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Aleitamento materno e pneumonia em crianças no Brasil: o valor de sistemas eletrônicos de informação e vigilância

EDITORIAL

Aleitamento materno e pneumonia em crianças no Brasil: o valor de sistemas eletrônicos de informação e vigilância

Rafael Pérez-EscamillaI; Rodrigo P. T. ViannaII

IProfessor, Epidemiology and Public Health, Director, Office of Community Health, School of Public Health, Yale University, New Haven, CT, EUA.

IIPhD in Epidemiology, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB. School of Public Health, Yale University, New Haven, CT, EUA.

Correspondência Correspondência: Rafael Perez-Escamilla, PhD Yale School of Public Health 135 College Street, Suite 200 06510 - New Haven, CT - EUA Tel.: +1 (203) 737-5882 Fax: +1 (203) 737-4591 E-mail: rafael.perez-escamilla@yale.edu

Recomenda-se o leite materno como o primeiro alimento para crianças, e ele deve ser iniciado imediatamente após o parto. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o leite materno deve ser o único alimento dado a crianças durante os primeiros 6 meses de vida; após a introdução de alimentos complementares, o aleitamento materno deve ser mantido até que a criança complete pelo menos 2 anos de idade. Essas recomendações são embasadas em inúmeros estudos que demonstram vantagens importantes do aleitamento materno em relação às fórmulas infantis, não só para a criança, mas também para a mãe, a família e a sociedade. Assim, acredita-se que o aleitamento materno economiza dinheiro para o setor da saúde e melhora a qualidade de vida da população.

Nas últimas três décadas, o Brasil demonstrou grandes avanços no aumento da exclusividade e duração do aleitamento materno1 e na saúde das crianças, incluindo redução na mortalidade infantil2. É importante destacar que essas grandes melhorias aconteceram em parte devido ao grande apoio e abertura do governo brasileiro para o desenvolvimento de políticas e programas de saúde e de nutrição materno-infantis baseados em evidência.

De fato, estudos epidemiológicos fundamentais foram conduzidos no Brasil nas últimas quatro décadas. Especificamente, estudos longitudinais identificaram fatores de risco para práticas subótimas de alimentação infantil3, bem como os benefícios e a relação custo-efetividade do aleitamento materno4. Estudos caso-controle também contribuíram para esse conjunto de evidências5. Embora não haja tantos estudos randomizados controlados disponíveis, devido aos seus custos e complexidade, estudos quase-experimentais contribuíram sobremaneira para o entendimento de qual a melhor forma de promover o aleitamento materno no Brasil, tanto em hospitais como em comunidades6,7.

Outros estudos já publicados não examinaram o potencial impacto do aleitamento materno na melhora de desfechos de saúde em crianças em nível municipal no Brasil. Portanto, o estudo de Boccolini et al., intitulado "O papel do aleitamento materno na redução das hospitalizações por pneumonia em crianças brasileiras menores de 1 ano"8 e que se encontra neste número do Jornal de Pediatria, é uma contribuição bem-vinda. Os autores conduziram uma análise multivariada de dados secundários em nível municipal com base em um desenho ecológico e demonstraram que tanto o aleitamento materno exclusivo entre crianças menores de 6 meses e o aleitamento materno entre crianças com 9 a 12 meses estão associados a uma redução significativa do risco de hospitalização por pneumonia entre crianças com menos de 1 ano de vida. É interessante notar que, conforme o estudo citado, o benefício máximo em termos de hospitalização por pneumonia pode ser obtido quando ambas as condições de aleitamento materno estão presentes (a saber, aleitamento materno exclusivo e duração adequada do aleitamento materno). Em resumo, o estudo confirma que o aleitamento materno é inversamente associado ao risco de hospitalização por pneumonia durante a infância em nível municipal no Brasil.

O estudo de Boccolini et al. demonstra a utilidade de investimentos em sistemas eletrônicos nacionais de informações sobre vigilância e administração para identificar necessidades de forma oportuna e para entender as oportunidades de investimento em programas custo-efetivos de saúde materno-infantil. De fato, o Brasil desenvolveu um grande sistema de informação de saúde, o DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde). Esse sistema coleta dados populacionais sobre morbidade e mortalidade e as disponibiliza a vários públicos, inclusive pesquisadores. O estudo também usou dados socioeconômicos (nesse caso, o índice de Gini) coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados sobre a prevalência de tabagismo foram obtidos de um sistema nacional de vigilância por inquérito telefônico. Finalmente, os dados sobre aleitamento materno foram coletados via pesquisas realizadas durante campanhas nacionais de imunização. Portanto, o estudo se constituiu a partir de múltiplas fontes eletrônicas de dados, uma abordagem que propicia, de fato, uma vigilância oportuna dos desfechos de saúde materno-infantil e de seus fatores de riscos.

É importante reconhecer a necessidade de minimizar vieses nas inferências feitas a partir de estudos ecológicos. Atenção especial deve ser dada à sub ou supernotificação dos desfechos de doença e/ou aos fatores de risco correspondentes e à consistência das medidas e dos critérios diagnósticos utilizados ao longo do tempo (por exemplo, pneumonia, aleitamento materno exclusivo). Também é essencial que os pesquisadores entendam as variações dos métodos de amostragem em diferentes pesquisas e os possíveis vieses associados aos diferentes métodos utilizados. Por exemplo, como Boccolini et al. indicam, o fato de que os dados sobre tabagismo foram coletados via linhas telefônicas fixas pode significar que a amostra não é verdadeiramente representativa das populações brasileiras de todas as regiões. Da mesma forma, embora os dados sobre pneumonia obtidos do DATASUS não incluam crianças registradas em planos de saúde privados, essas crianças estão incluídas nos dados sobre aleitamento materno derivados de campanhas de imunização. Como essas crianças apresentam uma prevalência maior de aleitamento materno exclusivo, a relação desse comportamento alimentar infantil com a prevenção da hospitalização por pneumonia pode ter sofrido viés. Para melhorar o poder explicativo dos dados coletados nas pesquisas brasileiras, é importante considerar tecnologias de informação inovadoras, como geocodificação, e variáveis ambientais (por exemplo, temperatura ambiente e umidade).

O estudo de Boccolini et al. provoca duas reflexões. Primeiro, embora a relação entre aleitamento materno e pneumonia já houvesse sido relatada anteriormente, o fato de que esse estudo confirma a relação usando uma análise em nível municipal no Brasil tem grandes implicações em termos de políticas públicas. Estudos bem concebidos de menor escala com controle para fatores de confusão, seja estatisticamente ou pelo desenho experimental, foram determinantes no sentido de reforçar as inferências causais, explicando a relação de interesse. Os achados apresentados por Boccolini et al. não só complementam tais estudos prévios, mas sua característica de "dados do mundo real" também poderá vir a gerar um interesse substancial por parte de tomadores de decisão. Em segundo lugar, o uso de dados provenientes de diferentes atividades de vigilância no Brasil é um ponto forte do estudo. Contudo, é importante reconhecer que o valor da informação depende da qualidade da fonte dos dados. O fato de que as associações entre pneumonia e as variáveis independentes tomaram as direções esperadas sugere que os dados usados nessa instância eram cientificamente válidos. Pelo fato de a abordagem utilizada por Boccolini et al. poder (e dever) ser estendida para entender diferentes desfechos de saúde materno-infantil e seus fatores de riscos correspondentes de forma contínua, é importante que o Brasil considere o estabelecimento de um sistema nacional de vigilância em saúde e nutrição materno-infantil análogo ao modelo proposto nos EUA9. Um sistema nacional de informação bem coordenado, constituído de inúmeras atividades relacionadas a inquéritos, vigilância e pesquisa, pode realmente facilitar a implementação e a coordenação de medidas de controle da qualidade dos dados, identificar o tipo de dado que precisa ser coletado, evitando redundâncias, e facilitar o cruzamento de dados de diferentes iniciativas de pesquisa e vigilância, talvez até em nível individual. Claro que isso só pode ocorrer se houver recursos financeiros, técnicos e científicos adequados à disposição.

O estudo de Boccolini et al. merece ser disseminado entre tomadores de decisão na área da saúde materno-infantil no Brasil, nos demais países da América Latina e também no Caribe. O estudo claramente mostra a necessidade de reforçar a promoção, o apoio e a proteção do aleitamento materno em municípios do Brasil. Para esse fim, é necessário levar em consideração o código da OMS para a compra e venda ética de substitutos do leite materno e a Iniciativa Hospital Amigo da Criança6, que foi agora ampliada para o nível comunitário10. O aconselhamento sobre aleitamento materno em nível hospitalar e comunitário tem demonstrado um aumento na iniciação, duração e exclusividade do aleitamento materno em diferentes regiões do mundo, independentemente do nível de desenvolvimento econômico7. Com relação ao código da OMS, a experiência brasileira sugere fortemente que proteger a população da compra e venda não ética de substitutos do leite materno é, de fato, uma medida importante para o aumento da duração do aleitamento materno11. Apesar dos grandes avanços na promoção do aleitamento materno no Brasil, é importante responder às necessidades de apoio ao cuidado da criança e ao aleitamento materno em populações vulneráveis, como, por exemplo, mães empregadas12. O estudo de Boccolini et al. oferece grandes garantias aos formuladores de políticas de que investir na promoção do aleitamento materno em larga escala significa investir no bem-estar das crianças e no futuro do Brasil.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Suggested citation: Pérez-Escamilla R, Vianna RP. Breastfeeding and infant pneumonia in Brazil: the value of electronic surveillance information systems. J Pediatr (Rio J). 2011;87(5):371-2.

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  • 2. Aquino R, de Oliveira NF, Barreto ML. Impact of the Family Health Program on infant mortality in brazilian municipalities. Am J Public Health, 2009;99:87-93.
  • 3. Pérez-Escamilla R, Lutter C, Segall AM, Rivera A, Treviño-Siller S, Sanghvi T. Exclusive breast-feeding duration is associated with attitudinal, socioeconomic and biocultural determinants in three Latin American countries. J Nutr. 1995;125:2972-84.
  • 4. Horton S, Sanghvi T, Phillips M, Fiedler J, Pérez-Escamilla R, Lutter C, et al. Breastfeeding promotion and priority setting in health. Health Policy Plan. 1996;11:156-68.
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  • 8. Boccolini CS, Carvalho ML, Oliveira MI, Boccolini PM. Breastfeeding can prevent hospitalization for pneumonia among children under 1 year old. J Pediatr (Rio J). 2011;87:399-404.
  • 9. Chapman DJ, Pérez-Escamilla R. US national breastfeeding monitoring and surveillance: current status and recommendations. J Hum Lact. 2009;25:139-50.
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  • 12. Vianna RP, Rea MF, Venancio SI, Escuder MM. Breastfeeding practices among paid working mothers in Paraíba State, Brazil: a cross-sectional study. Cad Saude Publica. 2007;23:2403-9.
  • Correspondência:

    Rafael Perez-Escamilla, PhD
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011
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