Acessibilidade / Reportar erro

JUSTIÇA E FORÇA EM TRASÍMACO

RESUMO

Em nosso artigo, pretendemos verificar as teses de Trasímaco sobre a justiça e se estas são consistentes entre si. Para isso, há de se observar a relação da justiça com o governo e a força (krátos) que a determina. O intuito é reavivar as discussões hodiernas sobre as teses de Trasímaco dentro da filosofia platônica, assim como demonstrar sua importância para o âmbito da filosofia política.

Palavras-chave:
República de Platão; Trasímaco; Sócrates; Justiça; Injustiça; Téchne

ABSTRACT

This article aims to verify Thrasymachus' theses on justice and whether they are consistent with one another. As such, it is necessary to observe the relation between justice and government, as well as the force (krátos) which determines it. The objective is to revive in actual times the discussions about Thrasymachus' theses within Plato's philosophy, and to demonstrate its importance in the scope of political philosophy.

Keywords:
Plato's Republic; Thrasymachus; Socrates; Justice; Injustice; Téchne

A discussão entre Trasímaco e Sócrates no Livro I da República de Platão dá vigor à questão da justiça iniciada com Céfalo. Este artigo tem por princípio mostrar como Trasímaco sustenta que governo se opõe à justiça e ao bem alheio. Segundo entende, a justiça não é capaz de produzir um benefício àquele que a exerce, de maneira que todo ato de justiça é um bem alheio, mas nunca ao seu agente. Sendo assim, o motivo pelo qual os governantes desejam governar é para a sua própria vantagem e não para o benefício dos governados, de modo que a justiça é utilizada pelo governante para fazer com que os governados façam o que é vantajoso ao governante, mas não a si mesmos.

Será por meio das colocações de Trasímaco que, primeiramente, se fará a relação entre justiça, cidade e governo e, também, teremos o estabelecimento de uma arte do governo, arte essa que determinaria o justo dentro da cidade. Desde a interpretação de Kerferd1 1 KERFERD, G. B. The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic. Durham University Journal, Vol. 9, pp. 19-27, 1947, reimpresso in CLASSEN, C. J. (ed.). Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976. pp. 545-563 (citações seguem a última paginação). sobre as teses de Trasímaco, muito se tem discutido com relação ao real papel deste personagem na República de Platão, assim como ele apresenta a sua definição de justiça. O lógos de Trasímaco possui severas dificuldades de interpretação, o que levanta forte divergência entre os comentadores sobre o que realmente ele estaria querendo dizer. Ao tratar da justiça, três serão as principais teses por ele apresentadas. Colocá-las-emos por inteiro, para fins de esclarecimentos futuros.2 2 Para a tradução, utilizaremos o texto de Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta tradução como base para nosso trabalho, utilizando traduções nossas quando julgarmos necessário. Demais referências à 'República' serão abreviadas por Rep. Indicandose em seguida a numeração. Para o original grego em todo o trabalho, utilizaremos o texto estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003).

(T1) φημὶ γὰρ ἐγὼ εἶναι τὸ δίκαιον οὐκ ἄλλο τι ἢ τὸ τοῦ κρείττονος συμφέρον.

afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte. (Rep., 338c2-3)

(T2) Τίθεται δέ γε τοὺς νόμους ἑκάστη ἡ ἀρχὴ πρὸς τὸ αὑτῇ συμφέρον.

Cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência. (Rep., 338e1-2)

(T3) ἡ μὲν δικαιοσύνη καὶ τὸ δίκαιον ἀλλότριον ἀγαθὸν τῷ ὄντι, τοῦ κρείττονός τε καὶ ἄρχοντος συμφέρον, οἰκεία δὲ τοῦ πειθομένου τε καὶ ὑπηρετοῦντος βλάβη.

de fato, a justiça e o justo [são] um bem alheio, que consiste na conveniência do mais forte e do governante, e que é próprio de quem obedece e serve ter prejuízo. (Rep., 343c3-5)

Alguns comentadores alegam que a primeira tese é a real posição de Trasímaco, pois ele estaria preocupado apenas com a política e, quando ele fala sobre o mais forte, ele quer dizer, de fato, o governante.3 3 Para uma lista extensa destes, ver Nicholson, 1974. Outros pensam que a sua posição está na terceira tese.4 4 Kerferd, 1947/1976; Nicholson, 1974; Annas, 1981. Há ainda os que pensam ser Trasímaco um legalista (T2) e estaria querendo dizer que "a justiça é obediência às leis".5 5 Hourani, 1962. Contra esta posição ver, Kerferd, 1964; Hadgopoulos, 1973. Inserido nesse debate há outro ponto importante, ao qual pretendemos nos prender neste estudo, que é a verificação das teses apresentadas. Muitos trabalhos foram desenvolvidos nos últimos anos sobre o assunto, alguns defendem a total inconsistência das teses,6 6 Entre outros, Annas, 1981; Klosko, 1984; Everson, 1998. outros defendem a inconsistência devido a uma manipulação de Platão sobre o personagem Trasímaco,7 7 Harrison, 1967; Maguire, 1971. e há aqueles que defendem a consistência mediante alguns ajustes.8 8 Muitos são os autores que têm se dedicado nos últimos anos a defender uma consistência no argumento entre os mais importantes podemos citar Kerferd (1947; 1964); Hourani, 1962; Sparshott, 1966; Nicholson, 1974; Dorter, 1974; Reeve, 1985; Boter, 1986; Chappell, 1993; Reeve, 2008.

Neste artigo, faremos um detalhado estudo dos argumentos apresentados por Trasímaco, com o intuito de investigar se há, de fato, um problema de consistência nas teses apresentadas. Sem a pretensão de exaurir o problema, nosso trabalho visa tornar mais clara a discussão e se é possível falarmos em uma definição geral de justiça em Trasímaco. Para entendermos isso, é preciso antes identificar o que ele entende por 'mais forte', 'outro', 'justo' e 'injusto', caracterizando o vocabulário utilizado por ele em sua argumentação.

Justiça e governados

Em seu artigo publicado em 1947, Kerferd irá coletar as principais posições, atribuídas pelos comentadores, ao discurso de Trasímaco. Seriam estas:

  1. Obrigação moral não tem existência real, mas é uma ilusão na mente dos homens (niilismo ético).

  2. Obrigação moral não tem existência à parte de decretos legais (legalismo).

  3. Obrigação moral tem existência real independente e surge da natureza do homem (direito natural).

  4. Os homens sempre perseguem o que eles pensam ser seu próprio interesse e devem fazê-lo a partir de sua própria natureza (egoísmo psicológico).

A única destas posições aceitas por Kerferd é a (III). Para refutar as outras posições e justificar a terceira, ele irá propor que a justiça como sendo a conveniência do mais forte não pode ser tomada como definição, mas somente a justiça como sendo um bem alheio, entendendo que esta seria a real posição de Trasímaco (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 560). Dessa forma, Kerferd propõe que a defesa de Trasímaco da injustiça coloca esta como uma obrigação moral para ele, assim como a justiça é uma obrigação moral para Sócrates. Com isso, Kerferd refuta a posição (I) (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 561).

A identidade entre díkaion e nómimon, entendendo nisso uma concepção da justiça como observância das leis, estaria profundamente enraizada na cultura grega (Vegetti, 1998VEGETTI, M. "Trasimaco". In: M. Vegetti (ed.). Platone. La Repubblica. Vol. I. Napoli: Bibliopolis, 1998. pp. 233-256., p. 241).9 9 Em Xenofonte (Memoráveis, IV.4); Sócrates atesta a relação da justiça com a lei. No entanto, o posicionamento de Trasímaco sobre a justiça não pode unicamente ser defendido como "obediência às leis", pois, se assim fosse, a sugestão de Clitofonte seria aceita como solução para seu argumento. Clitofonte sugere aos demais que a lei feita pelo mais forte [governante] é o que ele julga ser sua conveniência e esta deve ser seguida pelos mais fracos [governados] (Rep., 340a-b). No entanto, tal consideração não é aceita pelo próprio Trasímaco (Rep., 340c). A recusa de Trasímaco à sugestão de Clitofonte dá base para a refutação de Kerferd à posição do legalismo (II) defendida por Hourani (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 561).

Quanto à posição (IV), Kerferd refuta-a dizendo que, em sua defesa da injustiça, Trasímaco recomenda que os homens ajam pelos seus próprios interesses, no entanto, os governados, ao contrário, agem ingenuamente porque não buscam o próprio interesse, mas fazem o interesse do governante. Isso não condiz com o egoísmo psicológico que defende que os homens perseguem sempre o próprio interesse (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 562).

Refutadas as posições (I), (II) e (IV), Kerferd irá advogar a favor da posição (III), inserindo no argumento de Trasímaco a teoria do direito natural. Segundo Kerferd, Trasímaco tomaria como regra geral para a justiça o 'bem alheio' (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 559) e defenderia um ideal moral de injustiça que se opõe à justiça (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 561).10 10 "[...] para Trasímaco a injustiça é uma obrigação moral em todos os sentidos em que para Sócrates a justiça é uma obrigação moral". Apesar de não usar a terminologia que opõe lei à natureza, Trasímaco tomaria a injustiça como uma areté e, com isso, faria da injustiça a realização da natureza dos homens (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 562). Voltaremos a esse ponto mais à frente em nosso trabalho para uma melhor análise da proposta final de Kerferd.

A inconsistência das teses dá-se ao tomarmos a relação entre governante e governados. Se a justiça é um bem alheio e a conveniência do mais forte, temos de um lado os governados praticando o que é melhor para o governante, pois este, além de ser "outro", é também o "mais forte" da relação o que faz as teses, pelo ponto de vista dos governados, estarem de acordo. No entanto, ao tomarmos o ponto de vista do governante poderíamos ter uma inconsistência, pois, caso o governante praticasse a justiça, teria que fazer necessariamente um bem para si mesmo visando à conveniência do mais forte e não a um bem alheio como estava estabelecido em (T3), portanto, nesse caso, a justiça confunde-se com a definição de injustiça, que é a busca da própria vantagem. Este é o principal problema para que os argumentos apresentados por Trasímaco possam concordar entre si. Como poderemos ver mais adiante, a relação de força (krátos) entre governantes e governados irá determinar tipos de virtudes diferentes para cada um, isto é, a justiça para os governados e a injustiça para os governantes. Para afirmar a relação da justiça com o governo, Trasímaco dirá:

Ora, em cada cidade (pólis), não é o governo que detém a força (krátos)?

Exatamente.

Certamente que cada governo (arkhé) estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a tirania, leis tirânicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis para os governados, fazem saber que é justo aquilo que lhes convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todas as cidades - a conveniência do governo estabelecido. Ora estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte (Rep., 338d9-339a4).

Ao falar da justiça, Trasímaco parece estar preocupado em demonstrar como esta se apresenta na prática dentro da cidade e na relação que estabelece dentro do governo instituído nesta. Tanto Sócrates como Trasímaco concordam que em cada cidade é o governo que detém o κράτος que, no caso estabelecido, pode ser tanto traduzido como 'força' como também 'poder'.11 11 Tomaremos estes termos como sinônimos neste trabalho sempre que estivermos falando de questões relativas ao governo. Isso inclui a relação governante e governado. O que Trasímaco parece estar estabelecendo é uma classificação dos homens a partir do krátos, dividindo-os em aqueles que têm krátos, i. e., governantes, e aqueles que não têm krátos, i. e., governados. Em nenhum momento da posterior discussão entre Sócrates e Trasímaco estes discutem quem seria, de fato, o mais forte, pois parece acordado entre eles, desde o que foi dito em 338d9-10, que o mais forte é aquele que exerce o poder na cidade por meio do governo constituído, e este só pode ser o governante. Nesse sentido, força só pode ser entendida como poder político exercido dentro da pólis, o que será melhor compreendido ao longo deste trabalho.

A relação entre lei e governo é uma das características da justiça apresentada por Trasímaco, e a determinação do justo depende da soberania estabelecida no governo. Será papel do governante, portanto, o estabelecimento das leis que determinem o justo. Eis o realismo político de Trasímaco, pois não importa qual o tipo de governo que seja estabelecido na cidade, "a justiça é a mesma em toda parte" [πανταχοῦ εἶναι τὸ αὐτὸ δίκαιον] (Rep., 339a3), de modo que justiça e governo estão sempre correlacionados pela mesma relação de poder, de acordo com Trasímaco, o que faria do krátos um fator fundamental para o governo, assim como para a distinção entre governantes e governados.

Governo e epistéme

Exposta esta concepção geral de justiça, Sócrates irá questionar Trasímaco sobre a possibilidade de o governante errar. Se na formulação das leis o governante errar, essas não vão ser sempre o mais vantajoso ao governante, mas também o contrário, o desvantajoso (Rep., 339c-e). Ao recusar a sugestão de Clitofonte de que o governante faz leis que ele pensa serem benéficas a ele, Trasímaco irá perguntar a Sócrates: "pensas que chamo mais forte aquele que se engana, no momento em que se engana?" (Rep., 340c6-7). É a partir da crítica de Sócrates que Trasímaco vai apresentar mais um elemento necessário para a definição do mais forte: ele não deve errar. Mas como pode o governante não errar? Para melhor entendermos isto, passemos à análise do argumento da téchne. Trasímaco fala com rigor [κατὰ τὸν ἀκριβῆ λόγον] que

nenhum artífice se engana. Efetivamente, só quando o seu saber o abandona é que quem erra se engana e nisso não é um artífice. Por consequência, artífice, sábio ou governante algum se engana, enquanto estiver nessa função, mas toda a gente dirá que o médico errou, ou que o governante errou. Tal é a acepção em que deves tomar a minha resposta de há pouco. Precisando os fatos o mais possível: o governante, na medida em que está no governo, não se engana; se não se engana, promulga a lei que é melhor para ele, e é essa que deve ser cumprida pelos governados. De maneira que, tal como declarei no início, afirmo que a justiça consiste em fazer o que é conveniente para o mais forte. (Rep., 340e1-341a4)

Em seu comentário à República, Adam vai dizer que Trasímaco, na passagem aqui citada, deixa os fatos para tratar de um tipo de idealismo, pois toma o governante como infalível (Adam, 2009ADAM, J. "The Republic of Plato". Edited with crtical notes commentary and appendices by James Adam. Cambridge: Cambridge University Press, 2009 (1902 - 1ª ed.). 2 Vol., p. 33). Guthrie diz haver uma falha no argumento, pois, ao tentar demonstrar o governante real, Trasímaco acaba por formular um governante ideal ao introduzir o sentido estrito de que o governante não erra (Guthrie, 2007GUTHRIE, W. K. C. "Os Sofistas". São Paulo: Paulus, 2007. (1995, 1ª ed.)., p. 92). Para Harrison, o argumento está sem um propósito adequado e representa uma das provas da manipulação de Platão sobre o personagem Trasímaco (Harrison, op. cit., p. 31). Acreditamos que a passagem não está propriamente tratando de um idealismo ou qualquer tipo de manipulação de Platão para fins futuros, mas que Trasímaco está estritamente separando a função do artífice quando está a exercer a sua arte. Dessa maneira, o médico tomado na função de exercer a medicina não é assim chamado quando erra, mas por ser aquele que é designado para tratar do corpo. O homem que toma por vezes a função de médico pode por vezes errar em seus afazeres comuns, mas não quando está exercendo a medicina. Portanto, a definição de médico não pode ser tomada pelo erro, mas pela função e utilidade específica da arte. Da mesma forma, Trasímaco está a falar do governante como aquele que no exercício de sua função faz leis que são melhores para ele, de acordo com a sua conveniência, beneficiando assim o seu próprio interesse. Trasímaco adicionou conhecimento ao poder político como condição necessária para ser o 'mais forte'.

Se conhecimento (epistéme) agora é uma das condições para se ter o krátos, não é mais qualquer governante que será o 'mais forte', mas somente os que possuírem uma téchne para governar. Dessa forma, Trasímaco está agora a tratar diretamente da téchne e sua relação com a epistéme. Nisso podemos retomar a passagem 338d9-339a4 para um reexame dela. Se não é qualquer governante que pode governar, mas somente aqueles que possuem a arte do governo, então podemos dizer que as leis feitas por estes são infalíveis, pois são feitas por artífices no exercício máximo de sua arte. Trasímaco, com a inserção da arte do governo na discussão, associa téchne, epistéme e arkhé como determinantes para a relação entre justiça e cidade, fundamentais para a sua concepção de realismo político. Dessa forma, ao contrário do que Clitofonte sugere, o governante não faz leis que crê serem convenientes para ele, mas faz leis que são realmente convenientes a ele (o mais forte), e cabe aos governados o cumprimento dessas leis.

Injustiça e areté

Temos já definidos o mais forte e o governante, precisamos verificar agora quem é o injusto segundo Trasímaco. Para isso, colocamos sua própria definição de injustiça. São duas as teses apresentadas:

(T4) ἡ δὲ ἀδικία τοὐναντίον, καὶ ἄρχει τῶν ὡς ἀληθῶς εὐηθικῶν τε καὶ δικαίων, οἱ δ' ἀρχόμενοι ποιοῦσιν τὸ ἐκείνου συμφέρον κρείττονος ὄντος, καὶ εὐδαίμονα ἐκείνον ποιοῦσιν ὑπηρετοῦντες αὐτῷ, ἐαυτοὺς δὲ οὐδ' ὁπωστιοῦν.

a injustiça é o contrário, e é quem comanda os verdadeiramente ingênuos e justos; e os governados fazem o que é conveniente para o mais forte e, servindo-o, tornam-no feliz, mas de modo algum a si mesmos (Rep., 343c5-d1).

(T5) τὸ δ' ἄδικον ἑαυτῷ λυσιτελοῦν τε καὶ συμφέρον.

A injustiça é a própria vantagem e conveniência (Rep., 344c8-9).

O injusto é definido por critério de comparação com o justo. Sendo o justo ingênuo, ele sempre será enganado pelo injusto nas relações que estabelecerem entre eles, e nisso Trasímaco dá vários exemplos de situações nas quais o injusto tem sempre mais [πλέον ἔχειν] e o justo sempre menos [ἔλαττον ἔχειν] (Cf. Rep., 343d3-343e7). É baseado nestes dois conceitos que Boter irá apresentar a posição de Trasímaco em seu artigo. Segundo ele defende, "Trasímaco tacitamente assume que a essência da justiça é ἰσότης, o oposto da πλεονεξία, uma opinião que pertence a cada grego de seu tempo, incluindo Platão" (Boter, 1986BOTER, G. J. "Thrasymachus and ΠΛΕΟΝΕΞΙΑ". Mnemosyne, Vol. 39, Nr. 3/4, pp. 261-281, 1986., pp. 266-267). Boter entende que o 'outro' é sempre o 'mais forte', seja público ou privado; o governante é um caso especial de 'mais forte' que está apto a cometer injustiça sem o risco de ser punido, distinguindo-se do injusto privado (Boter, 1986BOTER, G. J. "Thrasymachus and ΠΛΕΟΝΕΞΙΑ". Mnemosyne, Vol. 39, Nr. 3/4, pp. 261-281, 1986., p. 267). A seguir, colocamos em resumo seu raciocínio (Boter, 1986BOTER, G. J. "Thrasymachus and ΠΛΕΟΝΕΞΙΑ". Mnemosyne, Vol. 39, Nr. 3/4, pp. 261-281, 1986., pp. 273-274):

  1. A base da justiça é ἰσότης: isto significa que qualquer um segue esta regra. Leis são designadas para manter esta ἰσότης.

  2. A maioria das pessoas, no entanto, poderia preferir ter mais do que podem ter; se alguém for bem-sucedido em ter mais [πλέον ἔχειν], o resultado imediato é que alguém terá menos [ἔλαττον ἔχειν].

  3. Numa sociedade em que as leis são observadas como ἰσότης, qualquer um que as quebre deve evitar ser punido agindo sem ser percebido ou usando a violência.

  4. Se alguém que está na posição de governante deseja ter mais do que pode, ele faz isso por dissolver a identidade entre leis e justiça: o que de fato é injustiça (a πλεονεξία do governante) é chamado de justiça (obediência das leis). O governante que melhor está apto para isto é o tirano.

  5. Em todos os casos nos quais o justo tem que negociar com um injusto, seja um governante ou uma pessoa privada, o justo dá-se pior; em todos os casos, no entanto, fazer a justiça traz o bem do outro e a desvantagem do justo.

  6. O governante e o injusto privado diferenciam-se somente em grau, seus objetivos são o mesmo: πλεονεξία; seus significados são diferentes: o governante usa em seu benefício as leis, o injusto privado age λάθρᾳ καὶ βίᾳ.

De acordo com essa interpretação, temos a justiça como um bem alheio que, se for seguida por todos da cidade, trará benefício para todos. Boter faz uma distinção entre justiça essencial (ἰσότης) e justiça formal (obediência às leis). A justiça que os governados devem obedecer é a justiça formal (cf. Rep., 338e3-4); o governante, ele mesmo está fora deste tipo de justiça. No entanto, a essência da justiça é a mesma para qualquer um, incluindo o governante, sendo ela ἰσότης (Boter, 1986BOTER, G. J. "Thrasymachus and ΠΛΕΟΝΕΞΙΑ". Mnemosyne, Vol. 39, Nr. 3/4, pp. 261-281, 1986., pp. 274-275). Em oposição a Boter, podemos dizer que um benefício alheio não garante que todos os cidadãos de uma mesma pólis sejam beneficiados por este, já que dar ao outro um benefício não indica uma distribuição igualitária do mesmo benefício a todos os cidadãos. Em primeiro lugar, não nos parece correta a identificação feita por Boter de o 'outro' ser sempre o 'mais forte'. Se duas pessoas justas fazem o bem uma à outra, não há nenhuma relação de força (no sentido de krátos) entre elas, não sendo possível a identificação no outro de um 'mais forte' [κρείττων]. Também não podemos tomar o governante, nesta interpretação, como um caso especial de 'mais forte', pois se o 'mais forte' é o 'outro' de uma relação, em nada um governante se distinguiria em força dos governados quando pratica a justiça. Colocamos a seguir nossos argumentos da maneira como entendemos o longo discurso que Trasímaco faz na passagem 343b-344c, com o intuito de explicitar a nossa resposta:

  • (i) A justiça e o justo são, na realidade, um bem alheio, conveniência do mais forte e de quem governa [ἡ μὲν δικαιοσύνη καὶ τὸ δίκαιον ἀλλότριον ἀγαθὸν τῷ ὄντι, τοῦ κρείττονός τε καὶ ἄρχοντος συμφέρον], i. e., o governante (343c3-4).

  • (ii) A justiça é o prejuízo próprio de quem obedece e de quem serve, i. e., os governados (343c4-5).

  • (iii) A injustiça comanda os verdadeiros ingênuos e os justos [ἄρχει τῶν ὡς ἀληθῶς εὐηθικῶς τε καὶ δικαίων] (343c5-7).

  • (iv) A injustiça é a própria vantagem e conveniência [τὸ δ' ἄδικον ἑαυτῷ λυσιτελοῦν τε καὶ συμφέρον] (344c8-9).

  • (v) Os governados trabalham para a conveniência do verdadeiro mais forte [κρείττονος ὄντος] e fazem a felicidade [εὐδαίμονα] dele servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles próprios (343c7-d1).

  • (vi) Um indivíduo particular não pode ser nunca o mais forte (cf. Polidamas, 338c8-d1). Somente aquele que detém o poder [κράτος] pode ser considerado o mais forte, e este é o que está no governo de uma cidade (cf. 338d9).

  • (vii) Em toda parte o homem justo tem menos do que o homem injusto [ὅτι δίκαιος ἀνὴρ ἀδίκου πανταχοῦ ἔλλατον ἔχει] (343d2-3).

  • (viii) As relações de justo e injusto entre indivíduos giram em torno do πλέον ἔχειν e do ἔλαττον ἔχειν, mas nenhum deles possui o κράτος e, por isso, não podem ser considerados mais fortes enquanto indivíduos particulares (343d3-e1).

Se observarmos bem o que está dito em (i), podemos verificar que essa é a primeira vez em que Trasímaco utiliza o termo δικαιοσύνη. Segundo entendemos, o termo foi utilizado para dar uma definição geral da justiça como sendo, em realidade [τῷ ὄντι], um 'bem alheio'. Assim, toda e qualquer relação que envolva justiça terá que se remeter a isto. O justo como 'a conveniência do mais forte' é uma particularidade dessa definição geral que inclui apenas a relação entre governante e governados. Podemos verificar que em (i) há um 'e' que inclui o 'mais forte' e o 'governante' como um único e real beneficiado da justiça nesse único caso. Enquanto a definição geral de justiça é dita em (i) como sendo um bem alheio, a definição geral de injustiça consiste no que é dito em (iv) como sendo a busca da própria vantagem, pois se aplica a todos os tipos de injustos e não somente aqueles que estão no governo. Se incluirmos em (i) o que é dito em (iii), perceberemos que quem comanda [ἄρχει] os justos é a injustiça. Isto constitui uma particularidade da injustiça na formação de um governo. Analisando o que é dito em (ii), temos que os governados, que são aqueles que cumprem o que é determinado pela lei, sempre têm prejuízo com isso. Somando (ii) a (v), percebemos que há um verdadeiro mais forte [κρείττονος ὄντος] ao qual todos os governados estão subordinados. Dessa forma, se entendermos que há somente um verdadeiramente forte, não podemos aceitar que outro, senão o governante injusto, tenha o krátos.

Ao examinarmos (vii), veremos mais um caso particular da definição geral da justiça que inclui toda a relação entre indivíduos. Somando isto ao que é dito em (viii), podemos entender que a relação entre justo e injusto entre indivíduos não se dá da mesma maneira que entre governante e governados. Enquanto nesta há o krátos do governante determinando o que deve ser feito pelo governado, naquela há uma relação que gira em torno do πλέον ἔχειν e do ἔλαττον ἔχειν. O krátos tem uma relação direta com a soberania (Bordes, 1982BORDES, J. "Politeia dans la pensée grecque jusqu'a Aristote". Paris: Les Belles Lettres, 1982., p. 238) e não pode ser entendido fora do governo no âmbito do homem comum e particular. O que Trasímaco parece aqui demonstrar com seus argumentos está relacionado ao que ele entende por τὸν μεγάλα δυνάμενον πλεονεκτεῖν (Rep., 344a1), aquele que, segundo diz, tem maior capacidade [δύναμις] para agir pela pleonexía, i. e., o tirano, como iremos ver adiante. É a partir deste homem, que exerce a injustiça no ápice da sua capacidade, que Trasímaco pretende discernir o quanto é mais vantajoso para o particular ser injusto do que justo (Rep. 344a2-3). Colocamos a seguir um quadro explicativo:

  • (a) Definição geral:

    • . Justiça - bem alheio (T3).

    • . Injustiça - própria vantagem (T5).

  • (b) Governo:

    • . Justiça - conveniência do mais forte (T1) e obediência às leis (T2).

    • . Injustiça - comanda os justos e os ingênuos (T4).

Em resumo, a definição de Trasímaco sobre a justiça e a injustiça pode ser extraída dessa passagem. A justiça como um bem alheio e a injustiça como sendo a própria vantagem se adequam a todas as relações de justiça e injustiça expostas no argumento de Trasímaco. Com relação aos indivíduos, aqueles que fazem o justo promovem o bem do outro, aqueles que fazem o injusto, devido à pleonexía, promovem o seu próprio bem. Com relação ao governo, como o próprio Trasímaco afirma: "há um só modelo de justiça em todas póleis - a conveniência do governo estabelecido. Ora estes é que detêm a força" (Rep., 338e6-339a2). De fato, havíamos concordado que todo governo é considerado o 'mais forte' numa pólis. Se entendermos que o governo, ao possuir o krátos, faz leis para a sua própria conveniência, podemos dizer que cumprir a lei é beneficiar o governante em exercício. Desse modo, quem detém o poder também detém todos os benefícios do governo e isso valeria para todos os tipos de governo sejam eles tirânicos, democráticos ou oligárquicos (cf. Rep. 338d6-7). Como bem aponta Kerferd, a teoria de Trasímaco não é necessariamente subversiva (Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 563). Em uma democracia, por exemplo, fazer o bem alheio é fazer o bem a todos os cidadãos que têm representação direta na democracia, sendo esta o 'mais forte'. Em uma oligarquia, o benefício vai para alguns poucos no poder. Entretanto, se nos lembrarmos do que foi dito na passagem 340c-341a, o governo não é condição suficiente para que o governante seja o 'mais forte'. É condição necessária para o governante que ele tenha conhecimento, pois, sem este, ele não está livre do erro e, dessa forma, não pode ser considerado o mais forte.

Arte e benefício

Trasímaco entende que o governo deve ser mantido por uma téchne própria que capacitaria o governante a bem administrar a cidade e a recolher para si todos os misthoí. Somente por meio do conhecimento de sua arte é que um governante pode ser considerado como sendo um verdadeiro governante [ὡς αληθῶς ἄρχουσιν] (Cf. Rep., 343b5) e tirar para si todos os benefícios que levam à felicidade. Citemos como ele irá introduzi-lo:

Mas a maneira mais fácil de aprenderes é se chegares à mais completa injustiça, aquela que dá o máximo de felicidade ao injusto, e a maior das desditas aos que foram vítimas de injustiças, e não querem cometer atos desses. Trata-se da tirania, que arrebata os bens alheios às ocultas e pela violência, quer sejam sagrados ou profanos, particulares ou públicos, e isso não aos poucos, mas de uma só vez. Se alguém cometer qualquer destas partes da injustiça não estando oculto, é castigado e recebe as maiores injúrias. [...] Mas se este, além de se apropriar dos bens dos cidadãos, faz deles escravos e os torna seus servos, em vez destes epítetos injuriosos, é qualificado de feliz e bem-aventurado, não só pelos seus concidadãos, mas por todos os demais que souberem que ele cometeu essa injustiça completa. É que aqueles que criticam a injustiça não a criticam por recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-la (Rep., 344a4-c4).

O tirano é visto como o verdadeiro governante na visão de Trasímaco, pois permite a esse tipo de governante preocupar-se unicamente com o próprio benefício, podendo agir livremente com a injustiça. Com a introdução do tirano como paradigma do governante injusto, já podemos analisar melhor o raciocínio de Trasímaco sobre a função da justiça no governo. Na tentativa de refutar Trasímaco em seu argumento, Sócrates, em resumo, defende que cada arte se diferencia por uma dýnamis específica que produz uma utilidade. Esta utilidade [ὠφελία] é conveniente ao paciente da arte e não ao seu agente. Para que o agente possa se beneficiar é preciso atribuir junto de cada arte uma segunda arte, que é a arte dos lucros [μισθωτική] que produz um salário [μισθός] que irá recompensá-lo pelo serviço. Apesar de os misthoí serem úteis àquele que exerce sua arte, é inegável que o exercício da sua arte continua sendo útil para outros, mesmo que o artífice não receba nada por isto (Rep., 346a1-e2). Podemos dizer, assim, que os misthoí e a ophelía são referentes a pessoas diferentes, um é o que pratica a arte e recebe os misthoí por sua prática, e o outro aquele que recebe a ophelía própria da arte em questão. Para que Trasímaco possa manter o seu argumento de que a justiça é a conveniência do mais forte, ele deve conseguir provar a possibilidade de uma téchne que vise a sua própria vantagem. Somente assim ele poderia defender a existência de um governante que aja em seu próprio benefício. Trasímaco assim entende o exemplo do pastor que cuida das ovelhas visando tirar delas o seu próprio benefício (Rep., 345c-d). Por analogia, o governante agiria como um pastor e retiraria o seu benefício dos governados.

De acordo com Roochnik, Sócrates "usa isto [a analogia com a téchne] para refutar Trasímaco, um professor profissional para quem a justiça é uma téchne e em benefício do governante" (Roochnik, 1996ROOCHNIK, D. "Of Art and Wisdom. Plato's Understanding of Techne". Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; University Park, 1996., p. 144), mas para o próprio Sócrates a justiça não é uma téchne, pois é apenas "similar a téchne em seu relacionamento com o semelhante e o dessemelhante. Disto não se segue necessariamente que a justiça como conhecimento seja uma téchne" (Roochnik, 1996ROOCHNIK, D. "Of Art and Wisdom. Plato's Understanding of Techne". Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; University Park, 1996., p. 145). Roochnik sugere que o sentido de Platão utilizar a analogia com a téchne em suas obras é exortativo e refutativo, não sendo o propósito da analogia estabelecer um modelo teórico do conhecimento moral (Roochnik, 1986________. "Socrates's use of the Techne-Analogy". Journal of the History Philosophy, Vol. 24, Nr. 3, pp. 295-310, 1986., p. 303). Por um lado, concordamos com Roochnik que Sócrates não concebe a justiça como uma téchne, por outro, discordamos que Trasímaco pense ser a justiça uma téchne. Segundo entendemos, ambos concordam que o governo é uma téchne que deve ser exercida pelo governante, e é por isso que podemos falar em uma téchne do governante. O tratamento que cada um dá à téchne com relação à justiça é, no entanto, distinto. Trasímaco faz com que a arte do governo produza justiça, pois os governados devem ser justos cumprindo as determinações do governante. Ao contrário, no argumento de Sócrates, se o governante tem que ser justo, então há uma arte do governo que é exercida pela presença da justiça, não sendo esta o seu produto. Ambos incluem a justiça na téchne do governo, mas de maneira distinta. Isso, como veremos mais à frente, ocasionará em tipos de governos diferentes.

Se passarmos à análise da misthotiké, podemos perceber que ela difere das outras téchnai exemplificadas por Sócrates, pois não se enquadra na definição de téchne dada, já que visa à vantagem do artífice que dela se utiliza. A argumentação de Sócrates propõe uma reconstrução da própria téchne fora da sua função econômico-social (CAMPESE, 1998CAMPESE, S. "Misthotike". In: M. Vegetti (ed.). Platone. La Repubblica. Vol. I. Napoli: Bibliopolis, 1998. pp. 257-268., p. 259). Dessa forma, ele admite um misthós ao artífice adquirido por meio da misthotiké no exercício da sua própria téchne. Tal misthós deve ser entendido não somente como dinheiro, mas no sentido amplo de 'recompensa' que se recebe ao utilizar sua arte para a conveniência do seu objeto. No exemplo do pastor (Rep., 345c-d), Sócrates vai dizer que aquele que exercer verdadeiramente a sua função quererá cuidar do bem-estar das ovelhas, em vista do melhor para elas. No entanto, a separação socrática em duas artes distintas, a do ganho e a do pastor, é estranha, pois não admite que haja uma recompensa consequente da arte do pastor, mas entende que a recompensa só virá de uma segunda arte, i. e., a misthotiké. Segundo Roochnik, "ganhos são simplesmente um subproduto de uma téchne de primeira ordem" (Roochnik, 1996ROOCHNIK, D. "Of Art and Wisdom. Plato's Understanding of Techne". Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; University Park, 1996., p. 145). Mas isso nada mais é do que fugir do problema posto por Sócrates. A existência de uma arte que visa ao próprio benefício, como a misthotiké, mesmo que uma exceção à regra, não nos permite falar em uma definição geral de téchne que envolva sempre e necessariamente o benefício do paciente próprio da arte. Mesmo se atribuíssemos a misthotiké como sendo executada pelo beneficiado da téchne principal, como no caso do paciente que paga o médico, ainda assim não resolveríamos o problema da misthotiké, pois ela continuaria a ser uma arte sem uma epistéme específica, podendo ser utilizada por todos indistintamente. Isso abre a possibilidade para uma outra maneira de interpretar o pastor: o fim de sua arte não está em cuidar em si das ovelhas, mas o cuidar das ovelhas é meio para um objetivo maior que é a sua própria recompensa. É justamente com base nisso que Trasímaco defende o seu governante-pastor: este, assim como o pastor, cuida e governa os governados com o fim último de se beneficiar com os misthoí.12 12 Cf. Kerferd, 1976, p. 552; "no caso da arte de governar, o objeto imediato é o governado, mas o objeto último é o interesse do governante". Dessa forma, o governante injusto de Trasímaco utilizará como meio tudo aquilo que tiver como fim o seu próprio benefício, não estando os misthoí de forma alguma separados da própria arte de governar.

O tirano é aquele que não apenas visa a seu próprio benefício como aquele que controla a justiça dos governados. Nesse caso, o que Trasímaco está a dizer é que a justiça está subordinada à injustiça do governante, não o contrário, como pretendemos demonstrar. Dessa forma, o tirano não seria o completo injusto porque infringe todas as leis, como defendem as teorias legalistas. Ele seria o completamente injusto, primeiro, porque ele age em benefício próprio quando assim deseja; segundo, é o governante e, portanto, aquele que determina o justo; e terceiro, faz as leis em sua própria conveniência e, por isso, é aquele que recebe todos os benefícios dos governados quando estes cumprem seus atos com justiça, pois domina-os com seu poder.13 13 Cf. Kerferd, 1976, p. 559; "em prática, a justiça (quando olhamos do ponto de vista dos governados) equivale a procurar o interesse do mais forte como sendo um interesse alheio, enquanto a injustiça, que é normalmente possível para o governante somente, é proveitosa e vantajosa por si mesma". Reeve, 1985, p. 259; "justiça é o interesse do Governante mais forte". Sparshott, 1966, p. 434; "a superioridade do injusto é simplesmente o supremo controle dos meios para o poder". O governante de Trasímaco é muito engenhoso, pois ele, como detentor do krátos, livra-se de qualquer infração da lei.

A questão que nos fica é se Trasímaco consegue defender o seu modelo de governante, garantindo neste a felicidade e a bem-aventurança do tirano. Para isso, ele deve ser capaz de defender a sua concepção de governo, que consiste na arte de governar pela injustiça, demonstrando a sua possibilidade epistêmica, para o pleno desenvolvimento de uma téchne da injustiça.

Arte e injustiça

A maneira pela qual Sócrates e Trasímaco entendem a téchne do governante leva a tipos de governo diferentes. Há entre os dois uma clara disputa entre quem é, de fato, o verdadeiro governante: o justo (defendido por Sócrates) ou o injusto (defendido por Trasímaco). Tal disputa deve ser também resolvida no campo epistêmico, pois Trasímaco pretende demonstrar a possibilidade do governo injusto na cidade. Ou seja, a sua concepção de governo envolve a defesa de uma epistéme técnica que possibilite o krátos do governo injusto, cujo paradigma seria a tirania. Para Trasímaco a epistéme é condição necessária para se ter o krátos e, desse modo, aquele que conseguir demonstrar qual é, de fato, o verdadeiro governante estará também provando que tipo de governante é o verdadeiro detentor da arte do governo, podendo ser chamado de 'mais forte'. Se as premissas de Sócrates forem totalmente aceitas e a conclusão obtida for de que o governante enquanto artífice visa à conveniência/utilidade do governado, então, este governante só pode ser justo (cf. Rep., 341c-343a). Tomado desta maneira, o tirano de Trasímaco não é considerado um verdadeiro governante, pois este age em seu próprio benefício. Trasímaco só poderia apontar uma prática que ocorre nos governos, uma tese descritiva da justiça e da injustiça, mas não poderia defender o governante injusto como verdadeiro governante. Para manter sua tese do governo injusto, Trasímaco deveria negar as premissas de Sócrates e defender que o governo beneficia unicamente o governante.

Chappell em seu artigo (1993)CHAPPELL, T. D. J. "The Virtues of Thrasymachus". Phronesis, Vol. 38, Nr. 1, pp. 1-17, 1993. defende que há apenas uma tese descritiva em Trasímaco e não uma tese prescritiva. Para isso, tentará provar que Trasímaco não utiliza os termos vício e virtude nem para a justiça nem para a injustiça. A injustiça seria a característica do homem virtuoso e excelente, mas sem ser ela mesma o caráter principal que faz dele um homem virtuoso (Chappell, 1993CHAPPELL, T. D. J. "The Virtues of Thrasymachus". Phronesis, Vol. 38, Nr. 1, pp. 1-17, 1993., p. 9). Concordamos com Chappell que há uma tese descritiva em Trasímaco, entretanto, o que não aceitamos é que não haja distinção entre vício e virtude nos argumentos defendidos por Trasímaco. Será exatamente a distinção entre vício e virtude que Trasímaco fará com relação à justiça e à injustiça, dando a cada uma delas um valor correspondente.

Isso fica claro quando ele se refere ao governante como artífice que não erra no exercício de sua função, Trasímaco também aproxima dessa definição o sábio [σοφός] (Rep., 340e5). Se tomarmos o sábio ligado ao argumento da infalibilidade do artífice, teremos um argumento de conhecimento [ἐπιστήμη] (Rep., 340e3). Dessa forma, o artífice tem um saber que o impede de errar e, se ele erra em algum momento, é porque este saber o abandonou, não devendo ser chamado artífice aquele que se encontra nesta situação. A única maneira de manter o argumento de Trasímaco coerente seria a recusa dele da definição do governante como um artífice que visa à utilidade do governado, mantendo assim que o governante é um tipo especial de artífice que visa a sua própria utilidade. Esta seria a solução para manter o verdadeiro governante como sendo o mais injusto dos homens. Para fazer isto, Trasímaco terá de defender a injustiça como excelência [ἀρετή] e o injusto como sábio [σοφός] nos seus afazeres, o que indica que há também, nos argumentos apresentados por Trasímaco, uma tese prescritiva. Com o intuito de esclarecer este ponto, Sócrates irá prosseguir com Trasímaco a discussão em torno do melhor tipo de vida: se é a injusta ou a justa (Rep., 347e et seq.).

Para Trasímaco, a justiça é uma sublime ingenuidade [πάνυ γενναία εὐήθειαν14 14 Segundo Gaudin (1981, p. 148), ao utilizar a palavra εὐήθεια, "Trasímaco convida Sócrates a penetrar, como ele, no 'negativo' da justiça que é a lei real da política ateniense". ] e a injustiça é prudência [εὐβουλίαν] (Rep., 348d), sendo sensatos e bons [φρόνιμοί καὶ ἀγαθοί] somente os homens capazes [δυνάμενοι ἀνθρώπων] de serem completamente injustos, com força para submeterem à sua autoridade as póleis (Rep., 348d). Ao tratar do homem com dýnamis para ser completamente injusto, Trasímaco está a falar novamente do tirano.15 15 Cf. Rep., 344a1; τὸν μεγάλα δυνάμενον πλεονεκτεῖν. É este que simboliza seu verdadeiro governante, único capaz da mais completa injustiça.16 16 O homem capaz, no caso citado, é aquele que tem dýnamis suficiente para realizar a mais completa injustiça. Esse, como apontamos na nota anterior, só pode ser o tirano. Como ele deixa bem claro, os outros tipos de injustiça "são por certo proveitosos, enquanto não descobertos. Mas não vale a pena falar deste assunto, mas sim daquilo de que há pouco fiz menção" (Rep., 348d7-9). Entendemos, dessa maneira, a partir da própria colocação de Trasímaco (acima citada), que ao falarmos de injusto estaremos falando agora do completamente injusto, i. e., o tirano. De acordo com Trasímaco, somente este tipo de injusto, capaz da mais completa injustiça, pode ser elevado ao estatuto de phrónimos e agathós.

O que precisa ficar claro aqui é a divisão da injustiça feita por Trasímaco. De um lado, temos a injustiça comum, do outro, temos a completa injustiça. O fator determinante para essa distinção será o krátos, de modo que aquele que detém o krátos ocupando o lugar de governante pode se realizar completamente a injustiça. Ambas seriam vantajosas e procurariam tirar o máximo proveito de suas ações, mas somente a última, a completa injustiça, leva à felicidade. Duas passagens parecem suportar esta interpretação. Colocá-las-emos uma seguida da outra para fins explicativos:

1. Se alguém cometer qualquer destas partes da injustiça não estando oculto, é castigado e recebe as maiores injúrias. Efetivamente, a quem cometer qualquer desses malefícios isoladamente, chama-se sacrílego, comerciante de escravos, gatuno, espoliador, ladrão. Mas se este, além de se apropriar dos bens dos cidadãos, faz deles escravos e os torna seus servos, em vez destes epítetos injuriosos, é qualificado de feliz e bem-aventurado, não só pelos seus concidadãos, mas por todos os demais que souberem que ele cometeu essa injustiça completa (Rep., 344b1-c3).

2. Acaso te parecem ser sensatos e bons os injustos, Trasímaco?

Sem dúvida, os que são capazes de ser completamente injustos, com força para submeterem cidades à sua autoridade. Julgas talvez que me refiro aos que tiram as bolsas de dinheiro. É que também isso é proveitoso, se passar despercebido. Mas não vale a pena falar do assunto, mas sim daquilo de que há pouco fiz menção (Rep., 348d3-9).

A definição geral de injustiça diz que se deve procurar a própria vantagem com o intuito de se ter sempre mais do que o outro. No entanto, há modos diferentes para se conseguir agir dessa forma. Ambas as passagens citadas sustentam uma divisão entre o injusto comum e o completamente injusto. O injusto comum deve agir ocultamente e se for pego será penalizado por isso, não podendo realizar o seu desejo se não estiver oculto à lei. O completamente injusto possui o krátos e determina a lei, de modo que não precisa se ocultar à lei, mas a utiliza para realizar o seu próprio fim injusto, i. e., a sua própria vantagem. A distinção não é incoerente, apenas hierarquiza a injustiça, fazendo do tirano o único realmente feliz ao realizar a injustiça, pois pode realizá-la plenamente. Isso nos faz ir contra a posição (III) de Kerferd, que defende a injustiça inerente à natureza humana.17 17 Kerferd, 1976, p. 562; "Ele [Trasímaco] não usa a terminologia daqueles que opõe lei e natureza, mas sua equação da injustiça como virtude (areté) demonstra que ele considera a injustiça como um cumprimento da natureza dos homens. Consequentemente, ele deve ser corretamente inserido entre os proponentes da teoria do direito natural". Grifos meus. Primeiramente, não há nada que indique que há em Trasímaco um desejo de injustiça em todos os homens. O que existe são homens injustos que agem por pleonexía. Depois, entre esses homens injustos, somente uma classe restrita é capaz de atingir a injustiça plenamente, são estes os tiranos. Quando Trasímaco aproxima a injustiça da excelência, está tratando apenas da completa injustiça, que é capaz de tornar felizes os homens que conseguem alcançá-la. Nisso, Trasímaco dará à injustiça todos os atributos normalmente dados à justiça, sendo bela e forte [καλὸν καὶ ἰσχυρόν], assim como se encontra ao lado da excelência e da sabedoria [ἐν ἀρετῇ καὶ σοφίᾳ] (Rep., 348e-349a). Podemos afirmar isto pela concordância de Trasímaco à pergunta de Sócrates sobre a excelência da injustiça, com um enfático "Adivinhaste a pura verdade" em 349a4. Dados estes pressupostos de Trasímaco, os quais Sócrates pretende investigar, eles irão concordar que

  • (A) o justo não quer exceder [πλέον ἔχειν - πλεονεκτεῖν] outro justo, mas somente o injusto; e o injusto quer ter mais que todos [ὅς γε πάντων πλέον ἔχειν]; no que concluem que o justo não quer exceder o seu semelhante, mas o seu oposto, ao passo que o injusto quer exceder tanto o seu semelhante como o seu oposto (Rep., 349b-d).

  • (B) Cada um deles tem a qualidade daqueles com quem se parece (Rep., 349d).

  • (C) O artífice é bom naquilo que é sensato, e o não artífice é mau naquilo em que é ignorante [ἅπερ φρόνιμον, ἀγαθόν, ἃ δὲ ἄφρονα, κακόν] (Rep., 349e).

  • (D) Em geral, todo artífice não pretende exceder seu semelhante, mas sim seu oposto, isto é, o não artífice; e o não artífice pretende exceder tanto o artífice como o não artífice. Isso vale para toda espécie de conhecimento ou de ignorância [περὶ πάσης δὲ ὅρα ἐπιστήμης τε καὶ ἀνεπιστημοσύνης] (Rep., 349e-350a).

  • (E) Aquele que conhece é sábio [ὁ δὲ ἐπιστήμων σοφός] e o sábio é bom [ὁ δὲ σοφὸς ἀγαθός]. O homem que é bom e sábio não quererá exceder o que lhe é semelhante, mas sim o que é diverso; o homem que não conhece [ἀνεπιστήμων] é mau e ignorante [κακὸς τε καὶ ἀμαθής] e quer exceder o que lhe é semelhante e seu contrário (Rep., 350b).

  • (F) O justo assemelha-se ao homem sábio e bom, e o injusto ao mau e ignorante. Como ambos concordaram que cada um tem as qualidades daquele a que se assemelha, logo, o justo revela-se como bom e sábio, e o injusto como ignorante e mau (Rep., 350c).

O argumento posto acima correlaciona téchne e epistéme para distinguir o justo do injusto. Ao aproximar o justo do sábio e do bom, Sócrates aproveitar-se-á disso para dizer que ele e Trasímaco concordaram que a justiça é virtude e sabedoria [διωμολογησάμεθα τὴν δικαιοσύνην ἀρετὴν εῖναι καὶ σοφίαν] (Cf. Rep., 350d4-5). Podemos aceitar isto se aproximarmos o bom do áristos e assim teríamos uma relação da justiça com a areté.18 18 A palavra áristos possui o mesmo radical de areté conforme demonstra Jaeger, 2003, pp. 26-28. Pelo que podemos entender do argumento, entre a justiça e a injustiça, aquela que receber os melhores atributos será classificada como areté e sophía (Rep., 349a). Tais atributos são os mesmos atribuídos aos artífices no exercício de sua arte, sendo estes: phrónimos, agathós, epistémon e sophós (Rep., 349e-350b).

Trasímaco parece ter se tornado dócil a Sócrates, não estando mais disposto a argumentar contra este, já que Sócrates não permite que ele fale à sua maneira. Apesar disso, Trasímaco encontra-se visivelmente contrariado, de maneira que poderíamos supor que ele não concorda com Sócrates. Apesar de ele não responder a Sócrates como gostaria de responder (Cf. Rep., 350e6), temos elementos suficientes no discurso de Trasímaco para tentar defendê-lo. É importante notar que a cena dramática claramente demonstra a insatisfação de Trasímaco ao ter de responder Sócrates e não poder falar como ele bem quiser. Quando Sócrates pede que Trasímaco não responda contra a própria opinião, ele responde: "de maneira a poder agradar-te, uma vez que não consentes que eu fale" (Rep., 350e). É visível nessa parte que Trasímaco mantém o compromisso de manter um lógos comum aos dois, mas ele mesmo se sente contrariado de continuar nesses termos de pergunta e resposta e, em protesto, evita contrariar Sócrates.

O que pretendemos fazer nessa parte de nosso trabalho é dar uma resposta possível para tornar coerente a posição de Trasímaco diante da posição de Sócrates. Isso implica tornar mais clara a posição de Trasímaco perante os argumentos de Sócrates e fazê-lo falar quando preferiu calar. Nosso intuito é verificar a forma dos argumentos de Trasímaco, apesar da sua iminente refutação. Da maneira como vemos, a estrutura apresenta um problema não resolvido na discussão.

O fato de um artífice dominar sua arte e, por isso, ser sábio, não está relacionado ao fato de ele ser justo. As justificativas de Trasímaco e de Sócrates não partem do mesmo princípio para explicar por que o justo não quer exceder o justo. Enquanto aquele diz que o justo não excede o justo, "pois não seria refinado, como agora, nem de caráter simples" [οὐ γὰρ ἂν ἦν ἀστεῖος, ὧσπερ νῦν, καὶ εὐήθης] (Rep., 349b4-5), o que nos parece uma disposição de caráter inerente àquele que é justo, Sócrates irá defender que o justo não quererá exceder o justo porque é conhecedor da sua arte. Dessa forma, todo o conhecedor [ἐπιστήμων] só deseja exceder o não conhecedor [ἀνεπιστήμων], enquanto este deseja exceder ambos. Entretanto, o argumento socrático, apesar de correto em determinadas situações, como na afinação de um instrumento, apresenta uma conclusão falaciosa ao entender isso como uma regra geral para todas as artes. Não é correto, por exemplo, dizer que o conhecedor somente deseja exceder o não conhecedor. Nos jogos de soma zero como xadrez, jogo de damas, boxe, tênis, lutas marciais, ambos os oponentes possuidores de epistéme tentam superar um ao outro. Esses exemplos são mais do que suficientes para provar que é possível que um conhecedor queira exceder outro conhecedor de uma mesma arte. Isso não significa dizer que a arte do governo deva ser um jogo de perda e ganho, mas que Trasímaco assim o entende e que a posição socrática não refutou esse ponto, pois a mera opção de tomar outro caminho não é impossibilitar o primeiro caminho. Ou seja, Trasímaco entende que a arte do governo deve beneficiar aquele que detém o governo desta e, portanto, na medida em que o governante se beneficia (ganha), os governados prejudicam-se (perdem). Isso torna a via trasimaquiana ainda válida perante a posição socrática, vide a existência de outras artes que se utilizam dessa lógica de ganho e perda.

Santas aponta para a fraqueza da analogia de Sócrates, entendendo que pleonekteîn pode significar diferentes coisas quando aplicado à justiça e às artes (Santas, 2010SANTAS, G. "Understanding Plato's Republic". Oxford: Wiley-Blackwell, 2010., p. 28). A aplicação para o termo seria diferente em Sócrates e em Trasímaco. "Em um caso nós temos a noção de fazer as coisas bem e fazê-las mal (as artes), no outro caso nós temos a noção de não ter mais coisas (justiça) e ter mais do que os outros (injustiça)" (Santas, 2010SANTAS, G. "Understanding Plato's Republic". Oxford: Wiley-Blackwell, 2010., p. 29). O excesso [πλέον ἔχειν] não nos parece um problema epistêmico nos termos do argumento socrático, mas deve ser resolvido nos próprios termos de Trasímaco. O que Trasímaco está a afirmar é que o injusto deseja exceder a todos por ser conhecedor da sua arte. Como conhecedor da sua arte, o injusto não poderia admitir que o fato de ele querer exceder a todas as pessoas seja sinal de ignorância, mas o contrário. O injusto tem a capacidade para exceder a todos os outros por ser phrónimos, agathós, epistémon e sophós, sendo, dessa forma, um homem excelente e completo. A determinação de areté, portanto, tornou-se imprescindível para a defesa dos argumentos expostos, pois aquele que conseguir associar o seu argumento à areté poderá definir o seu governante como feliz. Devemos agora analisar se a analogia com a téchne é suficiente para garantir um argumento da justiça ou injustiça como areté.

Para que Trasímaco não seja refutado e mantenha o seu argumento coerente, ele teria que contra-argumentar defendendo a possibilidade da existência de artífices que visam a sua própria conveniência, sendo o governante um deles; e dizer que aquele que conhece sua arte também pode querer a todos exceder, pois nada impede que o artífice conheça (tenha epistéme e sophía) e aja com injustiça por considerar sua prática mais vantajosa. Desse modo, bastaria um caso de exceção para derrubar o método indutivo proposto por Sócrates para dar uma definição geral de téchne. Se estivermos corretos em nossa investigação, os argumentos de Sócrates foram, até o momento, insuficientes na refutação de Trasímaco, o que coloca ainda como possível a existência do tirano como o verdadeiro governante (cf. Rep., 343b5). O injusto é aquele que tem a sua alma tomada pela pleonexía, o que faz com que ele aja sempre em busca da sua vantagem em detrimento dos outros. Para Trasímaco, ter mais do que os outros é um atributo inerente da prudência (eubolía) do injusto, a qual permitiria a este exceder a todos os demais homens, sejam eles justos ou injustos. Dessa forma, sendo o detentor do krátos, o governante injusto é aquele que determina a justiça para os governados sem que ele mesmo se preocupe com isso.

O que fizemos neste trabalho foi uma apresentação das teses de Trasímaco mostrando como ele direciona seus argumentos para responder as refutações de Sócrates. Para tal, utilizamo-nos dos principais estudos sobre o assunto com o intuito de elaborar uma exposição adequada dos problemas inseridos na discussão. No encaminhamento da discussão, arriscamos algumas hipóteses que tentam responder as passagens onde Trasímaco se cala, no esforço de dar força ao seu lógos e relevância para as questões relativas à justiça.

Nem Sócrates nem Trasímaco conseguem defender suas posições. Isto faz do momento da discussão em questão ainda incerto quanto à definição da justiça como uma areté em si mesma e da injustiça como uma kakía em si mesma. Enquanto o problema da areté ficar em aberto e a justiça não garantir para si um lugar como verdadeira virtude, a consistência das teses de Trasímaco e a existência do governante completamente injusto serão fantasmas que assombrarão a obra. Prova disso é que o legado de Trasímaco será retomado pelos irmãos Gláucon e Adimanto, que, insatisfeitos com a argumentação de Sócrates e com a fácil desistência de Trasímaco, darão fôlego à discussão que se desenrolará nos demais livros da obra. Mas isso já seria trabalho para um outro artigo.19 19 Agradeço aos professores Carolina Araújo e Paulo Butti de Lima, pela leitura prévia do manuscrito, assim como ao parecerista anônimo, pelas suas valiosas considerações.

  • 1
    KERFERD, G. B. The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic. Durham University Journal, Vol. 9, pp. 19-27, 1947, reimpresso in CLASSEN, C. J. (ed.). Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976. pp. 545-563 (citações seguem a última paginação).
  • 2
    Para a tradução, utilizaremos o texto de Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta tradução como base para nosso trabalho, utilizando traduções nossas quando julgarmos necessário. Demais referências à 'República' serão abreviadas por Rep. Indicandose em seguida a numeração. Para o original grego em todo o trabalho, utilizaremos o texto estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003).
  • 3
    Para uma lista extensa destes, ver Nicholson, 1974NICHOLSON, P. P. "Unravelling Thrasymachus' Arguments in The Republic". Phronesis, Vol. 19, Nr. 3, pp. 210-232, 1974..
  • 4
    Kerferd, 1947/1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563.; Nicholson, 1974NICHOLSON, P. P. "Unravelling Thrasymachus' Arguments in The Republic". Phronesis, Vol. 19, Nr. 3, pp. 210-232, 1974.; Annas, 1981.
  • 5
    Hourani, 1962HOURANI, G. F. "Thrasymachus' Definition of Justice in Plato's Republic". Phronesis, Vol. 7, Nr. 2, pp. 110-120, 1962.. Contra esta posição ver, Kerferd, 1964________. "Thrasymachus and Justice: a Reply". Phronesis, Vol. 9, Nr. 1, pp. 12-16, 1964.; Hadgopoulos, 1973HADGOPOULOS, D. J. "Thrasymachus and Legalism". Phronesis, Vol. 18, Nr. 3, pp. 204-208, 1973..
  • 6
    Entre outros, Annas, 1981; Klosko, 1984KLOSKO, G. "Thrasymachos' Eristikos: The Agon Logon in Republic I". Polity, Vol. 17, Nr. 1, pp. 5-29, 1984.; Everson, 1998EVERSON, S. "The Incoherence of Thrasymachus". Oxford Studies in Ancient Philosophy, Vol. 16, pp. 99-131, 1998..
  • 7
    Harrison, 1967HARRISON, E. L. "Plato's Manipulation of Thrasymachus". Phoenix, Vol. 21, Nr. 1, pp. 27-39, 1967.; Maguire, 1971MAGUIRE, J. P. "Thrasymachus - or Plato?". Phronesis, Vol. 16, Nr. 2, pp. 142-163, 1971..
  • 8
    Muitos são os autores que têm se dedicado nos últimos anos a defender uma consistência no argumento entre os mais importantes podemos citar Kerferd (1947; 1964)________. "Thrasymachus and Justice: a Reply". Phronesis, Vol. 9, Nr. 1, pp. 12-16, 1964.; Hourani, 1962HOURANI, G. F. "Thrasymachus' Definition of Justice in Plato's Republic". Phronesis, Vol. 7, Nr. 2, pp. 110-120, 1962.; Sparshott, 1966SPARSHOTT, F. E. "Socrates and Thrasymachus". The Monist, Vol. 50, Nr. 3, pp. 421-459, 1966.; Nicholson, 1974NICHOLSON, P. P. "Unravelling Thrasymachus' Arguments in The Republic". Phronesis, Vol. 19, Nr. 3, pp. 210-232, 1974.; Dorter, 1974DORTER, K. "Socrates' Refutation of Thrasymachus and Treatment of Virtue". Philosophy & Rhetoric, Vol. 7, Nr. 1, pp. 25-46, 1974.; Reeve, 1985________. "Socrates Meets Thrasymachus". Archiv für Geschichte der Philosophie, Vol. 67, Nr. 3, pp. 246-265, 1985.; Boter, 1986BOTER, G. J. "Thrasymachus and ΠΛΕΟΝΕΞΙΑ". Mnemosyne, Vol. 39, Nr. 3/4, pp. 261-281, 1986.; Chappell, 1993CHAPPELL, T. D. J. "The Virtues of Thrasymachus". Phronesis, Vol. 38, Nr. 1, pp. 1-17, 1993.; Reeve, 2008_______. "Glaucon's Challenge and Thrasymacheanism". Oxford Studies in Ancient Philosophy, Vol. 34, pp. 69-103, 2008..
  • 9
    Em Xenofonte (Memoráveis, IV.4); Sócrates atesta a relação da justiça com a lei.
  • 10
    "[...] para Trasímaco a injustiça é uma obrigação moral em todos os sentidos em que para Sócrates a justiça é uma obrigação moral".
  • 11
    Tomaremos estes termos como sinônimos neste trabalho sempre que estivermos falando de questões relativas ao governo. Isso inclui a relação governante e governado.
  • 12
    Cf. Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 552; "no caso da arte de governar, o objeto imediato é o governado, mas o objeto último é o interesse do governante".
  • 13
    Cf. Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 559; "em prática, a justiça (quando olhamos do ponto de vista dos governados) equivale a procurar o interesse do mais forte como sendo um interesse alheio, enquanto a injustiça, que é normalmente possível para o governante somente, é proveitosa e vantajosa por si mesma". Reeve, 1985________. "Socrates Meets Thrasymachus". Archiv für Geschichte der Philosophie, Vol. 67, Nr. 3, pp. 246-265, 1985., p. 259; "justiça é o interesse do Governante mais forte". Sparshott, 1966SPARSHOTT, F. E. "Socrates and Thrasymachus". The Monist, Vol. 50, Nr. 3, pp. 421-459, 1966., p. 434; "a superioridade do injusto é simplesmente o supremo controle dos meios para o poder".
  • 14
    Segundo Gaudin (1981, p. 148)GAUDIN, C. "ΕΥΗΘΕΙΑ. La Théorie Platonicienne de L'Innocence". Revue Philosophique de la France e de l'Étranger, Vol. 171, Nr. 2, pp. 145-168, 1981., ao utilizar a palavra εὐήθεια, "Trasímaco convida Sócrates a penetrar, como ele, no 'negativo' da justiça que é a lei real da política ateniense".
  • 15
    Cf. Rep., 344a1; τὸν μεγάλα δυνάμενον πλεονεκτεῖν.
  • 16
    O homem capaz, no caso citado, é aquele que tem dýnamis suficiente para realizar a mais completa injustiça. Esse, como apontamos na nota anterior, só pode ser o tirano.
  • 17
    Kerferd, 1976KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik. Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563., p. 562; "Ele [Trasímaco] não usa a terminologia daqueles que opõe lei e natureza, mas sua equação da injustiça como virtude (areté) demonstra que ele considera a injustiça como um cumprimento da natureza dos homens. Consequentemente, ele deve ser corretamente inserido entre os proponentes da teoria do direito natural". Grifos meus.
  • 18
    A palavra áristos possui o mesmo radical de areté conforme demonstra Jaeger, 2003JAEGER, W. "Paidéia". Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003., pp. 26-28.
  • 19
    Agradeço aos professores Carolina Araújo e Paulo Butti de Lima, pela leitura prévia do manuscrito, assim como ao parecerista anônimo, pelas suas valiosas considerações.

Referências

Referências
  • ADAM, J. "The Republic of Plato". Edited with crtical notes commentary and appendices by James Adam. Cambridge: Cambridge University Press, 2009 (1902 - 1ª ed.). 2 Vol.
  • PEREIRA, M. H. R. "A República". Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
  • SLINGS, S. R. "Platonis Rempvblicam, recognovit brevique adnotatione critica instrvxit: S. R. Slings". Oxford: Oxford University Press, 2003.
  • VEGETTI, M. "Platone. La Repubblica". Vol. 1. Traduzione e commento a cura di Mario Vegetti. Napoli: Bibliopolis, 1998.
  • BARNEY, R. "Socrates' Refutation of Thrasymachus". In: G. Santas (ed.). The Blackwell Guide to Plato's Republic Malden: Blackwell Publishing Ltd, 2006. pp. 44-62.
  • BORDES, J. "Politeia dans la pensée grecque jusqu'a Aristote". Paris: Les Belles Lettres, 1982.
  • BOTER, G. J. "Thrasymachus and ΠΛΕΟΝΕΞΙΑ". Mnemosyne, Vol. 39, Nr. 3/4, pp. 261-281, 1986.
  • CAMPESE, S. "Misthotike". In: M. Vegetti (ed.). Platone. La Repubblica Vol. I. Napoli: Bibliopolis, 1998. pp. 257-268.
  • CHAPPELL, T. D. J. "The Virtues of Thrasymachus". Phronesis, Vol. 38, Nr. 1, pp. 1-17, 1993.
  • ________. "Thrasymachus and Definition". Oxford Studies in Ancient Philosophy, Vol. 18, pp. 101-107, 2000.
  • DORTER, K. "Socrates' Refutation of Thrasymachus and Treatment of Virtue". Philosophy & Rhetoric, Vol. 7, Nr. 1, pp. 25-46, 1974.
  • EVERSON, S. "The Incoherence of Thrasymachus". Oxford Studies in Ancient Philosophy, Vol. 16, pp. 99-131, 1998.
  • GAUDIN, C. "ΕΥΗΘΕΙΑ. La Théorie Platonicienne de L'Innocence". Revue Philosophique de la France e de l'Étranger, Vol. 171, Nr. 2, pp. 145-168, 1981.
  • GUTHRIE, W. K. C. "Os Sofistas". São Paulo: Paulus, 2007. (1995, 1ª ed.).
  • HADGOPOULOS, D. J. "Thrasymachus and Legalism". Phronesis, Vol. 18, Nr. 3, pp. 204-208, 1973.
  • HARRISON, E. L. "Plato's Manipulation of Thrasymachus". Phoenix, Vol. 21, Nr. 1, pp. 27-39, 1967.
  • HOURANI, G. F. "Thrasymachus' Definition of Justice in Plato's Republic". Phronesis, Vol. 7, Nr. 2, pp. 110-120, 1962.
  • JAEGER, W. "Paidéia". Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • KERFERD, G. B. "The Doctrine of Thrasymachus in Plato's Republic". Durham University Journal, Vol. 40, pp. 19-27, 1947; reimpresso in CLASSEN, C. J. Sophistik Wege der Forschung, Band 187, Darmstadt, 1976. pp. 545-563.
  • ________. "Thrasymachus and Justice: a Reply". Phronesis, Vol. 9, Nr. 1, pp. 12-16, 1964.
  • KLOSKO, G. "Thrasymachos' Eristikos: The Agon Logon in Republic I". Polity, Vol. 17, Nr. 1, pp. 5-29, 1984.
  • LIMA, P. B. "Arqueologia da Política: Leitura da República de Platão". São Paulo: Perspectiva, 2016.
  • MAGUIRE, J. P. "Thrasymachus - or Plato?". Phronesis, Vol. 16, Nr. 2, pp. 142-163, 1971.
  • NICHOLSON, P. P. "Unravelling Thrasymachus' Arguments in The Republic". Phronesis, Vol. 19, Nr. 3, pp. 210-232, 1974.
  • REEVE, C. D. C. (1988). "Philosopher-Kings. The Argument of Plato's Republic". Indianópolis; Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2006.
  • ________. "Socrates Meets Thrasymachus". Archiv für Geschichte der Philosophie, Vol. 67, Nr. 3, pp. 246-265, 1985.
  • _______. "Glaucon's Challenge and Thrasymacheanism". Oxford Studies in Ancient Philosophy, Vol. 34, pp. 69-103, 2008.
  • ROOCHNIK, D. "Of Art and Wisdom. Plato's Understanding of Techne". Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; University Park, 1996.
  • ________. "Socrates's use of the Techne-Analogy". Journal of the History Philosophy, Vol. 24, Nr. 3, pp. 295-310, 1986.
  • SANTAS, G. "Understanding Plato's Republic". Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.
  • SPARSHOTT, F. E. "Socrates and Thrasymachus". The Monist, Vol. 50, Nr. 3, pp. 421-459, 1966.
  • VEGETTI, M. "Trasimaco". In: M. Vegetti (ed.). Platone. La Repubblica Vol. I. Napoli: Bibliopolis, 1998. pp. 233-256.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2017
  • Aceito
    07 Abr 2018
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha, CEP: 31270-301 Belo Horizonte MG - Brasil, Tel: (31) 3409-5025, Fax: (31) 3409-5041 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: kriterion@fafich.ufmg.br