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Porcelanas de Cristal1 1 Este texto artístico consiste no primeiro capítulo de um romance juvenil cujo projeto, intitulado Garoto com Gato, foi contemplado pelo Edital ProAC nº 33/2016: Bolsa de Criação Literária – Literatura Infantil e/ou Juvenil, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Informações detalhadas sobre o projeto estão disponíveis em: <http://estadodacultura.sp.gov.br/projeto/624/>.

Crystal porcelain

– Vai, Petrix! Assume que você chorou no capítulo de ontem – Evelyn provocava, sem agradecer à sociolinguística por permitir que ela, mesmo com diploma universitário, fosse livre para misturar a segunda e a terceira pessoa na mesma frase... e ainda ter um y no meio do nome.

Engraçado como a gente tem vergonha de reconhecer certas coisas que faz. Não estou dizendo exatamente do que fez, no pretérito que a gramática insiste em chamar de perfeito; mas do que faz, no presente superindicativo que aponta um dedo na testa e dedura essas ações do cotidiano que a maioria chama de guilty pleasure.

Além da mania doida de usar um monte de que num mesmo pensamento, o prazer culposo que mais me obriga a passar um tempo no purgatório é o de assistir a novelas. Não sei de quem herdei essa mania de acompanhar melodramas mexicanos, mas faz parte da minha agenda diária parar todas as atividades em prol da quarta reprise de Ana do Morro, cujas falas já estão quase que totalmente decoradas na minha mente, e da exibição inédita de Porcelanas de Cristal.

Nunca entendi de onde os autores da novela tiraram a ideia de misturar no título dois elementos um tanto incompatíveis e também nunca perguntei a opinião de ninguém. A única que sabe desse meu segredo e me irrita bastante por causa disso é a Evelyn, irmã em cujo nome, quando vou escrever à mão, sempre acabo colocando um pingo, mesmo sem ter i ou j.

– Não chorei, não... – eu me resguardei. – Talvez um pouquinho só, mas nada de soluços ou mergulho no fosso. Mas fazer o quê? Eu me chamo Jøgvan Petrix, o dramalhão já começa no meu nome! – (Só não sou mexicano no sangue porque nasci do pai dinamarquês que uma bala perdida tirou de mim).

– Eu ainda vou fazer um documentário sobre sua vida! – Evelyn fez do comentário uma amostra do orgulho por ter um diploma universitário nas mãos aos 21 anos. Não é de Cinema, mas do curso de Rádio e TV; mesmo assim, ela insiste que o que diferencia a sétima arte dos programas de culinária, no sentido de produção, é o tamanho da tela de exibição.

Olhei para o relógio, ele esticou bem os ponteiros, e eu percebi que já estava na hora de sair para a escola. Minha tia é uma das professoras, justamente a de Língua Portuguesa, a do “evite o uso abusivo das vírgulas”, a do “atenção com o uso da crase”, a do “coloque a pontuação antes de fechar as aspas”, exatamente a das seis aulas semanais.

Mas esta é apenas a tia Eleonora, porque a outra, a Marisol, artisticamente chamada Sol de Luna, unindo dia e noite dentro de si, está fazendo espacate nos confins do Congo. Dançarina profissional há um balé de anos, pensa apenas no demi plié (não conhece Demi Lovato nem Demi Moore) e passa a maior parte do ano no exterior, usufruindo dos incentivos culturais que consegue do governo.

– Evelyn, eu tenho que ir – anunciei com uma das alças da mochila no ombro esquerdo e a outra solta, balançando como um pêndulo de tecido em forma irregular. – O Luan vai para o treino com a mãe mais tarde ou você vai ficar cuidando dele?

– Você realmente acha que a dona Nágila iria querer ficar com o filho que recém-chegou com 9 anos? – Evelyn ironizou o fato de que Luan só foi adotado pela nossa mãe para que o nome dela vencesse na competição por audiência e ganhasse destaque na mídia esportiva. – Ele foi viajar com o João, ajudá-lo a resolver uns casos jurídicos.

– Olha, podemos até não considerar o João como padrasto, muito menos como alguém da família, mas precisamos reconhecer que ele é praticamente um pai para esse garoto. E talvez o Luan seja o mais perto de filho que ele terá, se continuar casado com a mãe.

Encerrei o assunto com um beijo na palma da mão, que o ar fez o trabalho de levar até minha irmã, e segui à porta da sala, enroscando o pé no tapete.

– Tá bêbado? – Evelyn brincou.

– Ele é que levantou a ponta para eu tropeçar – respondi. – Por falar nisso, ele está bem sujinho, não? Talvez esse tropeço tenha sido para olharmos para ele e notarmos que precisa de um banho.

– O aspirador está no armário de limpeza, assim como a máquina de jato de água. Fique à vontade, quando voltar da escola.

Chega a ser um contrassenso, mas, mesmo com todo o dinheiro que minha mãe ganha nos campeonatos de golfe e com o ordenado que João recebe dos clientes (a maioria, absolvidos), não contratamos uma doméstica. Segundo minha mãe, é uma forma de darmos valor à organização da casa ao mantê-la limpa. Conhecendo dona Nágila como bem conheço, não acredito nesses exemplos de humildade; ela, na verdade, evita ter que pagar bônus, horas extras e décimo terceiro, além dos adicionais e do registro em carteira.

– Prometo pensar no caso – deixei o desfecho em aberto e saí.

No caminho até o colégio, o pai da Júlia passou motorizado por mim e me ofereceu uma carona. Desde que entrei no ensino médio e que minha mãe decidiu que não funciona antes das 9 horas, vou à escola a pé. Tenho um pavor inexplicável de ônibus, vans ou qualquer espaço revestido de lata em que caibam mais de cinco pessoas.

“Agorafobia, medo de multidão ou lugares dos quais não se pode sair a qualquer momento”, diagnosticou a psicóloga. Eu diagnostiquei as demais, com a ajuda de uma revista da sala de espera: acrofobia, medo de altura; aracnofobia, medo de aranhas; katsaridafobia, medo de baratas; aicmofobia, medo de injeção; nudofobia, medo de ficar despido em público; tafofobia, medo de ser enterrado vivo; ailurofobia, medo de gatos.

– Até de gato?! – a psicóloga se assustou.

– Eles mordem, arranham, soltam pelos, miam até deixar a gente surdo, são traiçoeiros, comem ratos e depois ainda se lambem. E não adianta vir me dizer que, no Egito antigo, acreditavam que esses bichos eram como deuses! Ah, também tenho medo dos deuses... E do Egito antigo.

– Ando achando que sua única fobia é a afobia: o medo de ficar sem fobias!

O pai da Júlia buzinou o sedã verde musgo com dois toques, diminuiu a velocidade, e ela gritou: “Entre, Petrix!”, mas balancei a cabeça para os lados e disse que não precisava. Por culpa da minha tia beletrista, tinha fobia até de desobedecer ao significado das palavras; portanto, no caminho até o colégio, eu caminhava.

O sol das 7 horas gostava de entrar em contato com minha pele dinamarquesamente branca. Ou pelo menos na parte que não estava tapada pela blusa de moletom e pelas calças do uniforme. As mãos estavam no bolso, mas o rosto estava livre, dando a cara ao tempo, salvo a pontinha das orelhas, tapadas pelo fone de ouvido.

As duas aulas que abriam o dia foram de Física: só a primeira suportável. Na segunda, a professora ficou explicando o funcionamento de uma bomba atômica, e os ti-ti-tis ao redor, curiosamente relacionados ao assunto, faziam eco na minha cabeça: “Comi uma bomba de chocolate...”, “Perdi a bomba de ar da bicicleta...”, “Você anda injetando bomba nos braços...”, “Vou levar bomba na prova...”

A sensação única era a de que meu cérebro era uma bomba-relógio, prestes a explodir e me desligar de vez. A vista foi ficando turva; os sussurros, cada vez mais altos; o estômago, embrulhado. Se fosse fato inédito, talvez não soubesse reconhecer que estava passando por uma crise de enxaqueca.

– Petrix, tá tudo bem? – alguém me perguntou, Júlia ou Sandro, as vozes já se tornavam irreconhecíveis.

– Cabeça... Ca-be... – demonstrava dificuldade até na fala.

Relatos sobre minha situação chegaram aos ouvidos da professora; senti uma mão me ajudando a levantar; escutei algo semelhante a “...do bem...” três vezes; percebi um beijo no rosto e um cafuné. No entanto, não conseguia dimensionar as atitudes ao redor.

– Senhora Nágila? – uma voz, possivelmente de inspetora, falava, possivelmente ao telefone. – Seu filho... – a voz pedia para que fossem me buscar.

Fechei os olhos e os pressionei com a palma das mãos, fazendo movimentos circulares, enquanto o setor de produção da metalúrgica entortava tarugo e rachava lingote dentro do meu crânio, tal como na fábrica de alumínio perto de casa. A dor parecia mais leve quando minha mãe chegou, e eu já conseguia identificar que ela estava se queixando com minha irmã por ter sido acordada na parte mais intensa de um sono revitalizante.

Evelyn me guiou até o carro e me ajudou com o cinto de segurança. Quando minha mãe girou a chave, a dor diminuiu mais um pouco. Conforme ia se afastando do colégio, eu voltava ao normal. Por um instante, cheguei a pensar que estava desenvolvendo uma fobia escolar; porém, não havia motivos para isso.

Paramos no pronto-socorro, mesmo eu dizendo que não queria; já que havia acordado cedo, a mãe faria o serviço completo, incluindo ignorar meu pedido. O soro com analgésico estava à minha espera, antes do diagnóstico final do médico, mesmo eu enfatizando que não seria necessário, que eu estava bem, que não havia motivos para tanto cuidado, que depois eu só aceitaria algum medicamento via oral. Não adiantou: a agulha e o braço direito ficaram se relacionando por quase duas horas, enquanto a aicmofobia me deixou desacordado na maca.

Seguimos em silêncio até a rua de casa. A seta do carro deu uma piscadinha para os pinos de aço do portão, e minha mãe pressionou o controle remoto. A tecnologia resumiu o “abre-te, Sésamo” a um clique, e o portão abriu os braços, desejando boas-vindas. Ou, excepcionalmente dessa vez, oferecendo um abraço de consolo.

– Ué, gente... Alguém deixou a porta aberta e a luz acesa?

A mãe aproximou as sobrancelhas enquanto descia do carro, fez um vinco na testa e não ouviu as palavras automáticas de Evelyn: assaltaram, nossa, casa. Eu não sabia se também descia, se ficava sentado ali no banco de trás, se descia com a mochila, se ficava sentado em cima da mochila, se a mochila desceria sem mim... Na ânsia de tentar calcular o passo seguinte, só me vi quando já estava dentro de casa.

O tapete sujo chorava a falta dos sofás, da televisão, do computador, e o batente da porta, em lascas no chão e violado na fechadura, berrava o estupro por um pé de cabra. Olhei os olhos da mãe; eles cristalizavam lágrimas frias, de porcelana. Porcelanas de cristal.

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    Este texto artístico consiste no primeiro capítulo de um romance juvenil cujo projeto, intitulado Garoto com Gato, foi contemplado pelo Edital ProAC nº 33/2016: Bolsa de Criação Literária – Literatura Infantil e/ou Juvenil, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Informações detalhadas sobre o projeto estão disponíveis em: <http://estadodacultura.sp.gov.br/projeto/624/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2016
  • Aceito
    09 Mar 2017
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