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O papel da dieta cetogênica no estresse oxidativo presente na epilepsia experimental

The role of the ketogenic diet on oxidative stress present in experimental epilepsy

Resumos

INTRODUÇÃO: A epilepsia é um dos transtornos neurológicos mais comuns, sendo definido como uma condição de crises recorrentes espontâneas. Existe uma importante relação entre radicais livres e enzimas antioxidantes no fenômeno epiléptico, e as espécies reativas de oxigênio (EROs) têm sido implicadas na neurodegeneração induzida pelas crises. OBJETIVO: A presente revisão teve como objetivo investigar a relação existente entre o estresse oxidativo e a epilepsia, destacando o efeito da dieta cetogênica sob condições experimentais. MATERIAL E MÉTODOS: Procedeu-se a pesquisa em artigos científicos publicados nos Bancos de Dados Medline, PubMed, Periódicos CAPES, ScienceDirect e Scielo. As palavras-chave selecionadas para a pesquisa incluíram epilepsia, status epilepticus, pilocarpina, estresse oxidativo, espécies reativas de oxigênio, disfunção mitocondrial. RESULTADOS E DISCUSSÃO: Terapia dietética tem sido utilizada, como é o caso da dieta cetogênica (DC), a qual é rica em lipídeos e pobre em carboidratos e utilizada por mais de oito décadas para o tratamento de epilepsia refratária, principalmente em crianças. A DC modula a bionergética mitocondrial, diminui a formação de EROs, aumenta a capacidade antioxidante celular e ainda, previne alterações do DNA mitocondrial. CONCLUSÃO: Evidências de atuação da DC na disfunção mitocondrial, como ocorre na epilepsia, são muitas e demonstram claramente efeitos benéficos dessa terapêutica.

neurociência; disfunção mitocondrial; epilepsia refratária; espécies reativas de oxigênio


INTRODUCTION: Epilepsy is a neurological disorder more common, being defined as a condition of spontaneous recurrent seizures. An important relationship exists between free radicals and antioxidant enzymes in epileptic phenomena and reactive oxygen species (ROS) have been implicated in neurodegeneration induced by crises. AIM: This review aimed to investigate the relationship between oxidative stress and epilepsy, highlighting the effect of the ketogenic diet under experimental conditions. METHODS: There has been research papers published in the databases Medline, PubMed, CAPES journals, ScienceDirect and Scielo. The keywords selected for the study included epilepsy, status epilepticus, pilocarpine, oxidative stress, reactive oxygen species, mitochondrial dysfunction. RESULTS AND DISCUSSION: Dietary therapy has been used, such as the ketogenic diet (KD), which is rich in fat and low in carbohydrates and used by more than eight decades for the treatment of refractory epilepsy, especially in children. The KD modulates mitochondrial bioenergetic, decreases the formation of ROS, increases the antioxidant capacity and also prevents changes in mitochondrial DNA. CONCLUSION: Evidence of activity of KD in mitochondrial dysfunction, as epilepsy, are many and clearly demonstrate the beneficial effects of the therapy.

neuroscience; mitochondrial dysfunction; refractory epilepsy; reactive oxygen species


REVIEW ARTICLE

O papel da dieta cetogênica no estresse oxidativo presente na epilepsia experimental

The role of the ketogenic diet on oxidative stress present in experimental epilepsy

Tâmara Kelly de Castro GomesI; Suzana Lima de OliveiraI; Terezinha da Rocha AtaídeII; Euclides Maurício Trindade FilhoII

IFaculdade de Nutrição, Universidade Federal de Alagoas

IIDepartamento de Fisiologia, Universidade de Ciências da Saúde do Estado de Alagoas

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Conjunto Medeiros Neto III, Bloco 25, ap.303 Tabuleiro dos Martins CEP 57063-840, Maceió, AL, Brasil Tel.: (82) 8842-7857 - 9638-5530 E-mail: < tkgomes@gmail.com>; < tamarakgomes@hotmail.com>

RESUMO

INTRODUÇÃO: A epilepsia é um dos transtornos neurológicos mais comuns, sendo definido como uma condição de crises recorrentes espontâneas. Existe uma importante relação entre radicais livres e enzimas antioxidantes no fenômeno epiléptico, e as espécies reativas de oxigênio (EROs) têm sido implicadas na neurodegeneração induzida pelas crises.

OBJETIVO: A presente revisão teve como objetivo investigar a relação existente entre o estresse oxidativo e a epilepsia, destacando o efeito da dieta cetogênica sob condições experimentais.

MATERIAL E MÉTODOS: Procedeu-se a pesquisa em artigos científicos publicados nos Bancos de Dados Medline, PubMed, Periódicos CAPES, ScienceDirect e Scielo. As palavras-chave selecionadas para a pesquisa incluíram epilepsia, status epilepticus, pilocarpina, estresse oxidativo, espécies reativas de oxigênio, disfunção mitocondrial.

RESULTADOS E DISCUSSÃO: Terapia dietética tem sido utilizada, como é o caso da dieta cetogênica (DC), a qual é rica em lipídeos e pobre em carboidratos e utilizada por mais de oito décadas para o tratamento de epilepsia refratária, principalmente em crianças. A DC modula a bionergética mitocondrial, diminui a formação de EROs, aumenta a capacidade antioxidante celular e ainda, previne alterações do DNA mitocondrial.

CONCLUSÃO: Evidências de atuação da DC na disfunção mitocondrial, como ocorre na epilepsia, são muitas e demonstram claramente efeitos benéficos dessa terapêutica.

Unitermos: neurociência, disfunção mitocondrial, epilepsia refratária, espécies reativas de oxigênio.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Epilepsy is a neurological disorder more common, being defined as a condition of spontaneous recurrent seizures. An important relationship exists between free radicals and antioxidant enzymes in epileptic phenomena and reactive oxygen species (ROS) have been implicated in neurodegeneration induced by crises.

AIM: This review aimed to investigate the relationship between oxidative stress and epilepsy, highlighting the effect of the ketogenic diet under experimental conditions.

METHODS: There has been research papers published in the databases Medline, PubMed, CAPES journals, ScienceDirect and Scielo. The keywords selected for the study included epilepsy, status epilepticus, pilocarpine, oxidative stress, reactive oxygen species, mitochondrial dysfunction.

RESULTS AND DISCUSSION: Dietary therapy has been used, such as the ketogenic diet (KD), which is rich in fat and low in carbohydrates and used by more than eight decades for the treatment of refractory epilepsy, especially in children. The KD modulates mitochondrial bioenergetic, decreases the formation of ROS, increases the antioxidant capacity and also prevents changes in mitochondrial DNA.

CONCLUSION: Evidence of activity of KD in mitochondrial dysfunction, as epilepsy, are many and clearly demonstrate the beneficial effects of the therapy.

Keywords: neuroscience, mitochondrial dysfunction, refractory epilepsy, reactive oxygen species.

INTRODUÇÃO

A crise epiléptica pode ser definida de várias formas, mas a definição mais aceita na neurofisiologia é a de Hughlings Jackson, de 1870, que a caracteriza como proveniente de uma descarga desordenada, excessiva e ocasional do tecido nervoso cerebral nos músculos.1 A neurociência moderna tem demonstrado que as crises são o resultado de uma máxima atividade elétrica sincronizada e anormal em uma população de neurônios, região essa conhecida como foco epiléptico. Esse fenômeno inicial recruta rapidamente outras partes do cérebro, de modo que se tem uma divisão do insulto inicial, o qual apresenta uma descarga elétrica rítmica e auto-sustentada.1

Epilepsia, a condição de crises recorrentes, é uma das mais comuns desordens neurológicas, afetando cerca de 0,5 a 0,7% da população mundial.2 Esta doença ocorre de forma idiopática, como resultado de anormalidades congênitas no desenvolvimento cerebral, de alterações genéticas no metabolismo cerebral e na excitabilidade de neurônios e, ainda, a partir de insultos que lesam a anatomia e/ou a fisiologia do cérebro normal.3

Vários estudos sugerem que a disfunção mitocondrial pode ser um fator contribuinte na geração das crises epilépticas.4,5,6 A mitocôndria apresenta funções críticas que influenciam a excitabilidade neuronal, incluindo produção de trifosfato de adenosina (ATP), oxidação de ácidos graxos, controle de apoptose e de necrose, regulação do ciclo de aminoácidos, biossíntese de neurotransmissores e regulação da homeostase do cálcio citosólico.6 É nesta organela que ocorre a produção primária das espécies reativas de oxigênio (EROs), tornando-a vulnerável ao dano oxidativo, o qual pode desempenhar um importante papel no controle da excitabilidade neuronal.6,7 Muitos estudos sugerem que as EROs, potentes fatores iniciadores do estresse oxidativo, têm sido implicadas no desenvolvimento de crises epilépticas.8,9,10

A peroxidação de lipídios de membrana, a qual acontece devido ao aumento da produção de EROs e/ou à diminuição nos mecanismos de defesa, tem se tornado foco de estudo neste contexto, sendo apontada como responsável pelo desenvolvimento da injúria neuronal, que acontece nos quadros de epilepsia.11 O cérebro é um alvo preferencial para o processo peroxidativo, visto que é um órgão que apresenta um alto conteúdo em ácidos graxos poliinsaturados.12,13 Em adição, possui baixos níveis de compostos antioxidantes, como o alfa-tocoferol, especialmente no hipocampo.9,13,14 Um sistema de defesa antioxidante reduzido pode ser suficiente sob condições fisiológicas. Porém, nos quadros de epilepsia, esse fato predispõe ainda mais o cérebro ao estresse oxidativo.

Terapias que visam minimizar o estresse oxidativo e, consequentemente, o dano neuronal têm sido muito utilizadas para diminuir os prejuízos causados pela epilepsia.8 Embora um progresso significativo tenha sido alcançado no desenvolvimento de drogas antiepilépticas, aproximadamente 1/3 dos pacientes são refratários ao tratamento medicamentoso disponível atualmente.6 Nestes casos, precisa-se lançar mão de terapia não medicamentosa, como é o caso da dieta cetogênica (DC).

A DC é rica em lipídeos e apresenta um baixo conteúdo de proteínas e carboidratos, o que confere uma inversão da rota metabólica a partir da glicose para a geração e metabolismo de corpos cetônicos.6,15,16 Esta dieta melhora o status redox mitocondrial, estimula a biogênese mitocondrial em áreas cerebrais,17 promove a diminuição da produção de EROs devido ao estímulo da proteína desacopladora UCP2,18 aumenta a capacidade antioxidante, além de prevenir mutações no DNA mitocondrial e morte celular.19,20

O presente artigo, portanto, teve como objetivo investigar a relação existente entre o estresse oxidativo e a epilepsia, destacando o efeito da dieta cetogênica neste contexto, por meio de trabalho de revisão.

MÉTODO

Procedeu-se a pesquisa em artigos científicos publicados nos Bancos de Dados Medline, PubMed, Periódicos CAPES, ScienceDirect e Scielo. As palavras-chave selecionadas para a pesquisa incluíram epilepsia, Status Epilepticus, pilocarpina, estresse oxidativo, antioxidantes, convulsões, dieta cetogênica, epilepsia do lobo temporal, epilepsia experimental, canais iônicos, sistema nervoso central e hipocampo, no idioma correspondente ao do banco de dados consultado e agrupadas de maneiras diversas para otimizar a busca. Foram considerados estudos publicados nas línguas inglesa, espanhola e portuguesa, compreendendo artigos de revisão, ensaios clínicos (estudos de coorte e caso-controle) e experimentais, que trataram da influência do estresse oxidativo sobre a epilepsia, bem como aqueles que abordaram o papel da dieta cetogênica neste contexto. Foram utilizados cerca de 100 artigos científicos com textos completos, dentre os cerca de 300 que foram consultados.

A presente revisão abordará inicialmente considerações acerca da epilepsia, conceitos, possíveis causas, classificação e modelos experimentais. Posteriormente, serão apresentadas informações sobre a ocorrência do estresse oxidativo no cérebro de epilépticos, trazendo um levantamento de resultados publicados na área. Para finalizar, será mostrado a forma pela qual o uso da dieta cetogênica pode interferir no quadro de estresse oxidativo.

A EPILEPSIA

Desde a antiguidade a epilepsia causa espanto nas pessoas. As manifestações convulsivas e a perda de consciência, quase sempre, direcionavam as pessoas para uma explicação espiritual. Esse envolvimento da religião com a patologia é responsável pelo preconceito que os pacientes sofreram e ainda sofrem até os dias atuais.21

A epilepsia é um distúrbio da atividade cerebral caracterizada pela ocorrência periódica e espontânea da atividade elétrica altamente sincronizada, acompanhada de manifestações comportamentais.3 Ainda não existem estatísticas sobre a prevalência ou a incidência de epilepsia na população brasileira na atualidade. Entretanto, a prevalência na cidade de Porto Alegre é de 16 a 20 casos/1000 habitantes.22 A incidência global de epilepsia é cerca de 50 casos/100.000 pessoas/ano em países desenvolvidos. Já em países em desenvolvimento, varia de 100 a 190 casos/100.000 pessoas/ano.23 Parte dos pacientes epilépticos evolui para a epilepsia intratável do ponto de vista medicamentoso, tornando-se necessária a exploração de tratamentos alternativos, tais como o uso de DC ou de cirurgia, em casos mais extremos.24,25

Segundo a International League Against Epilepsy3, a epilepsia pode ser classificada de acordo com sua origem em genética, estrutural (adquirida), ou ainda, de causa desconhecida. As epilepsias adquiridas são as mais comuns; dentro desta classificação, destaca-se a epilepsia do lobo temporal (ELT).1

A ELT é a forma mais comum de epilepsia focal resistente ao tratamento farmacológico em adultos, representando pelo menos 30% de todos os casos.26 Este tipo de epilepsia é manifestado clinicamente por crises parciais complexas e, patologicamente, por esclerose mesial temporal, a qual é caracterizada por atrofia hipocampal com perda de neurônios e gliose reativa.27,28 Acredita-se que o desenvolvimento da ELT resulte de um insulto inicial ao cérebro que, tanto devido a sua severidade quanto à ocorrência em estágio precoce de desenvolvimento do órgão, leve a mudanças celulares e moleculares progressivas, favorecendo a hiperexcitabilidade e, por fim, desencadeando as crises.28 Para que a ELT se manifeste em humanos, o insulto inicial ocorre, comumente, entre 1 e 5 anos de idade.1

Os tipos de insultos associados ao desenvolvimento de ELT incluem Status Epilepticus (SE), convulsões febris, trauma de cabeça e infecções no sistema nervoso central.1 O SE é uma crise potencialmente letal, que dura mais de 30 minutos e pode resultar de distúrbios eletrolíticos ou metabólicos, trauma de cabeça, infecções do sistema nervoso central e etilismo, além de exposição a alguns venenos ou drogas como, por exemplo, a pilocarpina.29 O SE se caracteriza por uma atividade límbica convulsiva, a qual pode ser detectada por eletroencefalograma e observada como repetidas crises motoras; pode levar a severos danos cerebrais, afetando principalmente o hipocampo, complexo amig- dalóide, algumas regiões do tálamo e substância negra.30

Uma característica importante da ELT é a latência de meses a anos entre o insulto inicial e o desenvolvimento de crises espontâneas, o chamado período silencioso.31 É neste período de quiescência relativa, que acontecem modificações deletérias na conectividade e na organização celular, assim como na expressão de determinadas moléculas, fatores primordiais para a geração das crises espontâneas.32 Modelos clínicos e experimentais sugerem que "crise gera crise", implicando um padrão contínuo de lesão e reforço dos processos adaptativos, que produzem a condição epiléptica.32 Dessa forma, a ELT pode ser vista como uma doença adquirida, resultante de vários insultos, tendo seu desenvolvimento dependente do tempo, além de sofrer também influências da genética.

Muitas informações de que a ciência dispõe atualmente sobre a base celular e molecular da epileptogênese foram obtidas a partir de modelos animais. Segundo White,33 um modelo animal apropriado de epileptogênese tem as mesmas características da epilepsia humana, um período latente após o insulto inicial, hiperexcitabilidade crônica e crises espontâneas. Manipulações que produzem SE em animais experimentais parecem satisfazer a estes critérios.33

Dentre os modelos onde se pode observar a ocorrência de SE estão a injeção intraperitoneal ou intra-hipocampal de pilocarpina ou ácido caínico,31,34 estimulação elétrica do hipocampo ventral,35,36 estimulação da via perfurante,37 e a estimulação elétrica da amígdala.38

O modelo da pilocarpina (PILO) tem sido amplamente utilizado em função da facilidade técnica e, principalmente, pela semelhança fisiopatológica com a epilepsia do lobo temporal humana. Essa droga é um potente agonista muscarínico que promove, em ratos, uma sequência de alterações comportamentais e eletroencefalográficas, que resulta no desenvolvimento da epilepsia.30

A administração sistêmica de PILO, método mais utilizado pelos pesquisadores da área, promove mudanças eletroencefalográficas e comportamentais, que podem ser divididas em três períodos distintos: (a) um período agudo, que evolui progressivamente para SE límbico e que dura 24 horas, (b) um período silencioso, com normalização progressiva do eletroencefalograma (EEG) e do comportamento, o qual varia de 4-44 dias, e, (c) um período crônico, com crises recorrentes espontâneas (CRE).39 O modelo da PILO pode ser associado a crises do despertar, pois a maioria das crises ocorre após um período de sono do animal.40

Diferentes autores têm demonstrado que crises de longa duração, como o SE, desencadeiam uma complexa cascata química, acionando alterações neuroquímicas nos neurônios e nas células da glia.30,41 Esses eventos imediatos ou de longa duração podem modificar o meio celular através de mudanças no gradiente iônico em volta da membrana celular e de alteração na expressão gênica de moléculas, como receptores, fatores tróficos, enzimas, proteínas do citoesqueleto e proteínas da matriz, além de alterar a fosforilação de macromoléculas.1 Essas modificações promovem remodelamento sináptico, o qual pode alterar a excitabilidade de neurônios de estruturas temporais, levando ao dano cerebral e um estado de hiperexcitabilidade permanente.30,42

O hipocampo de ratos submetidos ao modelo de epilepsia induzida por PILO mostra aumentada taxa de utilização de norepinefrina (NE) e diminuída utilização de dopamina, durante os períodos agudo, silencioso e crônico,30 enquanto que a taxa de utilização da serotonina foi aumentada apenas no período agudo da doença.43 Em relação aos aminoácidos neurotransmissores, a fase aguda da doença foi caracterizada por uma aumentada liberação de glutamato no hipocampo.44 Quando glutamato ativa receptores N-Metil-D-Aspartato (NMDA), o cálcio intracelular (Ca++) se eleva, induzindo ativação de lipases, proteases e nucleases, matando a célula por necrose ou apoptose.30 De acordo com Funke e colaboradores,45 no hipocampo de ratos submetidos ao modelo pilocarpina de epilepsia, a expressão de SERCA2b e PMCA, ATPases envolvidas na restauração do nível normal de Ca2+ dentro da célula, está aumentada 1 hora após o SE, mostrando o esforço para controlar a excitabilidade da célula durante os estágios iniciais do insulto.

A fase silenciosa do modelo pilocarpina de epilepsia, período de intensa epileptogênese, é marcada por um importante desequilíbrio entre inibição e excitação.1,43 Mudanças nos circuitos hipocampais são motivos pelos quais o balanço excitação/inibição é trocado na epilepsia do lobo temporal. Alterações na liberação, remoção e expressão dos receptores de neurotransmissores são responsáveis pela modificação deste equilíbrio.1 Os transportadores de glutamato, aminoácido que ativa a neurotransmissão excitatória via receptores NMDA, AMPA e de cainato, nos neurônios e nas células da glia, desempenham importante papel na manutenção dos níveis apropriados de glutamato e eventos sinápticos, prevenindo, assim, a injúria excitotóxica. Sob condições eletricamente desfavoráveis, esses transportadores podem agir no sentido inverso e tornarem-se fonte de glutamato, fato este que pode resultar em efeitos deletérios para o sistema nervoso central, incluindo aparecimento de crises epi- lépticas.46,47

A epilepsia do lobo temporal tem sido relacionada à excitabilidade excessiva nas estruturas límbicas ou à baixa atuação dos caminhos inibitórios (neurônios GABAérgicos) ou, ainda, à associação entre ambos os eventos.48 Como uma consequência da neurotransmissão alterada, a transdução do sinal através da membrana plasmática é também modificada, mudando o metabolismo neuronal e a expressão gênica30. Como um efeito compensatório, fatores de crescimento podem ser liberados e a ativação de seus receptores induz a autofosforilação dessas moléculas e a ativação de diferentes cinases de proteínas, incluindo a fosforilação em resíduos de tirosina, a qual é importante no ciclo celular e nos mecanismos de sinalização intracelular. Essas proteínas fosfotirosinas (PTyP) estão aumentadas no hipocampo de ratos durante os estágios iniciais do SE induzido por PILO,49 mostrando que vários eventos intracelulares podem sofrer modificações durante as crises de longa duração, principalmente na região conhecida como CA3 do hipocampo.

Durante as crises de longa duração, a ativação de processos inflamatórios pode também ocorrer. A microglia ativada tem sido considerada principal fonte de citocinas inflamatórias.50 Vários autores descrevem aumentada expressão de RNAm para algumas interleucinas, como IL-1β, IL-6 e TNF-α (Fator de Necrose Tumoral), além de iNOS (sintase de óxido nítrico induzida). Caminhos inflamatórios específicos são cronicamente ativados durante a epileptogênese e eles persistem na epilepsia crônica, sugerindo que podem contribuir de forma importante para a etiologia da epilepsia do lobo temporal.51

Outro caminho envolvido nesses processos inflamatórios é a liberação de prostaglandinas (PG).30 Esses eicosanóides são produzidos após a ação da fosfolipase A2 nos fosfolipídios de membrana, havendo a liberação do ácido araquidônico (AA), porém, esta liberação pode também ser feita pela ação do glutamato nos receptores NMDA. Algumas PGs mostram-se aumentadas nos tecidos de animais nos quais a epilepsia foi induzida por PILO; PGF2α está aumentada apenas no período agudo da doença, enquanto PGD2 está elevada nos três períodos da doença, e a PGE2 encontra-se acima do normal apenas no período crônico.41

Durante a formação das PGs, espécies reativas de oxigênio (EROs) são produzidas, contribuindo ainda mais para o processo inflamatório.41 Essas espécies são também liberadas durante o metabolismo da glicose e na cadeia transportadora de elétrons mitocondrial,41 mecanismos que são super ativados no SE. Somado a isto, a superóxido dismutase (SOD), enzima que faz parte da defesa antioxidante endógena, a qual é responsável pela dismutação do ânion radical superóxido (O2•-), apresentou uma atividade diminuída durante as crises, associada a um nível aumentado de hidroperóxido no hipocampo de animais epilépticos, mostrando dano tissular e peroxidação lipídica.14

Os estudos experimentais sugerem que o estresse oxidativo é um fator contribuinte importante para a instalação e evolução da epilepsia, devendo sempre ser levado em consideração na fisiopatologia dessa doença. Conhecimentos acerca desta temática precisam ser progressivamente adquiridos, com a finalidade de se encontrar medidas terapêuticas para combatê-lo.

O ESTRESSE OXIDATIVO NA EPILEPSIA

O cérebro representa cerca de 2% do peso do corpo total, mas consome aproximadamente 20% do total de oxigênio em um humano adulto.52 Mais da metade da energia cerebral é utilizada pela Na+/K+ ATPase, a fim de restaurar o potencial de repouso das células excitatórias.53 Para alcançar essa grande quantidade de energia, o sistema nervoso central (SNC) contém uma enorme quantidade de mitocôndrias. Como este sistema é altamente dependente da produção de energia mitocondrial, torna-se vulnerável à disfunção desta organela.54

Um tipo de disfunção mitocondrial amplamente estudado que pode causar doenças é a produção excessiva e o acúmulo de espécies reativas de oxigênio dentro da célula.6 EROs, assim como as espécies reativas de nitrogênio (ERNs), são bioprodutos do metabolismo do oxigênio e do nitrogênio, respectivamente, altamente reativos. Essas espécies não estão apenas relacionadas a mudanças nocivas na célula, mas, também, modulam caminhos fisiológicos. Entretanto, quando são produzidas em excesso, ou ainda quando os mecanismos responsáveis por processar/eliminar essas espécies são insuficientes, instala-se o Estresse Oxidativo.55

Durante a fosforilação oxidativa, evento mitocondrial no qual há a formação de ATP a partir de ADP e fosfato inorgânico (Pi), a transferência de elétrons entre os com- ponentes da cadeia transportadora permite o vazamento de alguns destes, o que resulta, então, na produção de EROs, como o ânion radical superóxido (O2•-).56,57 Dentro dos neurônios, existe uma alta taxa de fosforilação oxidativa e utilização de oxigênio, o que resulta em aumentada taxa de formação de bioprodutos superóxidos.

A cadeia transportadora de elétrons mitocondrial é crítica para os processos de fosforilação, regulação da permeabilidade da membrana, biossíntese de neurotransmissores e exocitose e é fonte primária de ATP celular envolvido na manutenção das bombas iônicas, como a Na+/K+ ATPase, o que contribui para a excitabilidade neuronal.6 Quando as enzimas dessa cadeia não funcionam adequadamente, como ocorre na epilepsia do lobo temporal, os níveis de EROs mitocondriais aumentam, resultando em dano oxidativo.58 A função da cadeia transportadora de elétrons danificada, como resultado da ação de EROs, pode levar à despolarização dependente de Ca2+ do potencial de membrana mitocondrial, resultando em consumo de oxigênio incompleto, reduzida produção de ATP e super produção de EROs.54,59

O movimento do cálcio dentro dos neurônios tem se mostrado crítico para a função normal da célula e a mudança no fluxo desse cátion pode resultar em uma situação de estresse oxidativo, devido à aumentada atividade da sintase de óxido nítrico ou a uma depressão na função da cadeia respiratória.60 Também, existem muitos neurotransmissores, como a dopamina e a norepinefrina, que podem se auto-oxidar formando quininas reativas, que podem ser nocivas.30 Adicionalmente, áreas dopaminérgicas do cérebro geram peróxido de hidrogênio (H2O2) como um bioproduto da quebra da dopamina por monoamina oxidase B (MAO-B).61 Essa situação pode ser exacerbada pelo fato de que a atividade da catalase (CAT), enzima que processa o H2O2 no hipocampo, é diminuída no cérebro, sobrecarregando a atividade da glutationa (GSH) e glutationa peroxidase (GPx), para remover o deletério H2O2 presente nas células.

Como citado anteriormente, o cérebro possui uma alta quantidade de ácidos graxos poli-insaturados, o que o torna mais vulnerável aos processos de peroxidação lipídica. Contribuindo de forma importante com todo este cenário, têm-se os altos níveis de ferro no cérebro e a baixa capacidade de ligação desse íon no fluido cérebro-espinhal, o que rende aos neurônios mais suscetibilidade ao dano oxidativo. Assim, a liberação de ferro após alguma injúria ao SNC pode contribuir para um aumento na degradação de H2O2, catalisada pelo mineral, e o consequente dano oxidativo.62

No SNC, a superprodução de espécies reativas de oxigênio pode, ainda, ser secundária ao fenômeno denominado excitotoxidade, o qual é definido como a excessiva liberação de glutamato, que pode induzir aumento intracelular nas concentrações de cálcio, modificando a homeostase desse íon e matando neurônios.43 A epilepsia do lobo temporal tem sido fortemente associada a este fenômeno.14 Como referido por alguns autores, a excitotoxidade do glutamato acontece devido a uma ativação excessiva dos receptores desse aminoácido.63,64 Perda neuronal associada às crises pode diminuir transportadores gliais de glutamato, o que pode aumentar os níveis de glutamato extracelular e levar à morte adicional dos neurônios, resultando em um perfil cíclico.6,14

O glutamato extracelular é normalmente captado por meio de transportadores de glutamato astrogliais e rapidamente convertido em um aminoácido não excitotóxico, a glutamina, pela ação da glutamina sintetase (GS). A glutamina é transportada de volta para os neurônios, onde é reconvertida em glutamato, em um processo denominado ciclo do glutamato/glutamina.65 Em um modelo animal de deficiência de GS hipocampal, a maioria dos ratos apresentou crises recorrentes e espontâneas e um grupo exibiu fatos neuropatológicos similares aos dos pacientes com epilepsia do lobo temporal, sugerindo que a deficiência desta enzima no hipocampo causa crises recorrentes. Sabe-se que esta enzima é oxidada sob condições de estresse oxidativo, ou seja, sua atividade é sensível às EROs e ERNs.66

Um mês após SE induzido por pilocarpina, a disfunção mitocondrial é evidente, pois, há uma diminuição na atividade dos complexos I e IV da cadeia transportadora de elétrons, assim como uma queda no potencial de membrana mitocondrial medido em regiões CA1 e CA3 do hipocampo, de acordo com Kudin e colaboradores.67 Segundo os autores, essas anormalidades aconteceram devido ao estresse oxidativo crônico que diminuiu o número de cópias do DNA mitocondrial, resultando em uma baixa regulação das enzimas da cadeia transportadora de elétrons que elas codificam. Assim, o acúmulo de lesões oxidativas no DNA mitocondrial confere ao cérebro maior vulnerabilidade às subsequentes crises epilépticas.67 Somando-se a isto, dano estrutural à mitocôndria tem sido observado no hipocampo de ratos tratados com algum agente químico indutor de crises epilépticas.69 A ligação entre disfunção mitocondrial e epilepsia sustenta-se, ainda, pelas evidências nas quais certos pacientes com epilepsia do lobo temporal apresentam deficiência na atividade do complexo I da cadeia transportadora de elétrons no foco da crise.4

Proteínas expostas às EROs exibem alteradas estruturas primárias, secundárias e terciárias, sofrem fragmentação espontânea e apresentam aumentada susceptibilidade proteolítica.6 Observou-se redução das enzimas aconitase, enzima do ciclo do ácido tricarboxílico que contém ferro em seu centro ferro-enxofre (Fe-S), que é vulnerável ao dano oxidativo por O2•- e espécies relacionadas, e alfa-cetoglutarato desidrogenase, dentro de 16-44 horas após o SE induzido por pilocarpina.69 Uma consequência da inativação oxidativa da aconitase é a liberação de ferro e a geração de H2O2, o que pode formar radical hidroxila (OH•) e, assim, resultar em adicional dano oxidativo.6

De acordo com Naffah-Mazzacoratti e colaboradores,41 no hipocampo de ratos tratados com pilocarpina foram encontrados aumentados níveis de prostaglandinas (PGE2, PGD2 e PGF2α), nos períodos agudo, silencioso e crônico da epilepsia. Esse é um dado de bastante importância, visto que o aumento na produção desses compostos resulta em consequente aumento na formação de superóxido e hidroperóxidos.30 Juntos, esses dados sugerem que o hipocampo dos animais tratados com pilocarpina para indução de epilepsia é mais vulnerável ao estresse oxidativo nos três períodos da doença.

Bellissimo e colaboradores,14 estudando o modelo de epilepsia induzido por pilocarpina, encontraram, no hipocampo, 24 horas após o SE, uma diminuição na atividade da enzima SOD, responsável por metabolizar o O2•- a oxigênio molecular e H2O2. Em adição, no mesmo estudo, os autores encontraram elevados níveis de hidroperóxido (HPx), o que pode indicar que a peroxidação lipídica pode ser dependente da diminuição da atividade da SOD. Segundo Waldbaum e Patel,6 a peroxidação lipídica que resulta da disfunção mitocondrial pode comprometer a capacidade das células em manter os níveis de energia, acionando, desta forma, eventos que levam à injúria e morte neuronal.

Além de defesas antioxidantes enzimáticas, a exemplo da SOD, já mencionada, e da catalase, após as crises epilépticas, existem outros mecanismos responsáveis pela defesa antioxidante endógena, como, por exemplo, a glutationa (GSH), que é a principal responsável pela defesa antioxidante intracelular não enzimática no corpo. Após oxidada, a glutationa (GSSG) é reciclada pela glutationa redutase, com oxidação simutânea de NADPH. A razão GSH/GSSG é comumente utilizada como biomarcador de estresse oxidativo em sistemas biológicos.70 Quando essa razão encontra-se diminuída pode induzir dano estrutural à membrana mitocondrial, mudanças na atividade de enzimas da mitocôndria, alteração do potencial de membrana e consequente disfunção mitocondrial, afetando a excitabilidade neuronal.71

De acordo com Freitas e colaboradores,11 24 horas após o SE induzido por pilocarpina, a CAT, mas não a SOD, encontrava-se reduzida no hipocampo, sugerindo que esta região do cérebro não utiliza a SOD como maior sistema de limpeza contra EROs, mas sim a CAT e/ou a GSH. Em outro estudo, no qual os animais foram submetidos à injeção de ácido caínico, foi percebido um aumento nos níveis de F2-isoprostanos (F2-IsoP) e posterior morte neuronal extensiva na região CA3 do hipocampo,54 sugerindo que um estado redox alterado pode contribuir para a morte neuronal induzida por crises epilépticas, como citado anteriormente.

Atualmente, vasta atenção tem sido dada ao consumo de antioxidantes e seu papel na redução das taxas de doenças crônicas como epilepsia, câncer, doenças cardiovasculares e diabetes, entre outras72. A certas substâncias antioxidantes, como as vitaminas E (α-tocoferol) e C e os carotenóides, têm sido atribuídos efeitos benéficos, pela inibição da peroxidação lipídica e do dano oxidativo celular.73

Tomé e colaboradores,13 ao administrarem α-tocoferol a ratos, antes da injeção de pilocarpina, obtiveram como resultado a diminuição do nível de peroxidação lipídica e do conteúdo de nitrito, bem como o aumento das atividades das enzimas SOD e CAT. Crises induzidas por pilocarpina levam a mudanças no metabolismo de óxido nítrico e aumentada produção de seus metabólitos (nitrito e nitrato). Esses metabólitos, quando aumentados, podem interagir com receptores glutamatérgicos e produzir ações estimulatórias no SNC.74

Santos e colaboradores8 estudaram os efeitos neuro- protetores da vitamina C em ratos adultos, após crises induzidas por pilocarpina, e verificaram que o pré-tra- tamento com vitamina C, antes da injeção de pilocarpina, aumentou a latência para a primeira crise e reduziu a taxa de mortalidade após as crises induzidas por esta droga. Ainda neste estudo, os mesmos autores também perceberam que a vitamina C diminuiu os níveis de peroxidação lipídica, pois, esses animais mostraram níveis de malonaldeído (MDA) menores que os animais do grupo controle.

Uma variedade de métodos para análise de peroxidação lipídica é utilizada, entretanto, técnicas in vivo estão associadas com problemas como a instabilidade do produto final, falta de sensibilidade e especificidade inadequada para processos mediados por radicais livres. Por exemplo, o método TBARS (substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico) não é específico para peroxidação lipídica e o uso do MDA como um indicador para este evento pode ser problemático, devido às etapas de homogeneização e extração dos solventes orgânicos;75 mesmo assim, esse método ainda é amplamente utilizado. Por outro lado, os F(2)-isoprostanos (F2-IsoPs) são considerados melhores marcadores de peroxidação lipídica in vivo, porque são produtos específicos dessa reação, detectados em fluidos biológicos normais, e elevam-se dramaticamente em modelos de injúria oxidativa, além de serem modulados pelo status antioxidante e não sofrerem influência de lipídios dietéticos. Estes compostos são semelhantes à prostaglandina F2 (PGF2); porém, são produzidos por reação catalisada por radicais livres e estão envolvidos na peroxidação lipídica do ácido araquidônico.76

Diante deste cenário, percebe-se que o estresse oxidativo está intimamente relacionado às mudanças neuroquímicas observadas durante o SE e as crises recorrentes espontâneas da epilepsia do lobo temporal, especialmente as induzidas por pilocarpina e ácido caínico, aqui destacadas. O desenvolvimento das crises é acompanhado por uma formação aumentada de espécies reativas de oxigênio no hipocampo, o que é um fator patogênico importante para a morte celular induzida pelas crises. Dessa forma, a busca por terapias que possam inibir a disfunção mitocondrial e, consequentemente, o estresse oxidativo torna-se necessária. Terapias antioxidantes, como o uso de vitaminas C e E, carotenóides e outras substâncias, como o ácido lipóico e a melatonina, além de terapias sintéticas, envolvendo o uso de enzimas como SOD e CAT, a fim de diminuir os efeitos deletérios do SE, podem ser uma alternativa interessante para o controle da epilepsia. Terapia não farmacológica também tem sido amplamente utilizada, como é o caso da dieta cetogênica, a qual tem conferido neuroproteção por meio da redução da injúria oxidativa e da morte neuronal, além de manter os processos bioenergéticos e preservar a função celular.

DIETA CETOGÊNICA E ESTRESSE OXIDATIVO

No passado, diversas curas dietéticas para a epilepsia foram propostas, e dessa forma, a limitação ou o consumo em excesso de alguma substância alimentar era prescrita como medida terapêutica. Na época de Hipócrates, o jejum foi indicado como conduta para curar a epilepsia. No quinto século antes de Cristo, Hipócrates relatou a história de um homem que apresentou convulsões epilépticas após ter tomado um banho quente no inverno. Na ocasião, abstinência completa de alimentos e bebidas foi prescrita e, assim, o homem ficou curado.77 Na Bíblia, Jesus cura um garoto epiléptico e explica que a cura só pode ser obtida pela prática da oração e do jejum.77

Anos mais tarde, como citado por Kossoff e Freeman,78 o médico Wilder propôs que os benefícios do jejum eram obtidos por meio da cetonemia, a qual poderia ser obtida por meio de outras formas, além da falta de ingestão alimentar. Ele completou, ainda, que os corpos cetônicos eram formados a partir do metabolismo de gorduras, quando havia um desequilíbrio entre a ingestão de gorduras e carboidratos. Wilder sugeriu que a dieta cetogênica era tão efetiva quanto o jejum e poderia ser mantida por um período mais longo, compensando, dessa forma, a desvantagem óbvia de um jejum prolongado.

Ao longo dos anos 1920 e 1930, a dieta cetogênica foi amplamente prescrita para pacientes epilépticos. Posteriormente, esse tratamento foi ocultado pelo aparecimento de drogas antiepilépticas na prática clínica. Uma nova era na terapia para a epilepsia estava começando e a dieta cetogênica ficou esquecida.79

O uso dessa dieta como tratamento para a epilepsia foi diminuindo gradativamente. Em outubro de 1994, a dieta cetogênica voltou a receber atenção quando uma rede de televisão americana mostrou a história de Charles, um garoto com dois anos de idade que apresentava crises tônico-clônicas, tônica generalizada e mioclônica intratáveis. O pai de Charles, pesquisando por conta própria tratamentos para a epilepsia, encontrou uma referência sobre a dieta cetogênica. Charles iniciou o tratamento com a dieta, ficou livre das crises e logo apresentou progresso em seu desenvolvimento.80

A dieta cetogênica tem ressurgido como forma de tratamento para pacientes epilépticos nos últimos anos e estudos clínicos modernos têm atestado sua eficácia, especialmente porque alguns pacientes não respondem à terapia medicamentosa, levando à necessidade de tratamento alternativo. Dessa forma, a dieta cetogênica voltou a ser utilizada como terapia para pacientes epilépticos, porém, agora dirigida àqueles que são resistentes à ação de fármacos.79

Em um esforço para fazer a dieta cetogênica mais palatável, Huttenlocher e colaboradores81 introduziram triacilglicerol de cadeia média (TCM) na composição da dieta, permitindo uma menor restrição de outros alimentos, visto que o TCM é mais cetogênico por caloria. Esse trabalho documentou a eficácia terapêutica dessa dieta em seis das 12 crianças epilépticas tratadas. Outros centros de tratamento adotaram a dieta com TCM em detrimento da dieta cetogênica clássica, constituída basicamente por triacilgliceróis de cadeia longa (TCL). Porém, 20 anos após, um teste comparativo entre os dois tipos de dietas cetogênicas, a clássica e a com TCM, concluiu que a última apresentava mais efeitos colaterais e menor palatabilidade.82

A dieta cetogênica é uma dieta hiperlipídica, pobre em carboidrato e não necessariamente pobre em proteína, fornecendo aproximadamente 80% da energia proveniente de lipídeos, em uma proporção média, com o restante dos demais macronutrientes, de 4:1 (lipídeos:carboidrato+proteína).15 Este alto aporte de calorias derivadas de lipídeos faz com que a produção de ATP seja prioritariamente a partir destes nutrientes. Isso induz numerosas alterações no metabolismo dos macronutrientes,83 sendo a principal alteração o desvio do metabolismo da glicose para a geração e o metabolismo de corpos cetônicos. Ratos alimentados com essa dieta apresentam cetonemia, a qual é necessária para os efeitos anticonvulsivantes da dieta.15,16

Atualmente, os pesquisadores ainda desconhecem o mecanismo de ação pelo qual a dieta cetogênica atua. As duas teorias mais aceitas incluem a neuroproteção dos corpos cetônicos (β-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona)84,85,86 e os efeitos anticonvulsivantes da inibição da glicólise.87 A modulação da bioenergética mitocondrial pela dieta cetogênica também tem sido sugerida como responsável por seus efeitos protetores. Estudos atestaram que esta dieta produz biogênese mitocondrial,17 diminui a formação de espécies reativas de oxigênio88 devido à super-regulação da proteína desacopladora UCP218 e aumenta a capacidade antioxidante celular.89,90,91 Estudos in vitro têm demonstrado, ainda, que bioprodutos da cetose podem prevenir alterações no DNA mitocondrial e a morte celular.19

Bough e colaboradores17 propuseram que a cetose crônica ativa o programa genético que leva à biogênese mitocondrial no hipocampo, a qual resulta em aumentados estoques energéticos. Esses autores afirmam que tal fenômeno aumenta a capacidade de produção de ATP, com excesso de fosfato de alta energia estocado na forma de fosfocreatina. Ainda segundo esses autores, glutamato e glutamina, formados a partir do ciclo do ácido cítrico estimulado por cetonas, fornecem um importante estoque de energia secundário, o qual, juntamente à fosfocreatina, podem manter os níveis de ATP quando houver necessidade, como, por exemplo, durante a hiperexcitabilidade neuronal que leva às crises. Isso resulta em uma estabilização do potencial de membrana, o que, por sua vez, aumenta a resistência ao insulto causador de crises.17

Maloouf e colaboradores88 afirmaram que as cetonas, produzidas a partir do jejum, da dieta cetogênica ou de restrição calórica, preveniram a excitoxidade do glutamato por meio da redução dos níveis de EROs, tanto em neurônios quanto em mitocôndria neocorticais dissociados. Eles demonstraram, adicionalmente, que essa redução ocorre devido ao aumento da oxidação de NADH, ou seja, a um aumento na taxa NAD+/NADH, e também devido ao aumento na respiração mitocondrial nesses neurônios. Dessa forma, os autores enfatizam as propriedades neuroprotetoras das cetonas, estabelecendo sua atividade antioxidante em nível mitocondrial.

Outro experimento realizado com dieta cetogênica demonstrou que esse tratamento dietético estimulou a atividade da proteína desacopladora mitocondrial (UCP2), no hipocampo, e diminuiu a produção de EROs.18 Vale ressaltar que essa diminuição é devida à redução do desvio de elétrons da cadeia respiratória. Diante disso, pode-se inferir que a dieta cetogênica reduz indiretamente o estresse oxidativo e, portanto, exerce um efeito neuroprotetor. As UCPs mitocondriais possuem várias funções, todas relacionadas ao seu papel primário na diminuição do gradiente de prótons em volta da membrana mitocondrial interna. O resultado dessa ação é a diminuição da síntese de ATP, assim como do influxo de cálcio na matriz mitocondrial, o que minimiza a produção de ERO.18

Outra evidência do papel importante da dieta cetogênica no combate ao estresse oxidativo foi relatada por Ziegler e colaboradores.89 Os autores afirmam que esta dieta é protetora contra desordens epilépticas porque afeta a atividade antioxidante, particularmente a glutationa peroxidase (GPx). Eles encontraram, em um modelo experimental de epilepsia, induzida por pilocarpina, um aumento da GPx no hipocampo durante a primeira hora do Status Epilepticus. Dessa forma, pode-se dizer que uma alta atividade da GPx induzida pela dieta cetogênica pode contribuir para proteger o hipocampo das sequelas degenerativas das desordens epilépticas.

Nazarewicz e colaboradores91 mostraram que o tra- tamento com dieta cetogênica por 14 dias aumentou a capacidade antioxidante no sangue de sujeitos saudáveis. Esse trabalho demonstrou um aumento significativo na capacidade antioxidante total e nos níveis de ácido úrico no plasma de pessoas saudáveis após os 14 dias de tratamento dietético. Deve-se ressaltar que ácido úrico funciona como varredor de EROs, protegendo dessa forma contra o estresse oxidativo.92

Demonstrou-se, recentemente, que a dieta cetogênica eleva a capacidade redox em ratos alimentados por três semanas, o que melhora a habilidade do cérebro para resistir a mudanças metabólicas e ao estresse oxidativo, sendo este último parcialmente envolvido na ocorrência de crises. Ainda nesse estudo, foi demonstrado um aumento nos níveis de GSH e estímulo a sua biossíntese endógena, além da melhora do nível redox mitocondrial, resultando em diminuída produção mitocondrial de EROs e proteção ao DNA mitocondrial.93

Atualmente, ainda não há consenso da comunidade científica acerca dos mecanismos que contribuem para os efeitos anticonvulsivantes da DC. Porém, várias evidências demonstram que o mecanismo de ação da DC pode ser devido ao bloqueio ou, ainda, à diminuição dos processos oxidativos na célula. Investigações adicionais são necessárias a fim de fornecer maior entendimento desta temática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta revisão relaciona a influência do consumo de dieta cetogênica e o controle do quadro de estresse oxidativo cerebral, que acontece na epilepsia. Embora a dieta tenha seu efeito antiepiléptico comprovado há mais de 80 anos, não existe ainda um consenso de quais mecanismos de ação são responsáveis por esse achado. Muitos trabalhos científicos afirmam que a dieta cetogênica tem ação antiepiléptica devido ao seu papel na mitocôndria. Nesse cenário, as evidências da atuação da dieta cetogênica na disfunção mitocondrial, como ocorre na epilepsia, são muitas e demonstram claramente efeitos benéficos dessa terapêutica.

Estudos posteriores tornam-se necessários, a fim de melhor compreender os mecanismos subjacentes, possibilitando um tratamento dietético otimizado, ma- ximizando a eficácia e minimizando os efeitos colaterais desse tratamento dietético.

Received Apr. 28, 2011; accepted May 20, 2011

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Aceito
      20 Maio 2011
    • Recebido
      28 Abr 2011
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