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UMA PROPOSTA EM DOIS PASSOS PARA REABILITAR O REALISMO EXPERIMENTAL

RESUMO

Neste artigo pretendo expor sinteticamente os problemas levantados contra uma das formas de realismo científico conhecida como realismo experimental, além de propor uma formulação mais aceitável do mesmo, resistente a tais críticas. Os problemas alegados pelos oponentes do realismo experimental variam desde a acusação de inadequação em relação à prática da comunidade científica, até a inconsistência ao admitir entidades e propriedades postuladas teoricamente recusando, entretanto, as teorias em que tais entidades e propriedades aparecem. Some-se a essas críticas a de que o próprio critério do realismo de entidades seria implausível, seja porque falha na produção de crenças verdadeiras ou porque não fornece garantias melhores do que outras formas de realismo científico. Argumentarei que, adotando o realismo experimental exclusivamente como um critério epistêmico e aplicando tal critério às propriedades (antes que às entidades) é possível contornar as críticas, reabilitando uma proposta realista que muitos consideravam já descartada.

Palavras-chave
Filosofia da ciência; realismo científico; realismo de entidades; realismo experimental

ABSTRACT

In this paper, I will expose briefly the problems raised against one kind of scientific realism known by experimental realism and also will propose an acceptable formulation of that realism, resistant to those criticisms. The problems claimed by the experimental realism’s opponents range from the accusation of inadequacy with the scientific community’s practice to the claim that the admission of entities and proprieties without accepting the theories in which those proprieties and entities are supposed is incoherent. Besides, there is another criticism which states that the entities realism’s criterion is implausible, either because it fails to produce true beliefs or because there is no better warranty in adopting it than other kinds of scientific realism. I will argue that adopting experimental realism exclusively as an epistemic criterion and applying that criterion to proprieties (rather than to entities) it is possible to escape the criticisms, rehabilitating a realist propose that many people though already discarded.

Keywords
Entity Realism; Experimental Realism; philosophy of science; scientific realism

1. Breve introdução ao realismo experimental

A proposta do realismo de entidades ou realismo experimental (RE), advinda das obras de Hacking (1983)______. “Representing and Intervening: Introductory Topics in the Philosophy of Natural Science”. Cambridge University Press, 1983. e Cartwright (1983)CARTWRIGHT, Nancy. “How the Laws of Physics Lie”. Oxford: Clarendon, 1983. foi oferecer uma espécie de via média entre o realismo de cunho explanacionista e o empirismo construtivo de van Fraassen (1980). Os proponentes originais do RE admitiam a mesma dificuldade que o empirista construtivo em confiar nos poderes explanatórios das teorias. No lugar de enfatizar virtudes teóricas, os realistas de entidades preferem colocar suas fichas na experimentação. Assim, a sugestão é que seria possível ser cético em relação a quão bem uma teoria representa a realidade, embora não seja possível estender tal ceticismo a entidades inobserváveis com as quais há interação causal, isto é, àquelas que podemos manipular experimentalmente, produzindo fenômenos devidamente controlados. Embora, colocado dessa maneira, o realismo de entidades de Hacking e Cartwright pareça uma saudável via média entre o realismo e o antirrealismo científico, tal proposta não ficou isenta de problemas prontamente levantados por ambos os lados de tal debate. O objetivo deste texto é, pois, expor brevemente as principais alegações do realismo experimental, confrontálo com suas principais críticas e, por fim, propor dois meios pelos quais seria possível contornar os problemas elencados.

Hacking entende que filosoficamente podemos nos indagar sobre a existência de entidades postuladas por teorias, questionando seriamente se ‘elétrons’ e ‘pósitrons’ são nomes sem referência ou se referem a partículas reais, com peso, carga e outras propriedades. Tal ceticismo, entretanto, só sobreviveria no campo da especulação sobre a teoria, dispersando-se no campo da intervenção científica, isto é, quando os cientistas produzem um fenômeno por meio da utilização de elétrons ou pósitrons. Assim, “quando nos voltamos da representação para a intervenção, quando bombardeamos gotas de nióbio com pósitrons, o antirrealismo esmorece” (Hacking, 2012______. “Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural”. Tradução de P. R. Oliveira. Eduerj, 2012., p. 93). Hacking pensa que há uma diferença sutil entre experimentar sobre e experimentar com uma entidade. Essa diferença ficaria bastante evidente por meio de um relato histórico relativo à descoberta do elétron feito pelo canadense. De acordo com ele, o mais comum (como mostra o relato) não é testar se uma entidade inobservável existe, mas interagir com ela por meio de suas propriedades causais:

Quando J. J. Thomson descobriu, em 1897, que o que ele chamava de “corpúsculos” era, na verdade, catodos quentes em ebulição, praticamente a primeira coisa que ele fez foi tentar medir a massa dessas partículas negativamente carregadas. Ele obteve uma estimativa bruta da carga e, e mediu a relação e/m. O valor que obteve para m também estava mais ou menos certo. Milikan seguiu algumas ideias já em discussão no Laboratório Cavendish de Thomson e, por volta de 1908, determinou a carga do elétron, ou seja, a provável unidade mínima de carga elétrica. Assim, desde o princípio, o que se fez foi muito mais interagir com os elétrons do que testar sua existência. (Hacking, 2012______. “Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural”. Tradução de P. R. Oliveira. Eduerj, 2012., p. 369)

Milikan, de acordo com Hacking, poderia supostamente manter-se cético sobre elétrons, mesmo depois de descobrir a carga mínima. Mas o mesmo não pode ser feito no momento em que o elétron é instrumentalizado para produzir fenômenos desejados.

Cartwright possui uma opinião semelhante à de Hacking. Seu apelo experimental, entretanto, decorre de um ponto não muito enfatizado pelo canadense: o de que as inferências para a causa mais provável não são sujeitas à redundância como o modelo de explicação de cobertura por leis, de Hempel. Haveria um componente existencial em tais explicações causais. Dessa forma, a diferença entre explicação teórica e explicação causal permite a Cartwright reconhecer propriedades experimentais de entidades teóricas, inferindo causas concretas de efeitos concretos. Na medida em que podemos testar as causas e verificar como isso modifica os efeitos, também podemos inferir as entidades teóricas que são responsáveis pelos efeitos estudados sem que isso seja ligado ao sucesso explicativo de qualquer teoria.

Uma compilação das principais críticas ao realismo de Hacking e Cartwright foi feita por Suárez (2008)SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163. e divide-se entre três grupos: inadequação, incoerência e implausibilidade. Procuraremos manter aqui essa subdivisão, na medida em que ela condensa críticas simultâneas aos dois iniciadores do realismo experimental no lugar de críticas localizadas.

2. Principais famílias de críticas ao RE

a) Inadequação

A primeira crítica elencada por Suárez (2008)SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163. é a de que o realista de entidades compreende mal as metas e os objetivos particulares da prática científica, falhando em descrever mesmo os ramos mais experimentais e menos teóricos da ciência. A acusação de inadequação está ligada, portanto, à ausência de compatibilidade entre as teses basilares do realismo experimental e o modo como os cientistas entendem e praticam sua profissão, bem como à aplicabilidade das propostas de Hacking e Cartwright aos diversos campos científicos. Essa crítica pode ser ilustrada aqui nos textos de Gross (1990)GROSS, A. G. “Reinventing Certainty: The Significance of Ian Hacking's Realism”. PSA: Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association, pp. 421-431, 1990. e Resnik (1994RESNIK, D. B. “Hacking's Experimental Realism”. Canadian Journal of Philosophy, Vol. 24, Nr. 3, pp. 395-411, 1994.).

Gross sugere que, em campos distintos do da física, Hacking teria muito pouco a dizer. Pensando nos processos evolutivos sugeridos por biólogos neodarwinistas, Gross afirma que o critério proposto pelo realismo de Hacking deixaria os cientistas sem fundamentos para afirmar a realidade que advogam. Para Gross, os biólogos evolucionários dependem de uma série encadeada de argumentos por analogia, pós-factuais, não aplicáveis ao que Hacking sugere ocorrer com elétrons:

Uma ontologia do processo (evolutivo) não é redutível a uma das entidades quando tais entidades não podem, elas mesmas, ser explicadas sem referência àquele processo: mesmo o DNA envolvido. Mas se a evolução não pode ser reduzida às suas supostas entidades constituintes, ela não pode ser um instrumento, não pode ser incorporada num mecanismo potencial do modo como os elétrons são no PEGGY II ou o éter no interferômetro de Michelson. Se o critério de Hacking for aplicado, os processos evolutivos permanentemente serão sem realidade. (Gross, 1990GROSS, A. G. “Reinventing Certainty: The Significance of Ian Hacking's Realism”. PSA: Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association, pp. 421-431, 1990. , p. 427)

Gross faz questão de lembrar que sua crítica ao realismo de Hacking não se aplica de todo a Cartwright, para quem, segundo ele, a ênfase está nas leis fenomenológicas e não nas entidades. Por essa razão, pensa o autor, Cartwright pode ver realidade também nos processos e regularidades presentes nos fenômenos descritos (de nível baixo) em oposição às leis fundamentais (de nível mais alto).

Resnik (1994)RESNIK, D. B. “Hacking's Experimental Realism”. Canadian Journal of Philosophy, Vol. 24, Nr. 3, pp. 395-411, 1994., por sua vez, afirma que os cientistas não trabalham genuinamente sem familiaridade com as teorias que cobrem os fenômenos que procuram estudar:

Uma pessoa fazendo experimentos com um acelerador de partículas pode não estar ciente dos últimos desenvolvimentos em física teórica, mas ele (ou ela) é provavelmente familiar com a maioria das teorias de fundo comumente aceitas na física, incluindo algumas teorias sobre as partículas que ele (ou ela) está estudando. (Resnik, 1994RESNIK, D. B. “Hacking's Experimental Realism”. Canadian Journal of Philosophy, Vol. 24, Nr. 3, pp. 395-411, 1994., p. 410)

Assim, Hacking e Cartwright, ao enfatizarem a experimentação em detrimento da teorização, não fariam justiça ao modo como os cientistas reais se comportam. Na prática, portanto, os cientistas não fariam a distinção tão marcante entre o teórico e o experimental, nem seriam céticos em relação à verdade das teorias como Hacking e Cartwright parecem sugerir.

O apelo ao espelhamento nas práticas reais e crenças dos cientistas é frequente tanto por parte de realistas quanto de antirrealistas. Encontramos por vezes Hacking e Cartwright sugerindo que seus respectivos posicionamentos filosóficos são os mesmos que os cientistas tendem a adotar. Qualquer argumento que tente apelar para a prática real dos cientistas esbarra no fato de que não há uma entidade una e monolítica chamada “os cientistas”. O que há é uma pluralidade dinâmica de praticantes da pesquisa científica de cuja diversidade alguns filósofos da ciência tendem a garimpar as práticas que melhor se adequam a suas concepções de gabinete. E mesmo que uma determinada prática seja majoritária ou até unânime, isso não significa que tal unanimidade imponha uma normatividade (mais uma vez, de um “é”, não se pode afirmar um “deve”).

No caso específico da crítica de Gross a Hacking, parece haver uma leitura supervalorizada dos argumentos para um realismo de entidades, como se constituíssem, além de uma condição suficiente para reinvindicação de conhecimento de entidades experimentais, também algum critério de demarcação entre ciência e pseudociência. Se, como penso, o realismo de entidades é uma proposta modesta e uma tentativa deflacionada de realismo científico, não parece que a crítica de Gross ofereça uma real ameaça. Basta pensarmos que o realismo de entidades só se compromete com teorias de baixo nível - leis fenomenológicas, no caso de Cartwright e verdades caseiras (home truths), no caso de Hacking - suspendendo o juízo acerca da verdade das teorias de nível alto. A acusação de que Hacking deixa de fora outras formas de ciência que não a física parece exagerada, uma vez que o próprio Hacking apresenta um argumento da microscopia1 1 Ver Hacking (1981, p. 305). Basicamente o argumento procura mostrar a improbabilidade de que entidades detectadas em microscópios que funcionam a partir de diferentes princípios fossem irreais, dada a improbabilidade de que as formas detectadas fossem defeitos persistentes. Ao reconhecer uma mesma forma em uma lâmina que tenha passado por microscópio ótico, depois por microscópio de fluorescência, e finalmente por um microscópio eletrônico, fica difícil considerar que tal detecção seja na verdade alguma mancha inerente ao modo como o microscópio foi designado para operar e às teorias que explicam seu funcionamento. que oferece uma boa razão para crer em mitocôndrias, DNA e outras entidades biológicas. Já os processos explicados pelas teorias científicas, quer da física, quer da biologia evolutiva, podem vir a ser descritos e explicados de modo diferente em novos arranjos teóricos que, porventura, venham a substituir os atuais. A verdade das teorias atuais não diz respeito, portanto, às preocupações dos realistas de entidades, pois o sucesso explicativo não confere mais do que garantia teórica, passível de redundância etc. Os realistas experimentais estão mais interessados no que existe ou não existe.

O que dissemos em relação a Gross não é absolutamente novo na defesa do realismo de entidades. Em resposta a uma acusação similar de Resnik, segundo a qual os cientistas utilizam tanto as teorias quanto os experimentos como meio para formar suas crenças, Suárez escreve:

Vamos supor que Resnik está certo sobre o entrelaçamento, na prática, do conhecimento teórico e prático. Parece plausível que cientistas usem tanto conhecimento teórico quanto o experimental em seu trabalho; e é claro que muitas de suas crenças são infundidas por teoria. O realista experimental não precisa negar nada disso, entretanto. Ele ou ela só precisam garantir que o conhecimento teórico e o experimental possuem funções epistêmicas e cognitivas diferentes, mas não que todas suas funções sejam distintas ou separadas. (Suárez, 2008SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., p. 146)

Em outras palavras, o realista experimental pode reconhecer o papel das teorias na prática científica sem deixar de pensar que há mais garantia epistêmica no conhecimento obtido por experimentação, manipulação empírica e generalizações fenomenológicas do que nas leis fundamentais e construtos teóricos. Esta resposta abre caminhos para a análise da segunda crítica.

b) Incoerência

Um segundo tipo de crítica feita ao realismo de entidades original é um pouco mais problemático. Deixando de lado se Hacking e Cartwright estão ancorados na prática de cientistas reais, muitos autores como Elsamahi (1994)ELSAMAHI, M. “Could Theoretical Entities Save Realism?”. PSA: Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association, pp. 173-180, 1994. , Chakravartty (2007)CHAKRAVARTTY, A. “A Metaphysics for Scientific Realism: Knowing the Unobservable”. Cambridge University Press, 2007. , Musgrave (1996)MUSGRAVE, A. “Realism, Truth and Objectivity” In: COHEN, R. S., HILPINEN, R., RENZONG, Q. (eds.), 1996, pp. 19-44., Psillos (1999)PSILLOS, S. “Scientific Realism: How Science Tracks Truth”. Routledge, 1999., para citar alguns, parecem concordar que não seria possível acreditar em entidades sem subscrever, ao menos parcialmente, as teorias nas quais essas entidades aparecem. Nesse sentido, o realismo de entidades estaria ameaçado por ser incoerente.

Conta contra o realismo experimental o fato de que muitos cientistas e filósofos (mesmo van Fraassen) assumem que experimentos dificilmente poderiam ocorrer numa ausência total de carga teórica. A ideia de que uma entidade pode ser uma ferramenta parece requerer algum grau de dependência das teorias sobre a entidade. Um argumento bastante anedótico sobre hobgoblins, proposto por Musgrave, pode descrever bem a presente crítica:

Acreditar em uma entidade, enquanto não acreditar em nada além sobre aquela entidade, é acreditar em nada. Eu digo que acredito em hobgoblins (acredito que o termo ‘hobgoblin’ é um termo referente). Então, replica você, você pensa que há pessoinhas que rastejam para dentro das casas à noite e fazem o trabalho doméstico. Oh, não, digo eu, não acredito que hobgoblins fazem isso. Na verdade, eu não tenho crenças em geral sobre o que hobgoblins fazem ou como eles são. Eu só acredito neles. (Musgrave, 1996MUSGRAVE, A. “Realism, Truth and Objectivity” In: COHEN, R. S., HILPINEN, R., RENZONG, Q. (eds.), 1996, pp. 19-44., p. 20)

O que Musgrave, bem como todos os já citados aqui recusam, é a afirmação de Hacking segundo a qual é possível sustentar a existência de elétrons com base apenas em uma série de verdades caseiras (home truths), isto é, fenomenológicas, sem aderir a qualquer uma das teorias sobre os elétrons de que dispomos atualmente. Para Musgrave, o termo ‘hobgoblin’ que aparece em proposições descritivas (narrando, por exemplo, o que hobgoblins fazem, como se parecem etc.) só poderia ser referencialmente bem-sucedido quando tais proposições forem ao menos parcialmente verdadeiras. Afinal, como saber se hobgoblins existem sem supor alguma narrativa que diga o que hobgoblins são? Sankey (2012)SANKEY, H. “Reference, Success and Entity Realism”. Kairos, Vol. 5, pp. 31-42, 2012. vê no argumento de Musgrave um problema acerca da referência, especificamente numa teoria descritivista da referência.2 2 Para Sankey (2012), a teoria descritivista da referência baseia-se em Frege e Russell de modo que “a referência é determinada por uma descrição associada a um termo” (p. 36). O termo é referente quando satisfaz a série de coisas exigidas na descrição associada a ele. Assim, no entender de Sankey, tal teoria da referência é apropriada ao realismo de teorias, já que uma referência bem-sucedida depende de uma teoria verdadeira. Em resposta, o realista de entidades poderia sugerir, ancorado numa teoria causal da referência,3 3 Teoria baseada em Putnam e Kripke, segundo a qual “a referência é fixada na introdução de um termo por relações causais com objetos dentro das quais os falantes se inserem em seu ambiente” (Sankey, 2012, p. 36). que uma entidade pode ser real independentemente da verdade das teorias que a ela se referem. Hacking chegou a fazer tal aceno em direção à teoria causal da referência, embora com alguma reserva:

O incomensurabilista de significado alega, de forma implausível, que, sempre que uma teoria muda, deixamos de falar sobre a mesma coisa. Putnam responde a issorealisticamente, dizendo tratar-se de um absurdo. É claro que estamos falando da mesma coisa, a saber, a extensão estável do termo. [...] Não precisamos de nenhuma teoria a respeito dos nomes para designar elétrons. (Secretamente, eu defendo, sob bases filosóficas, que não pode haver, em princípio, qualquer teoria geral e completa a respeito do significado ou da denominação.) Só precisamos nos assegurar de que uma teoria obviamente falsa não é a única teoria possível. E Putnam tem feito isso. (Hacking, 2012______. “Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural”. Tradução de P. R. Oliveira. Eduerj, 2012., pp. 154-155, meu grifo)

Embora Hacking pense que mostrar uma alternativa à teoria descritivista resolva o problema da incomensurabilidade, ele rejeita, com razão, que a teoria do significado de Putnam deva ser adotada sem cautela.

Sankey (2012)SANKEY, H. “Reference, Success and Entity Realism”. Kairos, Vol. 5, pp. 31-42, 2012. concorda que um realista de entidades teria problemas ao se filiar à teoria causal da referência: quando o cientista introduz um termo teórico que seria a causa inobservável de um fenômeno observável, tal termo teórico precisaria ser referencialmente bem-sucedido, uma vez que o efeito é real. Como sabemos, uma série de termos falharam em referir às supostas causas de vários fenômenos (o flogisto é exemplo magistral disso), só seria possível manter uma teoria causal da referência se esta fosse suplementada por algum aparato descritivo. A falha nessa adição descritiva permitiria o insucesso da referência do termo teórico. O resultado dessa conjunção entre teoria causal e correção descritiva mínima seria uma teoria descritivo-causal da referência, que de acordo com Sankey pressionaria o realista de entidades para mais perto do realismo de teorias.

Suaréz (2008)SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163. prefere colocar o problema da incoerência como uma ameaça de ontologia inflacionária, caso teorias não sejam admitidas para além das verdades fenomenológicas. Se acreditarmos somente nas propriedades causais que descobrimos por meio da manipulação, como saberíamos que em diferentes interações causais estamos diante da mesma entidade? Vejamos o exemplo que ele cita:

Por exemplo, as entidades que precisamos supor serem reais porque as manipulamos no microscópio eletrônico não são bem os elétrons como os entendemos: eles são partículas (chamemo-las flecrons) que têm algumas das propriedades dos elétrons, mas não todas. [...] E a cada manipulação distinta de “elétrons”, cada qual circunscrevendo nossa interação causal a um diferente subgrupo de suas propriedades, estaríamos realmente manipulando diferentes entidades: “flectons” nesse momento, “plectrons” no próximo e assim por diante. Cientistas não veem a si mesmos confrontando diferentes partículas quando conduzem um experimento de dispersão sobre elétrons em oposição a operar num microscópio eletrônico. Nos dois casos eles se veem confrontando elétrons. (Suárez, 2008SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., p. 147)

Em síntese, o problema da incoerência pode ser colocado da seguinte maneira: como saber se nos referimos ao mesmo tipo de entidade em nossas interações (manipulações) causais sem lançar mão das teorias que agrupam os diferentes aspectos fenomenológico-causais daquela mesma entidade? Uma impossibilidade de responder a isso tornaria a distinção entre realismo de entidades e realismo de teorias uma distinção espúria.

A crítica de incoerência parece-me ameaçar bem mais o realista de entidades do que a anterior. Uma boa parte dos que rejeitam o realismo de entidades o fazem por considerar impossível separar claramente as propriedades causais das entidades e as teorias que introduzem e se referem a essas mesmas entidades. Boa parte desse problema deve-se ao próprio Ian Hacking (mais talvez do que a Nancy Cartwright) por afirmar reiteradamente que certas observações experimentais não dependem de qualquer conhecimento teórico de fundo, ou que seja possível alegar conhecimentos baseados exclusivamente na manipulabilidade experimental e um pequeno número de “verdades caseiras” (home truths).

O próprio Sankey antecipa uma resposta de Hacking a Musgrave, recorrendo às famigeradas “verdades caseiras”. Se hobgoblins existirem e forem passíveis de manipulação experimental, é possível saber alguma coisa sobre eles sem precisar aceitar toda a descrição teórica sobre estes. Da mesma forma é possível acreditar que elétrons possuem carga negativa, que repelem outros elétrons (num nível experimental) e duvidar se elétrons são nuvens ou ondas (num nível teórico).

Mas ainda que se considere a possibilidade de teorias de baixo nível serem verdadeiras sem comprometimento com as teorias de alto nível que englobem as primeiras, o problema da inflação de entidades não está excluído. Como saber que é um mesmo tipo de entidade que está sendo manipulado sem recorrer à teoria que unifica todas as facetas experimentais daquela entidade? Mencionaremos uma proposta de solução para esse problema pelo próprio Suárez na última seção deste artigo.

c) Implausibilidade

A crítica que Suárez julga mais severa ao realismo experimental é a de que, ainda que este seja adequado à prática científica, e ainda que seja coerente fazer afirmações causais sem apelo a teorias, um antirrealista não se veria minimamente convencido de que entidades teóricas existem. Este ponto é uma acusação de que a manipulabilidade experimental de Hacking ou a inferência para a causa mais provável de Cartwright não fornecem garantias epistêmicas melhores do que as já alegadas pelos realistas teóricos (explanacionistas) e, por isso, não tornam o realismo mais atraente para o empirista construtivo ou para outros antirrealistas. Essa acusação está presente em Reiner e Pierson (1995)REINER, R., PIERSON, R. “Hacking's experimental realism: An untenable middle ground”. Philosophy of Science, Vol. 62, Nr. 1, pp. 60-69, 1995. e Gelfert (2003)GELFERT, A. “Manipulative success and the unreal”. International Studies in the Philosophy of Science, Vol. 17, Nr. 3, pp. 245-263, 2003. , cujos artigos são dirigidos ao critério realista de Hacking. Já Hitchcock (1992)HITCHCOCK, C. R. “Causal explanation and scientific realism”. Erkenntnis, Vol. 37, Nr. 2, pp. 151-178, 1992., Pierson e Reiner (2008)PIERSON, R., REINER, R. “Explanatory warrant for scientific realism”. Synthese, Vol. 161, Nr. 2, pp. 271-282, 2008. e Psillos (2008)______. “Cartwright's realist toil: From entities to capacities”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008, pp. 167-194., procuram mostrar que Cartwright falha em sustentar a inferência para a causa mais provável como garantia epistêmica melhor do que a inferência para a melhor explicação (IME).

Os autores em geral tentam mostrar pelo menos um dos dois pontos a seguir:

  1. o critério do realismo experimental falha em produzir crenças

  2. verdadeiras;

  3. a inferência para a causa mais provável não é capaz de conferir garantia melhor do que a IME.

No primeiro caso, não seria razoável manter um critério sabidamente insuficiente. No segundo, não seria razoável trocar o realismo explanacionista por outra forma de realismo que não é capaz de fornecer critérios mais garantidos. Em ambos os casos, o RE estaria bastante ameaçado.

Estrategicamente e para evitar prolixidade, citarei aqui um argumento para (1) retirado de Gelfert (2003)GELFERT, A. “Manipulative success and the unreal”. International Studies in the Philosophy of Science, Vol. 17, Nr. 3, pp. 245-263, 2003. e um argumento para (2) por Pierson e Reiner (2008)PIERSON, R., REINER, R. “Explanatory warrant for scientific realism”. Synthese, Vol. 161, Nr. 2, pp. 271-282, 2008. . Fornecer vários exemplos do mesmo tipo de argumento não tornaria a crítica mais severa do que as que serão aqui expostas. Opto também por apresentar argumentos ausentes em Suárez (2008)SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., em que o leitor tem a oportunidade de preencher a lacuna de outros ataques contra a plausibilidade do RE.

Axel Gelfert sustenta, contra Hacking, que a manipulabilidade e o uso exclusivo de generalizações de baixo nível ou “home truths” fariam o realista de entidades ter que sustentar a existência de quase-partículas. Nesse aspecto, embora muitos autores ressaltem que o critério do realismo de entidades seria excessivamente rigoroso para deixar de fora entidades teóricas importantes como neutrinos e lentes gravitacionais, Gelfert procura mostrar que o mesmo critério é demasiadamente permissivo para não impedir que o experimentalista suponha a existência de entidades fictícias tais como as quase-partículas. O artigo de Gelfert apresenta dois contraexemplos ao critério manipulativo de Hacking no campo da física de partículas. O primeiro exemplo, retirado da experiência com semicondutores onde o efeito da injeção de elétrons leva surpreendentemente a uma medição de carga positiva, devido a “buracos” carregados positivamente no sistema, serve para contestar a coerência do realismo experimental. Isso porque o sistema é manipulável de modo a possibilitar a obtenção da carga desejada e, entretanto, sem auxílio de teorias de nível alto não seria possível explicar o fenômeno sem supor serem tais buracos uma nova entidade:

Uma explicação satisfatória das propriedades de buracos similares às propriedades de partículas - que é necessária para resolver esse enigma de parecer encontrar novas entidades onde, tal como é claro para a explicação por verdades caseiras (home truths) nenhuma pode existir - requer um apelo a uma teoria de alto nível, que vai além do nível das verdades caseiras e, portanto, não está disponível ao realista de entidades. (Gelfert, 2003GELFERT, A. “Manipulative success and the unreal”. International Studies in the Philosophy of Science, Vol. 17, Nr. 3, pp. 245-263, 2003. , p. 255)

Quando o tema, entretanto, é a implausibilidade, Gelfelrt oferece um segundo contraexemplo bastante desafiador ao realismo experimental. Se o realista de entidades aceitar o relato, por um simples modus tollens, é possível afirmar que o critério da manipulabilidade experimental não é suficiente para fazer afirmações existenciais sobre entidades inobserváveis. Elétrons, em temperaturas próximas ao zero absoluto e na presença de campo magnético poderoso, passam a apresentar um comportamento coletivo, um fluido quântico, com propriedades bastante diferentes do comportamento individual. Este comportamento coletivo é captado pelo conceito de “quase-partícula”. O que torna as quase-partículas problemáticas ao realista de entidades é o fato de possuírem propriedades causais. Ainda mais surpreendente para o realista de entidades é o fato de que tais quase-partículas podem ser manipuladas e interagir mesmo com estruturas macroscópicas. Gelfert cita, por exemplo, a polarização do spin de quase-partículas para criar uma corrente manipulável de modo a inverter domínios magnéticos. Neste caso, o slogan “se você pode bombardeá-los, então eles existem” forçaria o realista de entidades a dizer que quase-partículas são reais.

Pierson e Reiner (2008)PIERSON, R., REINER, R. “Explanatory warrant for scientific realism”. Synthese, Vol. 161, Nr. 2, pp. 271-282, 2008. , por sua vez, procuraram avançar uma nova crítica à inferência para a causa mais provável de Cartwright (1983)CARTWRIGHT, Nancy. “How the Laws of Physics Lie”. Oxford: Clarendon, 1983..4 4 Os autores já haviam feito uma crítica similar a Hacking em Reiner e Pierson (1995). Para uma interpretação do argumento experimental de Hacking como um caso de argumento sem milagre ou uma espécie de inferência para a melhor explicação, ver também o ótimo artigo de Boaz Miller (2016). Para a dupla, a explicação causal só é válida ao apelar para instâncias que também validariam a explicação teórica. Reiner e Pierson acusam Cartwright de uma manobra que torna a inferência para a causa mais provável tautológica: uma explicação causal é bem-sucedida somente se os processos descritos forem de fato as causas em jogo. Ora, por instanciação, é possível dizer o mesmo da inferência para a melhor explicação.

A dupla de filósofos recusa que a inferência para a causa mais provável seja garantida internamente assim como realistas teóricos em geral não conseguem argumentar que a verdade seja interna à IME. Cartwright simplesmente teria convencionado que na explicação causal genuína o componente existencial é requerido. Comparando a inferência para a causa mais provável com a inferência para a melhor explicação, notaremos que em ambas não poderíamos supor haver uma explicação genuína quando consideramos todas as explicações possíveis e não apenas as explicações disponíveis. Pierson e Reiner sabiam que a filósofa não poderia se comprometer com a realidade de uma causa específica de uma vez por todas. Dizer que uma explicação causal é a genuína dentre todas as possíveis demandaria que Cartwright assumisse que nenhuma outra explicação causal poderia tomar seu lugar no futuro, um pressuposto imprudente. Vejamos o que ela diz sobre essa matéria:

Pierre Duhem usou o requisito da redundância como um argumento contra o realismo científico e, recentemente, Hilary Putnam o usou como um argumento contra o realismo em geral. Ambos propõem que, em princípio, para qualquer explicação de qualquer quantidade de dados haverá sempre uma alternativa igualmente satisfatória. [...] [os argumentos] não distinguem entre afirmações causais e relatos teóricos. Ambos provavelmente estão para ser substituídos por melhores descrições no futuro. (Cartwright, 1983CARTWRIGHT, Nancy. “How the Laws of Physics Lie”. Oxford: Clarendon, 1983., p. 76)

Se, como mostrado na citação, Cartwright pensa que em princípio uma explicação causal pode ser trocada por uma melhor no futuro, então, não há nenhuma garantia internalista para as explicações causais em relação às teóricas, como o requisito de não redundância da autora faz parecer. Esse é o primeiro ponto que Reiner e Pierson assumem: se o requisito de não redundância for simplesmente um convencionalismo, não estamos diante de uma garantia melhor do que a que já temos numa explicação teórica: nem simplicidade, nem fertilidade heurística, nem adequação empírica são suficientes para garantir internamente a verdade das explicações teóricas. E nada impede de, por convenção, exigir não redundância das mesmas explicações teóricas, transformando o termo “explicação teórica” num termo de sucesso. A redundância não salvaria, portanto, as explicações causais.

Há, portanto, dois argumentos típicos dos que acusam o realismo de entidades de implausibilidade: o primeiro é o argumento da insuficiência do critério, exemplificado pelas quase-partículas de Gelfert; o segundo é o argumento de que o realismo de entidades é tão depende da inferência para a melhor explicação quanto o realismo teórico. Considero que uma resposta ao segundo argumento só pode ser dada por uma revisão do RE tal como proporei na última seção. Por isso me concentrarei aqui apenas na possibilidade de que o RE permita admitir entidades que não sejam reais.

O contraexemplo de Gelfert tem um apelo inegável para o realismo de entidades: o autor, além de filósofo da ciência, é um físico de partículas e expôs um caso que Hacking não poderia considerar uma contradição entre a prudência antirrealista e a prática de instrumentalizar entidades para controlar fenômenos. Isto é, as quase-partículas não são realmente entidades novas e os cientistas filiados ao realismo experimental, ao manipularem tais “pseudoentidades”, viveriam o dilema de ou supor entidades inexistentes ou recorrer a teorias para além das “verdades caseiras”.

Aqui talvez o realista de entidades poderia supor uma analogia bastante presente no domínio da biologia: certas espécies de animais possuem comportamento coletivo bastante diferente do comportamento individual. É o caso dos cardumes cuja propriedade de afugentar predadores não pode ser verificada em peixes isolados da mesma espécie. Não há nada de errado em dizer que cardumes existem, embora saibamos que este é um nome que se refere a uma coletividade e não uma nova espécie. Pela mesma via de raciocínio, não parece estranho dizer que quase-partículas existem. É bastante natural, num nível apenas fenomenológico, confundir um cardume com um indivíduo (predadores que o digam). Parece-nos ser um caso similar quando um realista de entidades não sabe estar diante de uma nova entidade ou manipulando o comportamento coletivo de elétrons de um sólido metálico excitados de um modo bastante específico. Ele sem dúvida está manipulando entidades. É claro que essa resposta não é suficiente para Gelfert, que sugere que o realista de entidades quer fazer afirmações mais específicas:

[...] [Q]uando falamos de entidades como “reais”, queremos dizer algo mais criterioso sobre sua existência, não meramente que ao adotar um jargão particular nós nos referimos a um amorfo “je ne sais quoi”. (Gelfert, 2003GELFERT, A. “Manipulative success and the unreal”. International Studies in the Philosophy of Science, Vol. 17, Nr. 3, pp. 245-263, 2003. , p. 260)

Entendo, entretanto, que a resposta sugerida pela analogia com os cardumes pode ser insatisfatória por várias razões. Mas sem dúvida há algo a ser afirmado de cardumes e de quase-partículas: propriedades experimentais ou causais que tais coletividades apresentam. Se as “verdades caseiras” não permitem saber que aqui ou ali o que é manipulado não passa de uma coletividade, isso não quer dizer um “je ne sais quoi”. E ainda que aceitemos o exemplo de Gelfert como um caso semelhante ao da multiplicidade de entidades (tal como já nos manifestamos na acusação de incoerência), ainda há a resposta de Suárez sobre o realismo experimental ser um critério epistêmico no qual as “verdades caseiras” não esgotam tudo o que sabemos sobre as entidades manipuladas experimentalmente, apenas conferem grau mais elevado de garantia do que demais crenças que possuímos sobre tais entidades.

Além do desafio de Gelfert, também mencionamos a dificuldade que muitos críticos possuem em diferenciar os argumentos do realismo de entidades daqueles produzidos por via de IME. Uma resposta a Pierson e Reiner (2008)PIERSON, R., REINER, R. “Explanatory warrant for scientific realism”. Synthese, Vol. 161, Nr. 2, pp. 271-282, 2008. e de outros críticos de Cartwright (como Hitchcock [1992]HITCHCOCK, C. R. “Causal explanation and scientific realism”. Erkenntnis, Vol. 37, Nr. 2, pp. 151-178, 1992.) passa pela defesa de que a inferência para a causa mais provável não é mais garantida que a IME somente por uma manobra de convencionar que a primeira inferência é guia para a verdade. Tentarei argumentar nesse sentido na próxima seção.

3. Dois passos para uma reabilitação do RE

Há pelo menos dois recursos para tornar as intuições do RE mais robustas diante das críticas elencadas por Suárez. O primeiro deles é interpretar o RE como um critério epistêmico e não como critério metafísico. O segundo é acentuar o papel das propriedades, antes de partir diretamente para a afirmação de entidades. Proceder um recuo epistêmico significa recusar ver o RE como um definidor do que é ou não real (ou ainda do que eu não poderia estar enganado em afirmar ser real ou não). No lugar disso, tal recuo entenderia o RE como um meio de justificar nossas crenças em entidades (e não as descobrir). E, sendo uma proposta epistêmica, seria também passível de equívocos nas crenças produzidas.

De acordo com Suárez, ainda que Hacking (1983)______. “Representing and Intervening: Introductory Topics in the Philosophy of Natural Science”. Cambridge University Press, 1983. tenha feito de seu realismo uma tarefa metafisicamente relevante (preocupações sobre o que existe na realidade e o slogan da manipulabilidade), ele também considera a questão epistemológica em termos de “melhor evidência” ou “evidência mais forte”:

Meu realismo de entidades implica que uma entidade teórica satisfatória deve ser uma entidade existente (e não apenas uma ferramenta intelectual eficiente). Trata-se de uma afirmação que diz respeito às entidades e à realidade e também implica que nós realmente conhecemos entidades desse tipo por meio da ciência atual - ou que, ao menos, temos boas razões para acreditar que as conhecemos. E isso é uma afirmação a respeito da realidade. (Hacking, 2012______. “Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural”. Tradução de P. R. Oliveira. Eduerj, 2012., p. 89)

Apesar do desejo manifestado por Hacking de manter a metafísica e a epistemologia unidas aqui, veremos como muitas das críticas levantadas contra seu realismo experimental só o afetam se adotarmos uma versão metafísica representada pelo “realmente conhecemos”. A versão epistêmico-falibilista representada pelo “temos boas razões para acreditar”, entretanto, é capaz de sobreviver aos ataques sofridos, que não são poucos.

Assim, é possível depreender duas formulações para realismo experimental da filosofia de Hacking: o realismo experimental metafísico e o realismo experimental epistêmico. A definição de realismo experimental metafísico não é exatamente uma definição conceitual, já que não trata das condições suficientes e necessárias para a existência, mas uma espécie de “marca” de realidade: Se x pode ser manipulado, então x existe. Para Suárez, o realismo experimental, numa interpretação metafísica, enuncia a manipulabilidade como condição suficiente (mas não necessária) para a existência:

Manipulação é então entendida senão como uma condição suficiente para a realidade. Hacking não está defendendo a equivalência conceitual entre o que é real e o que pode ser manipulado, mas antes, ao que parece, que a manipulação é um importante marco de realidade. (Suárez, 2008SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., p. 140)

De acordo com o autor, essa versão metafísica do realismo experimental está sujeita à crítica de incoerência, já exposta anteriormente. Entender a manipulabilidade como uma condição suficiente para a realidade não favorece o realista de entidades a especificar que tipo de entidade ele está manipulando sem recorrer às teorias sobre tal entidade.

Suárez entende, entretanto, que tal crítica, embora ameace um suposto realismo experimental metafísico, não constitui qualquer perigo para a versão epistêmica que, de acordo com ele, pode ser derivada tanto de Hacking quanto de Cartwright e que se define do seguinte modo:

Def. Realismo experimental epistêmico: Manipulação é condição necessária e suficiente para a garantia causal: Nossa crença de que x existe adquire esse tipo especial de garantia se e só se acreditamos que manipulamos x. (Suárez, 2008SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., p. 141)5 5 Agradeço a um parecerista anônimo por chamar a atenção para o fato de a definição aqui apresentada ser muito exigente. Um exemplo por ele elencado seria da ampla aceitação da existência de placas tectônicas pelos geólogos que, entretanto, não podem manipulá-las. Minha interpretação da definição de Suárez aplicada ao quadro emblemático levantado pelo parecerista é a de que, neste caso, não há garantia causal para a existência de placas tectônicas e a crença na existência destas está fundada na garantia teórica. Lembro aqui que o fato de não haver garantia causal não significa terminantemente que tais entidades não existam. Uma crítica similar foi feita por Gross (1990) a Hacking sobre o caso das lentes gravitacionais. É, aliás, para evitar tais críticas que a definição de Suárez é para a garantia causal e não para a existência, fugindo da definição metafísica que pode vir a ser atribuída a Hacking.

A principal ideia em diferenciar uma versão epistêmica de uma versão metafísica do realismo experimental é mostrar que, enquanto garantia de crença, o realismo experimental epistêmico é um critério falível e, ainda que continue consistindo em um “sintoma” de realidade, a mera crença de que x foi manipulado(a) não torna necessário que x exista. Isto é, o realismo experimental epistêmico que Suárez propõe não implica o realismo experimental metafísico:

Em outras palavras, eu quero superar a presumida primazia do realismo experimental metafísico em seus termos, para defender o realismo experimental somente como epistemologia. Nossa crença na existência de x adquire uma sorte especial de garantia quando nos convencemos de que manipulamos x; e é precisamente esse fato sobre nossa prática epistêmica que fundamenta a afirmação secundária de que a manipulação é uma boa indicadora de realidade; um bom guia - não um guia infalível. (Suárez, 2008SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., pp. 141-142 grifos do autor)

Suárez pensa ser possível responder à questão da ontologia inflacionária deflacionando o próprio realismo experimental. Para ele, uma versão meramente epistêmica (sem pretensões metafísicas) do realismo experimental não se vê ameaçada pela ontologia inflacionada de várias manipulações poderem implicar várias entidades diferentes e não uma única que reúna todas aquelas características.

Nessa versão epistêmica do realismo experimental, as “verdades caseiras” sobre uma entidade x, em que precisamos acreditar para garantir causalmente nossa inferência de que x é real, não precisa de modo algum esgotar nosso conceito de x. [...] [Essa versão epistêmica] não implica que nós só podemos inferir aquelas propriedades de x que podemos manipular ou com que podemos interagir. Ele implica, ao invés, que aquelas são as propriedades que melhor fundamentam nossa inferência de que x existe. (Suárez, 2008SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163., p. 148)

Embora pareça uma manobra ad hoc para salvar o realismo experimental da crítica de incoerência, Suárez afirma que isso é mais comum do que parece no nosso dia a dia. Explorar uma cidade, por exemplo, é algo que não mostra todas as características dessa cidade: temos propriedades observáveis dessa cidade (câmara municipal, um monumento histórico) e inobserváveis (data de fundação, número de habitantes). Manipular e interagir com algumas dessas propriedades não esgota tudo o que podemos saber sobre ela, apenas nos dá garantias epistêmicas melhores para aquelas que manipulamos do que para aquelas que simplesmente acreditamos serem verdadeiras. Pode nos faltar garantia causal por não ser possível manipular algumas das propriedades da cidade ou porque não houve oportunidade de interagir causalmente com alguma dessas propriedades. Isso, pensa o espanhol, não esgota nosso conceito dessa cidade.6 6 A analogia da cidade é um modo de reafirmar o compromisso com o realismo experimental apenas como epistemologia, isto é, graduando os tipos de garantia que suportam nossa crença em entidades. A garantia causal dá maior robustez à crença numa entidade, mas não se pode afirmar categoricamente que uma entidade possua apenas as propriedades que por ora somos capazes de manipular (é nesse sentido que Suárez parece entender o termo “verdades caseiras” de Hacking, como propriedades com as quais estamos mais familiarizados, mas não as únicas propriedades da entidade). Por sua vez, a afirmação de Suárez de que as propriedades causais não são tudo que há para saber de uma entidade permite redimir um ponto bastante controverso do realismo de entidades original: o papel das teorias. Para algumas propriedades possuímos garantia causal, mas para todas as outras, dispomos de garantia teórica que, embora menos robusta, ainda nos possibilita reunir as propriedades de uma entidade para saber, por exemplo, quando a manipulação de uma carga negativa é de um pósitron ou de um elétron; ou quando duas manipulações de carga negativa são de um mesmo tipo de entidade e não entidades de tipos diferentes, evitando o problema da inflação ontológica já mencionado. Mais sobre o papel da teoria pode ser visto na próxima seção deste artigo. Agradeço a um parecerista anônimo que notou a necessidade de tal esclarecimento.

O segundo passo na reabilitação do RE consiste em colocar a ênfase nas propriedades, algo proposto no semirrealismo de Chakravartty (2007)CHAKRAVARTTY, A. “A Metaphysics for Scientific Realism: Knowing the Unobservable”. Cambridge University Press, 2007. . Assim como Suárez, Chakravartty sugere gradações na garantia que possuímos, de modo que o conhecimento causal ocuparia lugar privilegiado:

Há algumas coisas sobre as quais alguém está bem seguro, como consequência de habilidades impressionantes em explorar seus poderes causais de maneiras intrincadas e fantásticas. Onde o contato causal é mais atenuado, alguém é apropriadamente menos confiante. No final longínquo de qualquer espectro dado estão entidades sobre as quais alguém está relativamente inseguro - as sujeitas a detecções relativamente indiretas ou a especulações sobre indetectáveis. (Mais tarde ainda, talvez, sejam entidades fictícias, conhecidamente estipuladas a desempenhar papéis meramente instrumental ou heurístico). Mas o realismo de entidades nos dá uma pista sobre em que tipo de coisas os realistas podem acreditar. (Chakravartty, 2007CHAKRAVARTTY, A. “A Metaphysics for Scientific Realism: Knowing the Unobservable”. Cambridge University Press, 2007. , p. 33)

A maior contribuição de Chakravarty na reabilitação do RE está em aplicar a distinção entre os graus de garantia às propriedades, antes que às entidades. Contrariamente ao que pensa o próprio autor, que considera o RE sujeito a “críticas fatais” (2007, p. 32), seu enfoque nas propriedades ajuda a responder ao problema da incoerência e da inadequação, já que, como mostrarei a seguir, tal passo possibilita encontrar um papel importante para a teoria sem, entretanto, readmitir o explanacionismo.

Chakravartty quer, com suas considerações, traçar uma linha bem demarcada sobre o que, especificamente, temos mais razões para acreditar ser parte constituinte do mundo e assim menos sujeito a um descarte posterior por mudanças teóricas. Sua versão mais avançada do divide et impera não quer apenas reconhecer no passado as partes das teorias substituídas responsáveis pelo seu sucesso momentâneo (uma racionalização post hoc como a que Psillos [1999]PSILLOS, S. “Scientific Realism: How Science Tracks Truth”. Routledge, 1999. propôs). O filósofo quer oferecer um critério para reconhecer tais elementos de sucesso também nas teorias atuais e futuras. Tal critério depende da distinção entre propriedades auxiliares e propriedades de detecção. Enquanto as últimas estão ligadas causalmente ao comportamento regular de nossos detectores, as primeiras são propriedades imputadas pelas teorias a particulares. Trata-se, como alerta Chakravartty, de uma distinção epistêmica, isto é, do que razoavelmente alguém pode acreditar com base na sua interação causal com o mundo. Assim, o estatuto ontológico das propriedades auxiliares é desconhecido, podendo elas serem causais ou fictícias. Com o desenvolvimento científico, algumas propriedades atribuídas por teorias podem vir a se tornar propriedades de detecção, conservarem-se como propriedades auxiliares ou, finalmente, serem descartadas. A ideia é a de que todas as propriedades de detecção são propriedades causais. Chakravartty também sugere que as propriedades causais não se esgotam naquelas que teorias atribuem a particulares. O realista estará mais seguro em relação à metaindução pessimista ao notar que as propriedades de detecção são geralmente mantidas ao passo que propriedades auxiliares são frequentemente descartadas em mudanças teóricas. Isso conferirá uma base para um realismo seletivo (em relação às propriedades de detecção), bem como um ceticismo seletivo (em relação às propriedades auxiliares). Chakravartty obviamente precisa ainda de uma maneira prática de distinguir com clareza as propriedades de detecção das propriedades auxiliares e sua sugestão é a de uma interpretação mínima das equações que descrevem os processos causais, os mesmos que ligam as propriedades de detecção aos meios de detecção. A proposta (chamada pelo autor de semirrealismo) sugere que o comprometimento epistêmico deve estar assentado apenas numa “interpretação mínima” das equações, de modo que tudo o mais deve ser considerado propriedade auxiliar. Mas o contrário parece ser o caso, isto é, primeiro distinguimos entre propriedades auxiliares e de detecção e depois damos uma interpretação mínima das equações. Essa inversão é devida à própria elucidação de Chakravartty sobre os conceitos de “propriedade de detecção” e “interpretação mínima” a partir da ideia de conexão causal ou contato causal além dos quais toda interpretação seria excedente. O problema passaria então a ser o da identificação do que é que conta como contato causal significante. Talvez aqui uma contribuição interessante seja a de diferenciar aspectos formais (teóricos/hipotéticos) de aspectos materiais (experimentais). Embora Suárez (2008)SUÁREZ, M. “Experimental realism reconsidered: How inference to the most likely cause might be sound”. In: CARTWRIGHT, N., HARTMANN, S., HOEFER, C., BOVENS, L. (eds.), 2008. pp. 137-163. tenha tentado fazê-lo, seu sucesso é bastante questionável pois, para ele, o modo material de inferência é caracterizado pela crença na manipulação de entidades, enquadrando-o no problema do convencionalismo, justamente o que queria evitar. Uma proposta melhor emergiu em Mathias Egg (2012)EGG, M. “Causal Warrant for Realism about Particle Physics”. Journal for General Philosophy of Science/ZeitschriftfürAllgemeineWissenschaftstheorie, Vol. 43, Nr. 2, pp. 259-280, 2012. .

Na perspectiva de Egg, a inferência para a causa mais provável é uma instanciação da inferência para a melhor explicação em que ocorrem, simultaneamente, não redundância, modo material e adequação empírica. Havendo as três condições, haveria garantia causal e na ausência de pelo menos uma delas a inferência contaria apenas com a garantia teórica. Assim ele define cada condição para a garantia causal:

  • i) Não redundância:

  • Uma hipótese é não redundante exatamente se não há nenhuma outra hipótese que concorde com os resultados experimentais. (Egg, 2012EGG, M. “Causal Warrant for Realism about Particle Physics”. Journal for General Philosophy of Science/ZeitschriftfürAllgemeineWissenschaftstheorie, Vol. 43, Nr. 2, pp. 259-280, 2012. , p. 261)

  • ii) Inferência material:

  • [U]ma inferência no modo material é a que resulta da atribuição, para uma entidade concreta, de uma propriedade para a qual há uma noção bem definida de o que significa modificá-la. (Egg, 2012EGG, M. “Causal Warrant for Realism about Particle Physics”. Journal for General Philosophy of Science/ZeitschriftfürAllgemeineWissenschaftstheorie, Vol. 43, Nr. 2, pp. 259-280, 2012. , p. 266)

  • iii) Adequação empírica:

  • O que é preciso, portanto, é de uma especificação de um domínio nem tão vasto nem tão estreito, pelo qual todos os fenômenos precisam ser salvos. Além do mais, para serem adequadas para o realismo, tais especificações devem ser objetivas no sentido de não depender do tipo de experimento que escolhermos realizar. (Egg, 2012EGG, M. “Causal Warrant for Realism about Particle Physics”. Journal for General Philosophy of Science/ZeitschriftfürAllgemeineWissenschaftstheorie, Vol. 43, Nr. 2, pp. 259-280, 2012. , p. 269)

As três condições requeridas por Egg (2012)EGG, M. “Causal Warrant for Realism about Particle Physics”. Journal for General Philosophy of Science/ZeitschriftfürAllgemeineWissenschaftstheorie, Vol. 43, Nr. 2, pp. 259-280, 2012. são uma chave para a demarcação requerida por Chakravartty (2007)CHAKRAVARTTY, A. “A Metaphysics for Scientific Realism: Knowing the Unobservable”. Cambridge University Press, 2007. entre propriedades auxiliares e propriedades de detecção:

Em suma, confiar na caracterização de garantia causal em termos dos três supramencionados critérios nos fornece um caminho direto para distinguir propriedades de detecção das propriedades auxiliares: as primeiras são simplesmente aquelas para as quais possuímos garantia causal. Isso satisfaz muito bem a consideração de Chakravartty: a inferência material decifra uma precondição crucial para o que ele chama ‘forjar significante contato causal’; adequação empírica captura sua ideia de que propriedades de detecção nos permitem fazer previsões, retrodições, e assim por diante; e a não redundância expressa a crença de que essas propriedades são indispensáveis para alcançar esses objetivos. (Egg, 2014______. “Expanding Our Grasp: Causal Knowledge and the Problem of Unconceived Alternatives”. British Journal for the Philosophy of Science, Vol. 67, Nr. 1, axu025, pp. 1-27, 2014. , p. 13)

Este acento nas propriedades, quero admitir, dá conta de alguns problemas do RE como, por exemplo, a seguinte questão: como fazer alegações sobre entidades sem qualquer suporte de teorias? Ora, uma resposta simples à questão anterior é a de que teorias atribuem propriedades a particulares, algumas das quais podemos afirmar serem propriedades de detecção. Portanto, sem teorias, o experimentador não tem muito o que testar. Mas, uma vez ciente das propriedades atribuídas pelas teorias, o experimentador interage com algumas propriedades causais (as propriedades de detecção). Assim, pelo menos para as propriedades de detecção, haveria uma garantia maior para a crença de que são reais e que, portanto, também são (provavelmente) reais as entidades que apresentam aquela propriedade. E a existência de propriedades auxiliares constaria como um persistente alerta de que pode haver mais a ser conhecido sobre os particulares em questão do que nossos instrumentos de detecção atuais são capazes de nos dizer.

Retomando, pois, aquela questão sobre o papel das teorias, fica patente que a teoria guia o experimentador quanto às propriedades que ele pode vir a detectar.7 7 Um parecerista anônimo faz a seguinte pergunta: “Por que uma teoria não poderia guiar o experimentador quanto às entidades que ele pode vir a detectar?” De fato, ela guia. A teoria que postula uma entidade inobservável o fará apresentando as propriedades desta entidade. O processo de detecção se dará gradualmente, com algumas dessas propriedades adquirindo o status de propriedades causais. Outras, entretanto, permanecerão com o status de propriedades auxiliares até que uma detecção seja feita (mudando a garantia de teórica para causal) ou até que haja uma mudança teórica que substitua a teoria em questão. A vantagem de afirmar graus de garantia para as propriedades é que, supostamente, propriedades de detecção tendem a ser mantidas em rearranjos teóricos. E isso explicaria, por sua vez, o descarte de certas entidades (com eventual redistribuição das propriedades causais entre outros particulares) e a persistência de outras em sucessivas teorias muito diversas ao longo da história da ciência. Este é um ponto que procurei desenvolver em Oliveira (2017). O trabalho experimental, por sua vez, servirá para qualificar quais das propriedades são mais garantidas e quais são aquelas sobre as quais podemos ainda manter o juízo suspenso. Sem recorrer às teorias, dificilmente seria possível dizer, como Cartwright sugere, que “ali há elétrons”, pois as propriedades de detecção dos elétrons, embora sejam as mais garantidas atualmente, podem não ser tudo que há para saber sobre tais entidades.

4. Conclusão

De certa maneira, os dois passos aqui sugeridos para o RE, a saber, uma interpretação epistêmico-falibilista e uma atenção concentrada nas propriedades, resgata algumas intuições do realismo de entidades original, segundo o qual uma entidade é real se formos capazes de produzir fenômenos com ela. A ressalva é que agora estamos falando de propriedades e não dos particulares que supostamente reuniriam tais propriedades. Ao considerar as três condições propostas por Egg como necessárias para a garantia causal (e não para a existência da entidade), evita-se o problema da implausibilidade por convencionalismo: a garantia causal pensada deste modo, ainda que mais robusta, pode ser derrubada (tornada mera garantia teórica) pelo surgimento de uma explicação causal rival (violando a não redundância) ou pela ampliação do domínio dos fenômenos no qual a inferência falharia em produzir previsões (violando a adequação empírica). Mas, ainda que esses sejam os casos, as propriedades materiais ou propriedades de detecção são aquelas que, em virtude de nossa interação causal com as mesmas, temos bastante fundamento para supor serem constituintes da realidade objetiva. Isso pode ser uma explicação para o fato de que entidades como o éter não sobreviveram: não foi possível estabelecer suficiente contato causal com suas propriedades, ou seja, o éter só dispunha de garantia teórica. Mas tal acento nas propriedades também explica que as propriedades materiais do ar deflogisticado tenham sido redistribuídas para o oxigênio da teoria de Lavoisier, que se tornou paradigmática para fenômenos de combustão: o surgimento de uma alternativa tornou a teoria do flogisto redundante, o que explica a perda da garantia causal. O mesmo pode acalmar os ânimos dos que se assustam com o fato de que o elétron está presente, como lembra Cartwright, em várias teorias, muitas das quais conflitantes entre si: apesar do conflito, há algumas propriedades materiais bem conhecidas para ser objeto de discussão. E, mesmo que tenhamos admitido anteriormente que talvez a filosofia da ciência pode não ser reduzida a mera descrição do que os cientistas fazem, o RE parece ter aqui um ponto em relação ao realismo explanacionista e ao empirismo construtivo. De acordo com o critério explanacionista, tanto a teoria do flogisto quanto a do éter foram capazes de predições surpreendentes sem que isso impedisse que tais entidades fossem consideradas fictícias. E, surpreendentemente, empiristas construtivos permanecem céticos quanto ao elétron e outras partículas detectáveis, embora não visíveis a olho nu. Neste cenário, diante das alternativas, um realismo experimental como o aqui defendido não se sai mal no quesito adequação.

  • 1
    Ver Hacking (1981, p. 305)HACKING, I. “Do We See Through a Microscope?”. Pacific Philosophical Quarterly, Vol. 62, Nr. 4, pp. 305-322, 1981. . Basicamente o argumento procura mostrar a improbabilidade de que entidades detectadas em microscópios que funcionam a partir de diferentes princípios fossem irreais, dada a improbabilidade de que as formas detectadas fossem defeitos persistentes. Ao reconhecer uma mesma forma em uma lâmina que tenha passado por microscópio ótico, depois por microscópio de fluorescência, e finalmente por um microscópio eletrônico, fica difícil considerar que tal detecção seja na verdade alguma mancha inerente ao modo como o microscópio foi designado para operar e às teorias que explicam seu funcionamento.
  • 2
    Para Sankey (2012)SANKEY, H. “Reference, Success and Entity Realism”. Kairos, Vol. 5, pp. 31-42, 2012., a teoria descritivista da referência baseia-se em Frege e Russell de modo que “a referência é determinada por uma descrição associada a um termo” (p. 36). O termo é referente quando satisfaz a série de coisas exigidas na descrição associada a ele. Assim, no entender de Sankey, tal teoria da referência é apropriada ao realismo de teorias, já que uma referência bem-sucedida depende de uma teoria verdadeira.
  • 3
    Teoria baseada em Putnam e Kripke, segundo a qual “a referência é fixada na introdução de um termo por relações causais com objetos dentro das quais os falantes se inserem em seu ambiente” (Sankey, 2012SANKEY, H. “Reference, Success and Entity Realism”. Kairos, Vol. 5, pp. 31-42, 2012., p. 36).
  • 4
    Os autores já haviam feito uma crítica similar a Hacking em Reiner e Pierson (1995)REINER, R., PIERSON, R. “Hacking's experimental realism: An untenable middle ground”. Philosophy of Science, Vol. 62, Nr. 1, pp. 60-69, 1995.. Para uma interpretação do argumento experimental de Hacking como um caso de argumento sem milagre ou uma espécie de inferência para a melhor explicação, ver também o ótimo artigo de Boaz Miller (2016)MILLER, B. “What is Hacking’s argument for entity realism?”. Synthese, Vol. 193, Nr. 3, pp. 991-1006, 2016. .
  • 5
    Agradeço a um parecerista anônimo por chamar a atenção para o fato de a definição aqui apresentada ser muito exigente. Um exemplo por ele elencado seria da ampla aceitação da existência de placas tectônicas pelos geólogos que, entretanto, não podem manipulá-las. Minha interpretação da definição de Suárez aplicada ao quadro emblemático levantado pelo parecerista é a de que, neste caso, não há garantia causal para a existência de placas tectônicas e a crença na existência destas está fundada na garantia teórica. Lembro aqui que o fato de não haver garantia causal não significa terminantemente que tais entidades não existam. Uma crítica similar foi feita por Gross (1990)GROSS, A. G. “Reinventing Certainty: The Significance of Ian Hacking's Realism”. PSA: Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association, pp. 421-431, 1990. a Hacking sobre o caso das lentes gravitacionais. É, aliás, para evitar tais críticas que a definição de Suárez é para a garantia causal e não para a existência, fugindo da definição metafísica que pode vir a ser atribuída a Hacking.
  • 6
    A analogia da cidade é um modo de reafirmar o compromisso com o realismo experimental apenas como epistemologia, isto é, graduando os tipos de garantia que suportam nossa crença em entidades. A garantia causal dá maior robustez à crença numa entidade, mas não se pode afirmar categoricamente que uma entidade possua apenas as propriedades que por ora somos capazes de manipular (é nesse sentido que Suárez parece entender o termo “verdades caseiras” de Hacking, como propriedades com as quais estamos mais familiarizados, mas não as únicas propriedades da entidade). Por sua vez, a afirmação de Suárez de que as propriedades causais não são tudo que há para saber de uma entidade permite redimir um ponto bastante controverso do realismo de entidades original: o papel das teorias. Para algumas propriedades possuímos garantia causal, mas para todas as outras, dispomos de garantia teórica que, embora menos robusta, ainda nos possibilita reunir as propriedades de uma entidade para saber, por exemplo, quando a manipulação de uma carga negativa é de um pósitron ou de um elétron; ou quando duas manipulações de carga negativa são de um mesmo tipo de entidade e não entidades de tipos diferentes, evitando o problema da inflação ontológica já mencionado. Mais sobre o papel da teoria pode ser visto na próxima seção deste artigo. Agradeço a um parecerista anônimo que notou a necessidade de tal esclarecimento.
  • 7
    Um parecerista anônimo faz a seguinte pergunta: “Por que uma teoria não poderia guiar o experimentador quanto às entidades que ele pode vir a detectar?” De fato, ela guia. A teoria que postula uma entidade inobservável o fará apresentando as propriedades desta entidade. O processo de detecção se dará gradualmente, com algumas dessas propriedades adquirindo o status de propriedades causais. Outras, entretanto, permanecerão com o status de propriedades auxiliares até que uma detecção seja feita (mudando a garantia de teórica para causal) ou até que haja uma mudança teórica que substitua a teoria em questão. A vantagem de afirmar graus de garantia para as propriedades é que, supostamente, propriedades de detecção tendem a ser mantidas em rearranjos teóricos. E isso explicaria, por sua vez, o descarte de certas entidades (com eventual redistribuição das propriedades causais entre outros particulares) e a persistência de outras em sucessivas teorias muito diversas ao longo da história da ciência. Este é um ponto que procurei desenvolver em Oliveira (2017)OLIVEIRA, T. L. T. “Uma solução baseada no realismo experimental para dois argumentos pessimistas”. Veritas, Porto Alegre, Vol. 62, Nr. 3, set.-dez. 2017, pp. 595-623. DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2017.3.28684 (acessado em 16 de abril de 2019).
    http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.201...
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2018
  • Aceito
    16 Abr 2019
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