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A noção de substância da linguística à análise do discurso: percursos e possibilidades

La noción de sustancia de la lingüística al análisis del discurso: recorridos y posibilidades

The concept of substance from Linguistics to Discourse Analysis: passages and possibilities

Resumos

Discorreremos sobre a relevância da análise da noção de substância e como a mesma concorre nos processos de significação dos discursos na contemporaneidade. Para tal, efetuaremos uma breve retomada do Curso de Linguística Geral e da Teoria da Enunciação com o intuito de analisar, além das evidências, os conceitos de substância, forma e materialidade nessas teorias. Em seguida, adentraremos no campo da AD francesa sob a égide de Pêcheux, buscando visualizar as possibilidades aí instauradas. Concluímos que a análise de substâncias (como, por exemplo, de cores no texto verbal) demanda artefatos teóricos que explicitem como elas corroboram os processos de significação dos textos.

Análise de discurso; Linguística; Substância


Discurriremos sobre la relevancia del análisis de la noción de sustancia y como la misma compite en los procesos de significación de los discursos en la contemporaneidad. Para tal, efectuaremos una breve retomada del Curso de Lingüística General y de la Teoría de la Enunciación con La intención de analizar, además de las evidencias, los conceptos de sustancia, forma y materialidad en esas teorías. Enseguida, entraremos en el campo de la AD francesa bajo la égida de Pêcheux, buscando visualizar las posibilidades allí instauradas. Concluimos que el análisis de sustancias (como, por ejemplo, de colores en el texto verbal) demanda artefactos teóricos que expliquen como ellas corroboran los procesos de significación de los textos.

Análisis de discurso; Lingüística; Sustancia


The purpose of this article is to demonstrate the relevance of the analysis of the notion of substance in discourse analysis and how it contributes to the meaning processes in contemporary discourses. For this, we will make a brief retake, look into the General Linguistics Course and also the Enunciation Theory aiming at analyzing, apart from the evidences, the concepts of substance, form and materiality in the definition of language. After that, we will approach the Pecheutian Discourse Analyses theory, observing the possibilities that appeared based on that theory. We concluded that the analysis of substances (for instance, colors in the verbal text) requires theoretical devices, which make clear how they contribute to the meaning process of these texts.

Discourse Analysis; Linguistics; Substance


ENSAIO ESSAY

A noção de substância da linguística à análise do discurso: percursos e possibilidades

The concept of substance from Linguistics to Discourse Analysis: passages and possibilities

La noción de sustancia de la lingüística al análisis del discurso: recorridos y posibilidades

Welisson MarquesI; Cleudemar Alves FernandesII

IUFTM, Professor Assistente. Doutorando em Estudos Linguísticos PPGEL/UFU. Email: welissonmarques@yahoo.com.br

IIPPGEL/UFU, Professor Associado, Pós-doutor em Análise do Discurso – UNESP-Araraquara. Email: cleudemar@uol.com.br

RESUMO

Discorreremos sobre a relevância da análise da noção de substância e como a mesma concorre nos processos de significação dos discursos na contemporaneidade. Para tal, efetuaremos uma breve retomada do Curso de Linguística Geral e da Teoria da Enunciação com o intuito de analisar, além das evidências, os conceitos de substância, forma e materialidade nessas teorias. Em seguida, adentraremos no campo da AD francesa sob a égide de Pêcheux, buscando visualizar as possibilidades aí instauradas. Concluímos que a análise de substâncias (como, por exemplo, de cores no texto verbal) demanda artefatos teóricos que explicitem como elas corroboram os processos de significação dos textos.

Palavras-chave: Análise de discurso. Linguística. Substância.

ABSTRACT

The purpose of this article is to demonstrate the relevance of the analysis of the notion of substance in discourse analysis and how it contributes to the meaning processes in contemporary discourses. For this, we will make a brief retake, look into the General Linguistics Course and also the Enunciation Theory aiming at analyzing, apart from the evidences, the concepts of substance, form and materiality in the definition of language. After that, we will approach the Pecheutian Discourse Analyses theory, observing the possibilities that appeared based on that theory. We concluded that the analysis of substances (for instance, colors in the verbal text) requires theoretical devices, which make clear how they contribute to the meaning process of these texts.

Keywords: Discourse Analysis. Linguistics. Substance.

RESUMEN

Discurriremos sobre la relevancia del análisis de la noción de sustancia y como la misma compite en los procesos de significación de los discursos en la contemporaneidad. Para tal, efectuaremos una breve retomada del Curso de Lingüística General y de la Teoría de la Enunciación con La intención de analizar, además de las evidencias, los conceptos de sustancia, forma y materialidad en esas teorías. Enseguida, entraremos en el campo de la AD francesa bajo la égida de Pêcheux, buscando visualizar las posibilidades allí instauradas. Concluimos que el análisis de sustancias (como, por ejemplo, de colores en el texto verbal) demanda artefactos teóricos que expliquen como ellas corroboran los procesos de significación de los textos.

Palabras-clave: Análisis de discurso.Lingüística. Sustancia.

1 PALAVRAS INICIAIS

Este artigo é resultante de estudos vinculados ao nosso projeto de pesquisa em andamento e inscrito sob o viés da Análise do Discurso de orientação francesa (AD), mais especificamente com fulcro em Michel Pêcheux e Michel Foucault, e em que alvitramos analisar, entre outros elementos, determinadas substâncias constitutivas dos enunciados veiculados pela mídia impressa contemporânea, em especial no discurso midiático impresso.

O que constatamos é que uma abordagem discursiva que se debruça exclusivamente sobre o verbal não é suficiente para interpretar o discurso da mídia eficazmente. Além disso, estabelecemos a hipótese de que as substâncias, constitutivas das materialidades, além de concorrerem no processo de significação dos discursos que eles integram, também apontam sentidos específicos no interior dessas materialidades.

Sendo assim, propomo-nos discorrer, neste artigo, sobre tal problemática no interior da Análise do Discurso francesa. Para tal, partiremos das reflexões arroladas no Curso de Linguística Geral (doravante, CLG), para depois, observarmos as possibilidades de uma análise material pelo viés da teoria da enunciação. Em seguida, verificaremos como o materialismo histórico marxista, base norteadora em Pêcheux, possibilita avançarmos essa questão em pesquisas ulteriores.

Essa retomada se dá com o intuito de melhor compreendermos os conceitos de forma, substância e materialidade nas proposituras da língua, enunciação e discurso; de uma análise, além das evidências, em torno da imaterialidade da língua; bem como das possibilidades que uma abertura materialista nos oferece.

Como se sabe, analisar um discurso implica observar uma complexa rede de fatores que sobre ele intervém: suas condições de produção, os lugares ocupados pelo sujeito na enunciação, os fatores histórico-sociais, a memória retomada, o suporte que o sustenta. Além disso, as formas e substâncias investidas nas materialidades discursivas não devem ser desprezadas, ao contrário, incidem sobre seu conteúdo. Em outras palavras, analisar determinado discurso (por meio dos enunciados que o constituem), desconsiderando tais elementos, é ignorar deliberadamente um procedimento essencial que incide sobre sua interpretação. Algo como realizar uma análise mutilada do discurso.

De tal sorte, apesar de Michel Pêcheux incluir todas as propriedades inerentes ao discurso em sua teoria, pois a materialidade é composta além do conteúdo, de formas e substâncias; na prática, inúmeras vezes, essa questão é negligenciada. Muitas pesquisas ainda tendem a enfocar simplesmente a ideologia presente na linguagem verbal e desconsideram os atributos que a compõem. Algo impensável se se considerar que os textos de hoje se apresentam como um complexo construto semiótico e que há mais de trinta anos o Semântica e discurso foi publicado.

Talvez essa conjuntura seja um reflexo de certa memória operada no interior da própria AD: seguindo uma prática endógena – refletindo o enfoque de Pêcheux –, as análises recaíram sobre o conteúdo dos discursos por muito tempo, sobre as ideologias que perpassam os textos políticos, deixando à margem questões que, por serem constitutivas das matérias significantes, deveriam ser tidas como indispensáveis. Nesse sentido, a despeito de existir, ultimamente, um número crescente de trabalhos que se preocupa com certas questões aqui colocadas, como por exemplo, da relação do discurso com seu suporte, acreditamos que há ainda muito que se avançar nesse sentido.

Diante do avanço de novas tecnologias, o discurso inscrito na história e tomado como prática simbólica reclama novas perspectivas de análise.

2 A NÃO-SUBSTÂNCIA DA LÍNGUA E SEU PARADOXO MATERIAL

Primeiramente, não é nosso intento diminuir Saussure nem tampouco fazer coro com aqueles que o condenam em seu gesto de instauração dos fundamentos da Linguística. Poderíamos, como muitos o fazem, censurá-lo por deixar de fora o sentido, o contexto, vários elementos envolvidos na enunciação, a história, o sujeito, etc. no talhe epistemológico. Em nosso entendimento, reconhecemo-lo como o precursor da Linguística atual (BENVENISTE, [1974] 1989) e atribuímos-lhe os devidos méritos no estabelecimento de uma ciência. Se chegamos até o estudo do discurso foi preciso retomar Saussure nem que fosse para, ao menos, contrapor-lhe. Portanto, em busca de definir o que realmente consiste o enfoque da pesquisa Linguística, o mestre genebrino precisou realizar os recortes e, por conseguinte, estabelecer um objeto específico, autônomo, "puro" se se pretendesse dar um valor científico à disciplina. Aliás, utilizamos o nome de Saussure em virtude de nos referirmos ao CLG, cuja autoria lhe foi atribuída1 1 É relevante pontuar que a publicação do CLG resulta de apontamentos compilados por seus editores – Charles Bally e Albert Sechehaye –, a partir de anotações de alunos que frequentaram os cursos de Saussure entre 1907 e 1911. Bally e Sechehaye eram dois "discípulos" de Saussure que não frequentaram suas aulas, mas tiveram acesso aos manuscritos. No prefácio do Curso, ao sentir a responsabilidade assumida, eles questionam: "saberá a crítica distinguir entre o mestre e seus discípulos?" ([1916] 1971, p. 4). .

Diante da necessidade de fixação de limites, especialmente levando em consideração o paradigma científico positivista (formalista e normativo), Saussure embrenha-se nos fatos da língua propriamente dita e a situa como pertencente à Semiologia, uma ciência que viria a estudar os signos gerais no seio da sociedade. A Linguística, como parte dessa ciência geral, nasce para estudar a língua verbal humana em detrimento de outra Linguística, a da fala, de caráter secundário, uma vez que seria impossível reunir as duas faces sob o mesmo ponto de vista, sendo o conjunto da linguagem "incognoscível" e heterogêneo (SAUSSURE, [1916] 1971, p. 28).

Longe de uma visão míope (para aqueles que o censuram), o Pai da Linguística delimita bem o seu objeto, e um de seus princípios gerais envolve a natureza do signo, cuja constituição imbrica um significante – uma imagem formada na mente do indivíduo – a um significado – o conteúdo ligado àquele. O signo é psíquico e, portanto, não possui materialidade. Portanto, a língua é imaterial, mas possuidora de dada forma. Isso só é possível, como assinalamos, pelo caráter psíquico que a determina. O significante não é o "som material" (SAUSSURE, [1916] 1971, p. 80), nem tampouco a palavra escrita sobre qualquer superfície, mas antes uma imagem acústica formada na mente humana e que, portanto, não possui substância.

Esse caráter "não substancializado" da língua ocorre em função de ela ser tomada como um sistema de valores puros (SAUSSURE, [1916] 1971, p. 130) e mesmo pelo fato de não existir ideia anterior à linguagem: "a substância fônica não é mais fixa, nem mais rígida; não é um molde a cujas formas o pensamento deve necessariamente acomodar-se, mas uma matéria plástica que se divide, por sua vez, em partes distintas, para fornecer os significantes dos quais o pensamento tem necessidade" (SAUSSURE, [1916] 1971, p. 130). Portanto, não existem substâncias que "produzem" a língua, pois não há materialização do pensamento. Quando o pensamento se forma, a língua, grosso modo, já está lá. A língua é formada (constitui suas unidades) em um processo psíquico que envolve duas massas amorfas: de um lado o pensamento e de outro, concomitantemente, o som. Em outras palavras, pensamento e som se fundem na formação da língua. A linguística trabalha nesse espaço limítrofe.

A despeito de não entrar no domínio da estrutura "material", a língua é concreta. Parece até paradoxal denominar "estruturalismo" os estudos advindos dos postulados de Saussure. A este respeito, sejamos um pouco mais claros: a estrutura à qual remetem os linguistas e outros estudos que se pautam no CLG concernem à estrutura psíquica, incorpórea. Por outro lado, veremos logo adiante que, ao se falar em substância, estamos nos referindo aos elementos que revestem a estrutura material dos textos e objetos que constituem os discursos, ou seja, já no domínio da linguagem.

Poder-se-ia objetar, entretanto, que existe certa concepção materialista na propositura do signo, mais especificamente do significante, uma vez que este é linear. Sobre esta questão, Saussure ([1916] 1971, p. 84) declara que "o significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as características que toma do tempo: a) representa uma extensão, e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha". A linearidade é compreendida, então, como uma sucessão temporal dos termos da língua. Além disso, ele postula que "esse caráter aparece imediatamente quando os representamos pela escrita e substituímos a sucessão do tempo pela linha espacial dos signos gráficos" (SAUSSURE, [1916] 1971, p. 84). O que está em jogo, a partir desta citação, é o fato de a assimilação do significante se efetuar pelo som e se submeter ao tempo; o que nos conduz à compreensão de que isto só se torna possível pela materialidade que ele incorpora.

Ora, a realização do significante acontece na fala e se estabelece na sucessão do tempo. Para tal, precisa formar uma substância sonora, que é contínua. Portanto, paradoxalmente contrário à imaterialidade que constitui seu valor, é possível afirmar que o significante é material, ao menos, no sentido da linearidade que o estabelece.

Ademais, poder-se-ia argumentar, também, sobre qual é o lugar ocupado pela escrita na propositura da língua. Uma questão pertinente, especialmente se se considerar que a escrita é ainda uma das formas sígnicas mais utilizadas nos textos da mídia (apesar de que as imagens têm recebido cada vez mais espaço no discurso midiático impresso).

Como vimos até aqui, seguindo a linha de raciocínio no interior do CLG, a língua é imaterial, pura e, portanto, não substancializada. Não há elementos ou atributos externos que intervêm sobre ela (seus valores se dão no interior do próprio sistema). A escrita, por outro lado, rompe com a língua incorpórea proposta pelo Curso; é exterior à mesma em virtude do aspecto material que ela assume. Tal materialização implica uma ligação com a exterioridade como, por exemplo, o envolvimento do sujeito nesse processo. Assim, ela (a escrita) é deixada de lado no CLG, ou melhor, é colocada como um sistema que entra no domínio da semiologia. Além de a língua independer da escrita, se se a considerasse, a propositura de elevar a Linguística a um nível científico poderia ser impossibilitada, visto que, como pontuamos, sua mobilização acarretaria um envolvimento com diversas variáveis. Portanto, é uma exclusão que se revela necessária.

Outrossim, não é demais relembrar que se poderia confundir o significante com o som, uma vez que se o define como "imagem acústica". O conceito de significante não se liga à materialização sonora. Aliás, o que importa na palavra (seu valor) não é o som per si, mas suas relações (da palavra) com as outras no interior do sistema. Por isso, a imagem acústica é uma imagem mental, psíquica e, portanto, não material.

Apesar do paradoxo material inerente à sua definição (valor imaterial versus linearidade material) esboçado acima, afirmar uma materialidade na propositura da língua seria ir na contramão, primeiro, do desejo saussuriano por relegar toda e qualquer exterioridade ao seu objeto e, segundo, de um princípio já bem "sedimentado" na Linguística2 2 Para complementar, nos estudos neossaussurianos, mais especificamente nos Escritos de Linguística Geral, Saussure insiste na natureza incorpórea das unidades da língua: "nature incorporelle, comme pour toute valeur, de ce qui fait les unités de la langue" (SAUSSURE, 2002, p. 287). .

Como última palavra, ao realizar essa retomada ao CLG, percebemos que se se voltar para o estudo da língua, não cabe falar em substância. Para encontrá-la, faz-se necessário entrar no domínio da linguística da fala, o qual nos permitirá, como consequência, trabalhar no âmbito da estrutura material da língua. A esse respeito, antes de alçarmos essas questões nos estudos da AD, discorreremos sobre tal problemática sob o viés teórico da enunciação.

3 A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO – DISCURSO E MATERIALIDADE

Antes de prosseguirmos, uma indagação ainda nos inquieta acerca de mobilizarmos a teoria da enunciação neste artigo: se as noções de sujeito, enunciação e mesmo do discurso em Benveniste não são exatamente as mesmas da AD francesa, por que então retomá-lo?

Primeiro, é relevante pontuar que nenhuma teoria surge ex nihilo. Se há AD, não é porque Pêcheux a propôs do nada, ao contrário, conceitos em dispersão contribuíram para a constituição desse aparato teórico, incluindo aí a teoria da enunciação benvenistiana. Segundo, o enfoque aqui é tatear possibilidades de se analisar substâncias constitutivas de discursos, mas que possam ter sido deixadas à margem nos estudos da linguagem, mesmo inconscientemente. Assim, buscaremos visualizar os avanços instaurados pela teoria da enunciação no interior da Linguística, bem como as perspectivas de análise material que ela possa nos oferecer sob o enfoque aqui proposto.

Como se sabe, foi Émile Benveniste quem fundou o conceito de aparelho formal da enunciação, em 1970. Neste, observa-se uma ruptura com a linguística da língua (embora ele não seja o primeiro) e adentra-se no domínio da linguagem, perspectiva que avança os estudos linguísticos gerais e permite considerar alguns elementos envolvidos no discurso3 3 "Le discours, dira-t-on, qui est produit chaque fois qu'on parle, cette manifestation de l'énonciation, n'est-ce pas simplement la "parole"?"(BENVENISTE, 1970, p. 13). , mais diretamente, os personagens do enunciado e o contexto enunciativo. Nesse sentido, Benveniste tem foco bem delimitado em seu estudo: "Dans l'énonciation, nous considérons successivement l'acte même, les situations où il se réalise, les instruments de l'accomplissement" (1970, p. 14, grifos nossos).

Como Benveniste postula uma análise da língua em uso, a relação entre os sujeitos4 4 Sujeito aqui no sentido de produtor do discurso segundo a perspectiva benvenistiana, e que difere do sujeito da AD proposta por Pêcheux. é uma condição sine qua non para se estabelecer o funcionamento do discurso. Ou seja, nesses moldes, a posição do enunciador e a relação que este mantém com seu enunciatário são determinantes das entidades linguísticas mobilizadas nos textos (formas pronominais, dêiticos, marcas de ostensão, expressões modalizadoras, palavras e proposições, variações morfológicas, etc.).

É no ato enunciativo que se processa tal sistema de referências e, concomitantemente, se atualiza o aparelho formal da enunciação. Segundo este linguista: "todas as línguas têm em comum certas categorias de expressão que parecem corresponder a um modelo constante. [...] mas suas funções não aparecem claramente senão quando se as estuda no exercício da linguagem e na produção do discurso" ([1974] 1989, p. 68, grifo nosso).

Ademais, as relações de espaço e tempo estabelecidas e o tema desenvolvido nesse processo são decisivos na composição linguística. A enunciação transforma a língua em discurso por meio do emprego que o enunciador fizer dela. Sendo assim, é possível declarar, na esteira dessas reflexões, a possibilidade de uma análise material dos discursos desde então. No entanto, com algumas restrições.

A primeira delas recai sobre o enfoque dado ao indivíduo empírico. Aqui, o sujeito do discurso é uma pessoa que se apropria da língua e dela faz uso, não condizente com o sujeito da AD aqui praticada. Se o sujeito é regulador dos dizeres, ele é centrado, não interpelado pelo social, pela ideologia. Sendo assim, esta última não aparece nessa concepção discursiva. No entanto, um avanço significativo se revela no fato de as relações e posições dos personagens do enunciado serem determinantes da construção estrutural dos discursos. Uma proposição que ecoa em Pêcheux posteriormente, já em uma concepção histórico-marxista: "as palavras e expressões mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam" (PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 160).

Além disso, há uma ligação da exterioridade com a materialidade textual; algo que implica, em outras palavras, uma interferência da situação enunciativa com a forma e o conteúdo do discurso. Como afirmamos, a possibilidade de uma análise material do enunciado está instaurada. Todavia, seus sentidos (do enunciado) se prendem ao contexto situacional do ato discursivo em si, sendo que a história não é introduzida nessa proposta.

Para Benveniste, cada enunciação modifica o sentido de uma palavra, como é demonstrado no estudo do pronome "eu": cada ato locutório o re-atualiza, ou seja, o "eu" em uma enunciação não é o mesmo em outra, pois esta última já aparece em outra situação discursiva. Isso implica uma movência de significados que um mesmo termo sofre nas diferentes enunciações, mas que se limita, como reiteramos, ao contexto situacional. Esse deslizamento de sentidos é (e não ignorando as peculiaridades de cada caso) subjacente, também, ao enunciado nas vias de Foucault ([1969] 1995), de cuja noção alguns grupos de AD se apropriaram ulteriormente.

Apesar das possibilidades de uma análise material dos discursos sob os pressupostos acima elencados, tal prática é restringida em virtude do paradigma histórico-formalista que circunda tal episteme. Sobre esta questão, há uma preocupação metodológica em trabalhar os sentidos sem romper com o sistema saussuriano. Analisar os discursos de então envolve uma prática cuja ênfase recai sobre as relações sistêmicas e intratextuais. Ou seja, o exercício da linguagem se dá por meio da frase, sendo esta tomada como uma unidade discursiva; ela é a "vida da linguagem em ação" (BENVENISTE, [1966] 2005, p. 139).

Embora a enunciação seja concebida como um ato individual em que se busca articular a relação do homem com o mundo, as interdições que envolvem esta noção incidem diretamente sobre as possibilidades de uma análise materialista por nós levantada. Mesmo abrangendo o aspecto material dos discursos, a problemática da substância fica em suspenso. Fato plausível se se considerar, também, a carência de requinte dos textos da época, isto é, as condições que envolvem a relação discurso-suporte e que se distanciam muito das possibilidades tecnológicas atuais (pelo menos, no que concerne aos materiais impressos).

Por outro lado, é válido ressaltar que a proposta enunciativa traz contribuições peculiares para o campo do discurso, especialmente se levarmos em consideração a vanguarda de seus escritos. Como afirmamos a respeito de Saussure e ratificamos nesse momento, é preciso enxergar a totalidade de contribuições de um teórico antes de tecer considerações desfavoráveis a seu respeito. As restrições aqui levantadas não servem de demérito; pelo contrário, se justificam na tentativa de aventarmos possibilidades, conforme assinalamos. Em nosso entendimento, é injusto apontar críticas quando já se tem outros aparatos, mais atuais à mão.

Após estas considerações, concluímos até aqui que: a) a noção de discurso sob o viés teórico da enunciação benvenistiana entra no domínio da exterioridade, mas se limita ao contexto situacional e não abarca a dimensão histórica. Para isso, faz-se necessário trazer o materialismo histórico de Marx (2008) para o interior dos estudos da linguagem com vistas a tentar resolver o seu "eterno" problema semântico, em especial, aquele que trata da ideologia; b) em virtude das limitações impostas pela adesão ao aparato formalista da língua (permitindo as análises do "discurso" ao nível frasal5 5 Contrastando-a com a AD (já instituída atualmente), é fácil apontar as limitações da teoria. Entretanto, as reflexões de Benveniste, por sinal pioneiras, avançaram as análises fonológicas e morfológicas que o CLG propiciava, permitindo realizar uma análise do "discurso" sobre o do domínio da frase e que, para a época, já era um avanço. ), bem como das condições tecnológicas que incidem sobre os discursos da época, adentrar no domínio da materialidade pode se revelar um gesto perturbador para a teoria; c) é um avanço perceber os materiais linguísticos serem alterados, resultante da interação entre os falantes. Todavia, o sujeito é a fonte e não o efeito do discurso.

Enfim, por meio dessa breve retomada e a despeito das restrições colocadas, é possível aventar algumas possibilidades materialistas que a teoria da enunciação nos oferece na análise de discursos. A seguir, avançaremos discorrendo sobre essa problemática sob o viés teórico da AD. Analisaremos o gérmen norteador da teoria, qual seja, a interlocução pêcheutiana com Karl Marx a respeito do materialismo histórico.

4 DISCURSO E HISTÓRIA – O MATERIALISMO MARXISTA E A QUESTÃO DA SUBSTÂNCIA NA AD ATUALMENTE

Conforme assinalamos, percebe-se a impossibilidade de lidar com "substâncias" sob um viés puramente linguístico. A língua, sob a égide do CLG, é uma forma psíquica e imaterial. Já em Benveniste, apesar de se abicar a materialidade, o aparelho formal, como o próprio nome sugere, submete o discurso a restrições formalistas.

Por isso, mais do que adentrar na ampla e complexa dimensão materialista (de objetos concreto-reais), é necessário romper as cordas "invisíveis" que amarram o "discurso" ao sistema linguístico, com o intuito de alcançar uma base teórica que fundamente os fenômenos aqui expostos, quer seja a mobilização de dadas cores e leiaute, quer de fontes específicas utilizadas no discurso midiático impresso contemporâneo. No entanto, antes de continuarmos, outra questão nos interpela: no que realmente consiste o materialismo histórico marxista?

A este respeito, o próprio Pêcheux elucida que o essencial da tese materialista consiste em colocar a independência do mundo exterior em relação ao sujeito, colocando simultaneamente a dependência do sujeito com respeito ao mundo exterior (PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 76). A exterioridade – envolvendo aí as relações econômico-políticas e a produção de conhecimentos – incide diretamente sobre o sujeito. As formas ideológicas inerentes a e exercidas nessa exterioridade funcionam, ao mesmo tempo, como matéria-prima e obstáculo em relação à produção de conhecimentos, à prática pedagógica e à própria prática do proletariado. Estendendo esta reflexão e trazendo-a para o momento histórico pós-moderno atual, o sujeito "dependente" e ligado a essa exterioridade – em especial, ao desenvolvimento tecnológico de softwares que operam insistentemente nos discursos da mídia impressa – desemboca em novas possibilidades de práticas e, por conseguinte, em novas materialidades discursivas. É na materialidade discursiva que se evidencia a ideologia e as posições ocupadas pelos sujeitos.

Karl Marx rompe com a concepção de sujeito cartesiano, "nuclear", uma vez que desloca a autonomia individual de escolha ou decisão para as estruturas sociais e as formas de organização de trabalho. Ele expurga a ideia de homem livre e capaz de determinar suas atitudes nos diversos âmbitos sociais. O sujeito, segundo ele, se submete às condições sociais, econômicas e políticas que lhe são impostas. Em seu manifesto comunista escrito juntamente com Engels, critica ferozmente a burguesia e a exploração operada pelos sistemas de produção pós-revolução e defende o comunismo como forma de distribuição igualitária de riquezas: "o comunismo não retira a ninguém o poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outrem por meio dessa apropriação" (MARX; ENGELS, 2010, p. 54).

O indivíduo, segundo a concepção marxista, difere-se do sujeito iluminista, regulador diante da sociedade e dos fatores que lhe são externos; ao contrário, o sujeito proletário se via inserido em um sistema de coerções, submetido às imposições burguesas. Para Marx, as mudanças devem ocorrer externamente, no meio social, para que o indivíduo possa ter a oportunidade de se beneficiar delas. De tal sorte, o marxismo é constitutivo da teoria do discurso não apenas no que concerne ao sujeito, como também na noção de sentido, por justamente trazer a ideia de interpelação. Pêcheux remonta a Marx com o intuito de sustentar que os efeitos de sentido produzidos pelos discursos vinculam-se às posições sociais ocupadas pelos sujeitos nas relações estabelecidas na interlocução.

Nessa direção, podemos afirmar, por um lado, que os discursos de hoje não são os mesmos de trinta, cinquenta, cem anos atrás. Se há novas ferramentas tecnológicas, os discursos são, entre outros fatores, condicionados por essas novas tecnologias6 6 É válido destacar que os discursos contemporâneos não são, certamente, condicionados apenas pelo advento de novas tecnologias. No entanto, cabe neste trabalho dar enfoque a essa discussão. . Afirmamos isso pelo fato de ser impossível analisar os discursos, na era da liquidez7 7 Bauman (2005) apresenta o conceito de modernidade líquida, o qual se liga à miscigenação cultural e social e, consequentemente, à fragmentação de sujeitos, de identidades, de culturas. Em tempos de globalização, não há mais fixidez, no sentido de tendência única e exclusiva, nos diversos espaços sociais (cultural, artístico, político, filosófico, etc.). , utilizando dispositivos teóricos que não se atualizam. A base epistemológica da AD precisa acompanhar os novos materiais significantes e considerá-los em sua amplitude. Por outro lado, sob a base marxista, as novas materialidades são vistas como objetos-concretos; esses materiais se tornam objetos reais e históricos. Portanto, para ganharem existência empírica, passam e, ao mesmo tempo, sofrem os efeitos de seu processo de "substancialização".

Feitas estas considerações, se na época de Pêcheux já se utilizavam ferramentas tecnológicas, tal como o computador (embora ainda com recursos modestos), atualmente, com o advento de modernos editores de texto e visuais, as possibilidades são praticamente inesgotáveis. As múltiplas combinações de caracteres e cores, o espaçamento utilizado, determinadas diagramações, a mutação de imagens, suas junções e enquadramentos permitem a criação e formação de espaços discursivos diversos em fusão com os textos verbais e não-verbais que eles mesmos constituem. São mudanças histórico-tecnológicas que impõem à AD novas perspectivas de análise. Aliás, o processo de conhecimento como um todo deveria estar intricado à evolução tecnológica que o acompanha, o que nem sempre ocorre, pois como afirma Piovezani (2006), existe certo descompasso entre as transformações do objeto analisado e o alcance interpretativo da teoria e do método que tentam compreendê-lo.

Ademais, quando Pêcheux propõe uma teoria do discurso, fica evidente que sua concepção de ideologia não se prende à materialidade discursiva, "se prende" no sentido de que o processo de significação não se efetua exclusivamente por meio da superfície linguística, nem do texto por si: "é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma" (PÊCHEUX, [1969] 1990, p. 79). Para funcionar, para se verificar seus efeitos de sentido, faz-se necessário observar a exterioridade como, por exemplo, as posições ocupadas e sustentadas pelos sujeitos e a memória retomada a partir dos elementos em jogo na prática discursiva. No escopo dessa questão, os objetos concreto-reais são de sumo interesse para a tese materialista, pois são objetos de conhecimento, portam conteúdos e são ideológicos. Nesse sentido, a materialidade não é ignorada; ao contrário, é por meio dela que se torna possível analisar as substâncias e, consequentemente, interpretar o discurso que elas acompanham.

Um discurso só assume determinada forma em virtude de seu suporte e das condições sociais e tecnológicas que incidem sobre ele. Como prática que é, ao se materializar, o enunciado se torna objeto analisável e passível de interpretações segundo as posições dos sujeitos que com ele "dialogam". Nesse sentido, as substâncias são os elementos que constituem os enunciados; não é o texto em si (as palavras, frases e proposições), nem tampouco os textos não verbais (as imagens, fotos e gráficos), mas sim as propriedades que sustentam esses materiais.

Importa ao analista observar, além dos elementos supramencionados, a mobilização de dadas cores, fontes e leiaute específicos que, investidos nas materialidades, concorrem, como observamos, nos processos de significância dos discursos. Assim, fundamentamos a noção de substancializadores discursivos, ou seja, os atributos que compõem os enunciados e que significam, marcam ideologias e corroboram os sentidos produzidos pelos textos verbais e não-verbais que eles mesmos acompanham.

Todavia, diante do exposto, vislumbramos até aqui a problemática da substância oriunda apenas de textos e materiais escritos. É relevante acrescentar que tal problemática concerne, também, aos discursos produzidos e veiculados por outros suportes, como o discurso oral, por exemplo.

Analisar um discurso produzido oralmente não consiste simplesmente em transcrevê-lo para o papel, pois o discurso falado é muito diferente do escrito. Enquanto o discurso formado por significantes visuais (textos e imagens) se materializa no espaço, o discurso oral, composto por significantes sonoros, se realiza no tempo. É preciso observar, no interior da oralidade, os efeitos que essas substâncias causam sobre o discurso. A linguagem falada implica uma série de propriedades, como aquelas constitutivas do som: altura, duração, intensidade, timbre. Atributos que incidem diretamente sobre os sentidos do dito, como se verifica, por exemplo, no caso da ironia, que é marcada, nesse caso, a partir de entonação específica.

Ademais, se houver musicalidade, outros elementos são mobilizados e, como consequência, deverão ser observados também. Caberá à AD avançar essas questões nas práticas analíticas das materialidades que envolverem tais propriedades. Tais considerações nos levam a pensar a responsabilidade que recai sobre a teoria em propor analisar materiais tão complexos. A título de ilustração, questionamos: se se tomar uma música como objeto, o analista deveria ser conhecedor, pelo menos minimamente, de teoria musical, ou seja, de aspectos técnicos que envolvem a melodia e o som para não correr o risco de comprometer a pertinência de sua interpretação? Questão um pouco perturbadora, mas que merece ser pensada e ponderada.

No dizer de Courtine, o preço a ser pago pela AD por trazer a história para o seu interior é bastante alto e implica uma cara consequência: "o analista do discurso deve se tornar historiador do seu domínio empírico, desse segmento de realidade histórica na qual ele recolherá dados que organizará em corpus" (COURTINE, 2010, p. 24, grifo nosso).

De tal sorte, diante de um corpus cuja materialidade envolva diferentes propriedades (som, voz, hipertexto, por exemplo), a teoria precisa estar equipada com aparatos à altura dessas propriedades. Sendo assim, se pretendermos seguir na perspectiva de Pêcheux, a tendência, ao que nos parece, é ver a disciplina se diversificar e se fragmentar em especialidades cada vez mais distintas à medida que recrudescerem as exigências dos diversos materiais significantes.

Aliás, a AD não é mais aquela do discurso político stricto sensu, mas se abriu para os discursos fluidos e multimodais na era da modernidade líquida. Prospectivamente, caber-lhe-á, se não quiser ser acusada de impotente, servir ao analista instrumentos teórico-metodológicos que bem indiquem o que deve ser considerado nas análises de discursos, levando em consideração a constituição, formulação e circulação que incidirem sobre eles, bem como a complexidade semiológica que os envolverem – abarcando aí suas dimensões histórica, material e tecnológica.

5 ENUNCIADO E SUBSTÂNCIA

Como última parte, antes da conclusão deste artigo, ainda se faz necessário discorrer sobre a noção de enunciado em Michel Foucault. Ele é o primeiro teórico a fundamentar um dispositivo teórico (nesse caso, a noção de enunciado) que aponta explicitamente a substância do discurso. Este conceito é bem fundamentado em A arqueologia do saber e possibilita avanços significativos na área, especialmente se se considerar que sua publicação se deu ainda em 1969.

Para este autor, o enunciado é um pequeno fragmento que precisa de um suporte material, é produzido por um sujeito e tem uma data e lugar, e não se confunde com palavra ou frase, pois discurso e língua não estão no mesmo patamar de existência. É como um "elemento suscetível de ser isolado e capaz de entrar em jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele" ([1969] 1995, p. 90).

Analisar um enunciado implica observar as regras que estabelecem suas condições de aparição, sua produção na história, as suas co-relações com outros enunciados, seu papel desempenhado em meio a outros no jogo enunciativo, seus limites e qual memória é retomada e efeitos de sentidos são produzidos nesse contexto.

O enunciado não possui critérios estruturais de unidade, é antes uma função que se exerce verticalmente e que cruza o domínio de estruturas e unidades possíveis (FOUCAULT, [1969] 1995, p. 98). Não existe enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto desempenhando um papel em meio a outros, se integrando em um jogo enunciativo: "o enunciado está ligado a um referencial que não é constituído de coisas, de fatos, de realidades ou seres, mas de leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas" (FOUCAULT, [1969] 1995, p. 105).

Além de palavras ou frases, um enunciado pode ser, também, um símbolo, imagem, gráfico, tabela, organograma, desenho, etc. É como "um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte; como um átomo no discurso" (FOUCAULT, [1969] 1995, p. 90), sendo ao mesmo tempo não visível e não oculto. Ora, é não oculto, pois se materializa sob a forma de signos efetivamente produzidos, e não visível, pois, no momento de sua irrupção, ele não é mais o mesmo, sendo "necessária certa conversão de olhar e atitude para poder reconhecê-lo e considerá-lo em si mesmo" (FOUCAULT, [1969] 1995, p. 128).

Sob a ótica foucaultiana, o enunciado precisa ter, também, substância (FOUCAULT, [1969] 1995, p. 116). Isso concerne às propriedades constitutivas de sua materialização: tamanho, forma, cor, textura, contorno, detalhe. Destarte, se um de seus atributos mudar, sua identidade também será alterada. Como átomo do discurso, ele possui um referencial que funciona como um princípio de diferenciação e cuja natureza, no dizer de Foucault, precisa ser especificada.

Assim, cabe ao analista especificá-lo, isolá-lo, compreender suas relações com outros enunciados e reatualizá-lo. Esta noção dá sustentação teórica para se analisar diferentes objetos que compõem determinado corpus, bem como as substâncias que os constituem e os revestem e que são indispensáveis na constituição dos sentidos.

Todavia, as considerações de Foucault são limitadas por algumas razões. Uma delas é o fato de este teórico não ser analista do discurso, muito menos linguista; foi um filósofo e estudioso das ciências humanas gerais. Isso, de maneira alguma, diminui suas reflexões visto que ele conseguiu visualizar problemas além de seu tempo. A partir delas, inesgotáveis possibilidades são instauradas nesse campo de pesquisas. Ademais, suas considerações são como um pontapé para avançar a questão atinente à substância do enunciado.

Como afirmamos, o discurso em geral, bem como aquele produzido pela mídia impressa em particular, ganha corpo e existência em seu processo de materialização. Nesse, os sentidos não passam incólumes, ao contrário, é exatamente nesse momento que o discurso se reveste de particularidades específicas e que corrobora os fenômenos de significação.

Sendo assim, diante do exposto e a partir das possibilidades instauradas, caberá à AD avançar e desenvolver métodos que apontem os efeitos sofridos pelos enunciados em seus processos de substancialização, bem como quais os sentidos oriundos daí. O convite está posto. Que as substâncias tenham o seu lugar no exercício analítico...

6 BREVE EPÍLOGO

Este artigo teve como objetivo central refletir sobre a noção de substância, com o propósito final de a alçarmos na análise de discursos na atualidade. Para isso, fizemos uma breve exposição de seu conceito e expusemos algumas (im)possibilidades instauradas, tanto na propositura da língua em Saussure, como na teoria da enunciação benvenistiana.

Verificamos que, sob uma perspectiva estritamente linguística (apoiada no CLG apenas), não há possibilidade de se falar em substância. Para tal, faz-se necessário partir em direção à exterioridade do sistema linguístico, o que possibilitará trabalhar no âmbito da estrutura material da língua. Nessa direção, observamos os percursos e mesmo limitações instauradas pela teoria da enunciação de Émile Benveniste.

Em seguida, averiguamos as possibilidades analíticas da Análise do Discurso pêcheutiana. Constatamos que, do lugar que lhe compete como teoria da linguagem e a preço de um cuidado teórico, cabe à AD apontar direções rumo às extensões das propriedades dos objetos analisados e, ao mesmo tempo, estabelecer métodos adequados que deem conta dos complexos funcionamentos discursivos contemporâneos. É no imo dessas discussões que a noção de enunciado em Foucault se nos apresenta como conceito profícuo para a análise de substâncias. Foucault não prioriza o linguístico, para ele o enunciado exerce uma função, e irrompe em práticas social e historicamente constituídas.

Longe de conclusões, acreditamos que as ideias aqui expostas servem como um convite para se pensar o assunto e, mais do que isso, não ignorá-lo nas práticas analíticas, pois analisar o discurso contemporâneo implica, indubitavelmente, observar todas as questões aqui levantadas.

Nesse sentido, além dos textos verbais e não verbais que compõem os discursos da mídia impressa, as formas e substâncias de que esses discursos fazem uso para se materializarem precisam ser efetivamente consideradas nos procedimentos analíticos. Em outras palavras, na emergência de novas tecnologias, não cabe mais negligenciar esses fatores se se almeja realizar uma análise em que tais atributos interferem decididamente na produção de sentidos. Compreendemos, portanto, que a análise de substâncias, como por exemplo de cores e fontes no texto verbal, demanda artefatos teóricos que explicitem como elas corroboram os processos de significação desses textos.

Recebido em: 06/02/12.

Aprovado em: 17/03/13.

  • BAUMAN, Z. Identidade Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 110 p.
  • BENVENISTE, É. L'appareil formel de l'énonciation. Langages, 5e année, n. 17, p. 12-18, 1970.
  • ______. [1966] Problemas de linguística geral I Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. 5. ed. Campinas: Pontes, 2005.
  • ______. [1974] Problemas de linguística geral II Tradução de Eduardo Guimarães et al Campinas: Pontes e Editora da Unicamp, 1989. 294 p.
  • COURTINE, J.-J. Discurso, história e arqueologia entrevista com Jean-Jacques Courtine. In: MILANEZ, N.; GASPAR, N. R. A (des)ordem do discurso São Paulo: Contexto, 2010. p. 17-30.
  • FOUCAULT, M. [1969]. A arqueologia do saber 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995. 239 p.
  • MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista Tradução de Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010. 271 p.
  • PÊCHEUX, M. [1975] Semântica e discurso uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi et al Campinas: EDUNICAMP, 1988. 317 p.
  • ______. [1969]. A Análise do Discurso: Três épocas (1983). In: GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: EDUNICAMP, 1990. p. 311-318.
  • PIOVEZANI, C. Análise do discurso político: novos objetos, novas perspectivas. In: NAVARRO, p. (Org.). Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 243-257.
  • SAUSSURE, F. de. [1916]. Curso de Linguística Geral S. Paulo: Cultrix, 1971.
  • ______. Écrits de linguistique générale Texte établi et édité par Simon Bouquet et Rudolf Engler. Paris: Éditions Gallimard, 2002.
  • 1
    É relevante pontuar que a publicação do CLG resulta de apontamentos compilados por seus editores – Charles Bally e Albert Sechehaye –, a partir de anotações de alunos que frequentaram os cursos de Saussure entre 1907 e 1911. Bally e Sechehaye eram dois "discípulos" de Saussure que não frequentaram suas aulas, mas tiveram acesso aos manuscritos. No prefácio do Curso, ao sentir a responsabilidade assumida, eles questionam: "saberá a crítica distinguir entre o mestre e seus discípulos?" ([1916] 1971, p. 4).
  • 2
    Para complementar, nos estudos neossaussurianos, mais especificamente nos
    Escritos de Linguística Geral, Saussure insiste na natureza incorpórea das unidades da língua: "nature
    incorporelle, comme pour toute valeur, de ce qui fait les unités de la langue" (SAUSSURE, 2002, p. 287).
  • 3
    "Le discours, dira-t-on, qui est produit chaque fois qu'on parle, cette manifestation de l'énonciation, n'est-ce pas simplement la "parole"?"(BENVENISTE, 1970, p. 13).
  • 4
    Sujeito aqui no sentido de produtor do discurso segundo a perspectiva benvenistiana, e que difere do sujeito da AD proposta por Pêcheux.
  • 5
    Contrastando-a com a AD (já instituída atualmente), é fácil apontar as limitações da teoria. Entretanto, as reflexões de Benveniste, por sinal pioneiras, avançaram as análises fonológicas e morfológicas que o CLG propiciava, permitindo realizar uma análise do "discurso" sobre o do domínio da frase e que, para a época, já era um avanço.
  • 6
    É válido destacar que os discursos contemporâneos não são, certamente, condicionados apenas pelo advento de novas tecnologias. No entanto, cabe neste trabalho dar enfoque a essa discussão.
  • 7
    Bauman (2005) apresenta o conceito de
    modernidade líquida, o qual se liga à miscigenação cultural e social e, consequentemente, à fragmentação de sujeitos, de identidades, de culturas. Em tempos de globalização, não há mais fixidez, no sentido de tendência única e exclusiva, nos diversos espaços sociais (cultural, artístico, político, filosófico, etc.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Fev 2012
    • Aceito
      17 Mar 2013
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