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A imprensa e a história

A imprensa e a história

Entrevista de Ruy Mesquita

O papel jogado pelo jornal O Estado de S. Paulo na precipitação do golpe de 1964 já faz parte do registro da história. E entra na historia dos nossos dias o papel desempenhado, hoje, pela Folha de S. Paulo no apressamento do fim do atual regime, particularmente através do seu engajamento na campanha diretas-já.

Quem faz a história: a grande imprensa, que molda a opinião pública com a sua influência poderosa ou a força da opinião pública, que obriga os jornais a redefinirem a sua atuação?

Para recuperar a história da participação da grande imprensa nas mudanças da nossa história recente, LUA NOVA tomou o depoimento de dois dos principais diretores dos maiores jornais da imprensa brasileira. José Álvaro Moisés e Maria Victória Benevides entrevistaram Ruy Mesquita, diretor do Jornal da Tarde e da empresa O Estado de S. Paulo. Edison Nunes, Hamilton Cardoso e Marília Garcia entrevistaram Otávio Frias Filho, secretário do Conselho Editorial da Folha de São Paulo.

O "Estadão e o golpe de 64

PERGUNTA – Como o senhor explica a participação do jornal O Estado de S. Paulo na conspiração que levou ao movimento de 1964? Qual o papel do jornal nesses acontecimentos?

RUY MESQUITA – A nossa participação foi sempre, evidentemente, só como jornal, no campo das idéias. Pelo menos até 1932. Para ir mais longe, a saga da família nas lutas políticas deste país começou um ano antes de eu nascer. Na "Revolução de 1924", pela primeira vez um Mesquita, o meu avô, foi preso, em função de um movimento no qual o jornal não participava senão através das suas idéias e do debate. Depois disso, nunca mais saímos do centro dos acontecimentos.

A partir de 1930, a nossa luta foi contra o Getúlio Vargas e o sistema político que ele criou. Daí, evidentemente, tudo caminhou para o desfecho de 1964. Meu pai disse, logo depois da revolução vencedora, que a primeira vitória contra o getulismo foi a eleição do Jânio Quadros. Ele representou a primeira revolução política realmente séria que houve neste país... Assumiu uma posição liberal, a favor da iniciativa, contra os comunistas, muito articulados, naquela época; no entanto, apesar disso, ele tinha medo do que ia acontecer por causa da mobilização das esquerdas, na época, e já numa situação financeira e econômica muito séria, de inflação, etc.

MOISÉS – Dr. Ruy, deixe eu entrar num aspecto que sempre foi uma dúvida, uma perplexidade. Por que houve engajamento dos liberais naquilo que levou a 64? Finalmente, foi um golpe, rompeu a ordem instituída. Como explicar?

RUY – É que o Jango, pelas suas próprias condições culturais, era um incapaz. Era até uma boa pessoa para o convívio social, mas completamente despreparado para algum dia ser presidente da República, muito menos num momento como aquele. E aí, você precisa lembrar do que aconteceu no meio-tempo, quando houve aquela tensão militar terrível e o Leonel Brizola conseguiu cindir as Forças Armadas, levantando o III Exército contra a maioria dos militares dos outros exércitos, que não queriam a posse de Jango. Houve, então, a solução de compromisso para evitar um choque dentro das próprias Forças Armadas.

Logo depois ele fez o célebre plebiscito e restabeleceu o regime presidencialista. Mas o fato é que, neste momento, os militares perceberam que não havia chance de controlá-lo (ele começou a se cercar da esquerda e a iniciar aquele projeto de reforma que chamava de república sindicalista). Militares de segundo escalão nos procuraram, aqui em São Paulo. Dois anos antes do desfecho. Um dia eu estava no jornal e recebi lá a visita de dois oficiais que eu não conhecia antes: o coronel Restell, que hoje é general da reserva; era herói da FEB (foi ferido e tem a maior condecoração americana), um liberal, que veio com mais um capitão chamado Boson que ainda está por aí. Eles traziam informações do serviço secreto do Exército e me convidaram para uma conversa lá no prédio antigo do Estadão. Embaixo tinha o bar Jaraguá e ali conversamos. Ele disse: "Olha, Ruy, nós temos que começar a nos organizar porque o Jango vai dar um golpe, que vai destruir as instituições democráticas no país. Ele está decidido a levar este país para o lado de lá, o lado comunista...".

MOISÉS – Os argumentos, na ocasião, eram de que havia risco de um golpe da parte de Jango?

RUY – Risco não. Foi se caracterizando isso publicamente para culminar no comício de 13 de março, onde ele expôs o seu programa. Mas isso foi a outra fase. Nesse período só participaram da conspiração militares de segundo escalão. E, na minha opinião, este é um dos fatores mais importantes que explicam o comportamento posterior dos militares, às vezes, violento. O esquema janguista cometeu, na minha opinião, o erro que levou à sua derrota definitiva. Começou a promover a subversão dentro das Forças Armadas.

A partir desse primeiro encontro meu e de mais alguns amigos íntimos, nós começamos a ter reuniões com os militares. Com a oficialidade pequena. Era de capitão até coronel. Nenhum general apareceu em nossas reuniões. O Jango tinha montado o que, até aquele tempo, parecia ser decisivo para os golpes militares brasileiros; um esquema para controlar os dispositivos militares. O que eles consideravam os postos decisivos: controle do I Exército, que é o único com poder de fogo grande nas Forças Armadas brasileiras; o controle do corpo de fuzileiros navais e o controle do III Exército, e, na chefia do dispositivo militar, o general Assis Brasil, que era um militar confessadamente comunista. E começou a subversão no meio das Forças Armadas, na forma de movimentos como o dos sargentos de Brasília e de atos de indisciplina.

Aí, nessa fase, semanalmente o nosso grupo de civis reunia com quarenta, cinqüenta oficiais e discutia o que fazer para resistir ao golpe que achávamos inevitável. E eles descreviam a situação... Eram comandantes de tropa que não tinham a menor confiança nos seus subalternos. Não confiavam em nenhum sargento de suas tropas, que praticavam diariamente atos de indisciplina, de insubordinação. Isso para um militar é o fim! Eles se sentiam numa insegurança total. Houve uma fase, já mais perto do desencadeamento do movimento, em que os oficiais da Força Aérea, do Campo de Marte, não dormiam nos quartéis de medo de que sofressem um golpe qualquer durante a noite por parte dos seus subalternos. Para mim esse foi o fator decisivo para a mobilização militar. Com a participação de civis, que esses militares organizaram em grupos, que treinavam até militarmente, o que era, na minha opinião, até meio incipiente... Em nenhum momento, nós que participávamos dessas reuniões, tínhamos a pretensão de derrubar o governo. Nós achávamos que, na hora em que ele declarasse a reforma institucional, poderíamos resistir e aí fazer uma espécie de guerra de guerrilha e tentar criar problemas para ele até que se reconhecesse um estado de beligerância dentro do Brasil... Nós éramos os subversivos contra o governo dele. E ele errou...

MOISÉS – Insisto: eis aqui um aspecto que interessa para um exame do significado prático do pensamento liberal. Na prática, isso levou, exatamente, ao contrário, ao oposto do que se proclamava: à ditadura.

RUY – Levou. Isso são "outros quinhentos mil-réis" que vêm mais tarde. Há um documento do meu pai, que ele chamou "Roteiro da Revolução". Num determinado momento da conspiração ele foi convidado, pelos ex-ministros militares do Jânio, para elaborar um projeto do que deveria ser feito se os militares "subversivos" chegassem ao poder. Eles, evidentemente, teriam, por um determinado período, de estabelecer um regime de exceção. E havia várias sugestões que papai contestou... Havia um projeto de que os militares tinham que ficar no governo pelo menos cinco anos. Ele concordava que, na primeira fase, os militares tinham que assumir o poder. Não era possível derrubar o governo do Jango e convocar uma nova eleição. Havia que se fazer um expurgo, não físico, mas político, como foi feito. A primeira fase das punições, feitas no governo Castelo Branco, se encerra oficialmente, no dia 15 de junho de 1964. Durou três meses. Foi quando se cassaram deputados, se fez um expurgo nas Forças Armadas. Eles puseram para fora todos os militares que tinham adotado posições de esquerda radical. E, depois, o governo anunciou que estava encerrado o período da "caça às bruxas" e, daí pra frente, nós íamos tentar a normalização. Mas meu pai, quando foi solicitado pelos militares a apresentar uma sugestão, achava um absurdo (por aí vocês vêm como depois as coisas mudaram) o prazo de cinco anos que estava sendo proposto. Achava que se devia fazer uma coisa muito mais rápida, no máximo três anos. E, depois, que se deveria pôr, imediatamente, em vigor (com algumas modificações para permitir o expurgo) a Constituição de 1946 para que o país ficasse tranqüilo quanto às intenções do movimento. Para promover, imediatamente depois, a redemocrati-zação do país e tudo bem. Essa era a idéia. O Castelo Branco, no momento em que assumiu a presidência da República, tinha o firme propósito de promover uma eleição para eleger um civil. O candidato dele era o Bilac Pinto. Antes era o Carlos Lacerda. Ele era lacerdista. Depois, o Carlos se atritou com ele, o meu pai também...

Aí é que está o problema. Eu me lembro de um episódio. No auge da subversão janguista, eu fui à PUC fazer um debate com os estudantes. A platéia era de estudantes, padres e freiras. Felizmente, fui acompanhado por um redator de O Estado, que é um sujeito fortíssimo, valentíssimo, o Itaboraí, nosso redator sindical, que impediu que eu fosse linchado lá. Porque eu disse a eles o que eu estava vendo naquela época. E, infelizmente, fui profético. Isso deve ter sido uns dois anos, um ano e meio antes do golpe de 64. Eles estavam com a ilusão de que iam implantar o regime comunista no Brasil. Eu disse: "Vocês estão fazendo uma análise totalmente falseada da realidade sociológica brasileira. Vocês estão usando slogans do comunismo internacional que não correspondem à realidade brasileira. Os interesses que vocês falam que existem aqui, no Brasil, são muito relativos. O sistema econômico brasileiro é dominado por gente que chegou no Brasil ontem, por filhos de imigrantes, por pequenos proprietários, por gente que vai lutar para defender o que é deles. Já está se mobilizando. Está conspirando com os militares, está comprando armas". Nós estávamos comprando armas. Inclusive, aí é que entrou o Adhemar de Barros. O Adhemar de Barros forneceu dinheiro para a compra de armas no Paraguai.

Eu tenho um depoimento sobre as Forças Armadas, durante o período em que convivi com eles, que é o mais elogioso possível. Tanto assim que aliás, a maioria esmagadora, 80% dessa oficialidade que conspirou conosco, meses depois, no governo Costa e Silva, já tinham abandonado as Forças Armadas, completamente decepcionados com o rumo que a revolução estava tomando. Quem acabou dominando a revolução, como acontece em todas as revoluções, ao longo da história, não foram os revolucionários autênticos. Que não eram homens capazes de praticar torturas, nem nada disso. Houve vários fatores acidentais que tumultuaram todo o processo da revolução. Eu acho, até, que meu pai foi injusto com o Castelo Branco, que foi uma vítima.

MOISÉS – O senhor se refere à célebre tese do "desvio de percurso"?

O que motivou o apoio dos liberais

RUY – Exatamente. Mas eu não me arrependo. Volta e meia me perguntam isso: basicamente, o que levou esses liberais a fazerem o que fizeram? A convicção. Você lembra que o Lacerda foi à Europa logo depois da revolução; ele não participou da conspiração. Eu me lembro de um episódio (isso todo mundo esquece). O Jango estava caçando o Lacerda, que era governador do Estado da Guanabara. Uma vez ele apareceu na fazenda da minha família, aqui perto de São Paulo, em Louveira, de madrugada, fugindo do Rio de Janeiro, porque ele estava com medo de ser assassinado. Nessa ocasião, meu pai disse a ele: "Dr. Carlos, nós não podemos escapar, infelizmente, de um período de ditadura militar. É a única solução. Nós temos que derrubar o Jango e não podemos evidentemente derrubá-lo a não ser através dos militares".

MOISÉS – O Dr. Júlio defendia esse ponto de vista?

RUY – Defendia esse ponto de vista publicamente.

VICTÓRIA – O senhor disse uma coisa bem no começo que eu achei muito interessante. O senhor diria que viam em João Goulart um herdeiro da tradição varguista?

RUY – Pior que isso. Se fosse só um herdeiro do getulismo não havia grande problema. Estou muito impressionado com o atraso político relativo do Brasil em relação a muitos países da América Latina. Você está vendo países latino-americanos que tiveram o mesmo tipo de problemas que nós, solucionando o problema da transição para um regime democrático com maior facilidade. Ao longo de todo esse processo, os militares sempre fizeram questão de entregar o poder aos civis, por isso entregaram ao Getú-lio Vargas. Eles não queriam o poder político. Os militares brasileiros eram milagrosamente progressistas, eram todos oriundos da pequena classe média. Fizeram a Coluna Prestes...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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