Acessibilidade / Reportar erro

Adesão à antibioticoterapia profilática em crianças com anemia falciforme: um estudo prospectivo

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a adesão a antibiótico profilático em crianças com anemia falciforme. MÉTODOS: Estudo prospectivo de 108 crianças (idade entre 3 meses e 4,5 anos, 45% masculino) seguidas por 15 meses no Hemocentro de Belo Horizonte. Avaliou-se a adesão por meio de três entrevistas com cuidadores, análise de prontuário médico e atividade antibacteriana em uma amostra de urina em 81 crianças. Os antibióticos foram dispensados gratuitamente. RESULTADOS: Penicilina foi usada em 106 casos (maioria via oral), e eritromicina, dois casos. O antibiótico foi detectado na urina de 56% das crianças; 48% dos cuidadores afirmaram nas entrevistas que nenhuma dose deixou de ser administrada; em 89% dos prontuários médicos, não se registrou falha de adesão. Considerando-se aderente a criança que não apresentasse falhas em nenhum ou em apenas um dos métodos, a taxa de adesão foi de 67%. O grau de concordância entre os três métodos para medir a adesão foi baixo. Não se demonstrou qualquer associação entre a taxa de adesão e o gênero, estado nutricional, renda familiar per capita, nível educacional dos cuidadores ou número de membros da família. CONCLUSÕES: A taxa de adesão à antibioticoterapia profilática foi baixa quando avaliada por meio de questionários e testes urinários, e superestimada quando avaliada pela consulta ao prontuário médico. A adesão deve ser preferencialmente avaliada por vários métodos, pois sua mensuração é complexa. Os resultados do presente estudo sugerem a necessidade de programas educacionais abrangentes para os profissionais de saúde, para as famílias e crianças portadoras de anemia falciforme.

Anemia falciforme; antibioticoprofilaxia; recusa do paciente ao tratamento; fidelidade a diretrizes; penicilina V


OBJECTIVE: To prospectively assess compliance with antibiotic prophylaxis among children with sickle cell anemia. METHODS: A total of 108 children (aged 3 months to 4½ years, 45% male) were recruited from the Hematology Center in Belo Horizonte, Brazil, and followed up for 15 months. Data on compliance were obtained from three interviews with the primary caregivers, from the children's medical records and from assay of antibacterial activity in urine samples of 81 children. Antibiotics were available free of charge. RESULTS: Penicillin was used in 106 cases (majority by oral route); erythromycin in 2 cases. Urine samples tested positive for the antibiotic in 56% of the cases; 48% of the caregivers assured during interviews that all doses had been administered to children; 89% of medical files recorded no compliance failures. Considering a child compliant if none or just one of these methods detected missing doses, the rate of compliance was 67%. The agreement between methods for assigning a child as compliant or not was low. No significant association of compliance rate with gender, nutritional status, per capita income of the family, caregivers' schooling, or number of family members was demonstrated. CONCLUSIONS: Compliance rate with prophylactic antibiotic therapy was low when assessed by interviews and urine tests; and overestimated by analysis of medical records. Compliance should preferably be assessed by several methods due to the complex character of its measurement. The results of the present study suggest a need for a comprehensive educational program involving healthcare professionals, families and children with sickle cell anemia.

Sickle cell anemia; antibiotic prophylaxis; treatment refusal; guideline adherence; penicillin V


ARTIGO ORIGINAL

Adesão à antibioticoterapia profilática em crianças com anemia falciforme: um estudo prospectivo

Enio Latini BitarãesI; Benigna Maria de OliveiraII; Marcos Borato VianaIII

IMestre. Enfermeiro. Preceptor, Fundação Mineira de Educação e Cultura - Faculdade de Ciências da Saúde (FUMEC-FCS), Belo Horizonte, MG

IIDoutora. Professora adjunta, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG

IIIDoutor. Professor titular, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, UFMG, Belo Horizonte, MG

Correspondência Correspondência:Marcos Borato Viana Faculdade de Medicina - Departamento de Pediatria Universidade Federal de Minas Gerais Av. Alfredo Balena, 190/267 CEP 30130-100 - Belo Horizonte, MG Tel.: (31) 3409.9772 Fax: (31) 3409.9770 Email: vianamb@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO:

MÉTODOS: Estudo prospectivo de 108 crianças (idade entre 3 meses e 4,5 anos, 45% masculino) seguidas por 15 meses no Hemocentro de Belo Horizonte. Avaliou-se a adesão por meio de três entrevistas com cuidadores, análise de prontuário médico e atividade antibacteriana em uma amostra de urina em 81 crianças. Os antibióticos foram dispensados gratuitamente.

RESULTADOS: Penicilina foi usada em 106 casos (maioria via oral), e eritromicina, dois casos. O antibiótico foi detectado na urina de 56% das crianças; 48% dos cuidadores afirmaram nas entrevistas que nenhuma dose deixou de ser administrada; em 89% dos prontuários médicos, não se registrou falha de adesão. Considerando-se aderente a criança que não apresentasse falhas em nenhum ou em apenas um dos métodos, a taxa de adesão foi de 67%. O grau de concordância entre os três métodos para medir a adesão foi baixo. Não se demonstrou qualquer associação entre a taxa de adesão e o gênero, estado nutricional, renda familiar per capita, nível educacional dos cuidadores ou número de membros da família.

CONCLUSÕES: A taxa de adesão à antibioticoterapia profilática foi baixa quando avaliada por meio de questionários e testes urinários, e superestimada quando avaliada pela consulta ao prontuário médico. A adesão deve ser preferencialmente avaliada por vários métodos, pois sua mensuração é complexa. Os resultados do presente estudo sugerem a necessidade de programas educacionais abrangentes para os profissionais de saúde, para as famílias e crianças portadoras de anemia falciforme.

Palavras-chave: Anemia falciforme, antibioticoprofilaxia, recusa do paciente ao tratamento, fidelidade a diretrizes, penicilina V.

Introdução

A anemia falciforme (AF) é uma doença hereditária para a qual não existe tratamento específico e, portanto, a abordagem para diminuir a mortalidade e a morbidade da doença deve basear-se no diagnóstico precoce através da triagem neonatal, na prevenção de complicações e no acompanhamento multiprofissional1. As infecções graves, como pneumonia, sepse e meningite, constituem a principal causa de morte entre as crianças com AF no grupo etário de 0 a 5 anos. A prevenção dessas infecções, sobretudo pelo Streptococcus pneumoniae, se faz pelo uso de penicilina a partir dos 3-4 meses até os 5 anos de idade2-4.

A adesão ao tratamento antibiótico profilático, por parte dos pais ou cuidadores, constitui-se em um grande desafio e cabe aos profissionais de saúde compreender bem o processo de adesão, considerando-o como parte integrante do tratamento5-7.

Muitas mortes, sofrimento, hospitalizações e gastos desnecessários com saúde poderiam ser evitados se os profissionais de saúde estivessem atentos e instrumentalizados para identificar a não-adesão à profilaxia antibiótica como causa das infecções graves nas crianças com AF.

A adesão ao tratamento não pode ser considerada um processo simples que inicia com a prescrição do profissional e termina com a aquiescência do paciente e/ou seu(s) cuidador(es) à prescrição feita, pois vários fatores socioeconômicos, culturais e de comportamento influenciam esse processo, o que torna a adesão difícil de ser medida apenas por métodos objetivos8,9.

O objetivo deste estudo foi avaliar a adesão à antibioticoterapia profilática em crianças portadoras de AF.

Métodos

A população estudada constituiu-se de crianças diagnosticadas pelo Programa Estadual de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PETN-MG), portadoras de AF (Hb SS), seguidas no Hemocentro de Belo Horizonte (HBH), com idade entre 3 e 54 meses e em uso de antibiótico profilático (penicilina V oral, penicilina benzatina ou eritromicina) de acordo com o protocolo da Fundação Hemominas. O recrutamento das famílias ocorreu entre janeiro e abril de 2005 quando da consulta rotineira já agendada para a criança. Foram convidadas a participar deste estudo prospectivo 125 famílias que correspondiam a 128 crianças (três famílias com dois irmãos); uma família recusou-se a assinar o termo de consentimento. Esse total representa cerca de 2/3 de todas as crianças com AF elegíveis para o estudo; o restante não tinha consulta marcada para o período de recrutamento ou não compareceu à consulta agendada. Das 127 crianças incluídas inicialmente no estudo, 19 foram excluídas: 12 por perda precoce de seguimento, duas por transferência de local de atendimento, uma porque o diagnóstico era de Sβ0-talassemia e quatro por óbito logo no início do estudo, daí resultando 108 crianças.

Três métodos foram utilizados para avaliar a adesão: entrevistas nas quais se seguia um roteiro na forma de questionário, anotações em prontuários médicos e testes de atividade antibiótica na urina.

Foi aplicado um questionário a cada cuidador à época das consultas médicas, por três vezes: uma no recrutamento do estudo, outra em data intermediária e a última no fim do estudo. Setenta por cento das entrevistas foram realizadas por um dos pesquisadores (ELB), e as demais, por dois acadêmicos de enfermagem treinados por ele. O intervalo entre as consultas foi de 2 a 6 meses, dependendo do agendamento habitual e do comparecimento da família à consulta programada. O período do estudo para que todas as famílias fossem entrevistadas por três vezes estendeu-se de janeiro de 2005 a abril de 2006. As perguntas durante a entrevista referiam-se a medicamentos utilizados pela criança no momento da aplicação do questionário; freqüência da utilização das doses; existência de um responsável pela administração da medicação; regularidade dos horários de administração da medicação; número de vezes em que a medicação não foi administrada e a justificativa; dificuldades encontradas para a administração da medicação; entendimento das orientações médicas; e se o cuidador havia recebido orientação de outros profissionais em relação à ingestão de medicamentos. Todos os pacientes tiveram acesso gratuito ao antibiótico.

A avaliação da adesão por meio de pesquisa nos prontuários médicos foi realizada nas mesmas datas da aplicação dos questionários e relacionavam-se à resposta que os cuidadores forneciam ao médico assistente sobre pergunta contida no impresso de consulta médica relativa ao uso regular, irregular ou não uso da medicação.

Para a avaliação da adesão através da verificação de atividade antibiótica na urina, foi solicitada a todos os cuidadores uma amostra de urina de cada criança durante o período do estudo. A coleta da urina era realizada no próprio hemocentro após aplicação do questionário, caso, como parte da entrevista, o cuidador houvesse informado ter administrado a penicilina via oral naquela manhã ou se já houvesse transcorrido de 1 a 7 dias da administração da penicilina benzatina. Muitos cuidadores informavam que, naquela manhã, não haviam administrado a penicilina oral devido aos preparativos para a ida ao hemocentro. Nesse caso, ao final da entrevista, era fornecido ao cuidador material e orientações necessárias à coleta de urina domiciliar em papel-filtro e o envio pelos correios. Os horários para a coleta domiciliar foram estabelecidos por escrito, de acordo com as informações obtidas dos questionários relativas aos horários em que a criança recebia o antibiótico via oral, sem que o cuidador percebesse que havia um nexo entre a administração do antibiótico e o horário de coleta da urina. Solicitava-se, para as crianças que tinham controle esfincteriano, que a coleta de urina fosse feita entre 1 e 2 horas após o horário informado pela mãe como o de administração habitual do antibiótico. Para as crianças sem controle esfincteriano, era fornecido coletor urinário que era mantido por 1,5 horas, a partir de 30 minutos do horário habitual de administração do antibiótico. A coleta poderia ser realizada nos dias subseqüentes até se conseguir uma amostra de urina dentro dos critérios orientados. Para as crianças que recebiam penicilina via intramuscular e iriam colher a urina em domicílio, eram observados os prazos assinalados para a coleta no Hemocentro. Todo material necessário à coleta foi fornecido ao cuidador, como envelopes selados, envelope pequeno de papel grau cirúrgico contendo uma fita de papel-filtro com indicação da extremidade a ser introduzida na urina e coletores urinários.

Nenhum cuidado especial de armazenagem foi dispensado aos envelopes recebidos pelos correios. Os testes de atividade antibiótica, porém, eram realizados somente quando recebidos até 7 dias após a postagem.

Os reais objetivos da coleta de amostra de urina não eram revelados aos cuidadores para que não houvesse interferência no padrão de adesão das crianças. Apenas informava-se tratar de um exame rotineiro de urina.

A técnica de verificação de atividade antibiótica na urina foi disco-difusão em ágar utilizando uma bactéria altamente sensível à penicilina e à eritromicina. Os testes eram considerados positivos quando havia formação de um halo de inibição em torno do fragmento de papel-filtro embebido em urina10-12.

A situação socioeconômica e familiar foi avaliada por pesquisa na ficha social dos prontuários das crianças. Os dados pesquisados foram renda familiar, número de pessoas no grupo familiar e escolaridade do cuidador.

O estado nutricional foi avaliado pelos escores z da estatura para a idade (HAZ) e peso para a estatura (WHZ), considerando-se o peso e estatura no momento da entrada da criança no estudo. A população de referência foi a padronizada pelo National Center for Health Statistics (CDC, 2000)13.

Para a análise das falhas na adesão, Tabelas de freqüências foram construídas para caracterizar a distribuição das variáveis categóricas. Na análise, cada uma das 108 crianças foi considerada como um caso, independente de pertencer à mesma família (três pares de irmãos). Eventuais associações entre essas variáveis foram analisadas com o teste exato de Fisher (Tabelas 2 x 2) e o qui-quadrado de tendência para as Tabelas 3 x 3 quando havia gradação da variável, como número de membros da família, escolaridade do cuidador, etc. O teste não-paramétrico de Mann-Whitney foi utilizado para comparar os grupos com boa ou má adesão em relação à variável cuja distribuição pelo teste de Kolmogorov-Smirnov mostrou-se não normal, tais como a idade e a renda familiar per capita. De forma semelhante, o teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis foi utilizado quando a variável de adesão possuía três níveis, como o número de vezes em que o paciente não havia ingerido o antibiótico.

A adesão final foi avaliada por meio de uma variável que englobou os três métodos utilizados. Foram consideradas aderentes as crianças sem falhas de adesão pelos três métodos ou falhas apenas em um dos métodos e, alternativamente, não-aderentes aquelas que apresentaram evidências de não-adesão em dois ou nos três métodos. Foi estabelecido que uma associação seria considerada estatisticamente significativa quando p < 0,05.

A autorização para a participação foi obtida por meio de assinatura dos pais ou responsáveis de um termo de consentimento. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hemominas em 09/11/04, registro número 116.

Resultados

Das 108 crianças analisadas, 49 eram do sexo masculino (45,4%) e 59 do sexo feminino (54,6%). A mediana de idade à primeira entrevista foi de 25,3 meses. A renda per capita das famílias variou de 0 a 3,06 salários-mínimos mensais (percentil 25: 0,23; mediana: 0,33; percentil 75: 0,53).

Houve 34 famílias com dois ou três membros (31,5%), 45 com quatro ou cinco membros (41,6%) e 29 com seis ou mais membros (26,9%). A mãe apareceu como cuidadora principal de 102 crianças (94,4%).

Quanto à escolaridade do cuidador, 65 não haviam completado o ensino fundamental (60%), 25 tinham ensino fundamental completo ou ensino médio incompleto (23%) e 16 tinham ensino médio completo (15%). Apenas um cuidador era analfabeto e outro tinha ensino superior completo.

À primeira entrevista, 26 crianças (24,1%) foram consideradas desnutridas pelo índice antropométrico WHZ e 13,9% pelo índice HAZ.

Eritromicina foi prescrita em dois casos (2%); penicilina benzatina em 11 (10%), penicilina V oral em 82 (76%) e alternada com a benzatina nos 13 restantes (12%).

A Figura 1 apresenta os resultados quando, consideradas as três entrevistas realizadas, os cuidadores foram perguntados sobre o número de vezes em que o antibiótico deixou de ser administrado. Mais da metade (52%) admitiu que, pelo menos uma vez, a dose de antibiótico havia sido omitida.


Quanto ao conhecimento sobre os medicamentos usados pela criança, respostas imprecisas apareceram em 13 entrevistas; 11 cuidadores não sabiam dizer o nome "penicilina" ou algo que pudesse sugerir tratar-se de penicilina e dois dos cuidadores ignoravam completamente o uso de algum antibiótico. Quanto ao entendimento das orientações médicas sobre o uso de profilaxia antibiótica, apenas três cuidadores relataram falta de compreensão nas primeiras entrevistas e, a partir daí, melhor entendimento.

Ao ser perguntado na entrevista se algum outro profissional de saúde, além do médico assistente, havia fornecido alguma orientação sobre como administrar a penicilina, a referência à enfermagem realizando esta tarefa apareceu em entrevistas de apenas nove crianças.

Em 96 crianças (89%), não teriam ocorrido falhas na administração do antibiótico, de acordo com as anotações do prontuário médico, consultadas retrospectivamente.

Das 108 crianças estudadas, 81 forneceram urina para testes de atividade antibiótica: 36 (44%) foram negativas e 45 (56%) positivas para a presença de antibiótico. Das 81 amostras, apenas 11 foram colhidas no momento da entrevista, quando a mãe afirmou ter administrado o antibiótico via oral naquela manhã ou a penicilina benzatina nos últimos 7 dias. Tiveram resultados positivos cinco daquelas amostras (45,5%). Das 70 amostras enviadas via correios, 40 foram positivas (57%).

Considerando-se aderente a criança que não apresentasse falhas em nenhum ou em apenas um dos métodos utilizados, a taxa de adesão foi de 67% (72/108). O grau de concordância entre os três métodos para medir a adesão foi baixo (Tabelas 1-3).

Nenhuma associação significativa foi encontrada entre adesão e o nível de escolaridade dos cuidadores, estado nutricional das crianças, gênero, idade, número de membros da família e renda familiar per capita.

Discussão

A adesão é um processo multifacetado que envolve o comportamento das pessoas em relação ao seu tratamento e pode sofrer influência do(s) método(s) utilizado(s) para medi-la, do local onde é estudada e da definição adotada para "boa adesão"5.

O número de crianças incluídas nesta casuística (n = 108) foi superior ao da maioria dos estudos com objetivos semelhantes14-19. Todas elas provinham do PETN-MG e foram acompanhadas no HBH, o que possibilitou uma uniformidade da amostra.

A aplicação de questionários aos cuidadores é um método bastante utilizado na prática clínica e de fácil utilização. Mesmo não sendo capaz de avaliar a adesão com maior precisão, eles são úteis para conhecer os padrões de falhas na adesão e de, pelo menos, iniciar uma discussão com os cuidadores sobre o tema20, como ocorreu no presente estudo. Por sua natureza "inquisitória", o método pode superestimar as taxas de adesão, o que é provável no presente estudo e também foi verificado em pesquisa brasileira sobre adesão em crianças com asma21.

Esquecer-se da medicação foi o principal motivo alegado pelos cuidadores para a omissão de doses do antibiótico, como constatado em estudos de crianças com leucemia linfoblástica realizados pelos autores22,23. A maioria dos cuidadores relatou que entendia bem as informações fornecidas pelos médicos sobre as condições de saúde das crianças. Observou-se, entretanto, que os cuidadores se preocupavam mais com questões relacionadas à doença do que com os antibióticos profiláticos.

O método de pesquisa nos prontuários médicos revelou que quase 90% das crianças estariam em uso regular do antibiótico profilático, o que contrasta fortemente com os dados obtidos nas entrevistas e nos testes de avaliação da presença de antibiótico na urina. Isso corrobora a opinião de que estimativas feitas pelos médicos devam ser consideradas um método impreciso para avaliar a adesão21,24.

A proporção de testes negativos de atividade antibiótica na urina foi de 44%, semelhante à encontrada por outros autores4,14,15. Foi possível demonstrar que a coleta domiciliar de amostra de urina em papel-filtro, que então é enviado pelos correios, é um método viável e prático para avaliar a adesão à antibioticoterapia em estudo prolongado que preveja a coleta de várias amostras de cada paciente.

A discrepância de resultados entre os três métodos utilizados neste estudo foi também observada por outros investigadores15,17.

De forma análoga com a literatura, também não foi constatada nenhuma associação significativa entre adesão, gênero, escolaridade do cuidador, número de pessoas no ambiente familiar, estado nutricional ou renda familiar per capita. No Brasil, em crianças com leucemia linfoblástica, foi observada associação estatisticamente significativa entre adesão e desnutrição, esta provavelmente ligada à condição socioeconômica22.

Esses achados confirmam que a avaliação da adesão é um processo complexo e que esta dificilmente pode ser quantificada de forma precisa, seja por métodos diretos ou indiretos. Entre aqueles, citam-se a observação direta do paciente tomando a medicação, impraticável para uso rotineiro, e aferição dos níveis sangüíneos ou urinários do próprio medicamento ou de marcador biológico associado. Entre os indiretos, citam-se questionários e entrevistas, contagem manual ou eletrônica de pílulas, registros de dispensação pela farmácia, avaliação da resposta clínica ou dos efeitos fisiológicos da droga e diários feitos pelos pacientes25. A utilização exclusiva de métodos considerados objetivos é insuficiente para que se faça uma abordagem ampla do problema. A preocupação dos profissionais e de muitos pesquisadores está, muitas vezes, centrada em medir a extensão da adesão por meio de medidas consideradas objetivas e, então, associar o grau de adesão com fatores que poderiam facilitar ou dificultar a mesma. Essa forma de abordar a adesão, também adotada no presente estudo, tende a desconsiderar aspectos importantes, como as várias fontes de informações às quais os pacientes têm acesso, as informações fornecidas pelos profissionais de saúde, a influência da mídia e do comportamento do grupo familiar, que fazem da adesão um processo ativo e intencional4,26-28.

Finalmente, é importante questionar-se qual seria o nível adequado de adesão ao uso da penicilina para se obter uma prevenção adequada das infecções graves nas crianças com AF. A literatura não apresenta resposta clara para essa questão, nem para o caso da AF, nem para a maioria de outras doenças nas quais a profilaxia com antibióticos está indicada. Já se demonstrou que o consumo de mais 33% de penicilina reduziu o risco de febre reumática recorrente, e a ingestão de 88% de anti-hipertensivos foi suficiente para manter o controle da pressão arterial20. A metodologia empregada no presente estudo não permitiu a abordagem desse aspecto, pois seriam necessários o registro sistemático dos episódios infecciosos, sua gravidade e sua provável etiologia e, também, métodos ou técnicas que avaliassem a adesão em uma escala contínua ou, no mínimo, com várias categorias crescentes ou decrescentes que refletissem o grau de adesão.

O uso preferencial de penicilina benzatina intramuscular a cada 3 semanas em lugar da formulação oral diária coloca-se como uma alternativa que, aparentemente, poderia melhorar a adesão. Devido ao número limitado de crianças no presente estudo que utilizaram a penicilina benzatina, não foi possível comparação válida. Além de ser muitas vezes rejeitada pelas crianças e familiares por ser dolorosa, tal alternativa exigiria comprovação empírica de maior adesão do que a formulação oral em crianças com AF, nas quais episódios vaso-oclusivos dolorosos fazem parte do quadro clínico habitual.

Em conclusão, o problema da "não adesão" ao tratamento apresenta-se como um desafio para os profissionais de saúde. De acordo com a literatura e com os resultados deste estudo, até o momento nenhum método se mostrou completamente confiável para a avaliação da adesão. No entanto, a investigação da adesão, à luz de métodos diretos e/ou indiretos, como a realizada nesta pesquisa, se justifica. O trabalho desenvolvido contribuiu para a construção de um conhecimento a respeito da população estudada e seu comportamento e, também, sobre as características da assistência prestada na instituição. As informações obtidas sobre os vários aspectos relacionados à adesão, em um grupo de pacientes portadores de uma doença crônica e de caráter familiar, poderão ser utilizadas em benefício dos pacientes e suas famílias, assim como poderão contribuir para o aprimoramento da equipe de saúde envolvida na assistência. O estabelecimento de novos protocolos de atendimento, a melhoria da relação médico-família/criança, a sistematização da assistência de enfermagem, de assistência social e de outros profissionais, e a colaboração no planejamento e realização de programas educativos para os profissionais de saúde, para os pais, cuidadores e professores das escolas freqüentadas pelas crianças são atividades que, seguramente, redundarão na melhor qualidade da atenção à criança com AF.

Agradecimentos

Agradecemos aos servidores administrativos e profissionais de saúde do ambulatório da Fundação Hemominas/HBH. Nossos agradecimentos especiais aos acadêmicos da UFMG Ed Wilson, Fabiano Wendel, Marcos Vinicius Figueiredo e Stefânia Barros e à Dra. Mitiko Murao, pela ajuda prestada em fases variadas do estudo.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Artigo submetido em 14.04.08, aceito em 28.05.08.

Como citar este artigo: Bitarães EL, de Oliveira BM, Viana MB. Compliance with antibiotic prophylaxis in children with sickle cell anemia: a prospective study. J Pediatr (Rio J). 2008;84(4):316-322.

  • 1
    Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Manual de diagnóstico e tratamento de doenças falciformes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2002.
  • 2. Zarkowsky HS, Gallagher D, Gill FM, Wang WC, Falletta JM, Lande WM, et al. Bacteremia in sickle hemoglobinopathies. J Pediatr. 1986;109:579-85.
  • 3. Gaston MH, Verter JI, Woods G, Pegelow C, Kelleher J, Presbury G, et al. Prophylaxis with oral penicillin in children with sickle cell anemia. A randomized trial. N Engl J Med. 1986;314:1593-9.
  • 4. Pegelow CH, Armstrong FD, Light S, Toledano SR, Davis J. Experience with the use of prophylactic penicillin in children with sickle cell anemia. J Pediatr. 1991;118:736-8.
  • 5. Matsui DM. Drug compliance in pediatrics. Clinical and research issues. Pediatr Clin North Am. 1997;44:1-14.
  • 6. Wright EC. Non-compliance-or how many aunts has Matilda? Lancet. 1993;342:909-13.
  • 7. Day S, Brunson G, Wang W. A successful education program for parents of infants with newly diagnosed sickle cell disease. J Pediatr Nurs. 1992;7:52-7.
  • 8. La Greca AM. Issues in adherence with pediatric regimens. J Pediatr Psychol. 1990;15:423-36.
  • 9. Conrad P. The meaning of medications: another look at compliance. Soc Sci Med. 1985;20:29-37.
  • 10. Charney E, Bynum R, Eldredge D, Frank D, MacWhinney JB, McNabb N, et al. How well do patients take oral penicillin? A collaborative study in private practice. Pediatrics. 1967;40:188-95.
  • 11. Bergman AB, Werner RJ. Failure of children to receive penicillin by mouth. N Engl J Med. 1963;268:1334-8.
  • 12. Markowitz M, Gordis L. A mail-in technique for detecting penicillin in urine: application to the study of maintenance of prophylaxis in rheumatic fever patients. Pediatrics. 1968;41:151-3.
  • 13. Dean AG, Arner TG, Sunki GG, Friedman R, Lantinga M, Sangam S, et al. Epi InfoTM. A database and statistics program for public health professionals. Atlanta, GA: Centers for Disease Control and Prevention; 2002.
  • 14. Teach SJ, Lillis KA, Grossi M. Compliance with penicillin prophylaxis in patients with sickle cell disease. Arch Pediatr Adolesc Med. 1998;152:274-8.
  • 15. Cummins D, Heuschkel R, Davies SC. Penicillin prophylaxis in children with sickle cell disease in Brent. BMJ. 1991;302:989-90.
  • 16. Berkovitch M, Papadouris D, Shaw D, Onuaha N, Dias C, Olivieri NF. Trying to improve compliance with prophylactic penicillin therapy in children with sickle cell disease. Br J Clin Pharmacol. 1998;45:605-7.
  • 17. Elliott V, Morgan S, Day S, Mollerup LS, Wang W. Parental health beliefs and compliance with prophylactic penicillin administration in children with sickle cell disease. J Pediatr Hematol Oncol. 2001;23:112-6.
  • 18. Buchanan GR, Siegel JD, Smith SJ, De Passe BM. Oral penicillin prophylaxis in children with impaired splenic function: a study of compliance. Pediatrics. 1982;70:926-30.
  • 19. Babiker MA. Compliance with penicillin prophylaxis by children with impaired splenic function. Trop Geogr Med. 1986;38:119-22.
  • 20. Steiner JF, Earnest MA. The language of medication-taking. Ann Intern Med. 2000;132:926-30.
  • 21. Lasmar LM, Camargos PA, Costa LF, Fonseca MT, Fontes MJ, Ibiapina CC, et al. Compliance with inhaled corticosteroid treatment: rates reported by guardians and measured by the pharmacy. J Pediatr (Rio J). 2007;83:471-6.
  • 22. de Oliveira BM, Viana MB, Zani CL, Romanha AJ. Clinical and laboratory evaluation of compliance in acute lymphoblastic leukaemia. Arch Dis Child. 2004;89:785-8.
  • 23. de Oliveira BM, Viana MB, Arruda LM, Ybarra MI, Romanha AJ. Avaliação da adesão ao tratamento através de questionários: estudo prospectivo de 73 crianças portadoras de leucemia linfoblástica aguda. J Pediatr (Rio J). 2005;81:245-50.
  • 24. Tebbi CK. Treatment compliance in childhood and adolescence. Cancer. 1993;71:3441-9.
  • 25. Osterberg L, Blaschke T. Adherence to medication. N Engl J Med. 2005;353:487-97.
  • 26. Leite SN, Vasconcellos MP. Adesão à terapêutica medicamentosa: elementos para a discussão de conceitos e pressupostos adotados na literatura. Cienc Saude Coletiva. 2003;8:775-82.
  • 27. Shope JT. Medication compliance. Pediatr Clin North Am. 1981;28:5-21.
  • 28. Di Matteo MR. The role of effective communication with children and their families in fostering adherence to pediatric regimens. Patient Educ Couns. 2004;55:339-44.
  • Correspondência:

    Marcos Borato Viana
    Faculdade de Medicina - Departamento de Pediatria
    Universidade Federal de Minas Gerais
    Av. Alfredo Balena, 190/267
    CEP 30130-100 - Belo Horizonte, MG
    Tel.: (31) 3409.9772
    Fax: (31) 3409.9770
    Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Recebido
      14 Abr 2008
    • Aceito
      28 Maio 2008
    Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jped@jped.com.br