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NIETZSCHE E O NASCIMENTO DA ÓPERA A PARTIR DO ESPÍRITO ALEXANDRINO

NIETZSCHE AND THE BIRTH OF THE OPERA FROM THE ALEXANDRINE SPIRIT

RESUMO

O artigo pretende apresentar a origem da ópera moderna, no pensamento do jovem Nietzsche, em paralelo ao nascimento da tragédia grega antiga com cuja comparação pretendemos mostrar como se dá a formação da primeira sob a insígnia de uma restrição pulsional. A ideia é apresentar a origem da ópera, como Nietzsche a entendia a partir da leitura de Zur Tonkunst de Ernst Lindner, como uma crítica ao processo de racionalização ocidental que aprisionou a força produtora da Natureza a partir da sobreposição da consciência à força inconsciente produtora da arte autêntica. Mesmo no caso de um gênero dramático que se utiliza da música, a forma de expressão que em tese exprime a própria Ideia do mundo.

Palavras-chave:
Nietzsche; Lindner; Ópera; Tragédia; Alexandrino

ABSTRACT

The article intends to present the origin of the opera, in the thought of the young Nietzsche, parallel in the birth of the ancient Greek tragedy with whose comparison we intend to show how the formation of the first takes place under the insignia of an instinctual restriction. The idea is to present the origin of opera, as Nietzsche understood it from the reading of Zur Tonkunst by Ernst Lindner, as a critique of the western rationalization process that imprisoned the productive force of Nature as of the superposition of consciousness to the unconscious force of art. Even in the case of a dramatic genre that uses music, a form of expression that in theory expresses the very Idea of the world.

Keywords:
Nietzsche; Lindner; Opera; Tragedy; Alexandrian

Se a tragédia grega tinha nascido do “espírito da música” [“aus dem Geiste der Musik”], como sugere o subtítulo da edição de 1872 de O Nascimento da Tragédia, a ópera, por sua vez, tinha sido imantada desde suas origens pelo “espírito alexandrino”. Como Nietzsche aponta em sua primeira obra publicada: “a ópera está construída sobre os mesmos princípios que a nossa cultura alexandrina” (Nietzsche, 1999, p. 115NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.). “Alexandrinischen Cultur”, como se sabe, é a expressão da qual Nietzsche se utiliza para se referir à Weltanschauung moderna assentada no ideal do “antropos theorikós” que, desde a Grécia antiga de Sócrates, ergueu seu mundo de uma “mundanização extrema” [äusserster Verweltlichung] (Nietzsche, 1999, p. 124NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.) responsável por expulsar das produções da cultura e da organização coletiva dos homens o mythos, a força criadora da Vontade. Sob o impacto desse ideal socrático de humanidade, a arte sofre um processo de esvaziamento da experiência. Ou ela se converte em tribuna política – que para Nietzsche culmina no drama burguês moderno, mas que já era uma tendência desde o “naturalismo” de Eurípedes quando o poeta acreditava ter levado sabedoria e emancipado as massas com suas reformas – ou em uma forma frívola de arte esvaziada do luxo e do entretenimento. A ópera, arte da “ganância visual” [blosse Augenbegierde], para citar a maneira como Wagner refere-se ao gênero dramático moderno, será apontada por Nietzsche como um dos rebentos desse esvaziamento da experiência artística. Em nenhum outro fenômeno cultural a modernidade tinha se revelado de maneira tão flagrante quanto na ópera, a ponto de Nietzsche ter afirmado que “compreender completamente a ópera significa compreender o espírito moderno” (Nietzsche, 1988, p. 315NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Um dos motivos, que queremos explorar neste artigo, é que temos na ópera o exemplo mais paradigmático de como uma arte nasce sob a insígnia de uma restrição das pulsões da Natureza, ainda que se valendo da música, a forma de expressão que, em tese, exprime a própria Ideia do mundo.

Em seu Metaphysical Song: An Essay on Opera, Gary Tomlinson vai escrever, a propósito das reflexões de Nietzsche sobre a ópera, que o que torna as dez últimas seções d’O Nascimento da Tragédia relevantes para o assunto, sobretudo quando mobiliza a relação entre Apolo e Dionísio para pensar a origem da tragédia como cena que nasce da visão entusiasmada do coro que descreve o que vê, está na franqueza com que o filósofo liga “a história da ópera a uma pré-história do ritual musical, do contato do músico dramático com reinos invisíveis e da possessão cantada”. Diante dessa tese imaginativa não seria, portanto, ainda de acordo com Tomlinson, tanto a força de suas argumentações o que interessa, sobretudo na defesa que o filósofo faz do drama musical wagneriano em detrimento da ópera, pois ali Nietzsche estaria muito submerso na “torrente de uma eloquência efusiva”. Tampouco importa a “precisão de sua visão da história da ópera” ou sua “apoteose wagneriana” à época (Tomlinson, 1999, p. 114TOMLINSON, G. “Metaphysical Song: An Essay on Opera”. New Jersey: Princeton University Press, 1999.). Embora seja correto dizer que Nietzsche se expressa sobre o assunto muito mais como um apologeta wagneriano do que como alguém preocupado com um fundamento rigorosamente histórico para sua crítica à ópera, é preciso fazer justiça a Nietzsche. O filósofo não deixa, entretanto, de embasar historicamente suas críticas à ópera reportando-se à obra de Ernst Otto Lindner, filólogo de formação que não era mero diletante à época, mas um crítico e estudioso da música que se notabilizou na Alemanha por promover as obras de compositores como Bach, Mozart e Gluck.

Por isso queremos explorar a crítica de Nietzsche à ópera a partir de um esboço para O Nascimento da Tragédia escrito no ano de 1871, no qual o filósofo desenvolve suas primeiras reflexões sobre as origens da ópera latina recorrendo ao livro de Ernst Lindner de 1864, Zur Tonkunst. Nesse esboço, em que praticamente transcreve o início do primeiro capítulo do livro de Lindner intitulado “O Nascimento da Ópera” [Die Entstehung der Oper], Nietzsche vai sublinhar que, de acordo com documentos mais claros, a ópera latina teve suas origens “nas exigências do ouvinte de compreender as palavras” (Nietzsche, 1988, p. 271NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Nietzsche está aqui, a princípio, corroborando o que aparece no livro de Lindner, quando seu autor dá início ao capítulo sobre a origem da ópera mostrando como o drama musical latino tinha nascido de uma discussão entre os eruditos e artistas florentinos da Camerata – grupo informal que se reunia na residência e sob patrocínio do conde Giovanni de Bardi para discutir arte, literatura, música e outros assuntos eruditos – em torno do problema da relação entre música e texto. De acordo com Lindner, esses apreciadores da música, na segunda metade do século XVI, estavam insatisfeitos com as produções musicais da época, pois, “fossem seculares ou eclesiásticos”, elas consistiam fundamentalmente em cantos polifônicos que careciam “tanto do elemento melódico claramente marcado quanto do tratamento de um texto que o ouvinte pudesse entender” (Lindner, 1864, p. 1LINDNER, E. O. “Zur Tonkunst”. Berlin: I. Guttentag, 1864.).

No canto polifônico, como no caso do madrigal italiano muito popular à época, o conjunto de vozes sobrepostas e cantadas de forma desigual e concatenada nos fraseados musicais poderia chamar a atenção pelo virtuosismo de seus cantores e “maravilhar os olhos pela habilidade contrapontística dos seus compositores”, mas deixava os ouvidos geralmente bastante insatisfeitos: “nem o entendimento [Verstand], que queria ouvir as palavras com clareza, tampouco a alma [Gemüth], que queria ser posta em um determinado estado de espírito pelos tons, ficaram satisfeitos”. Essa insatisfação, por meio da qual nem o texto podia ser compreendido na confusão de vozes do madrigal polifônico, nem a música exprimir de forma adequada os sentimentos individuais, ainda de acordo com Lindner, “provocou inicialmente a reforma do canto eclesiástico na Itália, cuja cabeça, Palestrina, até hoje é celebrada” (idem). No canto polifônico de Palestrina, no entanto, o indivíduo é diluído ao ser elevado aos picos da sublimidade do divino, justamente o que Nietzsche aponta, em O Nascimento da Tragédia, como o efeito dionisíaco da música do compositor italiano. Era preciso, então, para preservar o indivíduo e suas paixões, estimular o que faltava nos cantos de Palestrina “que na poderosa torrente de seus sons puros abafava quase todas as determinações melódicas e rítmicas”, isto é, era preciso encontrar uma forma musical que pudesse interessar e estimular o indivíduo e seus sentimentos sem cair na confusão de vozes que no madrigal se superpõem e tornam o texto ininteligível (ibid., p. 2).

Diante desse desafio, os autores buscaram “certos motivos musicais em função do conteúdo da palavra, e dar a ela um caráter mais nítido através do uso mais frequente de semitons e outros meios harmônicos que até então eram pouco usados”. Nesse interregno, no entanto, foram “crescendo cada vez mais as queixas daqueles que viam no contraponto, na polifonia, o inimigo principal e o corruptor da poesia”. A solução encontrada, com efeito, foi a de sobrepor em importância o texto poético à música, e é nesse sentido que a polifonia precisava ser superada. Para sair em defesa dessa superação, os eruditos em torno da Camerata foram se refugiar na tese de que era preciso imitar os antigos como forma de dar nova vida à música latina e “um redesenho da arte da música no espírito dos antigos gregos tornou-se a palavra de ordem à época” (ibid., p. 3). Esses músicos eruditos, ainda de acordo com Lindner, entendiam que as violentas tragédias antigas tinham seu núcleo no texto e no sentimento do indivíduo que era realçado pela música.1 1 O sentimento individual, como objeto da música, compõe outro aspecto da crítica de Nietzsche à ópera latina: a música não deve ilustrar sentimentos, pois os sentimentos individuais, embora pertençam à esfera inapreensível do afeto, têm um lado exterior consciente e interessado voltado para um determinado objeto. Por isso, no caso dos sentimentos, por exemplo, de amor, temor e esperança, “a música nada mais tem a ver com eles, tão repletos de representações já é cada um desses sentimentos” (Nietzsche, 2007, p. 175). A música, entretanto, para Nietzsche, está aquém desse mundo interessado da representação do indivíduo particular sujeito à limitação. Seu objeto é o fundo ilimitado e universal da Vontade: “a música é uma linguagem capaz de clarificação infinita. Nesse sentido, aqueles que, como os criadores do stilo rappresentativo, “só conseguem chegar à música com seus afetos” – ou seja, partem da poesia, como expressão do homem primitivo que sente e canta suas paixões, em direção à música que viria dar acento à emoção poética –, “há que se dizer que sempre permanecerão nos átrios e não terão acesso ao santuário da música que o afeto, como eu disse, não consegue mostrar, mas apenas simbolizar” (idem). Concretamente, a função da música era acentuar o pathos individual que era o assunto do texto escrito, da poesia.

Essa causa é defendida no círculo de Bardi quando o conde, depois de visitar o papa Clemente, encontra um novo foco: “e foi aqui que a atenção se voltou pela primeira vez para o tratamento musical da poesia dramática”. Jacopo Corsi, Jacopo Peri e Ottavio Rinuccini aparecem então como os grandes apoiadores da causa: como ponto de partida, Jacopo Corsi, refletindo sobre o modo como os antigos teriam cantado suas tragédias, imaginou-os usando em seu teatro uma entonação que, indo além da fala comum, não seria uma melodia real cantada: “devia ter havido um modo de apresentação entre o curso rápido e desinibido da fala e o movimento lento e contínuo do canto”. De acordo com essa ênfase musical, Peri “arranjou a parte do baixo acompanhante de tal maneira que só formasse sons harmoniosos com a parte vocal nos acentos mais vivos, mas permanecesse serena nas partes átonas da fala” (ibid., p. 5). Esse tipo de composição centrou-se não no canto solo inteligível e gracioso, como tinha proposto Cipriano antes do círculo de Bardi, mas na recitação dramática. Deram então a essa nova música de acompanhamento própria do recitativo o nome de stilo rappresentativo. Em 1594, A Dafne, título do poema de Rinuccini, foi concluído e sua apresentação na casa de Corsi foi recebida com os aplausos mais animados do público: “todos eram de opinião que agora aquele admirável estilo dos antigos tinha sido novamente de fato encontrado, tanto quanto a música e a linguagem modernas o permitiam” (ibid., p. 6).

Essa descrição da origem da ópera aparece transcrita em fragmento de Nietzsche escrito durante o período final de redação d’O Nascimento da Tragédia, em 1871. Nos últimos trinta anos do século XVI, escreve o filósofo, tinha início em Florença, na casa do conde Bardi de Vernio, o movimento que daria nascimento à ópera. Entre eles se chegou ao acordo de que a “nova música era muito deficiente na capacidade de se expressar em palavras e para remediar esse defeito era necessário ensaiar uma espécie de cantilena ou melodia que não tornasse as palavras do texto incompreensíveis nem destruísse o verso” (Nietzsche, 1988, p. 271NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Todos esses passos, que para Nietzsche deram origem ao stilo rappresentativo, já mostravam com qual perspectiva “profana e antimusical” a conexão entre música e poesia tinha sido concebida desde as origens da ópera. Para esses teóricos de “sentidos atrofiados”, o libreto tinha que se sobrepor em importância à música, algo que para Nietzsche se confirmava acima de qualquer suspeita na carta do mesmo conde Giovanni Bardi a Caccini, na qual afirma que, tal como a alma é mais nobre que o corpo, também “as palavras são mais nobres que o contraponto”.2 2 Carta reproduzida pelo musicólogo florentino G. B. Doni, que Nietzsche cita de Lindner. Com Jacopo Corsi, o compositor florentino amigo de Jacopo Peri, ao lado de quem se buscava recriar o teatro da Grécia antiga, a mesma tendência se revelava: “na literatura autocomplacente desses primórdios da ópera repete-se apenas que o canto deve imitar o discurso, pois essa é a consequência imediata dessa exigência de que se deve entender perfeitamente os cantores” (Nietzsche, 1988, p. 272NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.).

Segundo Nietzsche, para esses latinos não artistas que deram origem à ópera, a tragédia tinha origem na música de acompanhamento. E, partindo dessa premissa, chegam à conclusão de que a música precisava subordinar-se à palavra, tal como aos seus olhos o tinha sido na tragédia antiga. Já para o profundo espírito musical alemão, a música precedia a palavra, pois a tragédia antiga tinha nascido do coro ditirâmbico. Naturalmente que, para chegar a essa crítica acerca da compreensão da origem da tragédia, Nietzsche teve muito a aprender com os clássicos alemães, sobretudo com Goethe e Schiller,3 3 As compreensão do simbólico na arte antiga em Nietzsche deve-se também, em grande parte, às reflexões de autores como Schlegel, Hölderlin e Creuzer (Cf. Araldi, 2009, pp. 51-65). Sobre o simbólico na arte (Torres Filho, 2004, pp. 109-134). cujo conjunto de correspondências trocadas entre os poetas será reunido no livro clássico entre os alemães, Briefwechsel zwischen Schiller und Goethe, que Nietzsche leu vivamente, como demonstram suas anotações do ano de 1871. Uma das preocupações dos poetas durante seu período de correspondência girava em torno justamente da discussão sobre o simbólico na arte, algo de fundamental importância para Nietzsche chegar à sua tese sobre a origem da tragédia e sua crítica à ópera latina moderna. Discussão essa entre ambos os poetas que mobilizou desde a antiga tragédia grega até o drama moderno de Shakespeare para suas reflexões. Neste último, tinha-se o exemplo mais bem-sucedido de produção de uma arte do simbólico entre os artistas modernos, o que fazia com que o drama de Shakespeare estivesse muito próximo da tragédia grega antiga, como argumenta Schiller em carta a Goethe de 1797 transcrita por Nietzsche em anotação de 1871 (Nietzsche, 1988, p. 302NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Schiller escreve que a admiração que nutria por Shakespeare se devia especialmente à leitura de seu Ricardo III, uma das mais “sublimes tragédias” que até então conhecera. O modo desenvolto como o dramaturgo inglês sabia encontrar em todas as ocasiões o aspecto poético “no material mais grosseiro” parecia a ele surpreendente, bem como a destreza que demonstrava ao representar o que não podia ser representado: “a arte de utilizar os símbolos quando a natureza não pode ser representada [die Kunst Symbole zu gebrauchen, wo die Natur nicht kann dargestellt werden] [...]: nenhuma outra obra de Shakespeare me recorda tanto a antiga tragédia grega” (Goethe & Schiller, 1881, p. 332GOETHE, J.W., SCHILLER, F. “Briefwechsel zwischen Schiller und Goethe”. Stuttgart: J.G. Cotta, 1881. Vol. 1.).

Equalizar o drama de Shakespeare e a antiga tragédia grega, ambos como exemplo de arte do simbólico, leva-nos, com efeito, a uma segunda carta em que Schiller escreve a Goethe que, tal como nos tempos da antiga tragédia grega, a música parecia a ele o único recurso por meio do qual a arte do ideal poderia retornar à arte dramática e superar o teatro naturalista moderno. Para isso, Schiller argumenta que sempre teve uma “certa confiança na ópera e que, a partir dela, assim como nos coros das festas báquicas antigas, a tragédia se desenvolveria de uma forma mais nobre” (ibid., p. 351). Essa “confiança na ópera” [Bertrauen zur Oper] como capaz de trazer de volta a arte do simbólico à qual Schiller se refere aqui, aparece anotada por Nietzsche em fragmento do ano de 1870, em cuja anotação acrescenta ainda: “confiança na ópera: aqui se deixa a imitação servil da natureza e o ideal pode se infiltrar no teatro” (Nietzsche, 1988, p. 304NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Apesar de ser quase uma transcrição da conversa de Schiller com Goethe a respeito da ópera e do papel do coro para renovação da tragédia moderna, é certo que essa anotação de Nietzsche remete também às ideias de Schiller acerca do renascimento da arte simbólica proporcionado pelo resgate do coro, ideias essas presentes no prefácio escrito para integrar a edição de sua peça de 1803 — A noiva de Messina. Nesse prefácio, a defesa do coro, como um recurso a ser resgatado pelo drama moderno para trazer de volta ao teatro a arte do ideal, era também um modo de Schiller declarar guerra ao drama naturalista.

Essa investida de Schiller contra o naturalismo alinha-se, certamente, à crítica da natureza cindida do artista moderno, pois em sua busca fragmentada por reproduzir a natureza, que se traduziu em mimetizar servilmente o real, não só o ideal acabou sendo expulso da arte dramática como a própria liberdade poética foi inviabilizada. Entregue à imitação servil da estreiteza e do caráter opressivo da realidade, sem qualquer saída ideal, “o estado de espírito em que um tal artista ou poeta nos deixa é sério, mas de insatisfação, e nos vemos penosamente devolvidos à realidade comum e estreita pela própria arte que nos deveria libertar”. Schiller defende, entretanto, que o ideal pode muito bem “abandonar totalmente o real e todavia concordar de maneira mais precisa com a natureza”, já que a natureza se oculta sob a superfície do fenômeno e apenas pode ser representada como símbolo pela imaginação. A “natureza mesma é somente uma ideia do espírito que jamais se mostra aos sentidos”, pois, conforme aponta Schiller, “jaz sob a capa dos fenômenos, e ela mesma jamais aparece. Somente à arte do ideal se concebe, ou antes se dá como tarefa, apreender esse espírito do todo, ligando-o a uma forma corpórea” (Schiller, 2018, p. 189SCHILLER, F. “A noiva de Messina”. Trad. M. Suzuki. São Paulo: Sesi-SP Editora, 2018.). Essa força inapreensível e invisível que subjaz o fenômeno, mas que pode adquirir forma em nosso mundo e da qual o tragediólogo moderno pode se valer para dar forma simbólica ao todo, essa idealidade que é mais natureza que a mera representação servil do natural, na visão de Schiller, era possível com o recurso ao coro ditirâmbico. Coro esse que, para o poeta, tinha dado nascimento à tragédia grega. Esse trecho antecipa de um modo surpreendente a compreensão nietzschiana da origem da tragédia antiga a partir do espírito da música. E disso o filósofo tinha plena consciência quando afirma, em anotação de 1871, que sua concepção de tragédia, como “coro que tem uma visão e descreve entusiasmado o que vê!”, era uma “concepção schilleriana aprofundada infinitamente” (Nietzsche, 1988, p. 277NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Para o filósofo, a tragédia nasce dessa força que jaz sob a capa dos fenômenos (a música), que assume uma forma corpórea (mito encenado) na tragédia antiga.

Isso é o que tinha revelado o musical espírito alemão de Schiller quando entende que a música tinha dado nascimento à tragédia antiga. Já os florentinos que deram origem à ópera tinham dado precedência ao libreto e compreenderam que música, na tragédia antiga, deveria servir meramente para conferir acento às ideias da poesia, à palavra.4 4 Em sua conferência de 1870 sobre Édipo Rei, Nietzsche escreve: “Schiller reconheceu no coro a esfericidade da tragédia grega, os italianos da Renascença a viram na música que a acompanhava” (Cf. Nietzsche, 2006, p. 75). O que, para Nietzsche, representava um esvaziamento da música que se torna, desde as origens do drama musical moderno, um mero “reflexo da aparência”, “pintura sonora” que reduz a música à função de imitar o mundo aparente. Com isso, tanto a música se degrada, quanto a aparência é empobrecida pela pintura sonora. O que está implícito nessa crítica é o caráter inartístico dessa tentativa de realçar mediante a música as ideias da poesia. O próprio abismo que há entre o mundo figurativo da palavra e o mundo infinito tonal dos sons justificava para Nietzsche esse caráter inartístico: na ópera, “as palavras têm que explicar a música, porém, a música expressa a alma das ações”. Para esse último fim, entretanto, “as palavras são os signos mais deficientes” (Nietzsche, 1988, p. 48NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.).

O mundo tonal da coisa-em-si: a música como a mãe das artes

Essa ideia de que a música não pode se submeter à palavra exprime um aspecto interessante da relação entre o consciente e o inconsciente, fenômeno e coisa-em-si, aparência e essência, na produção da arte autêntica que explica a razão de Nietzsche censurar o modo como a música foi concebida na ópera a partir de um encarceramento da sabedoria telúrica da Vontade. Para lançar luz sobre esse ponto que queremos explorar a seguir, queremos insistir na influência que a discussão entre Schiller e Goethe exerceu em Nietzsche e, antes dele, especialmente em Wagner. Para isso, vale a pena retomar mais uma vez as cartas trocadas entre Schiller e Goethe sobre as quais Nietzsche se debruçou no período de redação de seu primeiro livro. Em carta a Goethe de 1801, Schiller escreve que nos meados daqueles dias tinha feito guerra a Schelling, pois este tinha enunciado em sua Filosofia transcendental que, “na natureza, decerto se começa com o que não se tem noção para elevá-lo à consciência, enquanto que na arte se parte do consciente em direção ao inconsciente”. Embora Schelling estivesse tratando apenas da oposição entre produtos da natureza e da arte, Schiller temia que a causa dessa ideia dos “senhores idealistas” tivesse em falta a própria experiência criativa, pois nesta “o poeta também começa com o inconsciente e inclusive deve sentir-se orgulhoso se graças à consciência mais clara de suas operações ao menos chega a encontrar em seu trabalho terminado, sem perder a força, a primeira ideia obscura geral de sua obra”. Sem essa “ideia total tão obscura, mas de todo poderosa” [solche dunkle, aber mächtige Totalidee] que nasce, naturalmente, de uma força inconsciente e que é anterior a tudo o que é técnico, “não pode se originar nenhuma obra poética”. E conclui Schiller: “a poesia, segundo creio, consiste precisamente em poder enunciar e comunicar aquilo que é inconsciente, ou seja, transferi-lo a um objeto” (Goethe & Schiller, 1881, p. 278GOETHE, J.W., SCHILLER, F. “Briefwechsel zwischen Schiller und Goethe”. Stuttgart: J.G. Cotta, 1881. Vol. 1.).

Com essa ideia total obscura e poderosa, anterior a tudo o que é técnico (consciente, portanto), Schiller está certamente se referindo ao processo de formação das ideias estéticas nos moldes em que Kant o descreve na sua Crítica da Faculdade de Julgar. Quanto às produções do cientista, vai mostrar Kant, por mais complexas e inacessíveis que elas possam parecer, seu processo de gestação pode ser descrito com clareza, passo a passo. Newton, por exemplo, podia “mostrar não somente a si próprio, mas a qualquer outro, de modo totalmente intuitivo e determinado para a sua sucessão, todos os passos que ele devia dar desde os primeiros elementos da Geometria até as suas grandes e profundas descobertas” (Kant, 2010, pp. 154-155KANT, I. “Crítica da Faculdade do Juízo”. Trad. V. Rohden e A. Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.). Conhecimentos desse tipo seriam apreensíveis, pois, por qualquer consciência crítica, por qualquer um que os estudasse. Já no caso das artes, em contrapartida, seus produtos derivam de uma ideia estética – “uma representação da imaginação que dá muito o que pensar, sem que nenhum pensamento determinado, isto é, nenhum conceito, possa lhe ser adequado e que portanto nenhuma língua pode completamente exprimir e tornar inteligível” (ibid., p. 159). Produto do espírito [Geist], a faculdade do gênio – verdadeiro intérprete do inexprimível – essa ideia profunda, pré-consciente e carregada de formas que não podem ser determinadas, mas que põem em ebulição a mente, que dão muito o que pensar, é obscura mesmo para o gênio: “nenhum poeta pode indicar com precisão como surgem e se reúnem suas ideias em sua cabeça, isto porque ele mesmo não o sabe e, portanto, também não pode ensiná-lo a ninguém”. Por isso é que “nenhum Homero ou Wieland pode indicar como suas ideias ricas de fantasia e contudo ao mesmo tempo densas de pensamento surgem e reúnem-se em sua cabeça, porque ele mesmo não o sabe e, portanto, também não pode ensiná-lo a nenhum outro” (ibid., pp. 54-55).

Não passou em branco a Nietzsche, tampouco a Wagner, no entanto, aquela famosa ocasião em que Schiller descreve esse impulso inconsciente e obscuro que nele engendrava suas ideias poéticas. Assim descreve o poeta, também em carta a Goethe, o modo como criava suas obras: “no começo, a sensação carece de um objeto claro e distinto, este vai se formando mais adiante. Precede-lhe certo estado de ânimo de índole musical, e apenas depois é que se segue a ideia poética” (Goethe & Schiller, 1881, p. 118GOETHE, J.W., SCHILLER, F. “Briefwechsel zwischen Schiller und Goethe”. Stuttgart: J.G. Cotta, 1881. Vol. 1.).5 5 Essa passagem também é citada por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia para explicar o surgimento da poesia lírica de Arquíloco (Nietzsche, 1999, p. 40). Citando essa carta de Schiller a Goethe em que o poeta estabelece uma paridade entre força pré-consciente e música, Wagner, em seu texto do ano de 1871, Beethoven – obra fundamental para as ideias presentes em O Nascimento da Tragédia –, defende que o poeta teve aqui um pressentimento a respeito do segredo dessa noite profunda de onde emerge toda criação poética. E desvendar o enigma da música para Wagner era, por fim, lançar luz sobre esse segredo, algo que só Schopenhauer soube mostrar com grande clareza filosófica (Wagner, 2010, p. 14WAGNER, R. “Beethoven”. Trad. A. Hartmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.).

Era necessário percorrer, com efeito, a síntese metafísica que Schopenhauer tinha realizado entre música e Vontade para então lançar luz sobre esse profundo interior musical de onde emerge toda produção poética do qual falava Schiller em sua carta a Goethe. Em Beethoven, ainda, Wagner percorre essa síntese recorrendo aos capítulos 29 e 30 dos Suplementos e a partir deles busca mostrar a peculiaridade da música diante das outras artes no que diz respeito ao conhecimento de Ideias. Para Schopenhauer, o mundo em si não nos negou acesso por meio de representação de Ideias, o que faz com que nossa consciência tenha, por assim dizer, dois lados. Além da consciência voltada para “fora”, isto é, para o mundo exterior fenomênico, o “conhecimento intuitivo do mundo exterior de apreensão de objetos”, temos a consciência voltada para “dentro”, e.g., a consciência “do próprio si mesmo, que é a Vontade” (Schopenhauer, 2015, p. 439SCHOPENHAUER, A. “O mundo como Vontade e Representação”. Trad. J. Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2015. Vol. 2.). E quanto mais um desses lados da consciência entra em primeiro plano tanto mais o outro cede. Está em jogo aqui a distinção schopenhariana entre os dois modos como o mundo pode ser representado, seja ele como fenômeno, seja como Vontade – como coisa-em-si. O mundo em si nos é tangível pela Ideia que contemplamos numa obra de arte – diante da qual a relação da nossa vontade com o objeto esmorece, nosso querer incessante vai minguando e cedendo lugar a um estado desinteressado de contemplação. Momento esse em que aos poucos nos tornamos o que Schopenhauer chama de “sujeitos puros do conhecimento”. Com isso, podemos dizer que as formas da cognição consciente voltada para o lado exterior do mundo têm todos os instrumentos necessários para conhecer e dominar a superfície do mundo, isto é, o modo como a Vontade se objetiva em aparência. Sobre o em-si do mundo, entretanto, as formas da consciência revelam-se um instrumento indigente para a mesma finalidade. Essa condição “epistêmica” mais elevada que nos proporciona a arte desloca o “conhecimento” do em-si do mundo para o plano de uma sabedoria do inexprimível que se move no campo pré-consciente do pathos e que é tanto mais efetiva quanto mais se comunica na forma, por assim dizer, interior de expressão do mundo, quanto mais ela dispensa as formas fenomênicas da aparência do mundo exterior. Expressão interior essa pura, universal, não conceitual, não imagética, pré-consciente – musical, no limite.

Isso tudo encontra sustentação na afirmação de Schopenhauer segundo a qual o compositor de música “manifesta a essência mais íntima do mundo, expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem não compreensível por sua razão: como um sonâmbulo magnético fornece informações sobre as coisas das quais, desperto, não tem conceito algum” (Schopenhauer, 2005, p. 342SCHOPENHAUER, A. “O mundo como Vontade e Representação”. Trad. J. Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. Vol. 1.). Por ser inconsciente, sua produção só pode se originar sob inspiração, sem “qualquer reflexão e intencionalidade consciente” e, por não fazer uso da palavra, sua forma comunica direto à emoção sem qualquer mediação de conceitos como ocorre nas demais artes.6 6 Como mostra Guido em seu artigo, no juízo estético kantiano, embora baseado no sentimento, busca-se sempre uma validade universal para o gosto na medida em que o sentimento está ligado à reflexão, esta entendida como “atividade formadora de conceitos” (Guido, 2015, p. 32). Nesse sentido, o juízo de gosto só pode ser um juízo do tipo intelectual: não encontrando um conceito adequado à forma bela, o entendimento empresta sua legalidade a esse estado de contemplação, ele “dá o que pensar” e a interação lúdica entre imaginação e entendimento se desdobram como um prazer do tipo reflexivo. No caso da música, refletindo à luz de Schopenhauer, o entendimento não tem como emprestar sua legalidade na contemplação da arte dos sons, pois a música pertence ao infinito tonal em que qualquer forma de legalidade do entendimento, ou de qualquer forma em geral de consciência, está, por princípio, proscrita. Com isso, é possível notar que mesmo no campo da arte, que em tese exprime a Ideia do em-si do mundo, existem graus de objetividade da Vontade. As belas artes, enquanto arte autêntica, sendo elas representações do em si do mundo por meio de Ideias, têm origem obscura no espírito do gênio. Mas precisam, entretanto, das formas externas do mundo para levar a cabo seus modos de expressão; nos casos da poesia e das artes plásticas, o artista se vale da natureza como esquema, conforme escreve Schopenhauer a esse propósito em sua obra magna: “o gênio só produz as obras das artes plásticas por uma antecipação premonitória do belo, assim também só se produz as obras de poesia por uma semelhante antecipação do característico, embora, em ambos os casos, ele precise da natureza como um esquema” (Schopenhauer, 2005, p. 298SCHOPENHAUER, A. “O mundo como Vontade e Representação”. Trad. J. Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. Vol. 1.). Já no caso da música, cuja origem é completamente inconsciente, sem mediação da palavra, da imagem e das formas de legalidade do mundo exterior, temos uma linguagem análoga ao próprio em-si do mundo que, no limite, dispensa qualquer mediação com o mundo fenomênico.

Nesse sentido, a expressão mais pura da objetivação da Vontade no campo das artes pode ser escalonada do maior grau em que o em si do mundo se mostra em direção ao menor. Isso Schopenhauer já tinha apontado quando discute os limites da fusão entre música e palavra na ópera. Conforme escreve em sua obra magna, a música estimula tão vivamente nossa fantasia, “tentando assim figurar em carne e osso aquele mundo espiritual invisível, vivaz e ágil, a falar tão imediatamente a nós” que, logo, tenta “corporificá-la num exemplo analógico”. Isso daria origem ao canto com palavras e, por fim, à ópera. Entretanto, alerta Schopenhauer que as palavras “nunca devem abandonar sua posição de subordinada para se tornarem a coisa principal, fazendo da música mero meio de sua expressão, o que se constitui num grande equívoco e numa absurdez perversa”. Utilizar o menor grau de objetividade para lançar luz sobre o de maior seria como usar a luz de uma lamparina para iluminar o sol do meio-dia. Por isso, conclui Schopenhauer, que, “quando a música procura apegar-se em demasia às palavras e amoldar-se aos eventos, esforça-se por falar uma linguagem que não é sua” (Schopenhauer, 2005, pp. 343-344SCHOPENHAUER, A. “O mundo como Vontade e Representação”. Trad. J. Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. Vol. 1.). Justamente o que tinha se passado entre os latinos criadores do drama musical moderno, como Nietzsche aponta em sua crítica à origem da ópera florentina.

Com Schopenhauer é possível entender, portanto, nos assegura Wagner, a índole musical desse infinito profundo, ao qual Schiller se refere, de onde emerge toda a poesia. O em-si do mundo é música e a música é a linguagem interior inconsciente primária e universal que excita sem mediação das formas da representação consciente, seja ela conceitual ou imagética, lógica ou etiológica. Também fica claro, com efeito, esse mesmo grau de objetivação da Vontade no campo interno às artes. De modo distinto das outras artes, a música dispensa de todo a existência fenomênica, e por isso se mostra não como uma Ideia do mundo, mas, dirá Schopenhauer, como a Vontade mesma atuando no íntimo das emoções como uma verdadeira linguagem universal: “a música [...] é diferente de todas as outras artes por ser não cópia do fenômeno, ou, mais exatamente, da objetidade adequada da Vontade, mas cópia imediata da Vontade e, portanto, expõe para todo físico o metafísico, para todo fenômeno a coisa-em-si” (ibid., p. 345). Já o mundo externo figurativo da palavra e do conceito, dessa vez, segundo Wagner, à luz de Schopenhauer, pertence a uma esfera de realidade já distinta do mundo interior-tonal da música. Por esse motivo, vai concluir Wagner, o caso do poeta se mostrava tão singular: seu modo de produzir fazia com que ele estivesse no ponto intermediário entre esses dois mundos: “entre os dois [mundos] se situa o poeta que, com sua produção consciente de formas, se aproxima do artista plástico, ao passo que no domínio sombrio de seu inconsciente se assemelha ao músico” (Wagner, 2010, p. 13WAGNER, R. “Beethoven”. Trad. A. Hartmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.).

O nascimento da ópera como cárcere das forças telúricas da Natureza

A ópera moderna, cujo nascimento se deu com ênfase no libreto em detrimento da música, isto é, que relegou à música um papel subordinado à palavra, revela agora seu caráter inartístico. Como Nietzsche escreve em anotação de 1870, esse ato fundante da ópera, com o qual a música é posta a serviço da poesia, era da natureza de “um filho buscando dar luz ao pai”, pois “a imagem e a representação nunca poderiam produzir música a partir de si e tanto menos estaria em condições de fazer isso o conceito ou – como se diz – a ideia poética” [poetische Idee] (Nietzsche, 1988, p. 185NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). De outro modo, a arte autêntica é produto da força ativa e primária anterior à ideia poética (música), um “vasto espaço da noite do mundo” de onde toda poesia emerge dos motivos universais e da Vontade. Como não se utiliza das formas conscientes de expressão, a música só pode ser, com efeito, a linguagem mais poderosa para exprimir a sabedoria inexprimível da Vontade. Já a palavra e a imagem, enquanto derivadas das formas do mundo externo da aparência, próprias à arte figurativa, mostram-se inferiores à arte tonal para esse mesmo fim.7 7 Como escreve Nietzsche em O drama musical grego: “a palavra age primeiramente sobre o mundo dos conceitos e somente a partir daí sobre o sentimento; e de maneira bastante frequentemente ela não alcança absolutamente, pela distância do caminho, o seu alvo”. Já a música, por outro lado, “toca o coração imediatamente, como a verdadeira linguagem universal, inteligível por toda parte” (Nietzsche, 2010, pp. 65-66).

Entretanto, como vimos acima, Schopenhauer defende, a propósito da ópera, que a música estimula tão vivamente a fantasia que pode chegar a produzir imagens daquele mundo espiritual invisível e tentar “corporificá-la em um exemplo analógico” [ieselbe in einem analogen Beispiel zu verkörpern] (Schopenhauer, 2005, p. 343SCHOPENHAUER, A. “O mundo como Vontade e Representação”. Trad. J. Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. Vol. 1.). O que significar dizer que o mundo interior da música pode extravasar sua potência a ponto de produzir conteúdo para o mundo exterior em imagens, ideia essa que é desenvolvida por Wagner, em Beethoven, a partir de um trecho retirado dos Parerga und Paralipomena de Schopenhauer sobre a clarividência.8 8 É importante ressaltar que embora Schopenhauer nessas passagens tenha antecipado um aspecto fundamental da tese da origem da tragédia antiga em Nietzsche nos termos de uma afiguração da essência do mundo, isto é, como música que produz imagens musicais, é sabido que o autor de O Mundo como Vontade de Representação, entretanto, valorizou acima de tudo aqui a tragédia moderna. A compreensão da tragédia antiga que nasce como afiguração da música deve-se, em contrapartida, à influência que Friedrich Creuzer (este, impactado por Schelling) exerceu sobre Nietzsche em suas considerações sobre o simbólico no mito como o ponto supremo da possibilidade terrena de uma manifestação do Absoluto. Aqui, não só o romantismo tardio revela o impacto que teve sobre o jovem Nietzsche, mas também o romantismo de Jena, do qual partem essas ideias sobretudo com as discussões de Schelling acerca do mito como exposição simbólica absoluta, isto é, como modo de apresentação do Absoluto na consciência humana finita (Cf. Wilson, 1996, pp. 109 ss.; pp. 281-282). Como o clarividente que traduz sua vivência inconsciente e interior, a qual nos aparenta a todos, de modo imediato, à natureza inteira, numa linguagem mística e cifrada para nossa consciência desperta, também o poeta pode produzir imagens que tenham sua origem nos motivos interiores e universais da Vontade (música) projetadas no mundo exterior como imagens musicais (Wagner, 2010, p. 78WAGNER, R. “Beethoven”. Trad. A. Hartmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.). Aos poucos vai se revelando aqui o segredo daquela sugestão que aparece no texto de Wagner: aquele que pudesse esclarecer a música por conceitos, dirá o compositor à luz dessa doutrina de Schopenhauer, teria “criado uma filosofia capaz de iluminar o mundo” (Wagner, 2010, p. 19WAGNER, R. “Beethoven”. Trad. A. Hartmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.).

Essas passagens serão fundamentais para Nietzsche, pois o segredo da origem da tragédia antiga, como afiguração da vivência interna da Vontade, contempla, acima de tudo, essa ideia. A música (o infinito musical) pode lançar mão de um análogo figurativo no mundo exterior da palavra e da imagem (mundo apolíneo da cena e do diálogo) para comunicar sua sabedoria interior, o que para Nietzsche constitui o caráter verdadeiramente artístico do drama quando posta a relação entre música e palavra, entre o interior inconsciente e o exterior consciente. A aparência não pode preceder a essência, isto é, a palavra não deve recorrer à música para conferir acento à primeira sem um empobrecimento tanto da aparência quanto da música, como o fizeram os teóricos florentinos que deram nascimento à ópera segundo a descrição de Lindner que Nietzsche recupera. Mas o contrário constitui propriamente o efeito artístico autêntico: da música em direção à imagem – do mundo tonal que produz em símbolos: “a música pode projetar fora de si imagens: que, no entanto, são sempre só imagens, por assim dizer, exemplos de seu conteúdo” (Nietzsche, 1988, p. 185NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Essa é uma ideia wagneriana por excelência se nos reportamos a um texto do compositor de 1860, “Zukunftsmusik!”, quando defende que dois eram os destinos da poesia moderna: ou um transplante inteiro para o campo da abstração, “uma pura combinação de concepções e representações por explicação de leis lógicas do pensamento”, ou uma fusão íntima com a música, como mostrava o último movimento da nona sinfonia de Beethoven, na qual as leis internas e externas de apercepção do mundo se fundem na mais perfeita harmonia (Wagner, 1861, p. 45WAGNER, R. “Quatre poèmes d’opéras”. Trad. R. Wagner. Paris: Librairie Nouvelle, 1861.).

Nesse sentido, as formas de expressão da consciência é que precisam vir em auxílio da força inconsciente da música para dar expressão figurativa ao todo: esse é o segredo da arte simbólica que dá vida ao mito. O paradigma antigo para Nietzsche é, como sabido, a antiga tragédia grega. Já em registro moderno, além do drama musical de Wagner, o paradigma é Shakespeare, que dá nascimento ao mito moderno quando radicaliza uma tendência presente desde a tragédia de Sófocles. Quando o autor de Édipo Rei acrescenta o terceiro autor em suas tragédias, sucede-se uma progressiva sobreposição do diálogo à música na história do drama musical antigo. Mas a cena aqui se constrói como música que se converte em imagens musicais, isto é, o coro desaparece as poucos, mas é absorvido em “ideias a partir da música” (Nietzsche, 1988, p. 320NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.).9 9 Sobre essa questão, Cf. Moraes, 2021, pp. 49-67. Nesse sentido, embora seu drama fosse inteiramente ação e diálogo, Shakespeare fazia música por meio de imagens e por isso era poeta do mais radical pensamento trágico – o próprio criador do mito moderno. A capacidade que a música tem de produzir em imagens patéticas se deduz da própria sabedoria do “mito que fala em símiles acerca do conhecimento dionisíaco” (Nietzsche, 1999, p. 18NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.). Aqui, embora se faça uso do discurso, a lógica está totalmente proscrita e seu conteúdo patético não se deixa revelar nem às formas nem aos motivos do pensamento consciente. No interior do próprio drama moderno, a linguagem do mito reaparece de modo exemplar no Hamlet: nessa tragédia, a fala de Hamlet é mais superficial que a ação. Não é a partir da palavra, mas da “visão e revisão aprofundadas do conjunto que se deve inferir aquela doutrina de Hamlet” (ibid., pp. 100-101), segundo a qual “o conhecimento aniquila a ação, e a ação requer o véu da ilusão” (ibid., p. 53). Isso também revela, certamente, o segrego da tragédia grega: sua estrutura mimética e discursiva tinham surgido do coro como afiguração da música de forma espontânea.10 10 Como escreve Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, a música pode produzir imagens, embora a música que tente imitar a imagem não só não diz nada a respeito desta, como nada é dito sobre a música mesma: “no caso em que o poeta do som tenha falado de uma composição em imagens figuradas, como ao atribuir a uma sinfonia a designação de ‘pastoral’ e chamar a uma frase de ‘cena junto ao arroio’’, a uma outra de ‘alegre reunião de camponeses’, também se trata apenas de representações similiformes, nascidas da música – e não porventura dos objetos imitados pela música –, representações que não nos podem instruir em aspecto nenhum sobre o conteúdo dionisíaco da música, sim, que não têm qualquer valor exclusivo em face de outras figurações. Devemos agora transportar esse processo de uma descarga da música em imagens para uma massa popular no vigor da juventude, linguisticamente criativa, a fim de chegarmos a uma ideia de como se origina a canção estrófica popular e de como todo o tesouro verbal é excitado pelo novo princípio de imitação da música” (Nietzsche, 1999, p. 47).

Distintamente da antiga tragédia grega, como Nietzsche mostra em anotação de 1869, a “ópera nasceu sem um modelo concreto, segundo uma teoria abstrata”. Tendo origem sob a tutela das especulações teóricas de uma consciência crítica, tais “experimentos antinaturais, cortam ou pelo menos mutilam severamente as raízes de uma arte inconsciente que emerge da vida do povo”. Sendo esse o caso da ópera, esse gênero dramático moderno não tinha, pois, nada em comum com a tragédia grega que por sua vez era produto do puro instinto popular: “as origens do drama remontam às incompreensíveis manifestações dos instintos populares: naquelas festas orgiásticas dominavam um tal grau de estar fora-de-si [...] que os homens se sentiam e se comportavam como transformados e encantados” (Nietzsche, 1988, pp. 9-10NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.). Toda a estrutura da tragédia, desde a cena, a mímica, passando pelo uso do discurso mítico, era a expressão genuína do gênio do povo e tinha nascido da potência telúrica da música, do coro, de uma força inconsciente primordial. Nietzsche reverbera aqui Schlegel quando escreve, em Sobre o estudo da poesia grega, que, de Atenas à Alexandria, a formação estética dos gregos nunca tinha sido artificial no sentido de um entendimento organizador do conjunto “direcionado todas as forças e determinado o objetivo e a direção de sua trajetória”. Na verdade, “a teoria grega jamais demonstrou a mínima comunhão com a prática artística, e foi mais tarde no máximo sua auxiliar”. Na poesia grega, que para Schlegel era nascida da música, do ritmo e da mímica, “o instinto completo foi tanto o que movia, quanto o que direcionava a cultura grega” (Schlegel, 2018, p. 115SCHLEGEL, F. “Sobre o estudo da poesia grega”. Trad. C. L. Medeiros. São Paulo: Iluminuras, 2018.).

Tendo origem num círculo erudito de Florença, a partir de debates teóricos em torno da relação entre música e texto, e fruto de uma consciência crítica produtora, não era de se admirar a opção pelo primado do texto em detrimento da música. Na ópera, o espírito da música, que entre os gregos lutava por “revelação figurativa e mítica” está proscrito desde o início por sua consciência crítica, enquanto que o gênio grego que deu origem à tragédia de forma orgânica se expressava quase como uma possessão, como uma forma de decifração dos poderes numéricos da música. Na tragédia antiga, o que conduzia era o arrebatamento e nada se passava ali, para citar Henry Staten, como uma questão de representação, mas como “comunicação de força” (Staten, 1990, p. 209), isto é, como manifestação da sabedoria no inexprimível interior da Vontade, assim como ocorre, para Nietzsche, no drama musical de Wagner, cuja voz no canto não é concebida como voz do indivíduo que canta, mas como alguma outra voz mais universal que apreende, habita e canta através dela.

Na ópera, entretanto, o poder da música é desfeito e alheado de sua verdadeira dignidade: a música não se manifesta mais como poder numérico, mas como mimese de fenômenos extramusicais para daí converter-se em “pintura sonora transcritiva”, “escrava da aparência” reduzida à condição miserável de “provocar diversão externa” tal como era o caso no novo ditirambo ático” (Nietzsche, 1999, p. 117NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.). Esse marco do nascimento da ópera, que se efetiva como encarceramento da música, como uma restrição pulsional da Vontade em seu ato fundante, demonstrava também sua filiação com o alexandrinismo. O caráter teorético do nascimento da ópera moderna tinha suas raízes distantes no mesmo socratismo de Eurípedes que condenava seus antecessores tragediólogos, sobretudo Ésquilo, por fazer tudo de forma inconsciente, isto é, sob a possessão do espírito numérico da música. A decadência da tragédia, para Eurípedes, tinha justamente essa causa: “ninguém sabia transformar suficientemente a sabedoria da antiga técnica artística em conceitos e palavras” (Nietzsche, 2010, p. 83NIETZSCHE, F. “O drama musical grego”. In: A visão dionisíaca do mundo. Trad. e org. Marco S. P. Fernandes & Maria C. S. Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2010.). E se Sófocles censurava o poeta Ésquilo em razão de seu mestre ter feito o correto de forma inconsciente, Eurípedes teria dito “dele a opinião de que faz o incorreto porque faz inconscientemente” (ibid., p. 80).

Não por outra razão Eurípedes será apontado por Nietzsche como o poeta do “racionalismo ingênuo”, como o “inimigo de tudo o que é instintivo” que busca em tudo somente “o elemento intencional e consciente” (Nietzsche, 1988, p. 41NIETZSCHE, F. “Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe”. Editores: G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.) e que deu cabo do espírito da música na tragédia. E que, com suas reformas, que mais tarde serão consolidadas pela nova comédia ática até dar forma ao próprio drama moderno segundo esse mesmo espírito alexandrino séculos depois, põe fim justamente ao que para Nietzsche era acima de tudo grandioso na tragédia antiga: “o maravilhoso de todo aquele desenvolvimento da arte grega é justamente o fato de que o conceito, a consciência, a teoria então não tinham ainda tomado a palavra e tudo o que o jovem podia aprender do mestre relacionava-se à técnica” (Nietzsche, 1999, p. 80NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.).

  • 1
    O sentimento individual, como objeto da música, compõe outro aspecto da crítica de Nietzsche à ópera latina: a música não deve ilustrar sentimentos, pois os sentimentos individuais, embora pertençam à esfera inapreensível do afeto, têm um lado exterior consciente e interessado voltado para um determinado objeto. Por isso, no caso dos sentimentos, por exemplo, de amor, temor e esperança, “a música nada mais tem a ver com eles, tão repletos de representações já é cada um desses sentimentos” (Nietzsche, 2007, p. 175NIETZSCHE, F. “Música e Palavra (Fragmento Póstumo Nr. 12[1], da primavera de 187”. In: Discurso, Nr. 37. Trad. O. Giacoia Jr., 2007.). A música, entretanto, para Nietzsche, está aquém desse mundo interessado da representação do indivíduo particular sujeito à limitação. Seu objeto é o fundo ilimitado e universal da Vontade: “a música é uma linguagem capaz de clarificação infinita. Nesse sentido, aqueles que, como os criadores do stilo rappresentativo, “só conseguem chegar à música com seus afetos” – ou seja, partem da poesia, como expressão do homem primitivo que sente e canta suas paixões, em direção à música que viria dar acento à emoção poética –, “há que se dizer que sempre permanecerão nos átrios e não terão acesso ao santuário da música que o afeto, como eu disse, não consegue mostrar, mas apenas simbolizar” (idem).
  • 2
    Carta reproduzida pelo musicólogo florentino G. B. Doni, que Nietzsche cita de Lindner.
  • 3
    As compreensão do simbólico na arte antiga em Nietzsche deve-se também, em grande parte, às reflexões de autores como Schlegel, Hölderlin e Creuzer (Cf. Araldi, 2009, pp. 51-65ARALDI, C. “O simbolismo das criações apolíneas e dionisíacas: uma análise crítica da estética do jovem Nietzsche”. Reflexão, Campinas, 34 (96), jul./dez, 2009.). Sobre o simbólico na arte (Torres Filho, 2004, pp. 109-134TORRES FILHO, R. “O simbólico em Schelling”. In: Ensaios de filosofia ilustrada. São Paulo: Iluminuras, 2004.).
  • 4
    Em sua conferência de 1870 sobre Édipo Rei, Nietzsche escreve: “Schiller reconheceu no coro a esfericidade da tragédia grega, os italianos da Renascença a viram na música que a acompanhava” (Cf. Nietzsche, 2006, p. 75NIETZSCHE, F. “Introdução à tragédia de Sófocles”. Trad. Marcos Sinésio P. Fernandes, São Paulo: Martins Fontes, 2006.).
  • 5
    Essa passagem também é citada por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia para explicar o surgimento da poesia lírica de Arquíloco (Nietzsche, 1999, p. 40NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.).
  • 6
    Como mostra Guido em seu artigo, no juízo estético kantiano, embora baseado no sentimento, busca-se sempre uma validade universal para o gosto na medida em que o sentimento está ligado à reflexão, esta entendida como “atividade formadora de conceitos” (Guido, 2015, p. 32GUIDO, A. A. “Sobre a estética kantiana do belo e do sublime”. In: Ensaios de filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura (org. D. Morato Pinto, L. Moutinho, M. Sacrini, Monica Sival). Curitiba: UFPR, 2015.). Nesse sentido, o juízo de gosto só pode ser um juízo do tipo intelectual: não encontrando um conceito adequado à forma bela, o entendimento empresta sua legalidade a esse estado de contemplação, ele “dá o que pensar” e a interação lúdica entre imaginação e entendimento se desdobram como um prazer do tipo reflexivo. No caso da música, refletindo à luz de Schopenhauer, o entendimento não tem como emprestar sua legalidade na contemplação da arte dos sons, pois a música pertence ao infinito tonal em que qualquer forma de legalidade do entendimento, ou de qualquer forma em geral de consciência, está, por princípio, proscrita.
  • 7
    Como escreve Nietzsche em O drama musical grego: “a palavra age primeiramente sobre o mundo dos conceitos e somente a partir daí sobre o sentimento; e de maneira bastante frequentemente ela não alcança absolutamente, pela distância do caminho, o seu alvo”. Já a música, por outro lado, “toca o coração imediatamente, como a verdadeira linguagem universal, inteligível por toda parte” (Nietzsche, 2010, pp. 65-66NIETZSCHE, F. “O drama musical grego”. In: A visão dionisíaca do mundo. Trad. e org. Marco S. P. Fernandes & Maria C. S. Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).
  • 8
    É importante ressaltar que embora Schopenhauer nessas passagens tenha antecipado um aspecto fundamental da tese da origem da tragédia antiga em Nietzsche nos termos de uma afiguração da essência do mundo, isto é, como música que produz imagens musicais, é sabido que o autor de O Mundo como Vontade de Representação, entretanto, valorizou acima de tudo aqui a tragédia moderna. A compreensão da tragédia antiga que nasce como afiguração da música deve-se, em contrapartida, à influência que Friedrich Creuzer (este, impactado por Schelling) exerceu sobre Nietzsche em suas considerações sobre o simbólico no mito como o ponto supremo da possibilidade terrena de uma manifestação do Absoluto. Aqui, não só o romantismo tardio revela o impacto que teve sobre o jovem Nietzsche, mas também o romantismo de Jena, do qual partem essas ideias sobretudo com as discussões de Schelling acerca do mito como exposição simbólica absoluta, isto é, como modo de apresentação do Absoluto na consciência humana finita (Cf. Wilson, 1996, pp. 109 ss.; pp. 281-282WILSON, J. E. “Schelling und Nietzsche (Zur Auslegung Der Frühen Werke Friedrich Nietzsches)”. Berlin/New York: W. de Gruyter, 1996.).
  • 9
    Sobre essa questão, Cf. Moraes, 2021, pp. 49-67MORAES, R. “Uma cultura para Shakespeare e Beethoven”. Cadernos Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, Vol. 42, Nr. 3, pp. 45-67, setembro/dezembro 2021..
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    Como escreve Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, a música pode produzir imagens, embora a música que tente imitar a imagem não só não diz nada a respeito desta, como nada é dito sobre a música mesma: “no caso em que o poeta do som tenha falado de uma composição em imagens figuradas, como ao atribuir a uma sinfonia a designação de ‘pastoral’ e chamar a uma frase de ‘cena junto ao arroio’’, a uma outra de ‘alegre reunião de camponeses’, também se trata apenas de representações similiformes, nascidas da música – e não porventura dos objetos imitados pela música –, representações que não nos podem instruir em aspecto nenhum sobre o conteúdo dionisíaco da música, sim, que não têm qualquer valor exclusivo em face de outras figurações. Devemos agora transportar esse processo de uma descarga da música em imagens para uma massa popular no vigor da juventude, linguisticamente criativa, a fim de chegarmos a uma ideia de como se origina a canção estrófica popular e de como todo o tesouro verbal é excitado pelo novo princípio de imitação da música” (Nietzsche, 1999, p. 47NIETZSCHE, F. “O Nascimento da Tragédia”. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1999.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2022
  • Aceito
    02 Maio 2022
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