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A figura do filósofo: ceticismo e subjetividade em Montaigne

RESENHAS

Telma de Souza Birchal

Professora do Departamento de Filosofia da UFMG. tbirchal@gmail.com

EVA, Luiz. A figura do filósofo. Ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Edições Loyola, 2007. 507 p.

Que espécie de filósofo é Michel de Montaigne? Tal como formulada, a pergunta – para a qual a obra de Luiz Eva apresenta uma resposta original e cuidadosamente fundamentada – afirma de saída que se trata de um filósofo. No entanto, Montaigne costuma ser mais presente nas estantes das bibliotecas e cursos de literatura que nos de filosofia. De fato, o caráter não sistemático dos Ensaios, as perturbadoras contradições entre passagens da obra e a insistente afirmação do autor de que nela se encontram não mais que suas opiniões subjetivas foram suficientes para que a historiografia da filosofia comumente a deixasse de lado. Juntem-se a isso as virtudes de um grande escritor para que a desconfiança quanto ao caráter filosófico da obra se estabelecesse de vez.

O livro de Luiz Eva, porém, inscreve-se na atual tendência de ler os Ensaios como um texto verdadeiramente filosófico, como, aliás, o recebeu sua posteridade imediata, para citar apenas Descartes e Pascal. O ponto de partida de seu rigoroso estudo é a passagem na qual Montaigne refere-se a si mesmo com as seguintes palavras: "Nova figura: um filósofo impremeditado e fortuito!" (MONTAIGNE. Les Essais. Ed. Villey-Saulnier. Paris: Presses Universitaires de France. Livro II, cap. 12, p. 546). Que figura é esta – e qual a sua novidade em relação a outras possíveis figuras de filósofo – é a questão central do livro.

Como bem indicado pelo título, o livro pretende esclarecer a articulação entre o ceticismo – que o autor defende ser a filosofia de Montaigne – e a marcante presença da subjetividade nos Ensaios. A "Apologia de Raymond Sebond" é, entre os capítulos dos Ensaios, o gerador da interpretação, mas o livro de Eva percorre, com acuidade, a obra por inteiro. Talvez o maior mérito do intérprete, entre tantos que tem seu livro, seja o de enfrentar com maestria a sinuosidade do pensamento de Montaigne, revelando suas complexas articulações onde o leitor menos atento poderia ceder à aparência – devido ao estilo coloquial e descosido dos Ensaios – de estar diante de um texto "fácil" ou superficial. Registrem-se, ainda, entre as outras virtudes do livro, o cuidadoso retorno às fontes (não apenas no caso do ceticismo antigo, mas também do estoicismo e dos textos contemporâneos de Montaigne) e o fato de o autor propor sua tradução, muito esclarecedora, para todas as citações dos Ensaios.

Trata-se de um alentado estudo, rico e bem informado, do qual daqui por diante pretendo destacar pontos específicos em cada capítulo ou bloco de capítulos – e permitir-me, eventualmente, um pouco de polêmica, como agradava ao nosso filósofo de Bordeaux.

O primeiro capítulo, "Filósofo de nova figura?", apresenta os argumentos para fundamentar a tese de que Montaigne é um filósofo cético e não apenas, como querem crer outros intérpretes, um filósofo que discorre sobre o ceticismo como uma entre as outras correntes filosóficas. Recusando a fácil classificação de Montaigne como simplesmente contraditório, Luiz Eva chama a atenção para uma coerência menos evidente e para a presença de uma "filosofia consistente" no autor – coerência e consistência que se mostram através da aproximação detalhada entre os textos dos céticos antigos e várias passagens da "Apologia". Importante neste capítulo é o tratamento da espinhosa questão da contradição do cético, o qual não poderia afirmar a impossibilidade da verdade sob pena de se contradizer. Eva propõe compreender o discurso do cético sobre a verdade como o relato de uma experiência biográfica, e, não, como uma proposição de cunho epistêmico (p. 63). Podem-se aqui já antever as possíveis relações entre verdade, ceticismo e subjetividade.

O capítulo seguinte é mais polêmico: trata-se de atacar a tese, bem estabelecida não apenas por Popkin, mas por muitos outros intérpretes de Montaigne, do fideísmo de Montaigne (qualquer que seja a sua forma). Ao contrário de leituras recentes, como a de Brahami, que afirmam ser o ceticismo de Montaigne profundamente transformado pela noção cristã de fé, Luiz Eva defende que, ao contrário, a própria noção de fé é, por assim dizer, impossibilitada pela crítica radical do ceticismo, pois não encontraria possibilidade de ser pensada ou expressa em linguagem humana. Eva pretende estabelecer que o Montaigne dos Ensaios (não a pessoa de Montaigne, sobre cuja religiosidade todo intérprete deve sabiamente silenciar-se) é cético, não fideísta. Ou seja: o autor da Apologia não afirmaria que somente a fé é capaz de conhecer as verdades divinas (ao modo do fideísta), mas suspende o juízo também sobre isto (ao modo do cético). A tese é ao mesmo tempo ousada e bem construída; tem vários méritos, entre eles o de dar sentido ao título do capítulo "Apologia de Raymond Sebond", pois é pelo menos improvável que um fideísta defenda uma teologia racionalista como a de Sebond. Sem dúvida, Luiz Eva mostra que Montaigne não pode ser um fideísta ao modo de tantos religiosos, que afirmam estar instalados na esfera da fé e do conhecimento sobrenatural. No entanto parece-me que isto não autorizaria o intérprete a retirar toda a referência à fé como significativa para a compreensão dos Ensaios. A meu ver, o ponto problemático da interpretação é a identificação da fé com as "razões teológicas" (p. 114) – segundo Eva, o fideísmo é um discurso teológico, portanto racional, portanto destituído pelo ceticismo. O fideísmo, porém (e, em sua origem cristã, a própria noção de fé), pode ser apenas a indicação de um outro tipo de discurso (não propriamente racional) ou de um lugar não preenchido por qualquer discurso, e é assim que muitos intérpretes compreendem o suposto fideísmo de Montaigne. De forma que pode ser possível identificar no texto de Montaigne uma idéia de fé que não se reduz seja à razão, seja às crenças e aos costumes, e que se remete, fundamentalmente, à indicação de uma esfera sobrenatural acima da natural, essencial, por sua vez, para a definição da condição finita do ser humano. No meu entendimento, é justamente este ponto que Montaigne compartilha com os "piedosos" e torna sua posição irredutível aos termos propriamente céticos. Seja como for, Luiz Eva aponta com precisão os problemas e dificuldades geradas por este lugar-comum da crítica, o "Montaigne fideísta". O problema do critério a ser utilizado para o reconhecimento de um discurso como realmente legitimado ou iluminado pela fé é especialmente bem trabalhado no capítulo.

Menos polêmico, mas não menos denso, o terceiro capítulo, sobre os costumes, trata das razões para a aceitação da autoridade religiosa e política, ou, em outros termos, a apropriação, por Montaigne, do preceito cético "seguir os costumes". Mediante a análise da rearticulação do clássico lema no contexto das disputas religiosas, Eva esclarece o assim chamado "conservadorismo" de Montaigne, guiado por dois pares de conceitos: interior e exterior, privado e público. Aqui se encontra uma análise aprofundada da dupla atitude do filósofo em relação aos costumes: a denúncia do costume como gerador de preconceitos e enganos, por um lado, e, por outro, o reconhecimento do papel positivo desempenhado pelos mesmos costumes, o que inspira a recomendação cética. Este paradoxo é acompanhado por outros, objetos de uma exposição instigante por parte do intérprete, tais como: 1. o representado pelo fato de Montaigne desenvolver uma reflexão crítica sobre os costumes e, ao mesmo tempo, reconhecer que o costume coloca fortes limites à própria reflexão (p. 150); 2. a razão, ao compreender seus limites, recomenda a obediência aos costumes, eles mesmos não racionais, como atitude racional – o que o autor chama de "realismo cético" (p. 164); 3. a admissão "exterior" do dogmatismo como postura autenticamente cética. A demarcação precisa entre interior e exterior e entre teoria e prática permite o movimento de Montaigne entre a crítica e a aceitação dos costumes, conferindo um guia para a ação e materializando-se na defesa da religião católica – ponto bem explorado por Luiz Eva. Merece destaque neste capítulo a análise da relação entre natureza e costume, num autor onde a noção de natureza é bastante fluida: não seriam os costumes, em sua infinitude, uma certa manifestação da natureza?

O tema do paradoxo, caro ao autor, é introduzido no capítulo 4, dedicado ao significado do estilo literário de Montaigne, e perpassa os dois capítulos seguintes. Eva retoma fortemente o veio polêmico, ao recusar-se, contra Tournon, a reduzir a filosofia de Montaigne à sua expressão estilística, sem deixar, no entanto, de conferir a esta expressão grande importância. Trata-se sem dúvida de um excelente capítulo de apresentação das estratégias discursivas de Montaigne – o paradoxo, a ironia, a autodepreciação ou o encobrimento parcial do que se quer dizer –, fundamentais, segundo o autor, para que Montaigne possa exercer livremente seu julgamento, no que diz respeito ao domínio privado e interior, mantendo a adesão exterior aos costumes. Ou, nas felizes palavras de Eva: "para que o juízo não recue, por vezes a expressão parece se ver obrigada a tanto" (p. 183). O capítulo situa Montaigne em relação à tradição literária renascentista, ou seja, a seus "colegas paradoxais" – Erasmo em primeiro lugar e depois franceses como Rabelais, Guy de Bruès, Tahuereau – que também se utilizam de expedientes para driblar a censura. No entanto, segundo Luiz Eva, se o paradoxo é importante, ele não pode definir, por si, a novidade da filosofia de Montaigne e nem pode ser compreendido como a prática montaigneana da epoché cética – como quer Tournon. Muito pertinentemente, o autor afirma que o paradoxo é uma forma de se dizer algo, um exercício do juízo, não sua suspensão. Convencido de que Montaigne é sobretudo um filósofo, Eva busca, para além do estilo literário, a identidade e consistência filosóficas dos Ensaios – embora reconheça, já perto da conclusão do livro, que um aspecto importante da literatura, a ficção, éparte integrante da subjetividade apresentada por essa filosofia (p. 485). Os capítulos 5 e 6 aprofundam o tema do paradoxo, desenvolvendo o problema, central no ceticismo e para a identidade do filósofo cético, da dupla exigência da suspensão do juízo e do exercício do juízo. O autor mostra que a investigação cética tem, em Montaigne, tanto a dimensão de formação do juízo quanto de manifestação da subjetividade.

O último capítulo, "O ensaio como fantasia", gira em torno do termo phantasía, de capital importância nos Ensaios e dotado de rica polissemia. A força da imaginação sempre impressionou fortemente Montaigne, que compreende o ser humano como habitando num mundo fantástico – ou antes, num mundo no qual é impossível distinguir entre realidade e fantasia. As metáforas dos monstros e das quimeras, dos sonhos e dos grutescos – muitos deles criados pela própria razão – aparecem nos mais variados contextos ao longo dos Ensaios. Ao analisar, a partir do tema da fantasia, as questões da subjetividade, da identidade e do conhecimento de si, o intérprete, sem dúvida, acertou em cheio. Ele mostra que Montaigne é consciente do domínio da fantasia – que escapa ao controle racional – como o horizonte inescapável da condição humana, seja ela dogmática ou cética. Pois o próprio exercício do juízo – atividade que define a identidade filosófica do cético – é, por vezes, denominado "fantasia". Sendo assim, que diferença poderia haver entre a crítica cética e a produção fantástica dos dogmáticos? No percurso de abordagem deste problema, Eva nos apresenta uma leitura bastante original do ensaio "Da ociosidade", oportunidade para uma boa análise da relação entre Montaigne e o estoicismo, sobretudo o de Sêneca. Não falta uma boa exploração do termo phantasía, tanto em suas origens estóicas quanto em sua retomada pelo ceticismo antigo, onde é concebida como algo que se impõe involuntariamente à apreensão do filósofo – inclusive no caso da epoché. A análise oferece uma plausível resposta ao eterno problema da contradição do cético: a epoché, em si mesma, teria não o estatuto de uma verdade substantiva, mas, sim, de uma fantasia, ou seja, de algo resultante de uma experiência fenomênica que se impõe involuntariamente ao sujeito – mantendo, portanto, seu caráter relativo e contingente. Os temas do conhecimento de si e da identidade pessoal são tratados mediante sua aproximação com os tropos céticos (p. 460 et seq.), mostrando que é a partir de seu enraizamento no ceticismo que a questão da subjetividade pode emergir em Montaigne. No entanto, a meu ver, a importante e essencial remissão ao ceticismo não pode abarcar toda a complexidade do problema do "eu" em Montaigne: em primeiro lugar porque ela não oferece os instrumentos para distinguir entre a análise da condição humana em geral e a exposição da experiência em primeira pessoa e, em segundo lugar, porque a dimensão descritiva e narrativa do conhecimento de si, sem dúvida presente nos Ensaios e solidária do ceticismo, deixa de lado sua também importante dimensão ética. Como o próprio intérprete deixa ver na exposição sobre identidade pessoal (que anuncia Hume) e sobre as ilusões da consciência (que anuncia Freud), os Ensaios apontam tanto para o futuro quanto para o passado. Deixando de lado estas inevitáveis divergências de interpretação, trata-se, sem dúvida, de um capítulo magistral, que recusa qualquer solução fácil ou unilateral para a questão da subjetividade em Montaigne: tanto a de substantivá-la no auto-retrato quanto a de dissolvê-la em suas múltiplas perspectivas. Ou como escreve Eva: "esse eu aparece para si mesmo quando se recusa a postular uma identidade imaginária pela qual seu movimento poderia ser reduzido e interpretado" (p. 481).

O caráter "impremeditado e fortuito" do filósofo que se anunciou como um enigma na Introdução da obra desdobra-se, em seu capítulo final, na figura impremeditada e fortuita do "eu" que se mostra, de forma casual, nos impasses do projeto de conhecer-se e pintar-se a si mesmo – fio condutor que Eva não perde, neste estudo de cerca de 500 páginas. Referindo-se ao "eu" de Montaigne como um "sujeito do desconhecimento", o autor nos faz lembrar das palavras de Marie de Gournay: Montaigne não ensinou a sabedoria, mas "desensinou" a tolice, oferecendo "por antecipação, boas razões de desconfiança crítica com relação aos diversos modelos epistemológicos que lhe sucederiam" (p. 496). O livro de Eva é sem dúvida indispensável para quem se propõe a compreender a instigante filosofia dos Ensaios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    2008
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