padrão foi observado tanto nos SiPo quanto nos SiSe (Figura 3B).

Conclusão diagnóstica

Biopsia hepática após implantação da GEM revela NASH, estágio 2 (SBP), com marcada diferença entre os hepatócitos das regiões Pp e Pc, notando-se tumefação e esteatose macro e microvacuolar em RePp e aspecto oxifílico em RePc, alterações que se correlacionam com os efeitos medicamentosos secundários da anfotericina B e do acetaminofem, utilizados no tratamento desse paciente, após análise conjunta com a clínica e o laboratório.

CASO 2

Paciente do sexo masculino, 46 anos de idade, apresentando quadro de hepatopatia crônica com diagnóstico prévio de hemocromatose hereditária (homozigoto H63D), colecistectomizado, evoluindo com quadro de pancreatite biliar e exposição a agrotóxicos. Paciente de área rural, não tendo usado nenhuma proteção para seu trabalho de pulverizador de plantações.

Microscopia hepática

Biópsia hepática exibindo esteatoepatite colestática, condizente com quadro obstrutivo e tóxico concomitante (uso de agrotóxicos da classe dos herbicidas, inseticidas e pesticidas), associada à necrose de hepatócitos com colapso da trama de reticulina, fibrose portal e pericelular, além de pigmentação de ferro compatível com hemocromatose prévia.

Após inserir a GEM, ficaram evidentes as zonas metabólicas e os padrões circulatórios; observaram-se, na coloração de HE, sinusoides congestos nas regiões Pp e Pc, com alargamento de sinusoides e fibrose portal com infiltrado polimorfonuclear permeando para alguns sinusoides em RePp. Observou-se também esteatose em RePp e RePc, com presença de pigmento citoplasmático de cor acastanhada em RePp e perivenoso central na RePc (Figura 3C). Com a coloração de azul da Prússia, revelou-se a presença de pigmento de ferro (Fe3) citoplasmático em SiPo-RePp e SiSe-RePp. Pigmento biliar predominante na RePc em área perivenosa central (Figura 3D).

Conclusão diagnóstica

Após a implantação da GEM, podemos evidenciar a nítida dilatação sinusoidal, a esteatose centro zonal e a congestão da RePp (zona 1 de Rappaport), alterações essas relacionadas com o uso de dioxina, dicloro-difenil-tricloroetano (DDT) e paraquat, respectivamente, além da hemocromatose prévia evidente (azul da Prússia positivo), com consequente fibrose portal e hepatite crônica.

CASO 3

Paciente do sexo feminino, 64 anos de idade, cirrótica, portadora de vírus C. Internada para realização de biópsia hepática com relato de diagnóstico prévio de hepatite tipo C há três anos, com acompanhamento no posto de saúde, apresentando, nessa época, importante diminuição plaquetária, identificada nos exames laboratoriais de rotina. Nega transfusão sanguínea.

Microscopia hepática

Biopsia hepática por agulha exibindo 15 espaços porta, colestase leve, esteatose macrovacuolar, tumefação celular, necrose lobular e necrose em sacabocado na interface interlobular, além de nódulos regenerativos envoltos por fibrose porta-portal.

A GEM inserida nos cortes corados com HE (Figura 3E) salienta tumefação hepatocelular em RePp, esteatose predominante em RePc, alargamento do septo virtual e necrose em sacabocado em SiPo- RePp, com esboço de nódulos cirróticos próximos à zona de interface. Pela reticulina de Gomori é observado nódulo de regeneração com intensa reação fibrosante portal (Figura 3F).

Conclusão diagnóstica

Hepatite crônica compatível com hepatovírus C, associada à cirrose micronodular, com critérios de quantificação pela SBP/Sociedade Brasileira de Hematologia (SBH) e pela classificação de atividade necroinflamatória e de fibrose estabelecida por um grupo de estudo cooperativo francês (METAVIR) :

  • atividade periportal = 4;

  • atividade parenquimatosa = 3;

  • infiltrado linfocitário portal = 3;

  • estágio: 4.

METAVIR = A3, F4.

Discussão

A compreensão da fisiologia hepática com base na hemodinâmica da unidade microcirculatória e o zoneamento metabólico são fundamentais para o entendimento dos processos fisiopatológicos e o diagnóstico das lesões(6).

As propostas de unidade morfofuncional apresentadas até agora são insatisfatórias, mostrando o quanto é complexa a estrutura e a multiplicidade das funções hepáticas(24). Existem discordâncias entre as propostas existentes, dificultando adotar uma unidade morfofuncional que seja útil para o entendimento das funções hepáticas(2), sendo necessário um método que possa melhor definir as zonas metabólicas na estrutura lobular.

O fígado apresenta grande variabilidade morfofuncional e essa complexidade dificulta a interpretação dos processos metabólicos e fisiopatológicos(23). Embora apresente uma arquitetura microscópica aparentemente regular e monótona, ela não pode ser representada por uma configuração geométrica fixa; mesmo quando observada sob o ponto de vista tridimensional, sua estrutura é variável, dependendo do padrão circulatório e da região estudada(21). Alguns autores(17, 22, 24) descrevem a morfologia microscópica hepática como uma estrutura heterogênea, cujas unidades cilíndricas são, na realidade, tortuosas e ramificadas, implicando em dificuldades na padronização de parâmetros histológicos, diferentemente do que é proposto no conceito do lóbulo clássico de Kiernan.

O estudo histopatológico mostra-se limitado pela bidimensionalidade do material nos cortes histológicos, sendo difícil se ajustar aos novos conceitos hemodinâmicos e fisiológicos por zonas metabólicas. Alem do fato de seu metabolismo ser heterogêneo, a estrutura hepática possui um sistema circulatório altamente especializado, que vai se adequando às necessidades homeostáticas a cada momento de acordo com as solicitações orgânicas, portanto, é necessário estabelecer um critério de estudo que possa evidenciar o septo vascular virtual descrito por Matsumoto e Kawakami(14).

A dificuldade em padronizar a distribuição das lesões na estrutura acinar(16) e a heterogeneidade enzimática lobular(10) indicam a importância de se estabelecerem critérios para o estudo do tecido hepático e, neste trabalho, a aplicação da GEM, com geometria variável e ajustável, demarca com relativa precisão diferentes áreas circulatórias e zonas metabólicas do lóbulo hepático. Esse método pode ser aplicado na maioria dos casos de alterações funcionais adaptativas ou em infiltrações fisiológicas ou patológicas da estrutura hepática, desde que sua arquitetura esteja relativamente preservada.

No primeiro relato de caso, a predominância das alterações relacionadas com as zonas metabólicas Pp e Pc indica que o processo fisiopatológico em questão esteja associado a uma sobrecarga funcional oxidativa paraportal e alteração metabólica ou disfunção na região paracentral, em decorrência da neutralização de substâncias endógenas ou de alguns fármacos pelo tecido hepático. O caso estudado mostra como a GEM facilitou o diagnóstico, pois permitiu observar com maior precisão as zonas metabólicas/oxidativas da unidade funcional hepática, possibilitando correlacionar os fármacos utilizados com as alterações histomorfológicas.

No segundo relato de caso, após a implantação da GEM, evidenciamos presença de pigmento de ferro na RePp, independente do padrão circulatório portal ou septal, distribuição compatível com quadro de hemocromatose. O pigmento de bilirrubina está mais evidente na RePc, em que ocorreu predominância do processo colestático, o qual pode estar associado a alterações metabólicas e mecanismos de detoxicação a substâncias tóxicas exógenas (agrotóxicos). A dilatação sinusoidal, evidenciada nas regiões Pp e Pc, é compatível com a ação da dioxina por toda a extensão da estrutura lobular.

O terceiro relato, correspondente ao caso exemplo de hepatite C, foi escolhido atualmente devido a sua elevada prevalência em nosso meio(12). O uso da grade é justificada pela alta incidência dessa hepatopatia, demonstrando claramente a contribuição desse método para o entendimento da lesão relacionada com as alterações virais e possíveis influências farmacológicas, mesmo nos casos de biópsia por agulha, quando as mesmas apresentam relação microanatômica adequada portal-central.

Além da importância da correlação com dados clínicos, em todos os relatos, a GEM nitidamente contribuiu para a conclusão diagnóstica por meio da melhor definição microanatômica da unidade funcional hepática.

Conclusão

A GEM permite que o fígado possa ser analisado de forma integrada, correlacionando sua microanatomia com seus diferentes gradientes circulatórios e heterogeneidade metabólica. Com a GEM, podem-se visualizar claramente as alterações morfológicas por áreas circulatórias e zonas funcionais, permitindo associar essas alterações às condições clínicas, bem como contribuir nos casos para a determinação da etiologia – farmacológica/toxicológica – da NASH e da ação de agrotóxicos associada à hemocromatose. A aplicação desse modelo de grade para fim diagnóstico fica restrita a biópsias a céu aberto ou por agulha com diâmetro mais largo e não deve ser utilizada em casos com distorções acentuadas da estrutura hepática, como lesões fibrosantes crônicas avançadas, ou mesmo em cirroses.

Agradecimentos

Agradecemos ao Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP/UFF) e à Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PROPPI/UFF) pelo apoio institucional.

Primeira submissão em 12/07/11

Última submissão em 22/03/12

Aceito para publicação em 24/03/12

Publicado em 20/06/12

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  • Endereço para correspondência:
    Porphirio José Soares Filho
    Departamento de Patologia
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      12 Jul 2011
    • Aceito
      24 Mar 2012
    • Revisado
      22 Mar 2012
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