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Retinopatia da prematuridade no Brasil: um problema emergente

EDITORIAIS

Retinopatia da prematuridade no Brasil: um problema emergente

Graham E. Quinn

MD, MSCE. Professor of Ophthalmology, University of Pennsylvania, Philadelphia, PA, USA. Attending surgeon, The Children's Hospital of Philadelphia, Philadelphia, PA, USA

A tragédia resultante da cegueira causada pela retinopatia da prematuridade (RP) não advém da falta de conhecimento acerca da doença. Com base nos resultados de estudos multicêntricos abrangentes1,2, sabemos quando há maior probabilidade de ocorrência da retinopatia aguda com ameaça de comprometimento visual, sabemos que os bebês em risco são aqueles em tratamento hospitalar e temos tratamentos disponíveis que se mostraram eficazes na redução significativa da morbidade visual. No entanto, a cegueira devido à RP é uma realidade recente em muitos países, em decorrência do aumento nas taxas de sobrevida de bebês muito prematuros. Isso é deveras importante em países com níveis intermediários de desenvolvimento humano (conforme definição do índice do Programa de Desenvolvimento da ONU)3, nos quais o número de unidades de tratamento intensivo neonatal vem aumentando rapidamente e os programas de detecção e tratamento ainda não foram implementados. A prevenção da cegueira causada pela RP requer uma série complexa de interações que precisam ser cuidadosamente articuladas. O artigo de Fortes Filho et al.4 no número atual do Jornal de Pediatriaenfoca vários aspectos relacionados com a detecção da doença que impõe risco à visão.

A disposição para a implementação de programas de triagem para RP geralmente surge de médicos - neonatologistas/pediatras e oftalmologistas - que tratam de casos esporádicos de cegueira causada pela RP em crianças pequenas, à medida que bebês prematuros cada vez menores tendem a sobreviver. Esses médicos buscam, então, despertar a consciência da comunidade médica para o fato de que a doença vem ocorrendo na população e de que sua detecção e tratamento são importantes. Fortes Filho et al. relatam que a cegueira causada pela RP adquiriu importância como problema de saúde pública no Brasil a partir de um simpósio sobre RP em 2002, que foi patrocinado através de uma parceria de organizações brasileiras de oftalmologia e pediatria e de organizações não-governamentais. Os participantes do simpósio concluíram que não havia dados demográficos básicos que comprovassem que bebês estavam sofrendo de cegueira causada pela RP. Esses dados são essenciais para a implementação do programa de triagem. Os participantes também reconheceram que não havia dados sobre a prevalência do comprometimento visual devido à RP na comunidade, que existiam poucos programas de triagem e que critérios diferentes estavam sendo usados pelos programas existentes. Com base na opinião técnica dos participantes do simpósio, foram estabelecidas diretrizes a fim de determinar quais bebês deveriam ser avaliados, quando as avaliações deveriam ser feitas, quais as técnicas apropriadas e como os resultados das avaliações seriam registrados. Cada um desses componentes é essencial para a implementação de um programa eficaz de triagem da RP.

Fortes Filho et al. estudaram bebês com pesos de nascimento < 1.500 g e/ou idade gestacional < 32 semanas e que sobreviveram até o início das avaliações na sexta semana. Durante um período de 4 anos, em um único hospital, eles examinaram 300 bebês e descobriram que 6% deles desenvolveram RP suficientemente grave a ponto de necessitar de tratamento. A incidência da doença condiz com aquela relatada por grandes estudos multicêntricos realizados nos Estados Unidos, embora tais estudos tenham sido feitos com bebês cujo peso de nascimento não excedia 1.250 g1,2. Contudo, isso provavelmente reflete um alto nível de atenção neonatal em seu hospital. Recomenda-se cautela aqui. Fortes Filho et al. recém deram início à implementação eficaz de um programa de triagem da RP no Brasil, uma vez que relatam sua experiência em uma única maternidade. Outras maternidades brasileiras precisam relatar seus resultados com essa triagem, pois, com base na experiência de outros países5, é relativamente comum que bebês maiores desenvolvam cegueira à medida que os serviços neonatais são disponibilizados à comunidade em geral.

No caso dos dados da maternidade de Porto Alegre, os critérios de peso de nascimento (PN) e idade gestacional (IG) selecionados para a triagem estão de acordo com aqueles atualmente recomendados para países com altos níveis de desenvolvimento humano6-8. Vale ressaltar que nenhum bebê com PN maior ou maior IG desenvolveu RP com risco à visão na maternidade em Porto Alegre, mas esses achados não devem ser estendidos a todas as maternidades de países com níveis intermediários de desenvolvimento humano. Isso foi enfaticamente documentado por Gilbert et al.5 na revista Pediatrics, em 2005, quando os pesquisadores determinaram o PN e IG de bebês que desenvolveram cegueira ou RP com risco à visão em vários países com níveis baixos, intermediários e altos de desenvolvimento humano. Ao utilizarem as diretrizes britânicas de PN < 1.500 g e/ou IG < 32 semanas, eles descobriram que quase todos os bebês (99,6%) nos países com alto nível de desenvolvimento humano enquadravam-se nessas diretrizes, enquanto que mais de 12% dos bebês com RP com risco potencial à visão em países com níveis baixos ou intermediários de desenvolvimento humano não teriam sido examinados se as diretrizes britânicas não tivessem sido amplamente aplicadas.

À medida que mais dados sobre a RP forem coletados em outras maternidades brasileiras, as diretrizes para a triagem da RP, primeiramente determinadas pela opinião de especialistas, podem ser modificadas a partir de uma base de evidências. Os parâmetros para PN e IG podem ser ampliados e incluir bebês suscetíveis ao desenvolvimento de RP com risco de acometimento da visão, mas não ampliados a ponto de sobrecarregar os médicos responsáveis pelas triagens com um grande número de bebês a serem examinados. Por exemplo, em uma grande maternidade no Peru, durante o período de 1 ano, o oftalmologista teria que avaliar 112 bebês através de critérios de PN e IG semelhantes àqueles recomendados para o Brasil, mas com base em sua experiência e de acordo com a cegueira observada em bebês maiores e mais maduros, as diretrizes incluíram bebês de até 2.000 g de PN e com até 33 semanas de IG. Isso mais que duplica o número de triagens na maternidade; entretanto esses bebês maiores ainda desenvolvem doença grave (comunicação pessoal, L Gordillo, 2006). As diretrizes para a triagem da RP não devem ser imutáveis, pois pode haver a necessidade de mudanças à medida que houver uma melhor compreensão sobre a prevalência de doença grave nas unidades neonatais. Isso é corroborado pela revisão recente das diretrizes estadunidenses para o ano de 2006, que reduziram o critério da idade gestacional de 32 semanas ou menos para 30 semanas ou menos6. Na verdade, seria adequado estabelecer diretrizes dentro de cada unidade neonatal, diferentes das diretrizes nacionais, mas podem existir obstáculos burocráticos, políticos e legais para diretrizes individualizadas9.

Um outro ponto crítico dos programas de triagem da RP é a realização de consultas de acompanhamento. No relato de Fortes Filho et al., a única criança cujo quadro evoluiu para cegueira não tinha sido levada pelos pais para fazer o acompanhamento recomendado. Isso é trágico, já que o tratamento oportuno provavelmente teria evitado esse desfecho. Os cuidadores precisam se certificar de que os pais ou responsáveis estejam cientes e entendam a importância do acompanhamento oportuno; em alguns casos, talvez seja até mesmo necessário manter os bebês internados até que os riscos de desenvolvimento de doença grave tenham sido eliminados. É crucial que os oftalmologistas e os neonatologistas/pediatras encarregados da atenção ao bebê desenvolvam diretrizes que permitam que o acompanhamento ambulatorial seja realizado.

Ainda assim, com as melhores intenções e devidos cuidados, alguns bebês serão vítimas da cegueira causada pela RP. Provavelmente esses bebês não terão sido avaliados adequadamente e devemos então desenvolver métodos alternativos para a detecção da doença. Aqui, a telemedicina é promissora, pois leva os serviços aonde talvez não haja especialistas em oftalmologia10,11. Alguns bebês podem ter recebido tratamento oportuno e mesmo assim ter progredido para descolamento da retina e cegueira. Apesar da falha do sistema de saúde em prevenir sua cegueira, essas crianças merecem nossos esforços na tentativa de educá-las e integrá-las à sociedade na medida do possível. Isso demandará a cooperação dos pais, da comunidade médica e das instituições de governo.

Referências

1. Multicenter trial of cryotherapy for retinopathy of prematurity. Three-month outcome. Cryotherapy for Retinopathy of Prematurity Co-operative Group. Arch Ophthalmol. 1990;108:195-204.

2. Early Treatment for Retinopathy of Prematurity Cooperative Group. Revised indications for the treatment of retinopathy of prematurity: results of the early treatment for retinopathy of prematurity randomized trial. Arch Ophthalmol. 2003;121:1684-94.

3. United Nations Development Programme. Human development report. New York: Oxford University; 2005.

4. Fortes Filho JB, Barros CK, da Costa MC, Procianoy RS. Results of a program for the prevention of blindness caused by retinopathy of prematurity in southern Brazil. J Pediatr (Rio J). 2007;83:209-16.

5. Gilbert C, Fielder F, Gordillo L, Quinn G, Semiglia R, Visintin P, et al. Characteristics of infants with severe retinopathy of prematurity in countries with low, moderate and high levels of development: implications for screening programs. Pediatrics. 2005;115:e518-25.

6. Section on Ophthalmology American Academy of Pediatrics, American Academy of Ophthalmology, American Association for Pediatric Ophthalmology and Strabismus. Screening examination of premature infants for retinopathy of prematurity. Pediatrics. 2006;117:572-6. Erratum in: Pediatrics. 2006;118:1324.

7. Guidelines for screening examinations for retinopathy of prematurity. Canadian Association of Pediatric Ophthalmologists Ad Hoc Committee on Standards of Screening Examination for Retinopathy of Prematurity. Can J Ophthalmol. 2000;35:251-2.

8. Retinopathy of prematurity: guidelines for screening and treatment. The report of a Joint Working Party of the Royal College of Ophthalmologists and the British Association of Perinatal Medicine. Early Hum Dev. 1996;46:239-58.

9. Quinn GE. What do you do about ROP screening in "big" babies? Br J Ophthalmol. 2002;86:1072-3.

10. Ells AL, Holmes JM, Astle WF, Williams G, Leske DA, Fielden M, et al. Telemedicine approach to screening for severe retinopathy of prematurity: a pilot study. Ophthalmology. 2003;110:2113-7.

11. Fielder AR, Gilbert, C, Quinn G. Can ROP blindness be eliminated? Biol Neonate. 2005;88:98-100.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
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