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Síndrome de Cotard associada ao uso de ecstasy

Cotard’s syndrome induced by ecstasy

Resumos

O termo ecstasy é usado para descrever diversas substâncias que compartilham estruturas químicas e efeitos semelhantes, referindo-se mais comumente a 3,4-metilenodioximetanfetamina (3,4-MDMA). Os efeitos psíquicos da MDMA são, sobretudo, alucinógenos e estimulantes. A tendência atual considera o delírio de Cotard como sendo a crença delirante de estar morto ou de que seus órgãos estejam paralisados ou podres, independentemente do diagnóstico do paciente. Neste artigo, relatamos o caso clínico de um paciente que apresentou quadro psicótico com delírios hipocondríacos e alucinações olfativas com características de síndrome de Cotard associado ao uso crônico de ecstasy. Foi medicado com olanzapina e obteve remissão completa dos sintomas.

Ecstasy; psicose; síndrome de Cotard


The term ecstasy is used to describe various substances that share similar chemical structures and effects, often referring to 3,4-methylenedioxy-N-methylamphetamine (3,4-MDMA). MDMA psychic effects are mainly hallucinatory and stimulatory. Current trends consider Cotard’s delusion as a delusional belief of being dead or having paralyzed or rotten organs, independent of the diagnosis the patient has received. This case report is about a psychotic episode where the patient presented with hypochondriac delusion and olfactory hallucinations resembling Cotard’s syndrome and associated with ecstasy abuse. He was given olanzapine and achieved total remission from symptoms.

Ecstasy; psychosis; Cotard’s syndrome


RELATO DE CASO

Síndrome de Cotard associada ao uso de ecstasy

Cotard’s syndrome induced by ecstasy

Rodrigo NicolatoI; Juliana PachecoII; Leandro BosonII; Rodrigo LeiteII; João Vinícius SalgadoIII; Marco Aurélio Romano-SilvaIV; Antônio Lúcio TeixeiraV; Humberto CorrêaVI

IPsiquiatra e professor de Saúde Mental da Univaço, em Ipatinga (MG). Instituto de Previdência dos Servidores de Minas Gerais. Unifenas,

Belo Horizonte. Hospital de Ensino Instituto Raul Soares/FHEMIG

IIAcadêmicos de Medicina, Univaço, Ipatinga (MG)

IIIPsiquiatra. Professor de Neurociências da Universidade Fumec, em Belo Horizonte (MG). Hospital de Ensino Instituto Raul Soares/FHEMIG.

IVPsiquiatra e professor adjunto do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG)

VPsiquiatria, neurologista e professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG

VIPsiquiatra, professor adjunto e chefe do Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina, UFMG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rodrigo Nicolato Rua Anhangüera, 151/303 31015-090 – Belo Horizonte, MG Fone: (31) 3292-6299 E-mail: r.nicolato@task.com.br/ rodrigo.nicolato@unifenas.br

RESUMO

O termo ecstasy é usado para descrever diversas substâncias que compartilham estruturas químicas e efeitos semelhantes, referindo-se mais comumente a 3,4-metilenodioximetanfetamina (3,4-MDMA). Os efeitos psíquicos da MDMA são, sobretudo, alucinógenos e estimulantes. A tendência atual considera o delírio de Cotard como sendo a crença delirante de estar morto ou de que seus órgãos estejam paralisados ou podres, independentemente do diagnóstico do paciente. Neste artigo, relatamos o caso clínico de um paciente que apresentou quadro psicótico com delírios hipocondríacos e alucinações olfativas com características de síndrome de Cotard associado ao uso crônico de ecstasy. Foi medicado com olanzapina e obteve remissão completa dos sintomas.

Palavras-chaves:Ecstasy, psicose, síndrome de Cotard.

ABSTRACT

The term ecstasy is used to describe various substances that share similar chemical structures and effects, often referring to 3,4-methylenedioxy-N-methylamphetamine (3,4-MDMA). MDMA psychic effects are mainly hallucinatory and stimulatory. Current trends consider Cotard’s delusion as a delusional belief of being dead or having paralyzed or rotten organs, independent of the diagnosis the patient has received. This case report is about a psychotic episode where the patient presented with hypochondriac delusion and olfactory hallucinations resembling Cotard’s syndrome and associated with ecstasy abuse. He was given olanzapine and achieved total remission from symptoms.

Key-words: Ecstasy, psychosis, Cotard’s syndrome.

INTRODUÇÃO

O termo ecstasy é usado para descrever diversas substâncias que compartilham estruturas químicas e efeitos semelhantes, referindo-se mais comumente a 3,4-metilenodioximetanfetamina (3,4-MDMA). Vários estudos sobre ecstasy têm sido realizados em face de seu crescente uso, sobretudo entre jovens de classe média residentes em centros urbanos e freqüentadores de boates e festas raves. Assim, o ecstasy é usado principalmente nos finais de semana, assumindo um padrão diferente do da maioria das outras drogas, ocorrendo espaçamento médio de 2 a 3 semanas entre o consumo da droga (Cohen e Cocores, 1997).

Os efeitos psíquicos da MDMA são, sobretudo, alucinógenos e estimulantes. Segundo Lister et al. (1992), que estudaram vinte psiquiatras que usaram MDMA, os sintomas mais comuns seriam: percepção alterada do tempo (90%), aumento da capacidade de comunicação (85%), atenuação das defesas psicológicas (80%), do medo (65%), da sensação de alienação em relação aos outros (60%), alteração da percepção visual (50%), aumento das emoções (50%) e diminuição da agressividade (50%). Um discutido efeito relacionado ao uso de MDMA seria a eclosão de psicose secundária (Van Kampen e Katz, 2001).

Muito embora as descrições originais de Cotard diziam respeito a casos de melancolia ansiosa, cedo na história, o quadro descrito por Cotard foi ampliado, sendo observado em outros grupos diagnósticos. Por exemplo, em 1912, o aluno de Regis, Got, defende sua tese Contribution à l’étude du syndrome de Cotard, em que discute cerca de 30 anos de polêmica sobre o assunto. Em sua tese, Got descreve uma série de casos próprios ou de outros psiquiatras, como Capgras e Blondel. Got (1912) conclui que "a síndrome de Cotard típica, perfeitamente sistematizada, pode ser encontrada igualmente nas psicoses ansiosas agudas em indivíduos jovens". A tendência atual considera o delírio de Cotard como sendo a crença delirante de estar morto ou de que seus órgãos estejam paralisados ou podres, independentemente do diagnóstico do paciente (Berrios e Luque, 1995). Neste trabalho, relatamos o caso de uma síndrome psicótica associada ao uso periódico de ecstasy. O paciente apresentou transtorno delirante com predomínio de delírios hipocondríacos e alucinações olfativas compatíveis com a síndrome de Cotard, sendo tratado com olanzapina.

RELATO DE CASO

J. é um paciente de 23 anos, do sexo masculino, solteiro, formado em Economia, que trabalha como profissional autônomo. Não apresentava história pregressa de quadros neuropsiquiátricos nem/ou clínico-cirúrgicos, bem como antecedentes familiares de transtornos mentais. Durante a adolescência, fez uso ocasional de Cannabis sativa, sem repercussões socioocupacionais.

Há cerca de 2 anos passou a freqüentar, assiduamente, festas do tipo rave e a consumir ecstasy, em média, uma vez por semana. Referia-se à ocorrência de sintomas subjetivos, como aumento da sensibilidade a estímulos externos e da libido. Foi trazido ao serviço psiquiátrico pelos pais com a história de, há 2 meses, ter abandonado o trabalho, permanecendo isolado no quarto com higiene pessoal precária, muito angustiado, relatando que seus órgãos intestinais estavam totalmente "paralisados e putrefatos" e que não se sentia a mesma pessoa. Os pais relataram que não houve entrada de amigos na residência de J., excluindo-se, parcialmente, a possibilidade de J. usar ecstasy, durante o período em que se isolou na residência.

Ao exame inicial, o paciente apresentava-se emagrecido, desconfiado, mas sem hostilidade. Mostrava-se orientado e sem déficit cognitivo, com pontuação total de 30 pontos no Mini-Exame do Estado Mental (Bertolucci et al., 1994). A temática da putrefação e paralisação intestinal era irremovível, bem como o relato de que seus órgãos exalavam "intenso odor fétido", provocando-lhe vergonha. Não relatava sentimentos de tristeza nem quaisquer outros sintomas depressivos, como idéias de ruína, de culpa, desesperança ou morte.

Considerando tratar-se de delírio hipocondríaco e alucinação olfativa, estabeleceu-se o diagnóstico de transtorno psicótico predominantemente delirante, com sintomas de síndrome de Cotard, decorrentes do uso de estimulantes (ecstasy), mas sem associação com depressão maior. Foi orientado a manter a suspensão do ecstasy, sendo introduzida olanzapina 5 mg/dia. Realizaram-se, ainda, exames de neuroimagem (tomografia do encéfalo), eletroencefalograma e laboratoriais, incluindo hemograma completo, ionograma, glicemia, funções renal, hepática e tireoidiana, todos exames sem alterações.

Após 2 semanas do uso da olanzapina na dose de 5 mg/dia, encontrava-se mais sociável, com higiene cuidada, embora ainda se referisse aos sintomas psicóticos. Optou-se por elevar a dose de olanzapina para 10 mg/dia. Dois meses depois, o paciente retornou com remissão completa dos delírios somáticos e alucinações. Foi possível, então, reduzir progressivamente a dose da olanzapina até a suspensão em 6 meses, e o paciente retomou integralmente suas atividades laborais. No acompanhamento de 6 meses após a suspensão do medicamento, o paciente manteve-se assintomático, tendo procurado por conta própria o grupo de Narcóticos Anônimos, sem usar novamente ecstasy.

DISCUSSÃO

No nosso conhecimento, este se trata do primeiro relato de caso na literatura de síndrome de Cotard associada ao uso de ecstasy. A história negativa, pré-mórbida e familiar, de quadros psicóticos e afetivos, o uso de ecstasy por mais de 2 anos, além de resposta completa do quadro após a suspensão da droga, corroboram a hipótese dessa associação. Convém assinalar a importância da resposta do transtorno psicótico ao uso da olanzapina.

Embora a freqüência de psicose induzida por ecstasy não seja definida, há vários relatos de casos na literatura. Sintomas psicóticos podem ocorrer durante a intoxicação aguda. Fora dessa fase, os investigadores têm enfatizado a ocorrência de psicose tanto em usuários crônicos quanto naqueles que usaram a droga em ocasiões isoladas ou esporádicas, embora os quadros psicóticos sejam mais comuns nos primeiros, sobretudo quando expostos a outras drogas (McGuire et al., 1994; Morgan, 2000). Há descrição de psicose em indivíduos geneticamente vulneráveis para transtornos psicóticos. Em contrapartida, há casos em que o paciente não possui história pessoal nem familiar de transtornos psicóticos e passa a apresentar sintomatologia psicótica prolongada, após o uso recreacional, em uma única oportunidade, de MDMA (Cohen e Cocores, 1997; Vaiva et al., 2001). De qualquer maneira, McGuire et al. (1994) defendem que não há como diferenciar a psicose funcional da induzida por ecstasy. A hipótese mais aceita sobre a gênese de fenômenos psicóticos relacionados a ecstasy considera que a depleção serotonérgica resultante da neurotoxicidade da MDMA levaria à hiperfunção dopaminérgica e, conseqüentemente, aos sintomas (Vaiva et al., 2001).

Em se tratando de transtorno psicótico induzido por drogas, a olanzapina tem sido muito eficaz e usada como primeira escolha. Em um estudo de continuação de 6 meses realizado por Landabaso et al. (2002), os sintomas psicóticos induzidos por ecstasy foram reduzidos consideravelmente com o uso de olanzapina desde o 1º mês de tratamento, com os sintomas mais significativos desaparecendo nos 3 primeiros meses, como ocorrido no caso relatado.

CONCLUSÃO

O caso clínico apresentado é compatível com transtorno psicótico predominantemente delirante (com sintomas de síndrome de Cotard), induzido pelo uso de ecstasy, sem associação com depressão maior. O uso de ecstasy é preocupante, pois, além do crescente consumo da droga, pode determinar vários transtornos psiquiátricos. No diagnóstico diferencial de pacientes com sintomas psicóticos, o uso de ecstasy deve ser considerado. O quadro do paciente teve boa resposta à combinação do antipsicótico atípico olanzapina com a abstinência da droga. Assim, a olanzapina pode ser uma opção eficaz em casos de psicose secundária ao uso de ecstasy.

Recebido 05/12/2006

Aprovado 22/02/2007

  • Berrios GE, Luque R. Cotards delusions or syndrome? Compr Psychiatr, 36: 218-23, 1995.
  • Bertolucci PHF, Brucki SMD, Campacci S et al Mini-Exame do Estado Mental e Escolaridade. Arquivos de Neuropsiquiatria, 52 (1): 1-7, 1994.
  • Cohen RS, Cocores J. Neuropsychiatric manifestations following the use of 3,4-methylenedioxymethamphetasmine (MDMA: ecstasy). Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry, 21: 727-34, 1997.
  • Got J. Contribution à létude du Syndrome de Cotard, sa Valeur Prognostique. Bordeaux: Thése ; 1912.
  • Landabaso MA, Iraurgi I, Jiménez-Lerma JM, Calle R, Sanz J, Gutiérrez-Fraile M. Ecstasy-induced psychotic disorder: six-month follow-up study. Eur Addict Res, 8: 133-40, 2002.
  • Lister M, Grob C, Bravo G, Walsh R. Phenomenology and sequelae of 3,4-methylenedioxymethamphetasmine use. J Nerv Ment Dis, 180: 345-52, 1992.
  • McGuire P, Cope H, Fahy T. Diversity of psychopathology associated with use of 3,4-methylenedioxymethamphetasmine ("ecstasy"). Br J Psychiatry, 165: 391-5, 1994.
  • Morgan MJ. Ecstasy (MDMA): a review of its possible persistent psychological effects. Psychopharmacology (Berl), 152: 230-48, 2000.
  • Vaiva G, Bailli D, Boss V, Thomas P, Lesvastel P, Goudemand M. A case of acute psychotic episode after a single dose of ecstasy. Encephale, 27: 198-202, 2001.
  • Van Kampen J, Katz M. Persistent psychosis after a single ingestion of "ecstasy". Psychosomatics, 42: 525-7, 2001.
  • Endereço para correspondência:

    Rodrigo Nicolato
    Rua Anhangüera, 151/303
    31015-090 – Belo Horizonte, MG
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      22 Fev 2007
    • Recebido
      05 Dez 2006
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