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Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural)

Resumos

Apresento um breve estudo do conceito alemão de Bildung, com base no artigo "Bildung et Bildungsroman", de Antoine Berman. O conceito é desenvolvido em cinco etapas: Bildung como trabalho, como viagem, como tradução, como viagem à Antigüidade e como prática filológica. Estas sugestões podem contribuir para a interpretação de obras de filosofia da arte e da cultura, por exemplo, passagens de Hegel, de Hölderlin, do romântico Friedrich Schlegel e de Nietzsche.

Bildung; cultura; estética; classicismo; romantismo; filologia; tradução; Hegel; Hölderlin; F. Schlegel; Nietzsche


The following research is about the German concept of Bildung, based on the article "Bildung et Bildungsroman", by Antoine Berman. The concept is developed in five stages: Bildung in the sense of work, of travel, of translation, of returning to the ancient history and in the sense of philological practice. This research can contribute for the interpretation of works of philosophy of the art and the culture, as, for example, the passages from Hegel, from Hölderlin, from the romantic Friedrich Schlegel and from Nietzsche.

Bildung; Culture; Aesthetics; Classicism; Romanticism; Philology; Translation; Hegel; Hölderlin; F. Schlegel; Nietzsche


ARTIGOS

Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural)

Rosana Suarez1 1 Professora no quadro complementar do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, Doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. rosanasrz@bol.com.br

RESUMO

Apresento um breve estudo do conceito alemão de Bildung, com base no artigo "Bildung et Bildungsroman", de Antoine Berman. O conceito é desenvolvido em cinco etapas: Bildung como trabalho, como viagem, como tradução, como viagem à Antigüidade e como prática filológica. Estas sugestões podem contribuir para a interpretação de obras de filosofia da arte e da cultura, por exemplo, passagens de Hegel, de Hölderlin, do romântico Friedrich Schlegel e de Nietzsche.

Palavras-Chave:Bildung, cultura, estética, classicismo, romantismo, filologia, tradução, Hegel, Hölderlin, F. Schlegel, Nietzsche

ABSTRACT

The following research is about the German concept of Bildung, based on the article "Bildung et Bildungsroman", by Antoine Berman. The concept is developed in five stages: Bildung in the sense of work, of travel, of translation, of returning to the ancient history and in the sense of philological practice. This research can contribute for the interpretation of works of philosophy of the art and the culture, as, for example, the passages from Hegel, from Hölderlin, from the romantic Friedrich Schlegel and from Nietzsche.

Keywords:Bildung, Culture, Aesthetics, Classicism, Romanticism, Philology, Translation, Hegel, Hölderlin, F. Schlegel, Nietzsche

Este escrito se baseia na leitura do artigo intitulado "Bildung et Bildungsroman"2 2 BERMAN, Antoine. Bildung et Bildungsroman. Le temps de la réflexion, v. 4, Paris, 1984. ("Formação cultural e romance de formação"), de Antoine Berman, autor francês precocemente falecido e ainda pouco estudado entre nós.3 3 Agradeço a Marcelo Marques a referência àobra de Berman. O autor obteve respeito e reconhecimento principalmente por suas reflexões críticas sobre o problema da tradução, como em L'épreuve de l'étranger,4 4 Publicado em Paris, pela editora Gallimard, em 1995 (1ª edição, 1984), e no Brasil, pela Editora da Universidade de Santa Catarina (EDUSC), em 2002, com o título A prova do estrangeiro. obra que mereceu um elogio todo especial de Paul Ricouer quando das comemorações do Prêmio Franco-Alemão de Tradução, de 1996.5 5 RICOEUR, Paul. Défi et bonheur de la traduction. In: RICOEUR, Paul. Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004. Em La traduction et la lettre, ou l'auberge du lointain,6 6 Publicado em Paris pelas Éditions du Seuil, 1999. livro inspirado em seminário que ministrou em 1984, no Collège International de Philosophie, Berman fala sobre a tarefa do tradutor sob epígrafes de Walter Benjamin e Hölderlin, pensadores notadamente interessados no problema e até mesmo nele envolvidos diretamente.

No artigo que aqui me interessa especialmente, "Bildung et Bildungsroman", Berman enraíza a temática da tradução em um estudo conceitual rico e sugestivo, que me parece instrumental para compreendermos determinadas direções da filosofia da arte e da cultura que se produziu desde a segunda metade do século XVIII em direção ao XX, originando-se na Alemanha e envolvendo autores como Goethe, Schiller, Hegel, os irmãos Schlegel, Novalis, Hölderlin e, também, Schopenhauer e Nietzsche. O conceito central tratado é Bildung, vocábulo que designa uma das figuras históricas determinantes — talvez a última, sublinha Berman — do que ainda hoje entendemos como cultura, ao lado de paideia (paidéia), eruditio e Aufklärung. Em resumo, como desenvolverei aqui, Bildung expressa, sobretudo, o processo da cultura, da formação, motivo pelo qual utilizo a expressão "formação cultural".

A respeito da importância do conceito de Bildung e de sua capacidade de irradiação, diz Hans Gadamer, em Methode und Wahrheit:

O conceito de Bildung (...) é, sem dúvida alguma, a idéia mais importante do século XVIII e é precisamente esse conceito que designa o elemento aglutinador das ciências do espírito do século XIX. (...) O conceito de Bildung torna evidente a profunda transformação espiritual que fez do século de Goethe ainda um nosso contemporâneo, ao passo que o do Barroco nos soa hoje como antigüidade histórica. Nessa época, os conceitos e termos decisivos com os quais ainda hoje operamos adquirem seu significado. 7 7 Apud BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 141.

Entre esses termos, Gadamer cita: "arte", "história", "visão de mundo", "vivência", "gênio", "expressão", "estilo", "símbolo" etc.; noções que, como lembra Berman, hoje nos parecem evidentes, atemporais, mas que nasceram na segunda metade do século XVIII ao lado de Bildung, revelando-se, em sua força, termos fundamentais, cuja totalidade determina a maneira como uma época histórica articula a sua compreensão de mundo.

Berman desenvolve a definição de Bildung, salientando a sua dimensão pedagógica e a sua aproximação com a arte:

A palavra alemã Bildung significa, genericamente, "cultura" e pode ser considerado o duplo germânico da palavra Kultur, de origem latina. Porém, Bildung remete a vários outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu riquíssimo campo semântico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imaginação, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade ou plasticidade, Vorbild, modelo, Nachbild, cópia, e Urbild, arquétipo. Utilizamos Bildung para falar no grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance de Goethe, são seus Lehrjahre, seus anos de aprendizado, onde ele aprende somente uma coisa, sem dúvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden). 8 8 BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 142.

Termo de caráter bastante dinâmico, Bildung se impõe a partir da segunda metade do século XVIII, exprimindo, ao mesmo tempo, o elemento definidor, o processo e o resultado da cultura. Em grande parte, como assinalarei através deste escrito, suas definições exemplares se encontram em Goethe, Hegel e nos Românticos de Iena, vide Friedrich e August Schlegel. A partir daí, entende Berman, o sentido do termo permanece razoavelmente fixo ao longo do século XIX, período em que a palavra se esvazia progressivamente e o seu conteúdo entra em crise, o que já atestariam as Considerações extemporâneas de Friedrich Nietzsche.9 9 Cf. Idem. Esboçarei, apenas, a relação entre Nietzsche e Bildung, no final deste escrito.

Entrementes, insisto no histórico do conceito, conforme "Bildung et Bildungsroman".

Bildung como trabalho

Designativa de um processo, a palavra Bildung aparece, tanto em Hegel quanto em Goethe, ligada à ação prática, ao trabalho. Elemento definidor e resultado do processo cultural, Bildung significa, no pensamento de Hegel, a partir de sua Propedêutica filosófica, ruptura com o imediato e passagem do particular ao universal, mais ainda, elevação ao universal, conotando aprimoramento, engrandecimento.10 10 Cf. BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 143-144.

Como trabalho, Bildung é formação prática, formação de si pela formação das coisas. No famoso capítulo da Fenomenologia do espírito de Hegel, a dialética do Senhor e do Escravo, a consciência escrava se liberta por um processo de formação: à medida que a consciência trabalha formando as coisas ao seu redor, ela forma a si mesma.11 11 Cf. GADAMER, Propédeutique philosophique, apud BERMAN, op. cit., p. 144. Já na obra de Goethe, Os anos de viagem de Wilhelm Meister, seqüência de Os anos de aprendizado, o protagonista inscreve-se no círculo concreto dos deveres e tarefas, se esforça nos limites de uma atividade determinada — é levado a descobrir-se em meio aos diversos encargos e provas da vida material e social. Este círculo concreto é, por um lado, limitador. Por outro, em uma contrapartida dialética, essa auto-responsabilização tem efeito universalizante: uma vez "apropriada"12 12 " Fait sien ( le métier)". In: BERMAN, op. cit., p. 145. , a ocupação não é mais limite para o indivíduo. No dizer de Goethe, "na única coisa que ele faz bem", o homem "vive o símbolo de tudo o que é bem feito".13 13 Apud BERMAN, op. cit., p. 145.

Berman faz notar que, nesse aspecto, o pensamento de Hegel e o de Goethe anunciam ("coisa de que os autores tinham bastante consciência") a moderna "cultura do trabalho". Na mesma passagem, chama a atenção para o fato de que esta abordagem exemplar de Bildung "evidencia a diferença do conceito para com a simples universalidade do Esclarecimento (Aufklärung); Bildung é sempre, e essencialmente, prática".14 14 In: BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 145.

Bildung como viagem

O caráter prático e dinâmico de Bildung, seu sentido de processo, remete, em um segundo momento, a outra instância, a outra figura, não apenas a do trabalho, mas a da viagem. Diz Berman:

No Goethe de Wilhelm Meister e nos românticos de Iena, Bildung se caracteriza como uma viagem, Reise, cuja essência é lançar o "mesmo" num movimento que o torna "outro". A "grande viagem" de Bildung é a experiência da alteridade. Para tornar-se o que é o viajante experimenta aquilo que ele não é, pelo menos, aparentemente. Pois está subentendido que, no final desse processo, ele reencontra a si mesmo.15 15 Ibidem, p. 147.

No entender de Berman, é Friedrich Schlegel quem melhor formula essa lei da viagem como lei da alteridade. Diz Schlegel: "É por isso que, certo de reencontrar-se, o homem sai de si mesmo para se buscar e encontrar o complemento de seu ser no mais íntimo da profundidade do outro. O jogo da comunicação e da aproximação é sentido e força de vida".16 16 In: SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia, apud BERMAN, BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 147. E, ainda: "O nosso verdadeiro lugar é aquele ao qual sempre retornamos, depois de percorrer os caminhos excêntricos do entusiasmo e da alegria, não aquele do qual nunca saímos."17 17 Ibidem, p. 148.

A "grande viagem" que caracteriza Bildung não consiste em ir a um lugar qualquer, não importa aonde, mas, sim, lá onde nos possamos formar e educar. Na concepção de Friedrich Schlegel, esse tour formador tem o caráter de um romance. Diz Schlegel: "Todo homem que é culto (gebildet) e se cultiva também contém um romance em seu interior." 18 18 SCHLEGEL, F. Fragmentos críticos, Lyceum [78]. In: SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 32.

Frisa Berman:

Enquanto romance Bildung é experiência da aparente estranheza do mundo e, também, da aparente estranheza do mesmo para si próprio. (...) Daí as suas polaridades definidoras, em Goethe e nos românticos: cotidiano e maravilhoso, próximo e longínquo, presente e passado, conhecido e desconhecido, finito e infinito.19 19 In: BERMAN, op. cit., p. 148.

Bildung como tradução

A natureza circular, cíclica e alternante de Bildung (isto é, ser, ao mesmo tempo, progressão e retorno) pode ser definida como Über-Setzung, um lançar-se-além-de-si, um movimento de tradução: "E não é por acaso que, na cultura alemã do final do século XVIII, a tradução tem um papel essencial (...). À medida que Bildung se define como certa provação do estrangeiro, do Estranho,a tradução pode e deve manifestar-se como um dos agentes principais da formação".20 20 Ibidem, p. 148-149.

Menciono, pelo menos, dois casos marcantes desse esforço alemão de tradução: as primeiras traduções do sânscrito por August Schlegel, incentivador dos estudos orientais na Alemanha a partir do final do século XVIII (sabemos como os estudos orientais repercutiram na obra de Schopenhauer, por exemplo); as traduções feitas por Hölderlin das tragédias de Sófocles, Édipo Rei e Antígona. Essas traduções tiveram, na época, acolhida severíssima, o que magoou Hölderlin profundamente, sendo consideradas mais tarde, porém, verdadeiras obras-primas, em especial, por Walter Benjamin.

O contato de Hölderlin com a língua grega através de Sófocles representa um caso emblemático e, ao mesmo tempo, extremo de tradução formadora. E isto na medida em que Hölderlin teria sido o único, em sua época, a perceber nos gregos, isto é, no Estrangeiro, no Estranho, cito as palavras de Berman, "a não-imagem perturbadora, aterrorizante e chocante do Estrangeiro puro".21 21 BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 149. Daí as suas traduções não mais serem reconstituições, mas sim verdadeiras recriações, dando margem à complexa reflexão contemporânea sobre os destinos da tradução.

Bildung como viagem à Antigüidade. A filologia

O exemplo de Hölderlin revela, em grande parte às avessas, que, como tradução, Bildung se relaciona com Urbild, original, arquétipo, e, também, com Vorlbild,norma ou modelo aos quais Bildung se refere numa relação de reprodução ou "resposta", Nachbild.22 22 Cf.: "Em virtude de sua natureza de experiência, Bildung nunca é uma simples imitação do estrangeiro. Entretanto, ela mantém uma relação essencial com o que se chama, em alemão, Urbild, original, arquétipo (...)." ( Idem). Quem se procura no estrangeiro, diz Berman, o faz com a mediação de figuras-modelo, como, por exemplo, os companheiros que Wilhelm Meister encontra ao longo de sua jornada.

No tocante à arte e à literatura, é a partir da contribuição do pensador Joachim Winckelmann — criador da luminosa visão apolínea da Grécia na segunda metade do século XVIII — que a Antigüidade grega se torna modelo e arquétipo na Alemanha.23 23 Cf. BERMAN , op. cit., p. 150. Nenhuma outra cultura passada teria essa precedência. A questão da relação com esse modelo vem, então, ao centro do debate: é a necessidade do "retorno aos Antigos", por eles serem, ao mesmo tempo, originais e eternos, isto é, um "clássico".24 24 Ibidem, p. 149-150. Face à Antigüidade, a modernidade se percebe como um projeto inacabado ou fragmentado,25 25 " Déchiré". Ibidem, p. 150. e a formação da cultura e da arte modernas se determina de antemão — para o classicismo alemão em particular —, no jogo complexo da relação com o modelo da Antigüidade. Nesse sentido, é célebre a frase de Winckelmann: "O único caminho para nos tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos."26 26 Sobre a influência de Winckelmann, ver o estudo de Gerd Bornheim, "Introdução à leitura de Winckelmann", in: Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998. Diz Berman:

Reúnem-se todos os esforços para alcançar um grau de cultura equivalente à dos Antigos, principalmente, por uma apropriação de suas formas poéticas. Nessas condições, a disciplina que adquire um papel de primeiro plano, definindo-se em geral como estudo dos textos e das línguas antigas é a filologia. 27 27 In: BERMAN. Bildung et Bildungsroman, p. 150.

Resumo, portanto, o dinamismo próprio de Bildung: seu caráter de processo, prática, trabalho, viagem, romance, alteração, identificação, tradução. Para Berman, a totalidade das traduções que constituem Bildung pertence ao espaço da filologia, desde que percebamos nesta palavra uma riqueza de significados, em geral hoje perdida. Literalmente "amor ao logos",a disciplina filológica da época do florescimento de Bildung pede cordialidade e atenção para restituir à vida culturas passadas, clarividência e presteza para discernir e, ao mesmo tempo, reaproximar culturas distantes. Mais do que erudito ou cientista, para Friedrich Schlegel, o filólogo é artista: "Saúde aos verdadeiros filólogos! Eles realizam obra divina, pois disseminam o sentido da arte por todo o campo da reflexão. Nenhum erudito deveria ser um simples burocrata".28 28 In: SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia, apud BERMAN, op. cit., p. 150.

O balanço entre ciência, arte e filosofia se evidencia nesta bela definição da filologia, por Friedrich Schlegel:

O bom crítico29 29 Diz Berman: "A definição de Friedrich Schlegel do 'crítico' vale para o 'filólogo', pois as duas figuras, na Alemanha clássica e romântica, se recobrem totalmente.". In: op. cit., p. 151. deve observar de maneira fiel e conscienciosa como o médico, medir com precisão como o matemático, estabelecer classificações cuidadosas como o botânico, dissecar como o anatomista, analisar como o químico, se comover como o músico, imitar como o ator, abraçar como o apaixonado, abarcar tudo com o olhar como o filósofo, se aprimorar continuamente como o escultor, ser severo como o juiz, conservador como o antiquário, captar o momento como o político etc.30 30 Apud BERMAN, op. cit., p. 151.

Esta virtude "camaleônica" do filólogo é justamente Bildsamkeit, plasticidade, maleabilidade formadora, qualidade para a qual Friedrich Nietzsche acena no início da década de 1870, às vésperas da publicação de seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, quando se orgulha de seu próprio trabalho de filólogo, em uma carta ao amigo Erwin Rohde: "Ciência arte e filosofia crescem em mim tão misturadas que, desconfio, darei à luz um centauro".

É tentador, aqui, estabelecer um vínculo com O nascimento da tragédia, discutir os pontos principais da temática do livro junto ao histórico de Bildung: a viagem formadora à Grécia antiga — nas palavras de Nietzsche, vôo a uma misteriosa "montanha mágica" —, o encontro com o Estrangeiro na pele indômita de Dioniso, Wagner como modelo e mestre cultural, a música como linguagem universal etc. Esta não é, porém, a intenção deste escrito.

Cabe frisar, apenas, que, em sua viagem à Antigüidade — no caso, à "alteridade" grega —, Nietzsche privilegia os aspectos de descontinuidade sobre os de continuidade, identidade ou "progresso",31 31 Cf. BARRETO, Ana Cláudia Gama. O centauro nietzschiano, filologia, arte e filosofia em O nascimento da tragédia. Dissertação de mestrado, orientador Roberto Machado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. quando diz, por exemplo: "Meu objetivo é declarar guerra entre nossa 'civilização' atual e a Antigüidade. Quem quiser servir à primeira deve odiar a segunda."32 32 Apud BARRETO, op. cit., p. 46. De todo modo, "trata-se de um movimento duplo, de definição simultânea do passado e do presente, no qual é impossível isolar um dos termos sem reduzir a quase nada o alcance de sua reflexão".33 33 In: BARRETO, op. cit., p. 49.

Vale lembrar também que é a partir da prática da filologia e da reflexão crítica sobre esta prática — já vista na época como bastante insatisfatória pelo professor e educador Nietzsche — que ele estrutura a sua crítica da arte, da cultura e da educação. Para Nietzsche, a filologia praticada no início da década de 1870 é disforme, carente da arte e da filosofia como orientadoras (nesse momento, as filosofias que ele elogia são as de Kant e Schopenhauer). A seus olhos, os filólogos de profissão, cientificistas, abandonaram o jogo criador, clarividente e amoroso — não são mais os artistas que desejava Schlegel — e não ouvem música.

Deixo, portanto, apenas alinhavadas essas direções apontadas pelo estudo de Berman. Através do fio condutor que ele oferece, enxergamos em perspectiva certos pontos em comum — assim como também vislumbramos diferenças irredutíveis — entre os pensadores que admiramos.

Artigo recebido em 15/09/05 e aprovado em 15/11/05.

  • 2 BERMAN, Antoine. Bildung et Bildungsroman. Le temps de la réflexion, v. 4, Paris, 1984.
  • 5 RICOEUR, Paul. Défi et bonheur de la traduction. In: RICOEUR, Paul. Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004.
  • 18 SCHLEGEL, F. Fragmentos críticos, Lyceum [78]. In: SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 32.
  • 26 Sobre a influência de Winckelmann, ver o estudo de Gerd Bornheim, "Introdução à leitura de Winckelmann", in: Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998.
  • 31 Cf. BARRETO, Ana Cláudia Gama. O centauro nietzschiano, filologia, arte e filosofia em O nascimento da tragédia. Dissertação de mestrado, orientador Roberto Machado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
  • 1
    Professora no quadro complementar do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, Doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • 2
    BERMAN, Antoine.
    Bildung et
    Bildungsroman.
    Le temps de la réflexion, v. 4, Paris, 1984.
  • 3
    Agradeço a Marcelo Marques a referência àobra de Berman.
  • 4
    Publicado em Paris, pela editora Gallimard, em 1995 (1ª edição, 1984), e no Brasil, pela Editora da Universidade de Santa Catarina (EDUSC), em 2002, com o título
    A prova do estrangeiro.
  • 5
    RICOEUR, Paul. Défi et bonheur de la traduction. In: RICOEUR, Paul.
    Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004.
  • 6
    Publicado em Paris pelas Éditions du Seuil, 1999.
  • 7
    Apud BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 141.
  • 8
    BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 142.
  • 9
    Cf.
    Idem. Esboçarei, apenas, a relação entre Nietzsche e
    Bildung, no final deste escrito.
  • 10
    Cf. BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 143-144.
  • 11
    Cf. GADAMER,
    Propédeutique philosophique,
    apud BERMAN,
    op. cit., p. 144.
  • 12
    "
    Fait sien (
    le métier)". In: BERMAN,
    op. cit., p. 145.
  • 13
    Apud BERMAN,
    op. cit., p. 145.
  • 14
    In: BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 145.
  • 15
    Ibidem, p. 147.
  • 16
    In: SCHLEGEL, F.
    Conversa sobre a poesia, apud BERMAN, BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 147.
  • 17
    Ibidem, p. 148.
  • 18
    SCHLEGEL, F. Fragmentos críticos, Lyceum [78]. In: SCHLEGEL, F.
    O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 32.
  • 19
    In: BERMAN,
    op. cit., p. 148.
  • 20
    Ibidem, p. 148-149.
  • 21
    BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 149.
  • 22
    Cf.: "Em virtude de sua natureza de experiência,
    Bildung nunca é uma simples imitação do estrangeiro. Entretanto, ela mantém uma relação essencial com o que se chama, em alemão,
    Urbild, original, arquétipo (...)." (
    Idem).
  • 23
    Cf. BERMAN
    , op. cit., p. 150.
  • 24
    Ibidem, p. 149-150.
  • 25
    "
    Déchiré".
    Ibidem, p. 150.
  • 26
    Sobre a influência de Winckelmann, ver o estudo de Gerd Bornheim, "Introdução à leitura de Winckelmann", in:
    Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998.
  • 27
    In: BERMAN.
    Bildung et
    Bildungsroman, p. 150.
  • 28
    In: SCHLEGEL, F.
    Conversa sobre a poesia,
    apud BERMAN,
    op. cit., p. 150.
  • 29
    Diz Berman: "A definição de Friedrich Schlegel do 'crítico' vale para o 'filólogo', pois as duas figuras, na Alemanha clássica e romântica, se recobrem totalmente.". In:
    op. cit., p. 151.
  • 30
    Apud BERMAN,
    op. cit., p. 151.
  • 31
    Cf. BARRETO, Ana Cláudia Gama.
    O centauro nietzschiano, filologia, arte e filosofia em O nascimento da tragédia. Dissertação de mestrado, orientador Roberto Machado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
  • 32
    Apud BARRETO,
    op. cit., p. 46.
  • 33
    In: BARRETO,
    op. cit., p. 49.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      15 Nov 2005
    • Recebido
      15 Set 2005
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