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Manejo perioperatório de pacientes em uso de anticoagulantes orais

17. Manejo perioperatório de pacientes em uso de anticoagulantes orais

O manejo perioperatório de pacientes em uso regular de anticoagulantes orais considera o risco de tromboembolia e das complicações hemorrágicas associado a diferentes estratégias de anticoagulação.(D) Enquanto o risco de sangramento depende fundamentalmente do local e do tipo de cirurgia, o risco de tromboembolia está ligado à indicação prévia para o uso regular de anticoagulantes (profilaxia arterial ou venosa), ao tempo decorrido desde o episódio de trombose e ao tipo de procedimento a ser realizado. Além disso, deve-se considerar se a cirurgia será realizada em caráter eletivo ou de urgência.(1) O Quadro 20 descreve esses contextos.


Para pacientes em uso regular de anticoagulantes orais, sempre que possível, o procedimento cirúrgico deve ser realizado em caráter eletivo, para que haja tempo suficiente para reverter a anticoagulação.(D)(2) Em pacientes cuja RNI está no nível terapêutico (geralmente 2-3), interrompe-se o uso do anticoagulante oral 5 dias antes, obtendo-se nova RNI no dia anterior à cirurgia, o qual deve estar menor que 1,5. Idade avançada, insuficiência cardíaca congestiva descompensada, câncer e RNI muito elevada são fatores que retardam o retorno espontâneo de RNI a níveis próximos da normalidade.(C)(3) Nos pacientes com alto risco de trombose, deve-se fazer um estratégia de transição, iniciando HBPM (paciente ambulatorial ou hospitalizado) ou HNF em infusão contínua (indivíduo hospitalizado) quando a RNI estiver subterapêutica.(B) A suspensão das heparinas deve ser de 6 h antes da cirurgia para a infusão de HNF e de 12-24 h antes para a última dose de HBPM. Em procedimentos odontológicos, os pacientes podem ser operados com RNI na faixa terapêutica e serem utilizados agentes hemostáticos tópicos (por ex., ácido tranexâmico).(C)(4)

A anticoagulação deve ser reiniciada, normalmente na dose pré-operatória, assim que a hemostasia esteja assegurada, e isso deve ser sempre discutido com a equipe cirúrgica, em geral, 12 h após o procedimento.(D) A reintrodução do anticoagulante deverá ser retardada nos casos de neurocirurgia e naqueles pacientes que permaneçam com sangramento ativo. Nos casos de alto risco de trombose, os pacientes devem ser mantidos com heparina até que a RNI alvo do anticoagulante oral seja atingida.(5)

Em procedimentos cirúrgicos que necessitam ser realizados em 24-96 h, pode-se administrar vitamina K oral (2-3 mg - a própria ampola de medicação i.v./s.c., já que é fabricada com micelas mistas que permitem a absorção intestinal).(B) Essa conduta faz a RNI reduzir mais rapidamente sem causar uma resistência ao uso do anticoagulante oral no pós-operatório, que pode perdurar por até 1 semana.(6) Após o uso da vitamina K, a RNI deve ser repetida a cada 8-24 h dependendo do nível inicial, já que a medicação pode ser usada novamente.(7)

Nos casos de urgência cirúrgica (nas próximas 24 h), deve-se suspender o anticoagulante oral e administrar vitamina K i.v., concentrado de complexo protrombínico ou plasma fresco. (B)(8) Em casos específicos, o fator recombinante VIIa pode ser considerado, mediante consulta ao hematologista.(1) A RNI deve ser monitorada amiúde.

Outro aspecto essencial no manejo perioperatório de pacientes em uso de anticoagulantes é a necessidade de bloqueio neuroaxial (anestesia espinhal, anestesia epidural ou analgesia epidural contínua). Nos pacientes cirúrgicos, essas são eficazes no controle da dor, permitem a deambulação precoce do paciente e reduzem as taxas de complicações pulmonares. O hematoma periespinhal é uma rara complicação da anestesia epidural, com incidência estimada em menos de 1:150.000 pacientes em anestesias epidurais e em menos de 1:220.000 pacientes em anestesias espinhais, mas com consequências potencialmente graves.(9) Na maioria dos casos descritos, houve uma combinação de fatores de risco, envolvendo a inserção traumática de agulhas e de cateteres, anormalidades anatômicas ou vasculares da coluna lombar, uso de anticoagulantes e coagulopatias. Nas formas típicas, os pacientes apresentam dor na região dorsal acompanhada de fenômenos sensitivos e motores. O sangramento no espaço restrito do canal medular comprime e causa isquemia às fibras nervosas, podendo resultar em paraplegia, se não for realizada laminectomia descompressiva dentro das próximas 8 h.

A Associação Americana de Anestesia Regional elaborou recomendações para essa situação.(10) Pacientes em uso de fármacos que atuam nos fatores da coagulação e na função plaquetária são os principais candidatos às complicações associadas a esses procedimentos. A anestesia e a analgesia neuroaxiais devem ser evitadas em pacientes com discrasias sanguíneas, bem como naqueles em uso de drogas antitrombóticas. São contraindicações para a anestesia e a analgesia neuroaxiais RNI > 1,5, tempo de protrombina > 1,5 vezes o controle e contagem plaquetária < 50.000/mm3.(D)

O uso de anti-inflamatórios não esteroides e de ácido acetilsalicílico provavelmente não aumenta isoladamente o risco de hematoma epidural. Apesar da inexistência de estudos randomizados que avaliem o risco de hematoma epidural associado ao uso de clopidogrel e ticlopidina, recomenda-se sua interrupção 5-14 dias antes do procedimento.(C)(1) Em pacientes em uso de anticoagulantes no pré-operatório, a inserção de agulha ou cateter no canal medular deve ser retardada, até que o efeito anticoagulante seja revertido. Isso costuma ocorrer depois de, pelo menos, 8-12 h após uma dose de HNF s.c. ou de HBPM s.c. quando empregada em duas doses diárias. Considerando-se o esquema posológico caracterizado por uma dose diária de HBPM, deve-se observar um período mínimo de 18 h. Para o esquema com HBPM (2 vezes ao dia), a primeira dose é habitualmente ministrada 12-24 h depois da cirurgia, e a remoção do cateter epidural é recomendada antes do início da tromboprofilaxia. Se o cateter epidural for mantido no local durante a tromboprofilaxia com HBPM (duas vezes ao dia), um retardo de 24 h, entre a última dose de HBPM e a remoção do cateter, é recomendado.(B)(10)

Cateteres epidurais somente devem ser removidos quando o efeito anticoagulante for desprezível. Se a profilaxia com anticoagulantes orais for inevitável, recomenda-se não manter o cateter instalado por mais de 1-2 dias, devido à sua imprevisibilidade. Nesses casos, a RNI deve ser mantida < 1,5 no momento da remoção do cateter.(C)(11,12)

Outros cuidados em pacientes sob medicação anticoagulante são os seguintes: a via intramuscular deve ser evitada; se for inserido um cateter venoso central, deve-se preferir um local de fácil compressão (por ex., evitar a punção de veia subclávia); não inserir intubação nasotraqueal; e não instalar sonda nasogástrica.

  • 1. Douketis JD, Berger PB, Dunn AS, Jaffer AK, Spyropoulos AC, Becker RC, et al. The perioperative management of antithrombotic therapy: American College of Chest Physicians Evidence-Based Clinical Practice Guidelines (8th Edition). Chest. 2008;133(6 Suppl):299S-339S.
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  • 4. Blinder D, Manor Y, Martinowitz U, Taicher S, Hashomer T. Dental extractions in patients maintained on continued oral anticoagulant: comparison of local hemostatic modalities. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. 1999;88(2):137-40.
  • 5. Kearon C, Hirsh J. Management of anticoagulation before and after elective surgery. N Engl J Med. 1997;336(21):1506-11.
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  • 12. Institute for Clinical Systems Improvement. Venous thromboembolism prophylaxis. Bloomington: Institute for Clinical System Improvement; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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