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A razão como instrumento heterogêneo: o caso do Avis aux Réfugiés

Resumos

Este artigo se propõe a identificar e investigar, no interior da filosofia de Pierre Bayle, instrumentos por ele utilizados para atribuir estatuto de conceito filosófico à tolerância. Com este objetivo, encontramos a concepção de razão construída no Avis aux Réfugiés. Após análise dos argumentos e das proposições apresentadas no texto acima citado, terminamos por identificar graus de profundidade na razão, de modo que o tolerar resulte de um empenho racional intenso e profundo.

Pierre Bayle; Avis aux Réfugiés; tolerância; razão


Cet article vise à identifier et étudier les instruments utilisés par Pierre Bayle afin de concevoir la tolérance comme concept philosophique. À cette fin, nous analysons la raison à l'interieur du texte Avis aux Réfugiés. Après avoir examiné les arguments et les propositions présentées dans le texte cité ci-dessus, nous finissons par identifier des degrés de profondeur dans la raison à la base de la tolérance.

Pierre Bayle; Avis aux Réfugiés; tolérance; raison


ARTIGOS

A razão como instrumento heterogêneo: o caso do Avis aux Réfugiés

José Ricardo Souza Rodrigues

Doutorando em Filosofia/UFMG. dukinha@terra.com.br

RESUMO

Este artigo se propõe a identificar e investigar, no interior da filosofia de Pierre Bayle, instrumentos por ele utilizados para atribuir estatuto de conceito filosófico à tolerância. Com este objetivo, encontramos a concepção de razão construída no Avis aux Réfugiés. Após análise dos argumentos e das proposições apresentadas no texto acima citado, terminamos por identificar graus de profundidade na razão, de modo que o tolerar resulte de um empenho racional intenso e profundo.

Palavras-chave: Pierre Bayle, Avis aux Réfugiés, tolerância, razão

RÉSUMÉ

Cet article vise à identifier et étudier les instruments utilisés par Pierre Bayle afin de concevoir la tolérance comme concept philosophique. À cette fin, nous analysons la raison à l'interieur du texte Avis aux Réfugiés. Après avoir examiné les arguments et les propositions présentées dans le texte cité ci-dessus, nous finissons par identifier des degrés de profondeur dans la raison à la base de la tolérance.

Mots clés: Pierre Bayle, Avis aux Réfugiés, tolérance, raison

Pretendemos que o conceito de tolerância recebe elaboração filosófica na obra de Pierre Bayle. Com isto, não se está a dizer que - sistematicamente - o autor desenvolva uma ampla teoria da tolerância que permita ler diversas outras questões filosóficas a partir daquele conceito. O que se constata em Bayle é uma gradual apresentação de fundamentos especulativos para a tolerância e a perseguição de sua aplicação em contextos argumentativos diferentes. Leitor atento de novas filosofias que se apresentavam em seu tempo e protagonista direto de eventos histórico-sociais da mais elevada importância, Bayle recorre à tolerância como um "conceito-teste", que lhe permite postular uma caminhada conscienciosa e crítica pelo último quartel do século XVII.

Todavia, do que dissemos acima é preciso reter que o delineamento do conceito de tolerância é uma operação progressiva. Textos com os mais diversificados propósitos vão se suceder e, em cada um deles, veremos Bayle alcançar maior detalhamento de seu objeto filosófico. Não obstante, como constatado pelos estudiosos, esta construtividade dá - por vezes - a sensação de recuos: algumas abordagens já criticadas anteriormente pelo autor são retomadas e recebem novo tratamento, situação agravada pela estratégia de "dizer pela voz do outro", o que dificulta a identificação do que seria um "pensamento bayleano".

Seria uma imprecisão filosófica? Ou, na esteira da já clássica interpretação straussiana, uma operação deliberada de escondimento de idéias diante de um ambiente persecutório e censório?1 1 Referimo-nos, por certo, ao texto de Leo Strauss, Persecution and the art of writing, na tradução francesa inserta em Art d'écrire, politique, philosophie (Paris: J. Vrin, 2001). Não é nosso objetivo, neste passo, maiores referências àquela importante e esclarecedora abordagem. Cremos, como se verá, que a escrita velada, a par do intento retórico de transmissão cifrada de pensamento a correligionários e da questão de sobrevivência, denotará uma crítica filosófica à estrutura mesma do pensamento. Aqui apenas discutiremos a natureza da ferramenta utilizada pelo pensamento daquele autor.

Com efeito, agregamos a tudo o que já foi dito sobre a escrita bayleana que a falta de linearidade intui uma mais profunda e séria ambigüidade: a do instrumento a que se recorre para formulação de conceitos filosóficos, dentre eles, do conceito da tolerância. Veremos, inclusive, que não é propriamente adequado referir-se à operação intelectual bayleana como uma construção de conceito.

Eis o engenho bayleano: traçar a tolerância de modo gradual para com isto demonstrar o quanto também é paulatino qualquer processo de conceituação, fruto de um instrumento especulativo vacilante e dubitativo. De fato, é muito útil bem dimensionar a travessia que o pensamento bayleano faz pelo ceticismo, pois esta suspeita do valor axiomático dos produtos da razão revela questionamentos sobre a extensão, aplicação, validade do conceito elaborado.

Aqui está o cerne de nossa presente abordagem: como se configura, para Bayle, a razão que funda a tolerância. O texto que inquiremos será o Avis aux Réfugiés.2 2 Bayle, Pierre. Avis aux Réfugiés, Introduction et édition critique par Gianluca Mori (Paris: Honoré Champion, 2007). A partir de agora, citado como AR e o número da página nesta edição. Ele, como outros escritos do autor, demonstra a simultaneidade entre o desenvolvimento da temática da tolerância e indagações sobre a extensão, natureza, características e amplitude da razão.

Com efeito, em toda análise que Bayle faz de fenômenos sociais nos quais está implicada a tolerância (as dragonadas, o retorno do exílio, a constrição da consciência etc) ele parte da discussão sobre a utilização da razão para tais fins. O consectário desta preocupação é um cuidado todo especial com as exigências formais do embate de idéias. Note-se, por exemplo, como o autor está sempre, em seus escritos, lembrando o leitor de três antecedentes necessários à boa polêmica. Primeiro, que é preciso que os temas postos em debate recebam daqueles que contendem um tratamento semelhante, seja ele filosófico, político, jurídico ou historiográfico, de modo que não se estabeleça uma incompreensão decorrente da desarmonia dos pressupostos retóricos. Em segundo lugar, que é fundamental uma adequação deste tratamento ao tema em questão, sob pena de se sair do domínio da filosofia ou de se desqualificar um discurso por não possuir requisitos que - a rigor - não lhe seriam exigíveis.3 3 "...não se há de exigir de um homem que escreve reflexões sobre o que se passa na sociedade civil a mesma exatidão que a um filósofo que investiga as verdades naturais". - Nouvelles Lettres, XII, II, p. 244b. Em terceiro lugar, que é preciso que os que trabalham com o verdadeiro na esfera do discurso comprometam-se com a realidade e seus aspectos.

De fato, ainda que o texto de Bayle fascine o leitor e o arrebanhe com certa rapidez, há um apelo à decifração. E o que Bayle faz na forma de convite traveste-se de uma séria questão hermenêutica: quais os elementos mínimos que capacitam o leitor de um texto. Diante do fato de que alguns dos textos são produzidos para uma circulação restrita no que se chamará de República das Letras, a pergunta pode ter outra redação: o que capacita alguém como destinatário de textos filosóficos?

A circunstância de sermos - todos - racionais será o início desta resposta. Guiemo-nos, assim, pelo objetivo de compreender o que seja a razão para investigar o AR,4 4 A querela da atribuição do AR a Bayle é uma questão infinda. Estudo recente e exauriente de Mori (Mori, 2007) responde afirmativamente a ela com argumentos que recobrem a tradição (o primeiro a imputar o texto a Bayle é Jurieu, pessoa que conhece bem o seu estilo e sua estratégia argumentativa), a estrutura argumentativa (as diferenças ocasionais de estilo seriam propositais, para disfaçar semelhanças com outros escritos bayleanos), a proximidade temática com outras obras (a temática da tolerância, com aceitação da intervenção estatal em matéria religiosa para manter a unidade e a soberania do reino, é encontrada na Critique Generale, no Commentaire Philosophique etc), as referências à correspondência pessoal (íntimos de Bayle não conseguem negar que seja ele o autor do texto), a riqueza de citações (Bayle conhece bem as inúmeras fontes usadas nas citações e por isto tem acesso a elas), a coincidência de citações (os trechos citados no AR são os mesmos presentes em outras obras bayleanas) etc. De qualquer modo, mesmo pensada a hipótese Larroque (Daniel de Larroque é o autor), tem-se uma reestruturação do texto por Bayle (que também lhe escrevera o Prefácio) e uma pretensão de Refutação a ele que acaba por reafirmar as conclusões do AR. retomando-lhe alguns pontos.

O texto possui dois temas centrais: a crítica ao espírito satírico dos reformados e a condenação de seus escritos sediciosos, tudo para que se aponte e repudie, como conseqüência, o efeito final altamente desagregador de ambos para a ordem social. Desde logo, consigne-se que não se trata propriamente de uma novidade. De fato, a acusação de intolerância dos protestantes (porque revolucionários e cáusticos) é antiga e faz parte da tradição católica. Mesmo para Bayle não haveria originalidade: no que respeita ao caráter amotinador dos escritos, temos que ele, desde muito cedo, condena as obras sem exatidão histórica e que distorcem os fatos em favor de seus argumentos. E no que concerne à sátira, a rejeição bayleana pode ser tributada à sua experiência pessoal com o caráter destrutivo da mesma na comunidade vaidosa dos "intelectuais".5 5 Numa das cartas a Minutoli (de 1674), Bayle reconhece a sátira como vício moral que desrespeita os homens que intervêm na produção intelectual. Em suas palavras, lembradas por Mori (2007), "os satíricos são verdadeiros provocadores e perturbadores do repouso público; com efeito, eles acendem a guerra em todos os cantos do Parnasso e fazem nascer centenas de libelos difamatórios". De fato, pode-se afirmar que a sátira ofende um dos princípios intelectuais da República das Letras: o não ataque pessoal.

O escopo do texto parece ser o da denúncia da intolerância que recobre também o pensamento protestante. No limite, quer-se reconhecer que a intolerância finca raízes mais profundas na dogmática cristã e pode ser entendido como um elemento teórico constitutivo da estrutura cristã de pensamento, aí incluídos católicos e reformados. Interesses confessionais e partidários são comuns a todos: basta ver as propostas reformadas de resistência armada e, até, de violência real contra o monarca para se perder a ilusão da inclemência como exclusiva qualidade católica.

O texto se abre com uma tradicional advertência ao leitor feita por um editor declaradamente protestante, refugiado em Londres. Este editor apresenta o escrito de um autor católico que lhe causa surpresa por uma razão imediata: veicula uma crítica aos protestantes afirmando que eles, por sua escrita insultuosa e por sua prática sediciosa, camuflariam em questões religiosas um posicionamento político. Sua reação imediata é conceber tal texto como um desrespeito claro às normas da República das Letras e, o que é mais importante, indicar o seu efeito de fazer recair sobre os reformados exilados a suspeita de uma infidelidade que dificultaria sua pretensão de retorno à França. No limite, o texto atingiria o protestantismo por diversos flancos.6 6 Do ponto vista social, o texto faria uma denúncia aos "falsos convertidos"; do ponto de vista religioso, escancaria o projeto insurgente dos refugiados; do ponto de vista teológico, denunciaria a prática traiçoeira e ilusória dos pastores; do ponto de vista intelectual, criticaria o trabalho dos escritores protestantes; do ponto de vista político, reagiria às pretensões de Guilherme III de Orange. Note-se, inclusive, que o editor confessa que abrandou o texto por ele publicado, suprimindo referências mais diretas e duras a autores e príncipes, bem como "invectivas pessoais" e "jogos de imaginação" (AR, 131). Por isto a razão de sua publicação: desafiar, entre os reformados, quem possa redargüir aos argumentos expendidos pelo autor do AR.

O AR possui precisa datação: o término do ano de 1689, "sem que nada tenha acontecido de bem memorável".7 7 AR, 135. Ao contrário, as coisas aconteceram natural e regularmente, aí incluídas as vitórias do reino francês sobre a liga de Augsburgo (1688-1697). Com este intróito histórico o autor quer dar um tom de objetividade e evidência na constatação do triunfo católico e da derrota protestante. É neste quadro de uma superioridade indiscutível e evidente do catolicismo que se coloca a questão das condições para o retorno à França dos refugiados protestantes. Terão eles que se despir não só de seus ideais religiosos (o que é evidente, já que não poderão retornar enquanto protestantes, senão enquanto conversos...), mas - principalmente - deverão abrir mão de um ideário político e filosófico que, em parte lhes é natural enquanto hereges e, em parte foi por eles construído nos anos de retiro forçado.

A análise sobre este modo de pensar dos protestantes - quer originário, quer adquirido - é que será a linha condutora das três partes seguintes do texto e, como dissemos, vai nos permitir identificar uma abordagem sobre a estrutura racional do pensamento.

A primeira parte trata dos escritos satíricos e o problema é que a sátira dissimula por seu exagero e por sua extensão - e o autor católico o percebe bem - um posicionamento político, ainda que construída sob auspícios declaradamente religiosos. Com efeito, na visão do AR, a primeira razão do desvalor da sátira protestante é o objeto por ela eleito: a pessoa real. Num século marcado pela figuração metonímica do poder na figura do rei-sol e da recuperação do discurso teológico-político, referências desonrosas ao monarca ou à corte são questões de Estado.

Esta discussão sobre uso público, exterioridade, circulação e efeito crítico começa a estabelecer a convicção de que os escritos satíricos têm fins políticos, não sendo apenas instrumentos de reação de um grupo religioso perseguido. Nota-se, então, que - a despeito de sua aparente inserção na contenta religiosa que opõe as confissões cristãs - tais escritos poderiam ser tomados por um viés explicativo completamente outro. De fato, irá o autor recomendar que o Estado tome como um problema de ordem pública o fato de o universo intelectual conter ataques pessoais.

Eis que se descortina uma nova configuração no tratamento do tema da tolerância a partir da atenção a aspectos racionais, atingidos com a utilização de um léxico jurídico.

De fato, tendo conseguido trazer para a cena argumentativa o Estado (no mencionado papel de censor dos ataques satíricos), poderá o autor católico recorrer ao discurso jurídico e à estrutura de pensamento que lhe é peculiar. Repito-lhe os passos: apresenta um repúdio ao escrito satírico; retira destes textos o aspecto apenas literário ou de crítica pessoal; mostra que o partido religioso protestante recorre amiúde a tal espécie de escrito; aponta a figura do rei como objeto da sátira; desnuda o aspecto político destes ataques; exige então a intervenção do ente político máximo (o Estado e não o monarca...) para conter conduta que lhe é prejudicial. Este percurso desfaz a proficuidade das abordagens literária e teológica para culminar no discurso jurídico como o mais eficaz quando é o Estado e seus interesses que estão no centro da discussão.

E, não por outra razão, o autor se anunciara estrategicamente como advogado8 8 No frontispício do AR, são lançadas cifras sob as quais se discute se pode ser atribuída a Bayle a obra (lembro, aqui, textos de Labrousse, Mori, Briggs e Cathasaigh). Importa, de todo modo, que existe um relativo consenso na indicação das cinco últimas letras: A.A.P.D.P., a significar " avocat au parlement de Paris". (AR, 121). ...

A partir deste momento, o autor vai dar maior atenção à estrutura argumentativa dos discursos católico e protestante e zelar por compreender o instrumento de que tais discursos se valem para se elaborar: a razão. Esta abordagem tornará francas as qualidades, condições, limitações e estruturas desta racionalidade. Não porque Bayle vá fazer um discurso completa e puramente jurídico. Mas a abertura para aquele ponto de vista tem ao menos dois méritos: primeiro, afasta a perspectiva puramente teológica para tratar do tema dos refugiados; segundo, é uma abordagem muito mais afeta às intervenções da filosofia, porque pode sua estrutura e sua principiologia ser questionada.

O autor, então, retoma a análise dos textos satíricos protestantes para inquirir se não haveria certa legitimidade na sua repressão, já que identificado seu potencial conteúdo insurgente. Afinal, uma análise ponderada mostraria existir um contraponto legal da liberdade de expressão satírica: o protestante que se julga no direito de causticar o ente político tem o dever de submeter-se à sua reativa e enérgica repreensão. Mantendo a mesma paridade argumentativa de que a um direito corresponde um dever, o autor vai lembrar o texto de Maimbourg9 9 Maimbourg é o principal autor analisado na primeira parte do AR, assim como Jurieu o será na segunda parte. onde se faz presente o tema do perseguido que, tornando-se poderoso, passa a perseguir. Interessa-nos, aqui, advertir para a proximidade da estrutura de pensamento presente nestes dois argumentos: tanto a repulsa de sátiras sejam elas católicas ou protestantes quanto a lembrança de que a verdade da denúncia é conteúdo de textos católicos ou protestantes são indicativas da utilização de um princípio de simetria, pelo qual todos os grupos são atingidos de modo semelhante pelas vedações e pelas permissões presentes nas leis. Neste embate em que um grupo recorre à generalidade da lei (sua valência para todos) e o outro à especialidade dos exemplos históricos, a racionalidade que privilegia o primeiro é, garantidamente, marcada por preocupações jurídicas.10 10 Estamos, por exemplo, em terreno completamente outro daquele ditado exclusivamente pela filosofia, que apelaria para uma análise calcada no princípio da igualdade, quer em seus aspectos lógicos (relações formais de equivalência), quer em seus aspectos éticos (relações morais e políticas), ambos já tratados desde Aristóteles.

É neste registro político - que permite sustentar-se o recurso à racionalidade judiciária - que vai se encerrar a primeira parte do texto, anunciando-se uma clara mudança de tom: o autor, que até aqui apresentava conselhos aos refugiados, pretende-se, agora, predicante, a exigir a submissão do fiel. Fazê-lo é imperioso para que o católico marque sua completa aversão ao tema que vai se seguir: o do tiranicídio. De fato, se os aspectos políticos do texto satírico precisaram ser lentamente demonstrados e até mesmo um reconhecimento do valor literário destes escritos foi por vezes admitido, tal não poderá acontecer neste novo ponto, porque impensável a rebelião.

A segunda parte trata, pois, dos escritos sediciosos.

O ponto de partida do autor católico é claro: marcar o protestante com a pecha de sedicioso, pois seus escritos têm por fundamento certo o interesse político. É apresentado um argumento de ordem demográfica: os protestantes são minoria num Estado francês em que a maioria aprovou a Revocação. Este argumento da razão da maioria tem seu perigo na facilidade de ser comprendido e será lembrado por Bayle na conclusão do AR como a questão do poder de fato que subjaz aos argumentos.11 11 AR, 263. Interessa-nos, aqui, que ele somente pode ser repudiado pela recuperação do sentido da lei como instrumento que nivela qualitativamente o que apresenta um descompasso quantitativo. De fato, por toda a segunda parte do texto assistir-se-á à elaboração de análises políticas que recobrem o esforço da razão judiciativa a enaltecer o valor da lei.

Avancemos mais lentamente.

Inicia-se reivindicando para a autoridade monárquica o fundamento da ordem social: contrapondo-se ao espírito indisciplinado dos protestantes, o rei católico é a encenação do arranjo adequado, conveniente e harmonioso da coletividade.12 12 AR, 166.

A razão (jurídica) identifica também que a idéia de soberania do povo acaba por difundir a idéia da soberania para cada um dos súditos, impedindo o exercício da potência coatora, pois ela poderia ser legitimamente recusada por qualquer dos súditos. Noutras palavras, se o súdito é - pessoalmente - o fundamento da soberania, não pode a coação estatal atingi-lo.13 13 O parâmetro é a irrenunciabilidade do Tribunal Divino pelo monarca e deve ser melhor esclarecido. O absolutismo possui como princípio o direito de o rei ser julgado apenas por Deus ("Car c'est un príncipe avoué de tout le monde, qu'un souverain ne reconnaît que le tribunal de Dieu quant aux choses en quoi Il est souverain". AR, 173). Na medida em que o contratualismo diz que o súdito - e não o rei - é o fundamento da soberania, ele pode argüir este mesmo direito e negar legitimidade a qualquer pena que lhe seja imposta. Conjugam-se, então, fatores de ordem ética14 14 Os homens não agem visando o bem comum, mas seus próprios interesses '! os desvios e política15 15 Os súditos não podem ser julgados pois são, eles também, soberanos '! a impunidade para a conclusão jurídica16 16 Os desvios são impuníveis. acerca da legitimidade: no limite, a tese da soberania do povo - recuando o direito de resistência até o indivíduo17 17 E de nada adiantaria a resposta pragmática dos reformados de que esta residência individual não se configura na realidade (AR, 178). - implica na soberania de cada um dos súditos e desfaz o dever de submetimento à lei.18 18 Aliás, a tese da soberania dos súditos dissipa a legitimidade de qualquer autoridade judicativa, afetando também e principalmente estados reformados confederados, pela quantidade de seitas que mantém em seu interior.

Esta constatação importará na configuração filosófica da lei e da tolerância.19 19 Vale a pena manter sempre em mente a extrema novidade bayleana na associação da defesa da liberdade de consciência (e o correlato ataque à constrição e à conversão forçada) com a temática da tolerância. Esta equivalência não é comum entre os pensadores semi-tolerantes do final do século XVII. Nestes, é usual o ataque à constrição acompanhado da inadmissão de um direito de convivência entre religiões dissonantes num mesmo território, representativo de uma lassidão doutrinal. Cito, como exemplo, Élie Benoist ( Avis sincères à MM. les prélats de France sur les Lettres qui leur sont adressées sous le titre de prélat de l'Église gallicane, p. 29): "Il y a des gens au monde tout prêts à réduire la doctrine de l'Évangile à cela Seul, qu'il ne faut point persécuter: et ils ne se feraient pas beaucoup prier pour sacrifier tous les mystères, et même en cas de necessité la plupart des préceptes de la morale, à une tolérance universelle". De fato, as críticas do autor católico do AR possibilitam a seguinte indagação: na medida em que não se tem mais o poder judiciativo (porque a soberania está difundida entre os súditos, como visto), quem poderia apontar para a inobservância das leis pelo rei e pela comunidade senão um poder interpretativo? No contexto das respostas do período, indicia-se a perspectiva contratualista adotada pela maioria dos autores huguenotes (com variações que não nos interessa, neste passo, discutir). Mas, para Bayle, a oportunidade teórica que se abre é mais profunda. Para ele, exatamente porque um poder interpretativo é necessário é que o tema da lei se coloca como um tema filosófico: ele implica prontamente na discussão sobre a sua interpretação, dado que a lei é falha20 20 AR, 182. e contingente.21 21 A lei não é objetiva (demanda sempre exegese) e é contingente (deve se adequar à realidade).

Mas que operação é esta da interpretação das leis? De início, o autor quer marcar o elevado grau de dificuldade que ela implica, com o que Bayle a aproxima do mister filosófico. De fato, os conceitos que gravitam em torno do tema da soberania popular (e estamos vendo o quanto a exegese da ordem jurídica é um deles) não são intuitivos e demandam definição e elaboração.22 22 AR, 185. Esta situação é consectária do fato de que o contratualismo detém elevada complexidade teórica, exigindo o desenvolvimento de conceitos de filosofia política, num nítido contraste com alguns dos argumentos que lhe podem ser opostos (dentre os quais, o da 'razão da maioria', como acima lembrado).

Note-se, assim, que a questão dos escritos sediciosos implica numa dupla concepção dos esforços racionais desenvolvidos pelos homens. De um lado, existe uma racionalidade chã, mínima, distribuída a todos os homens e que lhes permite a compreensão suficiente dos níveis relevantes23 23 Pragmático com Jurieu '! deve-se aguardar a evolução dos fatos antes de se julgar uma ação tida por sediciosa; Dogmático, com o autor católico '! a ação sediciosa é sempre viciosa e condenável; Cético, com Bayle '! é preciso analisar a ação tida por sediciosa com o instrumento da razão e não com os operadores político ou teológico para o julgamento da ação prática (seja ela a resistência ao poder ou outra qualquer). De outro lado, há de se falar de uma razão qualificada, capaz de elaborações especulativas mais elevadas e que será a operadora filosófica da interpretação da lei e da elaboração dos conceitos éticos e políticos, aí incluído o conceito de tolerância.

A noção de tolerância que Bayle deixa entrever no AR decorrerá de uma racionalidade operosa.

De fato, diante de um quadro em que não são os gestos individuais dos protestantes que são analisados (a abordagem é teórica) e em que a percepção das intransigências religiosas não pode ser apenas intuitiva, constata-se que a tolerância não pode resultar de uma não perseguição apenas ocasional. Deve ela ser construída pelo sistema de leis públicas, o que implica a dotação racional de fundamentos filosóficos. Aliás, sem o esforço interpretativo que a filosofia opera sobre o exemplário histórico, não é possível atribuir valor a este último e, a partir dele, legislar.24 24 É o que ocorre, por exemplo, com a constatação histórica da Confederação Reformada de 1579 que atribuiu aos católicos holandeses o direito de culto e que foi alterada quatro anos depois. O evento pode ser lido exteriormente de dois modos antagônicos: a) os protestantes são tolerantes, porque os católicos não foram ameaçados em seu culto por quatro anos ou, b) os protestantes são intolerantes, porque os católicos foram tolerados apenas por quatro anos. É a averiguação profunda dos fundamentos filosóficos da atribuição de direito a um grupo e de sua posterior revogação que permitirá uma sua qualificação não ambígua.

Ao fim do texto, em retomada, qual poderia ser a concepção de racionalidade que dele deriva?

Como vimos, a primeira certeza que nos assalta é a de que não há homogeneidade no estatuto da razão no AR.

Com efeito, propomos uma leitura interpretativa do pensamento bayleano em correspondência ao que já se identificou como uma sua pré-modernidade.25 25 Impossível não se lembrar aqui do papel de Bayle como precursor do iluminismo para autores que querem ver configurados os esquemas da theoretische Vernunft e da praktische Vernunft. Em palavras de Cassirer (1978), toda a representatividade deste pré-kantismo: "Sebbene egli combatta e rifiuti risoloutamente la ragione della scienza, il diritto della ragione morale resta per lui inconfutabile. A questo riguardo le frasi iniziali del Commentaire philosophique sono ancora valide, e anzi vengono ora fondate e sostenute com maggior rigore. Allo spirito umano non è dato di penetrare l'essere delle cose trascendenti; gli spetta l'unico diritto e la forza modesta di determinare la legge del proprio agire". Admite-se, em Bayle, uma relativa distinção entre as abordagens teórica e prática da razão, num corte horizontal da totalidade racional.26 26 Conceber a consciência como uma totalidade é um dos grandes pilares do pensamento bayleano. Ao atribuir a ela conteúdos distintos (interesses, razão, preconceitos, costumes etc) que se articulam forma-se um sistema sem solução de continuidade: não é de sua interrupção que se fala aqui, mas da faculdade racional. Tal é feito na esteira do reconhecimento impreciso e discutível de um ceticismo teórico (a fraqueza da razão para determinar verdades no campo do conhecimento), de par com a capacidade racional de determinação de princípios morais.

Esta distinção entre a debilidade especulativa e o vigor prático será a tônica das interpretações de alguns verbetes do Dictionnaire. Efetivamente, para compreender como pode o homem conceber princípios de ação e regras de moral, tendo reconhecido o fracasso da razão que embasava as conjecturas teológicas, será preciso recorrer ao uso da razão prática,27 27 Note-se o que Gros (2001) diz a respeito: "Alors, lorsque Bayle répète à plusieurs reprises qu'il 'faut humblement reconnaître que toute la philosophie est ici à bout, et que sa faiblesse nous doit conduire aux lumières de la révélation, où nous trouverons l'ancre sûre et ferme' (Pauliciens, Rem H), le lecteur attentif ne peut s'empêcher de rétablir ainsi la véritable situation: c'est la théologie qui ext exténuée, c'est la lumière de la révélation qui semble s'éteindre graduellement sous les assauts d'une raison critique alliée ici à la raison morale". feitas todas as ressalvas à prematuridade destes termos.

Pois bem, cremos que este corte horizontal (razão prática - razão teórica) pode ser nuançado por uma imagem vertical que revele o quão denso é o esforço de pensamento. Como vimos, a atividade teórica desenvolve-se de modos diferentes: ligeiramente, quando apreende verdades em cuja presença é posta; intensamente, quando é chamada para desenvolver conceitos. No exemplário presente no AR, superficiais seriam as formulações sobre o direito de resistência armada e a depreciação da figura real nos panfletos satíricos. Por sua vez, quando um esforço mais profundo de reflexão é chamado à cena, tem-se o desenvolvimento de conceitos de filosofia política e a própria exposição da crítica de viés político escondida nos escritos dos protestantes. A complexidade e o trabalho árduo de formulação estão neste último empreendimento, de par com a constatação do reduzido número (do elitismo mesmo) daqueles que são capazes de os desenvolver.

Marcada e resumidamente: a atividade racional pode ser pensada como possuindo graus de profundidade.

E esta não é uma novidade do AR, pois possui raízes na crítica presente no Commentaire Philosphique.

De fato, ali se encontra a denúncia que Bayle faz das punições religiosas que são apresentadas aos homens e por eles mal interpretadas como legítimas (caso da exegese literal do compelle intrare). Seria imprescindível um segundo esforço, mais profundo, de exame28 28 É de Elizabeth Labrousse (1996) o alerta sobre o modo rigoroso de análise bayleano: "Il faut prendre pour axiome que toute vérité agréable nous doit être suspecte et qu'il faut lui faire subir un examen particulièrement rigoureux". destes dogmas religiosos para lhes retirar a aparência de verdade revelando-lhes o caráter de imotivado e gratuito.

Eis os paralelos. No plano vertical, o exame racional profundo do universo político demonstra as condições para o retorno efetivo de protestantes à França que passam pela elaboração de conceitos de filosofia política (no AR); a reflexão profunda das crenças religiosas mostra a fraude da constrição da consciência (no Commentaire Philosophique). No outro plano horizontal, a razão superficial toma por verdade o compelle intrare (no Commentaire Philosophique) e como acerto o direito de resistência armada do súdito (no AR).

Vem daí o conjunto de coordenadas dentro dos quais se deve pensar a discussão da tolerância por Bayle: submetida a uma razão prática e de exercício profundo.

O problema é que tal conclusão mostra mais em que registro não se pode ler a noção de tolerância do que apresenta condições suficientes para a efetiva construção de um conceito. De fato, o esforço bayleano apontou para que não se pode pretender que a tolerância resulte de uma especulação abstrata despida de referências ao universo das ações morais (um ideal regulativo), com o que se assemelharia aos dogmas religiosos. Vê-se que a Bayle interessa investigar uma idéia capaz de pôr em cheque algumas especulações políticas e teológicas infundadas e de orientar ações morais, afastando-as do recurso à violência.

Esta identificação meticulosa de uma idéia que guie a ação moral é o que chamamos de construção da tolerância ou elaboração da tolerância, para a qual o AR contribuiu de modo decisivo ao reinvindicar uma intensificação da atividade racional e do comprometimento reflexivo como requisito de sua realização. O tolerar resultará, assim, de um esforçado empenho racional e reflexivo e não de mera indolência. A crença nos dispensa da razão e pode criar um espaço social saudável. Mas se se quer segurança, se se deseja um espaço social de tolerância contínua e não meramente ocasional (diríamos um espaço em que a tolerância pode ser reivindicada como um direito, porque fundada filosoficamente), sua elaboração racional é imprescindível, assim como imprescindível será o comprometimento intelectual daquele que se debruça sobre idéias ao criticá-las e analisá-las com exaustividade. Note-se, assim, que o AR condensa uma advertência que nos atinge ainda hoje, concitando-nos, instigando-nos ao exame crítico.

Como dirá, poeticamente, Fernando Pessoa, fazendo um louvor a este esforço reflexivo: "A tolerância é a falha da falta de fé. Crer é não distinguir".

Artigo recebido em 21/09/2009

Aceito em 20/10/2009.

  • BAYLE, Pierre. Avis aux Réfugiés, Introduction et édition critique par Gianluca Mori, Paris: Honoré Champion, 2007.
  • BAYLE, Pierre. Nouvelle lettres de Mr. P. Bayle, professeur en philosophie et en histoire à Rotterdam Boston, Adamant Media Corporation, 2001.
  • BAYLE, Pierre. Pour une histoire critique de la philosophie. Choix d'articles philosophiques du Dictionnaire historique et critique, Introduction et presentation par J.-M Gros et J. Chomarat, Paris, H. Champion, 2001.
  • CASSIRER, Ernest. Storia della filosofia moderna. Il problema della conoscenza nella filosofia e nella scienza, Traduzione di Angelo Pasquinelli, Torino, Giulio Einaudi Editore, 1978.
  • LABROUSSE, Elisabeth. Pierre Bayle: Hétérodoxie et rigorisme. Paris, Albin Michel, 1996.
  • STRAUSS, Leo. Persecution and the art of writing, in Art d'écrire, politique, philosophie, Paris: J. Vrin, 2001.
  • 1
    Referimo-nos, por certo, ao texto de Leo Strauss,
    Persecution and the art of writing, na tradução francesa inserta em
    Art d'écrire, politique, philosophie (Paris: J. Vrin, 2001). Não é nosso objetivo, neste passo, maiores referências àquela importante e esclarecedora abordagem. Cremos, como se verá, que a escrita velada, a par do intento retórico de transmissão cifrada de pensamento a correligionários e da questão de sobrevivência, denotará uma crítica filosófica à estrutura mesma do pensamento.
  • 2
    Bayle, Pierre.
    Avis aux Réfugiés, Introduction et édition critique par Gianluca Mori (Paris: Honoré Champion, 2007). A partir de agora, citado como AR e o número da página nesta edição.
  • 3
    "...não se há de exigir de um homem que escreve reflexões sobre o que se passa na sociedade civil a mesma exatidão que a um filósofo que investiga as verdades naturais". - Nouvelles Lettres, XII, II, p. 244b.
  • 4
    A querela da atribuição do AR a Bayle é uma questão infinda. Estudo recente e exauriente de Mori (Mori, 2007) responde afirmativamente a ela com argumentos que recobrem a tradição (o primeiro a imputar o texto a Bayle é Jurieu, pessoa que conhece bem o seu estilo e sua estratégia argumentativa), a estrutura argumentativa (as diferenças ocasionais de estilo seriam propositais, para disfaçar semelhanças com outros escritos bayleanos), a proximidade temática com outras obras (a temática da tolerância, com aceitação da intervenção estatal em matéria religiosa para manter a unidade e a soberania do reino, é encontrada na
    Critique Generale, no
    Commentaire Philosophique etc), as referências à correspondência pessoal (íntimos de Bayle não conseguem negar que seja ele o autor do texto), a riqueza de citações (Bayle conhece bem as inúmeras fontes usadas nas citações e por isto tem acesso a elas), a coincidência de citações (os trechos citados no AR são os mesmos presentes em outras obras bayleanas) etc. De qualquer modo, mesmo pensada a hipótese Larroque (Daniel de Larroque é o autor), tem-se uma reestruturação do texto por Bayle (que também lhe escrevera o Prefácio) e uma pretensão de Refutação a ele que acaba por reafirmar as conclusões do AR.
  • 5
    Numa das cartas a Minutoli (de 1674), Bayle reconhece a sátira como vício moral que desrespeita os homens que intervêm na produção intelectual. Em suas palavras, lembradas por Mori (2007), "os satíricos são verdadeiros provocadores e perturbadores do repouso público; com efeito, eles acendem a guerra em todos os cantos do Parnasso e fazem nascer centenas de libelos difamatórios". De fato, pode-se afirmar que a sátira ofende um dos princípios intelectuais da República das Letras: o não ataque pessoal.
  • 6
    Do ponto vista social, o texto faria uma denúncia aos "falsos convertidos"; do ponto de vista religioso, escancaria o projeto insurgente dos refugiados; do ponto de vista teológico, denunciaria a prática traiçoeira e ilusória dos pastores; do ponto de vista intelectual, criticaria o trabalho dos escritores protestantes; do ponto de vista político, reagiria às pretensões de Guilherme III de Orange. Note-se, inclusive, que o editor confessa que abrandou o texto por ele publicado, suprimindo referências mais diretas e duras a autores e príncipes, bem como "invectivas pessoais" e "jogos de imaginação" (AR, 131).
  • 7
    AR, 135.
  • 8
    No frontispício do AR, são lançadas cifras sob as quais se discute se pode ser atribuída a Bayle a obra (lembro, aqui, textos de Labrousse, Mori, Briggs e Cathasaigh). Importa, de todo modo, que existe um relativo consenso na indicação das cinco últimas letras: A.A.P.D.P., a significar "
    avocat
    au
    parlement
    de
    Paris". (AR, 121).
  • 9
    Maimbourg é o principal autor analisado na primeira parte do AR, assim como Jurieu o será na segunda parte.
  • 10
    Estamos, por exemplo, em terreno completamente outro daquele ditado exclusivamente pela filosofia, que apelaria para uma análise calcada no princípio da igualdade, quer em seus aspectos lógicos (relações formais de equivalência), quer em seus aspectos éticos (relações morais e políticas), ambos já tratados desde Aristóteles.
  • 11
    AR, 263.
  • 12
    AR, 166.
  • 13
    O parâmetro é a irrenunciabilidade do Tribunal Divino pelo monarca e deve ser melhor esclarecido. O absolutismo possui como princípio o direito de o rei ser julgado apenas por Deus ("Car c'est un príncipe avoué de tout le monde, qu'un souverain ne reconnaît que le tribunal de Dieu quant aux choses en quoi Il est souverain". AR, 173). Na medida em que o contratualismo diz que o súdito - e não o rei - é o fundamento da soberania, ele pode argüir este mesmo direito e negar legitimidade a qualquer pena que lhe seja imposta.
  • 14
    Os homens não agem visando o bem comum, mas seus próprios interesses '! os desvios
  • 15
    Os súditos não podem ser julgados pois são, eles também, soberanos '! a impunidade
  • 16
    Os desvios são impuníveis.
  • 17
    E de nada adiantaria a resposta pragmática dos reformados de que esta residência individual não se configura na realidade (AR, 178).
  • 18
    Aliás, a tese da soberania dos súditos dissipa a legitimidade de qualquer autoridade judicativa, afetando também e principalmente estados reformados confederados, pela quantidade de seitas que mantém em seu interior.
  • 19
    Vale a pena manter sempre em mente a extrema novidade bayleana na associação da defesa da liberdade de consciência (e o correlato ataque à constrição e à conversão forçada) com a temática da tolerância. Esta equivalência não é comum entre os pensadores semi-tolerantes do final do século XVII. Nestes, é usual o ataque à constrição acompanhado da inadmissão de um direito de convivência entre religiões dissonantes num mesmo território, representativo de uma lassidão doutrinal. Cito, como exemplo, Élie Benoist (
    Avis sincères à MM. les prélats de France sur les Lettres qui leur sont adressées sous le titre de prélat de l'Église gallicane, p. 29): "Il y a des gens au monde tout prêts à réduire la doctrine de l'Évangile à cela Seul, qu'il ne faut point persécuter: et ils ne se feraient pas beaucoup prier pour sacrifier tous les mystères, et même en cas de necessité la plupart des préceptes de la morale, à une tolérance universelle".
  • 20
    AR, 182.
  • 21
    A lei não é objetiva (demanda sempre exegese) e é contingente (deve se adequar à realidade).
  • 22
    AR, 185.
  • 23
    Pragmático com Jurieu '! deve-se aguardar a evolução dos fatos antes de se julgar uma ação tida por sediciosa; Dogmático, com o autor católico '! a ação sediciosa é sempre viciosa e condenável; Cético, com Bayle '! é preciso analisar a ação tida por sediciosa com o instrumento da razão e não com os operadores político ou teológico
  • 24
    É o que ocorre, por exemplo, com a constatação histórica da Confederação Reformada de 1579 que atribuiu aos católicos holandeses o direito de culto e que foi alterada quatro anos depois. O evento pode ser lido exteriormente de dois modos antagônicos: a) os protestantes são tolerantes, porque os católicos não foram ameaçados em seu culto por quatro anos ou, b) os protestantes são intolerantes, porque os católicos foram tolerados apenas por quatro anos. É a averiguação profunda dos fundamentos filosóficos da atribuição de direito a um grupo e de sua posterior revogação que permitirá uma sua qualificação não ambígua.
  • 25
    Impossível não se lembrar aqui do papel de Bayle como precursor do iluminismo para autores que querem ver configurados os esquemas da
    theoretische Vernunft e da
    praktische Vernunft. Em palavras de Cassirer (1978), toda a representatividade deste pré-kantismo: "Sebbene egli combatta e rifiuti risoloutamente la ragione della scienza, il diritto della ragione morale resta per lui inconfutabile. A questo riguardo le frasi iniziali del
    Commentaire philosophique sono ancora valide, e anzi vengono ora fondate e sostenute com maggior rigore. Allo spirito umano non è dato di penetrare l'essere delle cose trascendenti; gli spetta l'unico diritto e la forza modesta di determinare la legge del proprio agire".
  • 26
    Conceber a consciência como uma totalidade é um dos grandes pilares do pensamento bayleano. Ao atribuir a ela conteúdos distintos (interesses, razão, preconceitos, costumes etc) que se articulam forma-se um sistema sem solução de continuidade: não é de sua interrupção que se fala aqui, mas da faculdade racional.
  • 27
    Note-se o que Gros (2001) diz a respeito: "Alors, lorsque Bayle répète à plusieurs reprises qu'il 'faut humblement reconnaître que toute la philosophie est ici à bout, et que sa faiblesse nous doit conduire aux lumières de la révélation, où nous trouverons l'ancre sûre et ferme' (Pauliciens, Rem H), le lecteur attentif ne peut s'empêcher de rétablir ainsi la véritable situation: c'est la théologie qui ext exténuée, c'est la lumière de la révélation qui semble s'éteindre graduellement sous les assauts d'une raison critique alliée ici à la raison morale".
  • 28
    É de Elizabeth Labrousse (1996) o alerta sobre o modo rigoroso de análise bayleano: "Il faut prendre pour axiome que toute vérité agréable nous doit être suspecte et qu'il faut lui faire subir un examen particulièrement rigoureux".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Recebido
      21 Set 2009
    • Aceito
      20 Out 2009
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