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Os tempos felizes: a presença de elementos classicistas na estética lukacsiana

Resumos

O presente artigo pretende investigar aspectos classicistas no pensamento de Lukács, ressaltando em sua teoria as idéias de epicidade, símbolo e alegoria como os principais termos de sua estética que mostram vínculos com teorias tradicionais.

Filosofia e Literatura; Epopéia; Romance; Símbolo; Alegoria


This article aims to deal with some classicist aspects of Lukács' thought, highlighting in his theory the ideas of epic, symbol and allegory as the main concepts of his Aesthetics related to the traditional theories.

Philosophy and Literature; Epic; Novel; Symbol; Allegory


ARTIGOS

Carla Milani Damião

Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Mackenzie, São Paulo. Cdamiao@hotmail.com

RESUMO

O presente artigo pretende investigar aspectos classicistas no pensamento de Lukács, ressaltando em sua teoria as idéias de epicidade, símbolo e alegoria como os principais termos de sua estética que mostram vínculos com teorias tradicionais.

Palavras-Chave: Filosofia e Literatura, Epopéia, Romance, Símbolo, Alegoria

ABSTRACT

This article aims to deal with some classicist aspects of Lukács' thought, highlighting in his theory the ideas of epic, symbol and allegory as the main concepts of his Aesthetics related to the traditional theories.

Keywords: Philosophy and Literature, Epic, Novel, Symbol, Allegory

Quando se recorda a bela natureza que envolvia os gregos antigos; quando se reflete sobre quão intimamente esse povo podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz; quão mais próximos estavam da natureza simples seu modo de representar, sua maneira de sentir, seus costumes, e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas (...).1 1 SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p. 55.

Os bons tempos da arte grega e a idade de ouro da última Idade Média se foram. As condições do tempo presente não são favoráveis à arte. O próprio artista já não é apenas desviado e influenciado por reflexões que ouve formular cada vez mais alto à sua volta, por opiniões e juízos correntes sobre a arte, mas toda nossa cultura lhe torna impossível, mesmo à força de vontade e decisão, abstrair-se do mundo que [está] à sua volta e das condições em que se encontra o sujeito, a não ser que recomece a sua educação e se retire para um isolamento onde possa encontrar seu paraíso perdido.2 2 HEGEL. Estética _ A arte e o ideal , p. 27.

Bem-aventurados os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir! Bem-aventurados os tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas!3 3 LUKÁCS. A teoria do romance, p. 27.

As três citações que iniciam este artigo têm o propósito de indicar a confluência de alguns aspectos da herança recebida pelo jovem Lukács do idealismo e do classicismo alemão. O principal relevo desse encontro de teorias é marcado pelos seguintes desdobramentos: a concepção de uma "idade de ouro", cuja referência é o período clássico grego; o sentimento de nostalgia provindo da perda desta; e a função dialética, que conduz a uma nova formulação estética, dando-lhe esperanças de ver redimida a totalidade perdida.

Na Teoria do romance, obra escrita no período da Primeira Guerra Mundial e publicada em 1950, Lukács retoma uma indicação deixada por Hegel em sua Estética.Hegel assinalava a discrepância entre a transformação do caráter nacional da epopéia e o anseio de fazer perdurar o gênero nos moldes antigos. Dever-se-ia reconhecer nos tempos modernos o distanciamento em relação à epopéia sem ser preciso, contudo, renunciar ao que caracteriza a epicidade. Nesse sentido, diz Hegel, nas "esferas da vida nacional e social dos nossos dias abriu-se um campo ilimitado, no domínio épico, para o romance, o conto e a novela".4 4 HEGEL. Estética _ Poesia, p. 286.

No prefácio à Teoria do romance,escrito doze anos após a publicação da obra, Lukács tece algumas considerações a respeito da importância de Hegel em sua abordagem histórico-filosófica das categorias estéticas e ao estabelecimento de uma dialética dos gêneros, determinante para a oposição entre epopéia e romance. Outras teorias importantes para a concepção dessa obra provêm de certas correntes sociológicas, da convivência de Lukács com o meio intelectual e do momento histórico no qual vivia. A influência da corrente sociológica denominada "ciência do espírito" é vista como resultado de impressões recebidas em sua juventude com base nos trabalhos de Dilthey, Simmel e Weber.5 5 Lukács participava nessa época, em Heidelberg, do círculo de intelectuais — entre os quais Tönnies, Jaspers, E. Lask —, que gravitava em torno de Max Weber, ao qual Lukács foi introduzido por Hegel. O momento em que escrevia a Teoria do romance é marcado por divergências políticas, manisfestadas em posições pró ou antimilitaristas. Este é, segundo Lukács, o ponto de partida da obra, cuja abordagem visava ser "uma reação de inteligência de esquerda à atitude social-democrata que havia apoiado a guerra". Mais tarde, no posfácio de 1967 à obra História e consciência de classe,Lukács descreve o nascimento da Teoria do romance no contexto de um "estado de desespero geral", no qual a esperança por uma saída anunciava-se de maneira irreal. Havia o entusiasmo adquirido com a Revolução Russa, uma perspectiva então real para o marxismo. Apesar das críticas lançadas a si mesmo e a suas obras "intelectualmente ultrapassadas", Lukács continuou a ser "redescoberto"por discípulos e intérpretes. Estes enfatizam a importância de Dostoievski na concepção d' A teoria do romance,e acreditam que a própria obra seria apenas uma introdução a um grande estudo sobre a obra do escritor russo. Lukács sempre rejeitou a hipótese da existência de um estudo sobre Dostoievski, mas admitiu mais tarde que havia de fato esse projeto e que foi interrompido por causa da Primeira Guerra Mundial, em função de sua convocação para o exército.

A importância de Dostoievski para A teoria do romance incide sobre vários aspectos de seu pensamento, entre os quais o que se relaciona à questão do classicismo, e, sobretudo, à questão do romance como tal, visto que, ter um modelo em Dostoievski significaria suplantar a forma romanesca em função de uma reincidência do caráter épico. Dostoievski, para Lukács, jamais escreveu romances.

O "neo-classicismo" lukacsiano, portanto, estaria intimamente ligado ao de Dostoievski. A predileção pela representação plástica da beleza grega, em Schiller e Hegel, ambos sob influência dos estudos de Winckelmann, tem um percurso diferente em Lukács. A contemplação plástica da "idade de ouro" ocorre por meio da literatura, em descrições feitas por Dostoievski do quadro Acis et Galatée do pintor Claude Lorrain, descrito em Os Possuídos no sonho de Staveoguine. Para Lukács, Dostoievski deixa claro nessa passagem que o paraíso é só um "sonho" no presente, mas, ao mesmo tempo, um sonho necessário, pois corresponde ao conteúdo de sua utopia, no qual a oposição "cultura" e "civilização" não representaria dificuldade à busca espiritual dos homens direcionada ao reencontro com a perdida "idade de ouro". Essas considerações, presentes no ensaio de Lukács de 1943,6 6 LUKÁCS. Ensaios sobre Literatura. coincidem com as de sua juventude, momento no qual ainda havia espaço para o "sonho-utopia" de Dostoievski.

A distinção entre "cultura" e "civilização",7 7 Cf. LÖWY. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. Segundo Löwy, Lukács segue a tradição sociológica iniciada por Tönnies, que teria primeiro formulado a oposição entre comunidade ( Gemeinschaft) e sociedade ( Gesellschaft): a primeira correspondendo à "ordem social tradicional, pré-capitalista, baseada nos costumes e vínculos pessoais"; a segunda, à ordenação social do capitalismo, "baseada no cálculo e na racionalidade, distanciada dos vínculos pessoais". A partir de Tönnies, Simmel formula a dicotomia cultura ( Kultur)e civilização ( Zivilazation) : a primeira como o "reino do espírito, plena de valores éticos e estéticos"; a segunda como o "progresso técnico materialista que destrói o aspecto cultural". que não representaria dificuldade à busca espiritual de Dostoievski, corresponde ao eixo estrutural d' A teoria do romance.Essa oposição se desdobra em outra a ela equivalente: "mundo homogêneo" e "mundo heterogêneo".

O primeiro pólo dessa oposição representa o mundo homérico, por sua vez, corresponde à "infância feliz da humanidade", na qual interior e exterior, indivíduo e mundo, alma e ato, são dualidades que se afirmam mutuamente em uma rede plena de significação. Representam o mundo da "harmonia" e da "perfeição", no qual a fronteira entre espírito e matéria mal se delineia no homem. No outro extremo, há a desunião entre as dualidades mencionadas e surge, sobretudo, o sentimento de nostalgia da "pátria arquetípica".

O mundo homogêneo é fechado em si mesmo, pleno de significação e perfeito. Possui o sentido positivo de totalidade. Nele não há dor, sofrimento, só grandeza, realização e plenitude. A "idade da epopéia" conhece a coincidência entre existência, ser e destino. O homem encontra-se incorporado ao equilíbrio das forças sociais que configuram a pátria idealizada: "amor, família, cidade". Nada nele remete a uma ruptura entre matéria e substância. Por isso, segundo Lukács, nos "tempos felizes" da helenidade não havia filosofia, pois que esta só surge a partir da separação entre interioridade e exterioridade. A filosofia corresponderia, portanto, ao próprio sintoma da dilaceração entre indivíduo e mundo e, por conseqüência, da "quebra" do sentimento de totalidade.

Desde então, a filosofia passou a determinar as instâncias do conteúdo e da forma e de sua aplicação à criação literária, concebendo a "idade de ouro" como a época da mais "perfeita concordância dos atos com as exigências íntimas da alma: de grandeza, realização e plenitude".8 8 LUKÁCS. A teoria do romance, p. 28. Na epopéia, ocorre a coincidência entre "existência e essência", "ser e destino", "aventura e acabamento", ao mesmo tempo que se desconhece a dor, o sofrimento e a morte. O herói da epopéia não corresponde ao indivíduo isolado, ele incorpora e expõe não um "destino pessoal", mas coletivo. Do todo orgânico que compõe o mundo épico, jamais pode ser destacada uma interioridade por meio da personalização heróica. O destino do herói confunde-se com o da comunidade épica, que vê sua sorte nele cristalizada.

Os termos utilizados na comparação dizem respeito à determinação literária do "mundo heterogêneo". Esses não partem da intencionalidade do indivíduo, mas de circunstâncias histórico-filosóficas, cuja abrangência marca a criação estética. As duas grandes "objetivações da grande literatura épica" são, segundo Lukács, a epopéia e o romance. O romance, para ele, corresponde "à epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da vida não é já dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou problema, mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade".9 9 LUKÁCS. A teoria do romance, p. 61. Ao passo que "a epopéia afeiçoa uma totalidade de vida acabada por ela mesma, o romance procura descobrir e edificar a totalidade secreta da vida".10 10 Ibidem, p. 66. À procura da "edificação da totalidade secreta" surge o herói romanesco, como a personificação psicologizada e individual do espírito na forma do romance.

A busca do herói romanesco é pelo sentido da vida, sentido que é espontâneo e ativo na comunidade orgânica, mas desfeito no contexto do mundo heterogêneo. Nesse sentido, diz Lukács, a "forma interior do romance é a marcha para si do indivíduo problemático, o movimento progressivo que — a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea puramente existente e privada de significação para o indivíduo — o leva a um claro conhecimento de si".11 11 Ibidem, p. 90.

Poderíamos dizer, portanto, que enquanto o herói do romance cumpre o "destino" que lhe foi atribuído, o herói da epopéia seria uma representação espontânea da comunidade épica ou do "mundo homogêneo". Lukács, porém, concorda com Schiller e Hegel ao ver na separação que ocorre entre homem e mundo a marca da libertação, mesmo sendo esta dolorosa. O mundo heterogêneo, entretanto, não é totalmente dessacralizado; trata-se de um mundo abandonado por Deus, cuja presença se realizaria por meio de uma "mística negativa", ou seja, pela presença do demoníaco, ao passo que a epopéia dependia da confiança dos deuses. Na situação contrária, a ausência de um deus ativo tornaria os homens impotentes, não fosse o poder ativo do demoníaco. Essa mística negativa caracteriza a "ironia" do escritor ao conseguir, por meio da liberdade artística, alcançar o "último real". A ironia, para Lukács, é a liberdade do escritor em relação a Deus, tornando-se um "meio moderno de estruturação" da narrativa. Lukács cita, nesse contexto, a influência das análises de Goethe sobre o demoníaco e credita o sentido da ironia por ele utilizado ao de Friedrich Schlegel e Solger.

Ao afirmar que o mundo homogêneo, fechado em si mesmo e perfeito, possui a noção positiva da totalidade, e que, do rompimento de sua homegeneidade, surgem a "reflexão" e a "liberdade", Lukács se situa na tradição do pensamento clássico alemão que vê nesses novos atributos — junto ao poder criador — uma

evolução, no sentido em que, descobre-se primeiramente a potencialidade do espírito criador, a capacidade de se criar formas e o reconhecimento da individualidade criadora como verdadeira e substancial. Através da reflexão supera-se o abismo entre saber e fazer, sujeito e mundo.12 12 LUKÁCS. A teoria do romance, p. 90.

Essa temática da superação de dualidades inclui-se na crítica de Lukács, tendo em vista a análise da tradição filosófica pós-kantiana, que trata da procura por um termo conciliador entre o "intelectual" e o "sensível", em outras palavras, entre "conteúdo" e "forma". Hegel, na Estética,após dissertar sobre as lacunas do pensamento kantiano, cita Schiller, atribuindo-lhe o mérito de haver efetuado a fusão da dicotomia mencionada, ao utilizar o conceito de belo. Schiller, para Hegel, via no princípio da arte, e na formação estética, a união entre "geral e particular", "espiritual e natural". Em História e consciência de classe,Lukács recapitula as conseqüências das antinomias kantianas, reafirmando-as como um problema central para a filosofia clássica alemã. Segundo a análise que faz nessa época, a filosofia, com base nessa "problemática", empenhou-se na formulação de um sujeito ativo e produtor da realidade como totalidade. Nele coincidiria o conceito de natureza como "a verdadeira essência do homem liberto das formas sociais falsas e mecanizadas, o homem como totalidade acabada que superou ou supera interiormente a cisão entre teoria e práxis, entre razão e sensibilidade".13 13 LUKÁCS. História e consciência de classe, p. 154. O campo concreto de ação e realização do sujeito corresponderia ao da arte, como reconhece Lukács ao ressaltar a formulação do princípio estético em Schiller. Este, porém, a seu ver, deveria estender-se para além da estética, voltando-se para a questão da existência social do homem. Nesse caso, haveria um reconhecimento "palpável" da fragmentação do homem e de sua destruição social. Nesse momento, a ênfase empregada por Lukács dirigia-se igualmente para a temática da desarticulação do sujeito e de seu restabelecimento como unidade. Em outro ensaio de 1935, de mesmo cunho, "A teoria schilleriana moderna", Lukács fala sobre a formulação da teoria literária moderna aliada ao "desenvolvimento da classe burguesa, sempre em íntima conexão com a teoria da Antigüidade". Ele tem em vista a Estética de Hegel como o grande final de toda a teoria da arte e da literatura burguesa, na qual vige a "Antigüidade como canon da arte", citando Schiller como o precursor desta obra.

Não é nossa intenção polemizar ou discorrer exaustivamente sobre o percurso teórico lukacsiano e sobre as alterações que sofreu, mas destacar aspectos da relação com a tradição do pensamento idealista e classicista alemão. Ressalvamos, contudo, a tese de que a teoria literária permanece ligada à tradição da análise histórico-filosófica de influência hegeliana, embora a abordagem tenha se modificado em vista da teoria marxista da história. O próprio Lukács aponta para essa influência, em especial na obra citada, A teoria do romance,da qual faz uma autocrítica.A visão globalizante que Lukács tem da epopéia e daquilo que o romance pode recuperar como marca dessa característica — a epicidade do romance —, contudo, continuará presente em outros trajes em suas obras posteriores. Correspondendo à visão globalizante, a noção de "símbolo", presente na Estética (Capítulo 16, item II - 25),obra publicada em 1963, marcará um posicionamento de combate de Lukács com as vanguardas artísticas.

A arte tem para Lukács uma missão social que é a de libertar o homem do domínio religioso. O símbolo, oposto à alegoria, fundamenta-se nessa missão. Lukács torna essa oposição crucial nos debates com as vanguardas, pois acredita que estas enfatizam a alegoria, sem conhecê-la com profundidade. Seu ponto de vista, nessa época, corresponde ao "realismo", que seria um método de configuração artística que visava apreender a realidade como totalidade através do movimento dialético. Lukács desenvolve a questão do realismo em ensaios literários, distinguindo-o sobretudo da concepção naturalista. No ensaio escrito em 1958, "Contra o realismo mal compreendido", Lukács volta a afirmar a definição de realismo dizendo não ser este "(...) um dogma estilístico, mas um processo compositivo que determina a criação de símbolos". 14 14 Esse texto é conhecido no Brasil como Realismo crítico hoje. A visão "anti-realista", neste caso a das vanguardas artísticas personificadas em Joyce, Musil e Kafka, entre outros, lidaria com a criação de "alegorias". Essa oposição "símbolo-alegoria" filia novamente Lukács à tradição classicista alemã, que manteve esse mesmo debate, tendo em Goethe um de seus maiores expoentes.

É exatamente Goethe a ser citado por Lukács em sua Estética,quando Goethe formula uma distinção entre sua maneira "simbólica" de compor e a de Schiller. Para Lukács, a tradição do pensamento de Kant a Hegel, em relação à idéia como "síntese de uma totalidade", alcança em Goethe um caráter mais objetivo por meio da definição de símbolo.

O conceito goetheano de símbolo, embora não possamos agora aprofundá-lo suficientemente, é, portanto, o ponto de partida da análise de Lukács. Ele chega a afirmar que a oposição símbolo/alegoria serviu a Goethe como "arma de combate" contra outras tendências teóricas e literárias, e que, à parte a polêmica relacionada estritamente àquela época, o conceito goetheano de símbolo coincide essencialmente com o que se chama de arte realista.15 15 LUKÁCS. Estética, p. 427.

O "simbolismo realista" de Lukács, igualmente, não valida independentemente o símbolo como único termo da oposição classicista entre símbolo e alegoria; ele se fundamenta também na alegoria como o outro termo extremo para também "armar-se" contra as tendências artísticas de vanguarda de sua época. A seqüência ao item sobre "Alegoria e Símbolo" é um estudo sobre o desenvolvimento histórico dessa oposição, com especial atenção para as formas assumidas pela alegoria no curso dos períodos nomeados como "mágico, religioso e moderno". Lukács quer, dessa maneira, situar uma origem bem mais remota do problema que se apresenta com maior evidência e como "oposição" na teoria goetheana.

No trajeto da oposição símbolo/alegoria traçado por Lukács, mantêm-se as características que, em geral, diferenciam os dois termos: a de completude do símbolo e a de conteúdo arbitrário da alegoria. Ao símbolo confere-se a coincidência entre ser e significar, ao mesmo tempo que, a alegoria — como revela a própria etimologia da palavra: allo = um outro e agoreuein = dizer —,

sempre remete a um outro significado, diferente daquele que apresenta. A compreensão baseia-se, por exemplo, no fato de que determinadas obras, como representações simbólicas, sãoo que representam, ao passo que as obras ditas alegóricas estão sujeitas a interpretações diferentes, o que diminui seu grau de representação imediata.

O símbolo está inscrito, para Lukács, na "luta libertadora da arte". A grande finalidade, nesse âmbito, é a conquista da realidade "pelo homem e para o homem: o mundo como pátria que o homem produz para si mesmo".16 16 Ibidem, p. 437. O conceito de "mundo", nesse caso, corresponde ao complexo das obras de arte estruturadas com base na categoria de totalidade ou, ainda, à especificidade no desenvolvimento de cada obra de arte até que esta seja convertida nesse complexo (ou totalidade) de objetos que, ao se apresentarem sensorialmente, conterão "imediatamente em si o próprio sentido, a própria significação, e o modo aparencial sensível e expressão imediata de sua essência".17 17 LUKÁCS. Estética, p. 429.

A "pátria" a ser reconquistada não condiz exatamente, segundo Lukács, com a recaptura da "felicidade imerecida do paraíso, recebida como regalo da graça"; e, mesmo quando esta aparece transmudada idilicamente em "idade de ouro", sugere sempreuma luta de reconquista, "para o presente ou para o futuro", a ser empreendida pelo que foi perdido. Para Lukács, os grandes momentos dessa luta pertencem à história do Ocidente através das representações artísticas da Antigüidade e da Renascença.

Lukács filia a alegoria ao Oriente, afirmando que esta estaria inicialmente inscrita na arte submetida à religião e à magia. "Na grande maioria dos povos da terra, sobretudo no Oriente, a arte (bem como a ciência e a filosofia) esteve sempre sob o controle religioso, teológico, razão pela qual se desenvolveu em geral na linha das alegorias".18 18 Ibidem, p. 435. Essa divisão Oriente-Ocidente, presente de outra maneira na Estética de Hegel, tem, no fundo, o mesmo significado, visto ser o "símbolo", em Lukács, a representação que une conteúdo e forma, união que em Hegel corresponde ao ideal de beleza em geral, e que em particular, está presente na arte clássica. Ao mesmo tempo, a disparidade entre conteúdo e forma está ligada, em Hegel, também ao Oriente, com denotações semelhantes de deformidades nas imagens, assim como a arbitrariedade da alegoria representaria uma deformidade de sentido para Lukács.

A razão por que Lukács se empenha em determinar o caráter religioso da alegoria é a de demonstrar como a arte de vanguarda, ao retomá-la, procura, em verdade, um fundamento religioso, fundamento que não mais existe, o que implicaria na apresentação de um conteúdo vazio. O estudo de Walter Benjamin sobre o drama barroco alemão, que recebe elogios de Lukács por sua profundidade, demonstraria já, tendo em vista as tendências da época, o esvaziamento do conteúdo transcendente da alegoria. Esse esvaziamento teria seguido o seu curso até culminar na total falta de espiritualidade no contexto da arte moderna, à qual Lukács confere, portanto, um caráter niilista.

A visão utópica luckacsiana encontra na idéia de "símbolo" um índice de recuperação da totalidade e o utiliza com o mesmo sentido empregado pelo classicismo alemão: em oposição à alegoria. De um lado, totalidade, significação plena e imediata; de outro, ausência de plenitude, carência de sentido imediato e fragmentação. Ao recuperar a idéia de símbolo do classicismo goetheano na Estética, Lukács torna-se, um século depois, seu grande defensor ao empregá-la contra as vanguardas artísticas.

Em A teoria do romance,ao retomar a indicação de Hegel e tornar o romance o gênero mais representativo da modernidade, o próprio subtítulo da obra demonstra a preferência classicista: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. A epicidade caracteriza tanto a "origem" quanto a "meta" do próprio narrar, pois é ela o índice do sentido de unidade.

Artigo recebido em 15/09/05 e aprovado em 15/11/05.

  • HEGEL, G. W. F. Lições de EstéticaLisboa: Guimarães ed., 1993.
  • ________. Estética — A arte e o ideal. Lisboa: Guimarães ed., 1993.
  • LÖWY, M. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionáriosSão Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1979.
  • LUKÁCS, G. A teoria do romanceSão Paulo: Ed. Duas Cidades/Editora 34, 2000.
  • ________. Ensaios sobre Literatura Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,1968.
  • ________. EstéticaBarcelona/Mexico: Ed. Grijalbo, 1967.
  • ________. História e consciência de classePorto: Publicações Escorpião, 1974.
  • SCHILLER, F. Poesia ingênua e sentimental Tradução, apresentação e notas de Márcio Susuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.
  • TODOROV, T. Teorias do símbolo Lisboa: Edições 70, 1979.
  • "
    Os tempos felizes: a presença de elementos classicistas na estética lukacsiana
  • 1
    SCHILLER.
    Poesia ingênua e sentimental, p. 55.
  • 2
    HEGEL.
    Estética _ A arte e o ideal
    , p. 27.
  • 3
    LUKÁCS.
    A teoria do romance, p. 27.
  • 4
    HEGEL.
    Estética _ Poesia, p. 286.
  • 5
    Lukács participava nessa época, em Heidelberg, do círculo de intelectuais — entre os quais Tönnies, Jaspers, E. Lask —, que gravitava em torno de Max Weber, ao qual Lukács foi introduzido por Hegel.
  • 6
    LUKÁCS.
    Ensaios sobre Literatura.
  • 7
    Cf. LÖWY.
    Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. Segundo Löwy, Lukács segue a tradição sociológica iniciada por Tönnies, que teria primeiro formulado a oposição entre comunidade (
    Gemeinschaft) e sociedade (
    Gesellschaft): a primeira correspondendo à "ordem social tradicional, pré-capitalista, baseada nos costumes e vínculos pessoais"; a segunda, à ordenação social do capitalismo, "baseada no cálculo e na racionalidade, distanciada dos vínculos pessoais". A partir de Tönnies, Simmel formula a dicotomia cultura (
    Kultur)e civilização (
    Zivilazation)
    : a primeira como o "reino do espírito, plena de valores éticos e estéticos"; a segunda como o "progresso técnico materialista que destrói o aspecto cultural".
  • 8
    LUKÁCS.
    A teoria do romance, p. 28.
  • 9
    LUKÁCS.
    A teoria do romance, p. 61.
  • 10
    Ibidem, p. 66.
  • 11
    Ibidem, p. 90.
  • 12
    LUKÁCS.
    A teoria do romance, p. 90.
  • 13
    LUKÁCS.
    História e consciência de classe, p. 154.
  • 14
    Esse texto é conhecido no Brasil como
    Realismo crítico hoje.
  • 15
    LUKÁCS.
    Estética, p. 427.
  • 16
    Ibidem, p. 437.
  • 17
    LUKÁCS.
    Estética, p. 429.
  • 18
    Ibidem, p. 435.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      15 Nov 2005
    • Recebido
      15 Set 2005
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