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Direitos humanos e sociologia do poder

QUESTÕES DA DEMOCRACIA E DO SOCIALISMO

Direitos humanos e sociologia do poder* * A versão inicial deste artigo foi apresentada ao Quarto Seminário do Grupo de Trabalho Direito e Sociedade do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), Belo Horizonte, 9 a 12 de setembro de 1987.0 autor agradece os comentários dos participantes do seminário.

Fáblo Wanderley Reis

Prof. titular de Ciência Política da UFMG, autor do livro "Política e Racionalidade"

Uma reunião sobre o tema dos direitos humanos no presente momento da vida política latino-americana, quando nos encontramos às voltas com experiências de autoritarismo político recém-superadas ou ainda vigentes, não pode deixar de evocar o desapreço que certas correntes importantes de opinião manifestavam até recentemente, entre nós, com respeito aos mecanismos da democracia liberal. Era como se os direitos "meramente" formais envolvidos na democracia liberal não tivessem qualquer importância, e eventualmente pudessem mesmo ser vistos como um mascaramento da negação dos valores verdadeiros, a serem alcançados na democracia social ou "substantiva".

A pesada experiência do autoritarismo contribuiu de maneira decisiva para alterar essa perspectiva, e o fato de que eventos como este ocorram agora é certamente conseqüência, em alguma medida, daquela experiência, Difundiu-se amplamente, em função dela, a compreensão da importância de certos formalismos, para utilizar o título de um trabalho de Bolivar Lamounier dedicado à questão da representação.1 1 Bolivar Lamounier, "Representação Política: A Importância de Certos Formalismos", trabalho apresentado ao Seminário sobre Direito, Cidadania e Participação, São Paulo, junho de 1979. Como ficou dolorosamente claro na vigência do autoritarismo, nada há de "mero" na operação de formalismos se eles podem significar a diferença entre a liberdade a opressão, ou mesmo entre a vida e a morte - e é disso precisamente que se trata, em última análise, com os preceitos da democracia liberal.

Com efeito, democracia é formalidade: ela consiste antes de mais nada, como elabora um volume recente de Blandine Barret-Kriegel,2 2 Blandine Barret-Kriegel, L'Etat et ses esclaves, Paris, Calmann-Lévy, 1979. na juridificação das relações sociais, no estabelecimento de regras capazes de terem vigência real na acomodação de tais relações e de pacificá-las, ou seja, de neutralizar o potencial de violência que elas eventualmente contenham inclusive o potencial de violência contido nas relações do foco de poder estatal com os variados setores da sociedade: Isso tem uma implicação de grande importância, que redunda em corrigir certa concepção usualmente associada com o ponto de vista liberal: se implantar a democracia requer a juridificação das relações sociais, segue-se que a democracia requer também inapelavelmente a construção do estado, de um estado que possa representar a garantia da vigência das regras correspondentes. Assim, por contraste com a formulação usual do ideal liberal, em que o estado surge como algo a ser antes de mais nada contido em nome das "liberdades liberais"3 3 Essa expressão é utilizada por Raymond Aron em "Liberté, libérale ou libertaire? "incluí do em R. Aron, Etudes Politiques, Paris, Gallimard, 1972. (e onde se vê um conflito entre os desígnios assim expressos e os objetivos correspondentes à afirmação das "liberdades positivas" ou dos direitos sociais, os quais exigiriam o intervencionismo do estado e sua correspondente expansão), esta nova perspectiva vê no estado algo a ser construído de maneira adequada - e o êxito do processo de construção institucional do estado aparece como condição mesmo para sua contenção eficaz naqueles aspectos em que tal contenção se faça necessária. Numa palavra, não é possível, patentemente, edificar o estado de direito sem o esforço positivo de construir adequadamente o estado tout court. Há algo mais, porém. Pois ainda que se esteja interessado antes de tudo no estado como instrumento dos direitos sociais e de uma eventual democracia "substantiva", é preciso reconhecer que a realização ou implantação de tais direitos também envolve inarredavelmente a introdução de formalismos, a entronização de regras capazes de consagrá-los formalmente e estabelecer sua vigência efetiva.

Mas surge aqui a questão crucial. Com efeito, como "consagrar", propriamente, os formalismos, como fazer que uma regra seja uma regra real, por contraste com uma formulação inócua constante de alfarrábios jurídicos - ou, talvez pior ainda do ponto de vista de nosso problema, de compêndios recentes mas igualmente inúteis? Por outras palavras, como institucionalizar uma regra ou um conjunto de regras - e conseqüentemente, tomando a questão pelo ângulo que nos interessa, como institucionalizar e tornar efetivos os direitos que tais regras procurem supostamente consagrar? A dificuldade da questão se revela de maneira bem nítida na fundamental ambivalência que marca, na literatura de ciências sociais, a própria idéia do "institucional" e os vocábulos correspondentes. Assim, se 'Institucional" ou "institucionalizado" indica, por um lado, o plano dos "mecanismos" e "procedimentos" caracterizados por certa artificialidade e por serem passíveis de manipulação deliberada - plano este que também ele recebe às vezes a designação de "meramente" institucional, em contraste com o plano "estrutural" percebido como mais "real" em algum sentido -, por outro lado, aquelas expressões (especialmente o termo "institucionalizado") indicam também justamente a dimensão em que a realidade social, com o transcurso do tempo, vem a ganhar densidade, "opacidade" e "exterioridade" relativamente às consciências individuais, moldando-as e exercendo sobre elas uma espécie de coerção - se se quiser, a dimensão "durkheimiana" da realidade social. Nesta segunda acepção, portanto, o "institucionalizado", ao invés de opor-se ao "estrutural", é antes outra maneira de designar precisamente a estrutura social enquanto objetivamente determinada e resistente à manipulação voluntária. Por outras palavras: temos tanto o institucional como objeto da ação humana quanto o institucional como contexto dessa ação.

Ora, o tema dos direitos humanos com que nos defrontamos envolve, sobretudo, um problema de ação e de mudança. Se tomado em conexão com sua face mais convencionalmente política, ele assume o aspecto do desafio de atuar com eficácia para consolidar (ou criar) a democracia e neutralizar os riscos de recaída autoritária, implantando-se a "institucionalidade" compatível com tais objetivos. Se tomado em perspectiva mais ampla, o desafio é o de agir para superar também um estado de coisas que não se restringe, em países como o Brasil, aos períodos de aberto autoritarismo político: a negação cotidiana e corriqueira dos direitos civis ou liberais mais comezinhos - para não falar dos direitos sociais ou das "liberdades positivas" - a amplas parcelas dos estratos economicamente destituídos da população, que não constituem senão cidadãos de segunda classe nas condições de sociedade de castas que ainda marcam intensamente a estrutura social brasileira. Em qualquer caso, porém, trata-se de obter, através da ação política, a alteração das condições prevalecentes no momento presente. E o drama reside em que, se essa ação deverá necessariamente transitar de algum modo pelo plano do institucional como objeto e aí fixar-se, através da criação de formalismos e regras antes de mais nada ao nível da institucionalidade estatal, ela tem como condição indispensável de sua eficácia a de deitar raízes no plano do institucional como contexto, cuja viscosidade lhe é por definição adversa - caso contrário o problema demudar tal contexto não se colocaria. Um aspecto do dilema é o de que se trata de criar (de maneira necessariamente artificial e deliberada) uma tradição (onde artificialismo e deliberação venham a ser dispensáveis, pois se tomara espontâneo o que a tradição prescreva). Mas na verdade o problema é ainda mais complexo, pois tal criação artificial de uma tradição se fará necessariamente contra tradições, já existentes e que a ela se opõem.

Tais observações se referem sobretudo ao nível sócio-psicológico. Contudo, uma ramificação importante do assunto consiste em que no institucional como contexto se expressam formas cristalizadas de distribuição social de poder, que os fatores de psicologia coletiva (ou ideológicos, em sentido amplo) ajudam a configurar. A questão fundamental envolvida, portanto, não se reduz à questão, por si mesma suficientemente complicada, de assegurar transformações culturais ou de psicologia coletiva que se dêem em direção favorável ao enraizamento e à afirmação difundida de determinados direitos. Antes, a questão geral contém um inarredável e decisivo componente de interação estratégica entre agentes dotados de identidades diferenciadas, recursos diversos e objetivos que freqüentemente só em graus muito desiguais se traduzem em ação coletiva organizada e capaz de pretender eficácia na esfera política.

Esse aspecto de poder e estratégia traz fatalmente para o centro da discussão o problema da natureza do estado. Com efeito, se se admite que a implantação e a garantia dos direitos humanos - quer se trate dos direitos civis ou liberais ou, com mais razão, dos direitos sociais - requer formalismos que se dão no estado e o mobilizam, a presença e a saliência do poder na conformação do substrato social correspondente ao institucional como contexto acarreta o problema de saber se cabe esperar do estado a capacidade de atuar de maneira consonante com a afirmação de tais direitos, a qual necessariamente envolverá a negação do poder tout court. Em outros termos: cabe esperar do estado suficiente autonomia perante os focos sociais de poder?

Três parecem ser as perspectivas possíveis perante a questão da natureza do estado e suas relações com o poder social em geral: (1) o estado como foco direto de relações de dominação ou como sujeito de poder a ser contido, o que corresponde à ótica liberal tradicional; (2) o estado como instrumento de relações de dominação produzidas em outras esferas e eventualmente apropriado pelos titulares do poder social de qualquer tipo: no limite, trata-se aqui de teses como a do "comitê executivo da burguesia"; e (3) o estado como o instrumento possível, e talvez necessário, de contenção e neutralização das relações de poder que emergem em diversas esferas e, mais amplamente, como instrumento potencial de todos.

Uma primeira observação de importância a respeito é a de que a questão da democracia em sentido pleno se coloca na articulação dos desideratos contidos nos pontos 1 e 3 acima: como fazer do estado um instrumento real de todos, ou seja, um instrumento passível de ser utilizado para neutralizar as relações de dominação onde quer que surjam e de ser posto ao serviço de objetivos comuns, minimizando ao mesmo tempo os riscos de que venha ele próprio, no processo de equipar-se para tais fins, a transformar-se no sujeito ou foco por excelência de relações de dominação. O recente tema da surveillance, da expansão de um estado panopticon que de tudo se informa e tudo vê, é uma demonstração do caráter permanentemente problemático da articulação daqueles desideratos mesmo num contexto onde ela pareceria ter encontrado solução favorável - pois tal tema emerge como preocupação crescente sobretudo entre os analistas do processo político dos países ocidentais avançados, de maior tradição liberal democrática.

De outro ângulo, cabe destacar que não há razão para se tomar como postulado alguma versão da idéia do estado como "comitê executivo" ou permanente instrumento exclusivo de determinada categoria ou classe social. E o rechaço dessa idéia enquanto postulado ou princípio orientador de validez supostamente geral se impõe não em nome de uma idealização consensualista e harmônica da natureza profunda da realidade sócio-política, mas em nome da própria ênfase "realista" no elemento de estratégia e poder a compor essa realidade. Se cabe ver as instituições políticas como embebidas num processo de natureza estratégica e conflitual ao qual dão expressão, não há razão para supor de antemão que tal processo deva resultar de uma vez por todas e em todos os casos em determinado grau de sujeição do estado a certas forças sociais. Assim, o estado será mais ou menos "autônomo" (mais ou menos socialmente "neutro" e capaz de fazer avançar o "interesse geral") em função do caráter menos ou mais cabal do triunfo de determinadas forças sociais sobre outras e da conseqüente possibilidade de se servirem dele para os seus próprios desígnios. Mas se tal perspectiva abre, em princípio, espaço para se conceber o estado (e eventualmente agir sobre ele e através dele) em termos de desafio de construção institucional e de juridificação que anteriormente se esboçou, é imperioso ter presente que esse espaço se abre nas frinchas ou nos insterstícios - não raro estreitos e precários - de relações que são antes de mais nada relações de poder.

Nesses termos, esta é uma premissa talvez banal da sociologia política, mas a meu juízo indispensável e lúcida. Do ponto de vista da questão dos direitos humanos e suas diversas faces, dessa premissa, em conjugação com a viscosidade que se revela na dialética acima descrita entre o institucional como objeto e o institucional como contexto e suas ramificações no plano dá psicologia coletiva, decorrem certas conseqüências antes cautelosas, para não dizer abertamente pessimistas. Numa palavra, a de que qualquer ação empenhada na mudança efetiva na esfera dos direitos humanos que pretenda desenvolver-se sobretudo através da manipulação da esfera institucional(nosso "institucional como objeto") será necessariamente uma ação de natureza incrementalista e atenta ao lastro real com que conte nas condições prevalecentes na estrutura da sociedade - ou se frustrará em seus objetivos. Por certo, existe em princípio a possibilidade da transformação revolucionária. Mas esta, ademais de requerer condições excepcionais às quais o aspecto estrutural não é alheio, não se cumpre como tal na esfera da institucional idade e da legalidade, as quais no melhor dos casos, buscam formalizar e ajudar a rotinizar (e assim eventualmente a institucionalizar, propriamente) a operação de novas relações de poder que se tenham conquistado previamente.

Se esse empenho de realismo sociológico se aplica à questão dos direitos humanos tomada na ótica da ameaça à democracia representada por regimes autoritários tais como os que presentemente vimos superando em nosso continente, as principais ponderações derivam de que o aspecto crucial do problema gira em torno das relações entre democracia e capitalismo. Naturalmente, não é possível entrar aqui nos meandros que a discussão apropriada desse tema envolveria, mas enuncio o que me parece ser uma conclusão central de importantes análises recentes que dele se ocupam (ou pelo menos um desdobramento natural das conclusões de tais análises): a de que a convivência entre o capitalismo e a democracia é de fato (como sustentavam alguns, inclusive Marx e os liberais do século XIX) inerentemente problemática, e que a estabilidade que se terminou por alcançar nessa convivência em alguns países ocidentais economicamente avançados é antes a exceção do que a regra. Essa exceção tem a ver com o fato de que a maturação do capitalismo viabiliza um compromisso que o garante como tal e no qual o "problema constitucional" suscitado pela operação do próprio capitalismo encontra solução, neutralizando-se a ameaça representada pela organização dos trabalhadores como classe e por sua afirmação política.4 4 Veja-se Claus Offe e Volker Ronge, "Teses sobre a Fundamentação do Conceito de Estado Capitalista", em CLaus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984; e especialmente Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, Nova Iorque, Cambridge University Press, 1985, particularmente o cap. 4.

No caso de nossos países, por contraste, essa ameaça, enquanto um dado da psicologia política do establishment de nossos sistemas político-econômicos, está sem dúvida presente e assume importância como componente da dinâmica política. Naturalmente, a questão do acerto da percepção dessa ameaça enquanto diagnóstico objetivo da capacidade de mobilização e ação política dos trabalhadores ou dos "setores populares" é outra história. Além de variar de país para país (globalmente falando, tal capacidade existe em muito maior grau na Argentina do que no Brasil, por exemplo), a heterogeneidade social e econômica de um país como o Brasil acarreta que a existência de segmentos aguerridos e visíveis, apesar de serem apenas uma fração relativamente pequena dos setores em questão, condicionem desproporcionalmente as percepções por parte do establishment, gerando, entre atores decisivos como o empresariado e os militares, uma espécie de "complexo de sublevação" que atua permanentemente e os predispõe a colocar de lado os pruridos liberal-democráticos sempre que pareça necessário. De sorte que, na perspectiva da premissa restritiva recém-formulada, o caso do Brasil aparece como reunindo, sob certa luz, o pior de dois mundos: no que se refere às condições que caracterizam os setores populares, temos extrema desigualdade, pobreza abjeta em grande escala e marginalidade social, acompanhadas, ao nível subjetivo, de enorme desinformação e alheamento políticos e de suscetibilidade à manipulação de tipo clientelista ou populista; no que se refere ao establishment, porém, uma atitude de suspeita perante a incorporação política conseqüente dos setores populares e de temor pela ameaça de subversão dos valores vistos como realizados no sistema vigente - e uma disposição pronta à defesa autoritária de tais valores.

Se observamos nessa ótica os trabalhos da assembléia constituinte presentemente reunida no Brasil - certamente o exemplo mais óbvio, na América Latina da atualidade, de um esforço para instituir juridicamente novos direitos democráticos -, surge com clareza o que há de precário e mesmo ilusório na expectativa de que a nova constituição que se elabora venha a representar instrumento eficaz e duradouro de institucionalização real de um processo político democrático. Parte importante da precariedade de tal expectativa tem a ver com a mitificação deque a assembléia constituinte tende a ser objeto, associando-se com a percepção equivocada de que a tarefa de preparação da nova constituição se dá numa espécie de momento "fundacional" no qual se trataria de redesenhar profundamente, com os olhos postos no milênio, as relações de poder existentes. Ao contrário, creio que o objetivo de fazer avançar os prospectos de eventual consolidação da democracia no país estaria melhor servido pelo predomínio de uma atitude realista que, atenta aos limites impostos à geração presente, estivesse propensa a experimentar menos ortodoxamente na regulação do jogo real de poder que aqui se processa - jogo este que (para ilustrar com um ponto especialmente sensível o que se propõe) inclui fatalmente os militares, por exemplo, e que não estará sendo regulado adequadamente se as disposições constitucionais a respeito deles se limitarem, como tudo indica que ocorrerá, a proibir voluntaristicamente sua atuação política, apegando-se à tradicional ficção em que figuram como guardiães neutros e profissionais da legalidade democrática sob o comando das autoridades constituídas.

Mas o caso do Brasil evidencia ainda, particularmente no que revela quanto aos traços prevalecentes entre os setores populares, um matiz importante do assunto, matiz este no qual se tocou apenas de passagem acima: o de que o aspecto sócio-psicológico (ou ideológico no sentido amplo da expressão, incluindo o componente cognitivo ou intelectual) é uma dimensão relevante da questão geral relativa ao caráter estratégico ou de poder inerente a qualquer discussão conseqüente de direitos. Se a questão e considerada, ainda com referência ao Brasil, não na perspectiva estrita da alternância de regimes formalmente democráticos e autoritários, mas na perspectiva anteriormente indicada da superação da negação cotidiana e permanente de direitos elementares a amplas parcelas da população, uma indagação crucial é a de avaliar os requisitos que tal superação envolveria em termos de poder. O que me parece possível propor a respeito - e que encerra, admitidamente, grandes perplexidades e algum tour de force analítico - se funda no reconhecimento de que, nas condições psicológicas basicamente de conformismo social por parte dos setores populares, que decorre da grande desigualdade da estrutura social brasileira e de seu lastro escravista, dificilmente caberia esperar a reversão desse estado de coisas num futuro visível através do acesso espontâneo e autônomo de tais setores ao sentido profundo da própria dignidade e à disposição de afirmá-la socialmente. Por outras palavras: sem que se garanta para os setores populares brasileiros, de alguma forma, a modificação das circunstâncias correspondentes à dimensão social da cidadania tal como concebida na clássica análise de T.H.Marshall (ou seja, sem o acesso de tais setores a patamares minimamente adequados de bens de saúde e educação, em particular), não há como esperar, por exemplo, que suas relações cotidianas com a face policial do aparelho do estado - onde estão em jogo mais diretamente os aspectos da cidadania relativos aos direitos civis, supostamente mais básicos - possam dar-se em termos que não redundem, precisamente, na negação pura e simples da condição de cidadão. Isso envolve, naturalmente, uma correção à visão de Marshall, para quem a conquista dos direitos civis antecede e viabiliza a dos direitos políticos e, finalmente, a dos direitos sociais (correção esta que, por outra parte, já foi proposta em texto recente de Anthony Giddens, que sugere o estreito entrelaçamento da luta pelos diferentes aspectos da cidadania)5 5 Anthony Giddens, "Class Division, Class Conflict and Citizenship Rights", em A. Giddens, Profiles and Critiques in Social Theory, Londres, MacMillan, 1982. . Mais importante, porém, é a pergunta de como se poderia pretender obter algum avanço no acesso aos direitos sociais em circunstâncias em que, por definição, não cabe esperar muito em termos de ação autônoma das categoriais sociais diretamente afetadas.

Obviamente, não há como escapar de se ver no estado o agente da implantação e garantia dos direitos sociais, o que equivale a pretender vir a ter no estado brasileiro um genuíno welfare state, em contraste com a caricatura emperrada e ineficiente a que corresponde atual mente a atuação do estado no campo da previdencia social. Se essa expectativa parece chocar-se, por um lado, com a conjugação entre a concepção do estado como expressão de relações de poder e o diagnóstico dos setores populares brasileiros como destituídos de poder, cabe observar que a montagem da aparelhagem estatal brasileira, em suas dimensões de assistencialismo social paternalista e de corporativismo nas relações com o movimento trabalhista, é ela própria associada com freqüência, nas análises pertinentes, com desígnios estratégicos de controle de motivação autoritária. A expectativa aqui formulada de ver o estado transformar-se em instrumento mais autêntico de uma política social eventualmente bem-sucedida não nega esse ingrediente de controle e de autoritarismo: ao contrário, parte de reconhecê-lo e mesmo de afirmar a necessidade do paternalismo que com ele se articula. Ela enxerga também, contudo, o espaço de luta, por restrito que seja, que se revela e se abre no aparelho do estado através da necessidade de cooptação paternalista e corporativista. A partir daí, coerentemente com o empenho de construção institucional transformadora necessariamente incrementalista que deriva das premissas realistas que orientam a análise, ela se propõe tratar de fazer bom uso, para o objetivo da expansão dos direitos de cidadania, da tradição estatizante da qual o corporativismo e o paternalismo são partes - usualmente vistas, na literatura dedicada a tais temas, como objetos merecedores de denúncias.

Por certo, estamos longe do melhor dos mundos. Mas é, acredito, nesse espaço de tensão entre o esforço de diagnóstico lúcido e a indispensável referência normativa que terá de mover-se, se pretender ser proveitosa, a discussão do problema dos direitos humanos em nossa atualidade.

  • 1 Bolivar Lamounier, "Representação Política: A Importância de Certos Formalismos", trabalho apresentado ao Seminário sobre Direito, Cidadania e Participação, São Paulo, junho de 1979.
  • 2 Blandine Barret-Kriegel, L'Etat et ses esclaves, Paris, Calmann-Lévy, 1979.
  • 3 Essa expressão é utilizada por Raymond Aron em "Liberté, libérale ou libertaire? "incluí
  • do em R. Aron, Etudes Politiques, Paris, Gallimard, 1972.
  • 4 Veja-se Claus Offe e Volker Ronge, "Teses sobre a Fundamentação do Conceito de Estado Capitalista",
  • em CLaus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984;
  • e especialmente Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, Nova Iorque, Cambridge University Press, 1985,
  • 5 Anthony Giddens, "Class Division, Class Conflict and Citizenship Rights",
  • em A. Giddens, Profiles and Critiques in Social Theory, Londres, MacMillan, 1982.
  • *
    A versão inicial deste artigo foi apresentada ao Quarto Seminário do Grupo de Trabalho Direito e Sociedade do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), Belo Horizonte, 9 a 12 de setembro de 1987.0 autor agradece os comentários dos participantes do seminário.
  • 1
    Bolivar Lamounier, "Representação Política: A Importância de Certos Formalismos", trabalho apresentado ao Seminário sobre Direito, Cidadania e Participação, São Paulo, junho de 1979.
  • 2
    Blandine Barret-Kriegel,
    L'Etat et ses esclaves, Paris, Calmann-Lévy, 1979.
  • 3
    Essa expressão é utilizada por Raymond Aron em "Liberté, libérale ou libertaire? "incluí do em R. Aron,
    Etudes Politiques, Paris, Gallimard, 1972.
  • 4
    Veja-se Claus Offe e Volker Ronge, "Teses sobre a Fundamentação do Conceito de Estado Capitalista", em CLaus Offe,
    Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984; e especialmente Adam Przeworski,
    Capitalism and Social Democracy, Nova Iorque, Cambridge University Press, 1985, particularmente o cap. 4.
  • 5
    Anthony Giddens, "Class Division, Class Conflict and Citizenship Rights", em A. Giddens,
    Profiles and Critiques in Social Theory, Londres, MacMillan, 1982.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Out 1988
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