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Economia submersa

PENSANDO O BRASIL

Economia submersa

Antonio David Cattani

Economista e diretor da Fundação Wilson Pinheiro de Porto Alegre

Bico, subemprego, trabalho autônomo, economia informal, economia submersa. São muitos os nomes que a imprensa e os especialistas dão para um mesmo fenômeno: o conjunto de atividades econômicas que, cada vez mais, após o agravamento da crise, passaram a se desenvolver fora da empresa capitalista padrão.

Quais são as perspectivas que esse novo mercado de trabalho cria para o sistema económico: ruptura ou renovação do capitalismo que conhecemos?

A economia capitalista passa talvez pela mais séria crise de sua história. Os economistas identificados com os interesses dominantes acham que não existe crise. O que está acontecendo é apenas uma "turbulência" no equilíbrio habitual ou um "disfuncionamento" no processo normal de crescimento. Entre eles, porém, há discordância quanto às causas da "disfunção". Os que seguem Keynes — o primeiro grande economista a pregar a intervenção do Estado para evitar os altos e baixos do capitalismo — dizem que a culpa é do mercado, que apresenta uma incapacidade crescente para regular a economia. Os neoclássicos ortodoxos, mais conservadores, valorizam a liberdade do mercado e o sistema de concorrência, e acham que a responsabilidade é do Estado com sua excessiva intervenção. No caso brasileiro, a "explicação" fica ainda mais fácil: a culpa é da crise internacional, particularmente, da crise do petróleo.

De modo geral, acreditam que, eliminados os pontos de estrangulamento e os desajustes provisórios, a regulação se dará novamente, permitindo um novo período de estabilidade ou de crescimento. Enfim, nada de muito sério e nada de novo a cada etapa da vida "eterna" do capitalismo.

Para os marxistas, o processo não é tão tranqüilo assim. Segundo Lenin, "toda crise significa aceleração do desenvolvimento, agravamento das contradições e de suas manifestações, e a falência de tudo o que é podre". O desenvolvimento contraditório das forças produtivas, a centralização e a concentração excessivas do capital, ou seja, a crise do regime de acumulação do capital (modo de acumulação e formas de exploração), chegará a tal ponto que a ruptura ou a destruição do modo de produção capitalista será inevitável. Enfim, tudo muito grave e muitas coisas novas a cada etapa na vida provisória do capitalismo.

À luz desses posicionamentos, é interessante analisar um fenômeno que, no Brasil, com a crise, passou a ter seu significado e importância redefinidos. Trata-se da ampliação do conjunto de atividades desenvolvidas fora da empresa capitalista padrão: setor informal, atividades ditas artesanais, atividades autônomas e as microempresas. Embora sem grande peso econômico em termos de produção material, esse conjunto envolve um grande número de trabalhadores. Estima-se que 1/4 da população economicamente ati-va esteja no mercado informal, ou seja, mais de 12 milhões de pessoas.

A consolidação das normas capitalistas e o processo de concentração e centralização do capital reduzem as oportunidades empresariais. Padrões tecnológicos e imposições legais (entre elas, as conquistas sociais dos trabalhadores) fixam "barreiras à entrada" de novos capitalistas na esfera produtiva.

Nesse contexto, o setor informal, o artesanato e as microempresas aparecem por duas razões: 1) para ocupar os interstícios que as empresas não conseguem preencher; 2) como maneira de burlar imposições fiscais e, sobretudo, a legislação trabalhista.

Em época de crise, acrescentam-se novas condições. A recessão e a reciclagem da economia diminuem brutalmente o número de empresas e reduzem o nível de vida de grande parte da população. Nessas circunstâncias, o que eram serviços e produtos assessórios ao aparelho produtivo, e, sobretudo, um expediente permitindo a manutenção de parte do exército industrial de reserva, passa a ser a alternativa de sobrevivência de pessoas de diferentes níveis de renda.

E é nesse momento que, o que antes era algo marginal ao sistema, revela seu verdadeiro significado e importância. Para a felicidade dos neoclássicos ortodoxos, milhares de aprendizes de capitalistas lançam-se no mercado, renovando uma classe que vinha diminuindo dia após dia, ou melhor, vinha sendo reduzida pela concorrência intercapitalista, pela luta entre os "irmãos inimigos".

Revolucionáríos donos de bares

Desempregados, doutores, operários qualificados, professores ou a pequena burguesia, que vê seu nível de vida baixar, procuram no pequeno comércio, nas microempresas ou nos serviços especializados a saída para a crise. Intelectuais e revolucionários abrindo bares e restaurantes, ex-operários instalando pequenas oficinas, arquitetos vendendo produtos ecológicos, professores fazendo artesanato para a feira de domingo são alguns patéticos exemplos da realidade urbana atual.

Apesar das boas intenções, a conseqüência é a renovação do capitalismo. São saídas individuais e não a negação revolucionária e coletiva da condição operária ou de explorado.

Pode-se argumentar que não se tratam de atividades capitalistas, pois não há a produção do valor, assegurando a reprodução do capital. Pouco importa. O que interessa é que o mais importante está presente, ou seja, a lógica, a racionalidade capitalista. Não há ruptura, mas acomodação à ordem capitalista. O que se instaura com o sucesso desses empreendimentos são as relações de produção capitalista.

Esse processo se disfarça, inicialmente, com princípios autogestio-nários ou cooperativos. Isso entre os sócios. A faxineira, o garçom, o auxiliar, o operário, etc., que vierem a participar em caso de expansão do negócio, terão seu estatuto regido pelas relações sociais do modo de produção dominante.

A livre iniciativa, que significa antes de mais nada liberdade para explorar a força de trabalho, é uma regra importante para a renovação do capitalismo. As tentativas de inserção na esfera produtiva social têm um saldo muito grande de fracassos, mas o que conta é que o movimento é incessante e diversificado. Os sobreviventes da contínua eclosão de novas empresas permitem ao modo de produção capitalista reproduzir-se apesar do agravamento das contradições em certos níveis.

Para todos esses que colaboram nesse processo, a vontade é de mandá-los plantar batatas. O problema é que eles irão... e logo aparecerá mais uma empresa capitalista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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