Acessibilidade / Reportar erro

VISÕES DE NAÇÃO NA CONSTITUINTE BOLIVIANA* * Este artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado realizada com financiamento do CNPq. Agradeço imensamente aos comentários e indicações de Bernardo Ricupero, orientador da dissertação, e de James Dunkerley, Rafaela Pannain e do(a) parecerista anônimo(a) da revista Lua Nova.

VISIONS OF NATION IN THE BOLIVIAN CONSTITUENT ASSEMBLY

Resumos

Este artigo analisa os documentos sobre "visão de país" apresentados na Assembleia Constituinte boliviana em 2007. Foi possível constatar que, se a direita porta um ideal de ordem política liberal e estatista, que prescinde de enraizamento na história e na sociedade boliviana, com uma visão de nação passiva e subordinada à legalidade estatal, a esquerda pauta coletividades políticas ativas, através ou apesar do Estado. Apesar da ideologia "descolonizadora" comum, o bloco da esquerda, majoritário e representante da situação, é marcado por profundas tensões internas. As posições com relação à nação e ao Estado indicam expectativas contraditórias: se alguns buscam a consolidação da primeira e a domesticação do segundo, para outros, essas esferas representam entidades paralelas, com as quais se pactuam políticas. Por fim, o estudo sugere que conceitos consensuais na esquerda, como a plurinacionalidade, seriam acordos possíveis, porém prenhes de disputas, e que a Constituinte seria mais bem entendida como um encontro de antagonismos, em que os grupos opostos constroem seus projetos um na contramedida do outro.

Bolívia; Assembleia Constituinte; Plurinacionalidade; Nacionalismo; Movimentos Indígenas


This article analyses the documents on "vision of country", exposed by political groups that participated in the Bolivian constituent assembly in 2007. On one hand, right-wing groups hold a liberal and statist political order ideal, which does not need to identify its roots in Bolivian history and society, with a vision of nation that is passive and subject to state legality. On the other, left-wing groups defend active political collectivities, which act through or despite the state. In spite of the solid "decolonizing" ideology, the left-wing block, majoritarian and representative of the government, is marked by internal tensions. The positions regarding the nation and the state indicate contradictory expectations: if some seek to consolidate the former and to domesticate the latter, for others these spheres represent parallel entities, with which policies are negotiated. The study concludes that consensual concepts of the left, such as plurinationality, represent possible agreements, but are loaded with future disputes, and that the constituent assembly would be better understood as an encounter of antagonisms, in which opposing groups build their projects in the countermeasure of the other.

Bolivia; Constituent Assembly; Plurinationality; Nationalism; Indigenous Movements


Ao declarar a superação de um "Estado colonial, republicano e neoliberal" em seu preâmbulo, a recente Constituição boliviana, promulgada em 2009, define, no primeiro artigo, o novo Estado como "Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, descentralizado e com autonomias". O artigo seguinte dá ênfase à "existência pré-colonial das nações e povos indígena-originário-camponeses" e a "seu domínio ancestral sobre seus territórios" e garante o reconhecimento da sua "livre-determinação no marco da unidade do Estado, que consiste em seu direito à autonomia, ao autogoverno, à sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação das suas entidades territoriais" 1. O terceiro se refere ao povo e à nação boliviana, constituídos pela "totalidade de bolivianas e bolivianos, nações e povos indígena-originário-camponeses, e as comunidades interculturais e afrobolivianas".

Com esses três primeiros artigos, o texto constitucional angariou admiradores e críticos em todo o mundo. Enquanto movimentos em defesa dos direitos indígenas comemoraram o novo caráter do país como uma resposta à monoculturalidade do Estado-nação ocidental, cientistas políticos e juristas mais conservadores atentaram para o potencial desagregador dessa forma de incorporação de direitos indígenas, que poderia contribuir para a fragmentação territorial e simbólica do país.

A Constituinte boliviana foi um processo conturbado. As plenárias finais da Assembleia, que ocorreram entre novembro e dezembro de 2007, tiveram pouca ou nenhuma participação dos partidos da oposição, demonstrando a falta de consenso político em torno de pontos centrais. A queda de braço se resolveu no Congresso em outubro de 2008, por meio de uma lei interpretativa, negociada com a oposição, que mudou mais de cem artigos. A negociação permitiu a convocação de um referendo que consultava a população sobre a nova Constituição em janeiro de 2009, quando o texto foi finalmente aprovado por 61% da população.

Graças a esse caráter conflituoso e marcadamente étnico, alguns trabalhos recentes sobre a Assembleia julgam o processo um fracasso, um "labirinto da solidão", no qual os bolivianos se fechariam em si mesmos, exacerbando diferenças e aprofundando a consciência dos elementos que os separam (Gamboa Rocabado, 2009GAMBOA ROCABADO, F. 2009. "La asamblea constituyente en Bolivia: una evaluación de su dinámica". Fronesis - Revista de Filosofía Jurídica, Social y Política, v. , 16, n. 3, pp. 487-512. Disponível em: <http://www.revistas.luz.edu.ve/index.php/frone/article/viewFile/3471/3374>. Acesso em: 18 set. 2011.
http://www.revistas.luz.edu.ve/index.php...
, p. 508). Outras análises enfatizam que a Constituinte teria simbolizado a chegada de camponeses e indígenas ao Estado boliviano, e seu caráter aberto e ambíguo não seria fruto de má engenharia institucional, mas sim de uma "teoria nativa" cuja abertura seria a única maneira em que "formas sociais alternativas" comunitárias poderiam se introduzir no Estado "sem serem desvirtuadas" (Schavelzon, 2010SCHAVELZON, S. 2010. A Assembleia Constituinte na Bolívia: etnografia do nascimento de um Estado plurinacional. Tese de doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional., p. 526).

Muitas análises sobre a Constituição também foram publicadas por atores políticos bolivianos e acadêmicos, com críticas e expectativas em vários níveis2. Contudo, este artigo não avalia a Constituição em si, mas os documentos sobre "visão de país" das forças políticas participantes da Assembleia Constituinte. A apresentação desses documentos ocorreu entre fevereiro e março de 2007 e inaugurou o trabalho da Comissão Visão de País, considerada pelos próprios constituintes a mais importante das 21 comissões em que se dividiu a Assembleia, pois seria aquela que definiria o caráter do novo Estado boliviano. Pela relevância do tema tratado, a defesa foi feita em plenária, envolveu a totalidade dos constituintes e foi objeto de cobertura midiática. Os três primeiros artigos da nova Constituição surgiram formalmente dessa comissão.

O objetivo central deste artigo é perscrutar os ideais de identidade nacional contidos nesses documentos, que informaram em grande parte as demandas por reforma do Estado boliviano, para então apontar algumas conclusões iniciais sobre o processo constituinte. Esta análise foi possível graças ao formato da Constituinte, que exigiu tal formalização das agrupações políticas participantes. A análise foi dividida em três tópicos - reconstrução do passado, sujeito de soberania e projeto de novo Estado -, que percorrem analiticamente esse movimento que vai da identificação de narrativas históricas mitológicas à formação de determinados sujeitos de soberania e às demandas por reforma estatal para o exercício dessa soberania.

Para analisar esses ideais de coletividades culturais e políticas implícitas nas propostas de visão de país, se recorrerá a teóricos que refletiram sobre a gênese do nacionalismo e das nações modernas, como Anthony D. Smith, Ernst Gellner, Tom Nairn e Benedict Anderson. Para além de serem modelos teóricos que podem ser "aplicados" ao mundo empírico, suas teorias também ordenam perspectivas normativas acerca das bases de legitimidade para justificar a existência e soberania dessas formas políticas. Em suas análises e definições sobre nações e nacionalismo (seus "núcleos" constitutivos, como essas formações respondem a necessidades humanas "universais" etc.) ficam implícitas visões de como grupos sociais (nacionais) se colocam diante de seus respectivos Estados e compatriotas. Contudo, essas teorias não são suficientes para iluminar a gama de ideais que se apresentam nos documentos sobre visão de país, em especial as posições indígenas mais radicais. Nesse sentido, trabalhos mais antropológicos - especificamente, formulações de Tristan Platt, Silvia Rivera e Sian Lazar - ajudarão a entender complexas relações de grupos sociais bolivianos com o Estado.

Panorama geral da Constituinte

A Constituinte boliviana partiu da Lei Especial nº 3.364, de Convocatória da Assembleia Constituinte, de 6 de março de 2006, e iniciou os trabalhos em meados de 2006, com 255 constituintes. Destes, o Movimiento al Socialismo - Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos (MAS-IPSP), partido do Presidente Evo Morales, possuía 137 assentos, e o Poder Democrático y Social (Podemos), principal partido da oposição naquele momento, possuía 60 assentos. O Quadro 1 expõe a divisão dos constituintes por forças políticas.

Quadro 1
Constituintes por forças políticas

De forma geral, oito dessas agrupações podem ser classificadas como favoráveis ao chamado proceso de cambio impulsionado pelo governo Evo Morales, e se localizavam, por assim dizer, no campo da esquerda: Alianza Social (AS), Alianza Social Patriótica (ASP), Movimiento Ayra (Ayra), Concertación Nacional - Patria Insurgente (CN-PI), Movimiento al Socialismo - Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos (MAS-IPSP), Movimiento Bolivia Libre (MBL), Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria (MCSFA) e Movimiento Originario Popular (MOP). Muitas dessas siglas não representavam agrupações orgânicas, apenas meras formações políticas permitidas pela lei eleitoral, que foram usadas para ampliar a representação do próprio MAS-IPSP na Constituinte. Esses grupos conformavam 64% das cadeiras, com 164 constituintes. Dentro do panorama da Assembleia, o bloco da situação enfrentava o desafio de resolver contradições internas colocadas pela pluralidade de seus atores, a maioria advinda dos movimentos sociais que cresceram durante o período de 2000 a 2005 no contexto das chamadas "guerras antineoliberais"3.

Outras oito agrupações se alinhavavam mais claramente com a oposição e se localizavam, de maneira geral, no campo da direita: Alianza Andrés Ibáñez (AAI), Autonomías para Bolivia (APB), Movimiento Nacionalista Revolucionario A3 (MNR-A3), Movimiento Nacionalista Revolucionario - Frente Revolucionario de Izquierda (MNR-FRI), Movimiento de Izquierda Revolucionaria - Nueva Mayoría (MIR-NM), Poder Democrático y Social (Podemos) e Unidad Nacional (UN). A oposição possuía 36% dos assentos, com 91 constituintes, em uma situação fragilizada. Representava o antigo bloco de poder do país, amplamente questionado pela intensa mobilização popular de 2000 a 2005. Nesse sentido, é interessante analisar como essa oposição apresenta seus argumentos na tentativa de disputar o terreno ideológico com a nova maioria política.

Por uma questão de espaço, este artigo se centrará nas posições defendidas pela oposição e pela situação de maneira mais geral, mas incluirá as principais divergências no interior de cada uma delas. Ou seja, nem todas as agrupações serão citadas sistematicamente e nem todas as posturas relativas a determinado tema serão elencadas. A dimensão da representatividade dos textos não é problematizada, já que o que se quer verificar aqui é justamente a pluralidade de opiniões. Agrupações pequenas podem representar posturas mais polêmicas que não estão explícitas em agrupações maiores, cujas posições estão mais depuradas por acordos e consensos internos.

Reconstrução do passado

Anthony D. Smith (1986)SMITH, A.D. 1986. The ethnic origins of nations. Oxford: Blackwell. é um dos principais teóricos a enfatizar narrativas históricas, símbolos, mitos e memórias coletivas como peças essenciais do nacionalismo. Sem esses elementos, invariavelmente étnicos, por pertencerem a "esta ou aquela população ligada culturalmente e historicamente definida", o nacionalismo não se diferenciaria de um étatisme imposto de cima para baixo (Smith, 1986, p. 214). Sua perspectiva "simbólica" do nacionalismo defende que, mesmo que a narrativa desse passado não exista no presente e este tenha de ser "reinventado", ele deve ser "adequado e convincente" a "membros e não membros (outsiders)" (Smith, 1986, p. 212). Essa formulação ataca a ideia de que as tradições que norteiam o nacionalismo são "inventadas" (Hobsbawm e Ranger, 1983HOBSBAWM, E.; RANGER, T. 1983. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press.), pois os intelectuais que organizam essas narrativas dependem, para além de sua criatividade e dos "critérios da historiografia vigente", de "texturas e coerências internas dos mitos e dos motivos mesmos", que devem estar em harmonia com o "sabor peculiar" de um passado tradicional (Smith, 1986, p. 178).

Assim, a forma como as diferentes agrupações políticas da Constituinte reconstroem o passado boliviano, os eventos e processos que incluem e excluem, se são avaliados positivamente ou negativamente, diz muito sobre o tipo de coletividade política que será posteriormente defendida e também se essa coletividade coincide ou se relaciona com o Estado e com a nação boliviana.

A narrativa sobre o passado é o principal elemento de convergência entre os grupos da situação. Nenhum deles deixa de fazer algum tipo de balanço histórico, e sua avaliação geral é majoritariamente negativa com relação à colônia, à Independência, à Revolução de 1952 e ao chamado período neoliberal. Esses grupos adotam a tese de que há uma continuidade histórica entre todos os períodos, refletindo uma perspectiva "descolonizadora"4.

A colônia é a época mais abordada. Somente o MBL não se refere especificamente a ela. O regime imposto aos índios pelos espanhóis foi categorizado como: "império do terror" (MAS-IPSP), "genocídio" (CN-PI, ASP-Vargas), "a noite escura" (Ayra-Conamaq). A referência às lutas anticoloniais de Tupac Katari e Tupac Amaru (1780-1781) é feita justamente pelos setores que possuem um perfil mais indígena (MAS-IPSP, CN-PI, Ayra-Conamaq, MOP e ASP-Tapia).

O período republicano, iniciado a partir da Independência, é visto como uma época de continuidade. Entretanto, algumas agrupações afirmam que a Independência em si não teria sido uma iniciativa de toda crioula e que os índios e as classes populares teriam participado dela, sendo despojados de poder político no regime republicano que se instalou posteriormente (Ayra-Conamaq, MOP, ASP-Tapia, AS). Ou seja, a Guerra da Independência faz parte da narrativa de luta contra o colonialismo europeu e ocidental. Mas a República teria sido, sem dúvida, um período de opressão, uma "troca de amos" (MOP, p. 5)5. Além disso, vários dos grupos relacionados aos povos originários (MAS-IPSP, MOP, Ayra-Conamaq e CN-PI) incluem em seus documentos críticas diretas a Simón Bolívar, patrono da nação, que, no seu curto período como presidente do país, decretou uma série de medidas que aboliam a propriedade comunitária e as autoridades indígenas.

Ainda que mais ponderada, a avaliação da Revolução de 1952 também é negativa. O único grupo com postura abertamente favorável à Revolução é o MOP (p. 7), que cita as suas conquistas - reforma agrária, nacionalização das minas e voto universal - como sendo do povo mobilizado. Os demais grupos que se manifestam sobre o evento denunciam ou o caráter limitado das transformações que impôs, ou o seu caráter uniformizante e monocultural. Do ponto de vista econômico, o MAS-IPSP reclama da incapacidade da Revolução de industrializar o país: apesar das nacionalizações, o país manteve seu papel de exportador primário (MAS-IPSP, p. 5). Mas mesmo as medidas mais "democratizantes" mereceram críticas da esquerda. MAS-IPSP, CN-PI e AS criticaram a reforma agrária porque, ao mesmo tempo que oferecia terras aos índios, condicionava o processo ao rompimento dos vínculos comunitários e impunha uma identidade camponesa. Já o voto universal seria um avanço, mas este não teria garantido "a participação efetiva dos sujeitos sociais coletivos: povos indígenas, classes sociais, regiões nas definições estatais" (MAS-IPSP, p. 30).

Já com relação ao período recente, as críticas levantadas coincidem ao apontar o chamado período neoliberal como uma reedição de situações passadas. Para David Vargas (ASP), o neoliberalismo boliviano equivale, na realidade, a um neocolonialismo, com a exportação das riquezas naturais sem que elas sejam industrializadas no país (ASP-Vargas, p. 2). O MAS-IPSP relaciona o contexto neoliberal a uma neo-oligarquia - criada às sombras das ditaduras militares - subordinada ao capital transnacional, sem capacidade de superar o modelo primário exportador, mas que reduziu ao mínimo a participação estatal na renda dos recursos naturais (MAS-IPSP, pp. 7-9 e 31).

Comparados com os documentos da situação, os documentos da oposição são marcados por uma significativa ausência de referências ao passado. Podemos, APB, UN-Pol Achá e MNR-FRI adotam estratégias propositivas, com um posicionamento mais "pragmático". A APB (p. 1) enfatiza a função dos assembleístas de propor "soluções", portanto deveriam ter uma abordagem "para além dos diferentes períodos históricos que, de uma ou outra maneira, transformaram positivamente ou negativamente Nosso País". As únicas exceções são a AAI, com uma visão histórica particular da região de Santa Cruz, e o MNR, cuja sistematização dos momentos históricos do país se assemelha à dos partidos da situação, mas com interpretações diferentes.

A AAI é uma das poucas organizações que critica o chamado período neoliberal. A organização, que contava com um constituinte, o ex-senador de Santa Cruz Hormando Vaca Diez, repreendeu somente o segundo período de reformas estruturais, que teria começado com o primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997): "aí sim a política de Reagan, de dona Thatcher, assumida religiosamente pelos organismos internacionais e beatamente pelos tecnocratas bolivianos, produz a desarticulação e o desmantelamento do Estado" (AAI, pp. 9-10). O primeiro período identificado com o neoliberalismo, do Decreto nº 21.060, de 1985, é poupado nas críticas da AAI (p. 9), porque seria somente uma política de choque para conter a superinflação.

Sobre o período republicano, o AAI (p. 1) aponta como principal problema do país o centralismo herdado da economia de enclave colonial, cujas consequências foram as perdas territoriais e o isolamento dos departamentos orientais das decisões políticas. O documento traça um forte paralelo entre a exclusão regional e a indígena: "O constante [...] de Santa Cruz foi brigar para ser incluída na Bolívia e no seu dinamismo, [...] para que não nos excluíssem, como excluídos se sentem, legitimamente, os povos originários" (AAI, p. 21). Retrata traumas da sociedade boliviana vivenciados por esses fatos, e os relaciona diretamente com a injustiça histórica sofrida por algumas regiões. Apesar de não haver um apelo diretamente nacional, é a visão trazida pela oposição que mais incorpora elementos da história do país, atualizando opressões sofridas no passado em demandas imediatas da Constituinte (autonomia departamental). Não à toa, o regionalismo foi o único movimento com adesão popular que a direita boliviana conseguiu fomentar desde a eleição de Evo Morales, em 2005.

Como herdeiro das decisões tomadas pelas elites políticas em grande parte dos últimos cinquenta anos da vida política boliviana, o MNR apresenta uma perspectiva razoavelmente diferente de reconstrução da história. Ele é o único grupo da oposição que faz uma análise do período colonial, criticando o "saqueio" de recursos que, acompanhado por um regime político que privilegiava espanhóis nascidos na península ibérica, gerou "contradições entre colonizadores espanhóis e o resto da população" (MNR, p. 3). Assim, o MNR (p. 5) avalia a Independência como um verdadeiro processo de emancipação, cujos heróis eram "imbuídos do espírito independentista, de democracia, de justiça e de igualdade". Mas as elites políticas que os sucederam no poder não seriam dotadas do mesmo espírito modernizante, careciam de projeto nacional unificador, retrocedendo o país à época de "feitoria" colonial. Já a Revolução de 1952 representaria, para o MNR, a concretização de um projeto nacionalista que unificou o território, do ocidente ao oriente, diversificou a economia e incorporou as massas indígenas na vida política. Uma aliança de classes formou-se para atacar a contradição central da sociedade boliviana: a nação versus o imperialismo ("forças que bloqueavam o seu desenvolvimento por meio de relações de dependência") (MNR, pp. 6-9).

Sobre o período mais recente, o MNR (p. 10) explica que as políticas de 1985, de estabilização econômica, teriam sido táticas para restabelecer a "funcionalidade da institucionalidade do regime democrático". Desse modo, o partido se caracterizaria pela adoção de um "método dialético", que permitiria entender a relação entre a tática e a estratégia para buscar uma espécie de liberação do povo boliviano. Essa "liberação" seria promovida por políticas sociais e de participação política promovidas durante seu governo, como as leis de participação popular e de descentralização, a reforma constitucional (que declara a Bolívia pluriétnica e multicultural), o Bono Sol (bonificação dada a maiores de 65 anos com rendas obtidas a partir da privatização de estatais) e a Lei INRA (que institucionaliza as terras comunitárias indígenas). Nesse sentido, o MNR discorda radicalmente da aplicação das suas teses nacionalistas anteriores para a análise do período de reestruturação recente e não enxerga como "imperialistas" as forças externas que atuaram no país, mas como parcerias justas que ajudavam no seu desenvolvimento.

Com relação ao neoliberalismo, é curioso notar que o MNR não defende os elementos mais difusos do que seria uma "filosofia monetarista" popular, como o culto ao indivíduo self-made, o rechaço aos funcionários públicos que "mamam nas tetas do Estado", a uma estrutura estatal ossificada e burocratizada, que precisa ser modernizada (Hall, 1979HALL, S. 1979. "The great moving right show". Marxism Today, [janeiro], pp. 14-20.). Ou seja, é possível perceber que, diferentemente de outros países, houve inexistência de uma "hegemonia" neoliberal. Esse fenômeno se expressa na forma como o MNR analisa o passado: sua visão reflete uma tradição anti-imperialista e desenvolvimentista, muito distante da visão conservadora conjugada normalmente com o neoliberalismo. Mesmo com relação ao balanço do período neoliberal, a ênfase do MNR recai nas políticas sociais que se efetivaram e não na "desburocratização" do aparato estatal (ainda que esse elemento esteja presente). A relativa fraqueza da ideologia neoliberal na Bolívia pode estar relacionada à fraqueza das elites políticas e econômicas do país, mas também pode estar especificamente ligada à inexistência de um Estado de amplas competências, que garanta políticas sociais, o que torna o discurso do Estado sufocante, cobrador de impostos excessivos, bastante deslocado.

Em resumo, é possível identificar a importância da narrativa de determinados eventos para a apresentação das visões de país dos grupos presentes na Constituinte. Apesar de diferentes ênfases, a esquerda organiza uma narrativa de contínuo colonialismo, no qual espanhóis, crioulos republicanos e tecnocratas neoliberais se amalgamam em um ator político pautado por interesses externos. Isso torna possível, nos termos de Smith, apresentar um "passado nacional" dotado de determinado "sabor", que reitera "atmosferas de eventos chave" (Smith, 1986, p. 178), como a contínua exploração de índios e pobres por "invasores".

Por outro lado, o campo da oposição interpreta as reivindicações históricas do bloco popular com uma espécie de cantilena ideológica6. Conscientes de que seus adversários "colocam a culpa" das grandes mazelas históricas do país em suas costas, eles acabam por construir mais uma estratégia de desqualificação do oponente do que de reconstrução dos fatos do passado, de modo que estes lhes fossem mais favoráveis (com a importante exceção da AAI). Mesmo o MNR recorre ao passado mais para resgatar sua importância histórica do que para procurar respostas para o presente. Sua proposta de visão de país guarda pouco do MNR histórico nacionalista e anti-imperialista e muito do novo MNR "dialético", que tem pouco a ganhar com a abordagem de desigualdades que se arrastam no tempo. Essa visão da oposição se assemelha muito ao étatisme que Smith contrapõe ao nacionalismo, pois seria carente de raízes e desprovida de narrativas identitárias.

Além disso, a falta de elementos comuns ao recontar a história do país indica também a ausência de um nacionalismo boliviano hegemônico, um único "sabor" local, dotado de singular "textura" com relação a mitos e motivos culturais. Contudo, o relativo consenso do campo da esquerda, majoritário na Constituinte, com relação ao discurso descolonizador, também pode indicar o assentamento de bases para a construção dessa futura hegemonia.

Sujeito de soberania

Esta seção examina como as agrupações políticas da Constituinte concebem coletividades soberanas, e se essas coletividades coincidem ou não com uma ideia de nação e de Estado bolivianos. Para isso, se recorrerá a algumas teorias que trabalham com a noção de nação como resultado de processos de consenso ou de conflito e a formulações antropológicas que abordam relações que ultrapassam aspectos de identidade nacional.

Dentre os grupos da situação, há uma posição majoritária que afirma a existência de um "povo boliviano" soberano, ainda que este seja definido de forma plural. Os setores que o compõem são contrastados com uma "antipátria", expressão que sintetiza grupos sociais de elite, que teriam ocupado o poder anteriormente e que atuariam conforme interesses estrangeiros, sem escrúpulos no momento de utilizar a violência estatal contra os movimentos sociais. Para o MAS-IPSP (p. 2), o novo Estado que surgirá da Assembleia Constituinte precisaria contar com o protagonismo de "38 povos, nações e nacionalidades de terras altas e baixas [...], junto aos homens e mulheres mestiços e brancos patriotas"7. O MOP (p. 2) também representa certa coletividade nacional ("nações originárias, dos setores populares do campo e das cidades, cumprindo o mandato do povo"), mas exclui terminantemente quem considera "autores dos delitos" cometidos contra os povos indígenas. O documento da ASP-Tapia (p. 1) faz igualmente referência a um sujeito coletivo boliviano que se coloca contra a "antipátria" que só quer dividir o país. Dessa forma, há uma combinação entre nacionalismo e etnicidade na legitimação do sujeito de soberania: índios são necessariamente patriotas (graças, provavelmente, à sua ocupação pré-colonial do território boliviano), mas "brancos e mestiços" podem ser "antipátrias", e, assim, não comporiam necessariamente o sujeito de soberania boliviano.

Esse projeto remete a um ideal de pátria boliviana da tradição nacionalista de 1952, que vê a Bolívia como uma "nação inconclusa". A construção da nação boliviana, portanto, seria uma tarefa pendente. Macario Tola (2010)TOLA, M. 2010. 23 ago., que foi constituinte de La Paz pelo MAS-IPSP, identificou essa expectativa no projeto constitucional: "Até agora não houve nação boliviana. Inclusive o Estado de 1952 não era um verdadeiro Estado, porque o Estado incorpora a sociedade, mas o Estado que nasceu em 52 exclui a sociedade".

Contudo, outras visões do bloco da situação indicam também uma ideia de soberania popular boliviana deslocada do Estado. Em uma perspectiva mais marxista, o sujeito da soberania também é definido de forma econômica. O MCSFA (p. 8) defende que "o Estado tem que ser conduzido pelos pobres, pelos camponeses, pelos indígenas, pelos originários, pela classe popular". A AS (p. 2) indica em muitos momentos um sujeito histórico genericamente composto pelas classes populares oprimidas e exploradas: trabalhadores do campo e da cidade, operários e indígenas. As forças populares seriam as detentoras supremas da soberania (um pacto social de consenso entre todos os setores da sociedade boliviana seria impossível) e isso fica claro quando o MCSFA (p. 10) propõe, por exemplo, que o direito à insurreição seja constitucionalizado, "quando [o povo] observa que seus governos não estão administrando o Estado em função dos trabalhadores e dos pobres".

Identifica-se, nessa perspectiva, uma espécie de identidade nacional construída em vista de um adversário, de uma situação de conflito. Esse adversário pode ser externo (o imperialismo de outras nações, por exemplo), como no caso da definição de nacionalismo de Tom Nairn, que seria uma reação das sociedades periféricas à dominação das sociedades centrais no contexto do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (Nairn, 2003NAIRN, T. 2003. The break-up of Britain: crisis and neo-nationalism. Altona Vic: Common Ground., pp. 317-50). Mas também pode ser interno: uma elite política étnica e economicamente diferente de parte da população, que acarreta em uma opressão impulsionadora de movimentos nacionalistas separatistas (Gellner, 1983GELLNER, E. 1983. Nations and nationalism. Ithaca, NY: Cornell University Press.). No caso boliviano, o elemento catalizador do nacionalismo, a "antipátria", é marcado por ambas as características: é externo porque segue interesses de nações estrangeiras, e é interno porque também se amalgama discursivamente às elites políticas tradicionais, às classes altas e aos etnicamente definidos como brancos e mestiços.

Porém, a oposição a essa elite cultural e economicamente diferenciada não causa movimentos separatistas, como a análise de Gellner prevê8. Nas perspectivas que reafirmam a "nação boliviana", o Estado é visto como um ente que pode ser conjunturalmente dominado por interesses externos, mas que deve ser retomado para servir aos interesses nacionais, como fica mais claro nas declarações do constituinte Macario Tola. Contudo, há outras perspectivas de setores mais indigenistas no campo da esquerda que não identificam a nação boliviana como um sujeito de soberania e preveem uma relação diferente com o Estado boliviano, que não é de separatismo (criação de outro Estado) nem de identificação.

Para esses setores, que perseguem como objetivo político a reconstituição territorial dos povos indígenas "ancestrais", o sujeito principal de soberania é conformado pelas nações originárias. O documento do Ayra-Conamaq (p. 11) proclama "a vigência e o exercício pleno" das nações originárias e indígenas, como "filhos e filhas dos territórios milenares do Qullasuyu e dos territórios das grandes nações guarani, chiquitana, moxos", que "ancestralmente" ocupam "o território hoje chamado Bolívia". São previstas formas de integrar os interesses das nações originárias com os que não as compõem, mas não se define um sujeito nacional coletivo e muito menos se fala em seu nome. Sua relação com a totalidade do povo e do Estado boliviano é de acordo político ou de identidade paralela9.

Tal relação dificilmente é prevista pelos teóricos de nacionalismo, já que implica uma relação diferente do conflito com um adversário ou o consenso fraternal (que aparece a seguir nos documentos da direita). Trata-se de uma relação que equilibra conflito e socialização, que reconhece o Estado, mas não o incorpora. Uma das chaves para entender esse processo é o trabalho de Tristan Platt sobre os conceitos ch'axwa e muxsa no pensamento andino. O primeiro conceito faz referência a uma situação de guerra entre dois lados irredutíveis, e o segundo ao processo de reconciliação. Platt (1987, pp. 97-98)PLATT, T. 1987. "Entre ch'axwa y muxsa. Para una historia del pensamiento político aymara". In: BOUYSSE-CASSAGNE, T. et al. Tres reflexiones sobre el pensamiento andino. La Paz: Hisbol. reconhece um fluxo contínuo entre ch'axwa e muxsa, sendo a autoridade (estabelecida pela posição de vencedores ou perdedores na guerra) continuamente retrabalhada em direção a um equilíbrio de poder, no qual os dois lados previamente em conflito precisam se "ressocializar". Essa busca por equilíbrio de poder (mesmo quando um lado é hierarquicamente superior ao outro) informa a relação dos aymaras com os Estados inca, colonial e republicano na área que ocupa a Bolívia atualmente. Em troca de tributos e reconhecimento, o Estado necessita oferecer autonomia territorial às comunidades indígenas. Toda vez que esse pacto foi rompido, rebeliões floresceram nos Andes (Platt, p. 121).

De forma complementar, Silvia Rivera Cusicanqui identifica um ideal de "bom governo", uma espécie de "programa mínimo" dos movimentos indígenas, que remete ao período colonial da vigência das Leis das Índias (século XVII até meados do século XVIII), quando as reformas bourbônicas começaram a ser aplicadas. Um pacto colonial permitia a existência de "duas repúblicas" subordinadas à Coroa espanhola, uma crioula e outra indígena. Assim, era permitido à população indígena manter suas formas de governo e autonomia política, desde que fornecessem à Coroa mão-de-obra para as minas de prata. Rivera Cusicanqui (1993RIVERA CUSICANQUI, S. 1993. "La raíz: colonizadores y colonizados". In: ALBÓ, X.; BARRIOS, R. Violencias encubiertas en Bolivia. V. 1: Cultura y Política. La Paz: Cipca/Aruwiyiri., p. 39) destaca que essa experiência teria marcado uma "complexa visão" indígena de seu próprio território, já que este não seria um "espaço inerte onde se traça uma linha do mapa", mas uma "jurisdição" ou "âmbito de exercício do próprio governo"10.

Essas formulações ajudam a entender a demanda indígena por autonomia levada aos debates na Assembleia. A autonomia indígena reflete um ideal de reconstrução do passado pré-colonial, no qual a nação indígena se bastaria do ponto de vista civilizatório (ou seja, não necessitaria dos conhecimentos "ocidentais" para o seu desenvolvimento). O documento do Ayra-Conamaq (p. 3) reforça essa visão, reiterando que as nações originárias seriam herdeiras de "conhecimento, ciência e tecnologia ancestrais". Segundo essa perspectiva, as autonomias indígenas seriam o ordenamento institucional permitido a essas nações dentro do Estado boliviano, primeiro passo para a sua reconstrução territorial em longo prazo, como destacou Pedro Nuny (2010)NUNY, P. 2010. 18 ago., representante dos indígenas das terras baixas que acompanhou o processo constituinte:

[...]estamos nesta busca, de consolidar a pátria grande [...]. Mas respeitamos as regras do jogo político [...]. O que conseguimos até agora [...] é justamente esta busca de consolidação destes direitos proprietários coletivos dos povos indígenas.

O maior ponto de tensão é justamente o direito de consulta dos povos indígenas, previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)11, que é reivindicado quando o Estado pretende fazer atividades em território indígena (estradas, obras de infraestrutura, extração de recursos naturais não renováveis, gás, petróleo etc.). O direito de consulta, portanto, funciona como um mecanismo de mediação entre estes dois entes que se dizem soberanos: o Estado e o povo indígena. Quanto mais ampliado ele é (direito de veto, de definição sobre as políticas de recursos naturais, obrigatoriedade de consenso), mais a soberania tende para os povos indígenas. Exemplos sobre esse direito ampliado estão no documento do Ayra-Conamaq (p. 11), o qual prevê uma autonomia indígena que inclui direitos sobre o subsolo, em especial sobre os recursos naturais, e no do MAS-IPSP (p. 47), o qual prevê procedimentos de consenso entre Estado e indígenas12.

No entanto, posturas mais "nacionalistas" tendem a defender um direito de consulta mais restrito. Mesmo com o MAS-IPSP apresentando oficialmente o procedimento de consenso, alguns de seus setores, principalmente urbanos, se incomodavam com certo "privilégio" indígena. Nas palavras de Macario Tola (2010):

[...] os recursos naturais, se estão [...] em um povo determinado, este povo teria o direito à exploração e ao benefício [...]. Não chegava nenhuma gota ao Estado boliviano e ao resto do povo boliviano. É um tema muito complicado.

Assim, o ex-constituinte defende que a propriedade dos recursos naturais seja dos bolivianos, com o Estado responsável pela cadeia produtiva, mas com participação e benefícios para o setor indígena.

Ainda que exclua os "antipatrióticos" como sujeitos de soberania, o MAS-IPSP é um dos partidos da situação que mais se aproxima da ideia de se criar um documento de consenso. Apesar do documento do MAS-IPSP não explicitar isso, o MCSFA (p. 17) cita essa postura e AAI (p. 12) diz concordar com ela:

[...] tenho que coincidir com Roman Loayza [constituinte que apresentou parte do documento do MAS-IPSP] de que não devemos brigar entre bolivianos e que a nova Constituição Política do Estado deve expressar todos os bolivianos.

Os apelos do MAS-IPSP podem ser entendidos se levarmos em conta o fato de que esse era o partido que representava o governo e que carregava a responsabilidade pela conclusão da Assembleia Constituinte. Nesse caso, há certo deslocamento do ideal de soberania popular para dentro da esfera do Estado, que passa a ser entendido pelo MAS-IPSP como um grande representante de todas as forças sociais13. Assim, a agrupação política começa a reivindicar um fortalecimento da autoridade estatal em si, da ideia de que o Estado condensa todos os interesses sociais, e que seria, portanto, o executor da soberania.

Essa postura aproxima o MAS-IPSP das posições defendidas pela oposição, para a qual a soberania nacional só é válida se executada pelo Estado. O sujeito coletivo idealizado pela direita é, em um primeiro momento, um "povo boliviano" que inclui todos os setores da sociedade e que seria diverso, mas prezaria acima de tudo a sua unidade. A grande maioria dos grupos políticos da oposição se refere a esse ideal enfatizando a necessidade de um "pacto social" (UN-Pol Achá, Podemos, APB), de uma "Bolívia unida e íntegra" (MNR-FRI) ou de um "nós" como relação de pertencimento a uma comunidade política (UN-Lazarte). Essas perspectivas destacam a necessidade de se criarem condições para uma convivência pacífica entre bolivianos, de se concertarem interesses e de se reafirmar uma comunidade nacional que compartilhe uma visão de futuro (UN-Lazarte, p. 11). O MNR defende (MNR, p. 30): "um país em que todos aceitem que são bolivianos, que nossa riqueza [...] é a nossa diversidade, que dependemos uns dos outros para viver em uma simbiose que beneficie a todos". Trata-se de uma coletividade passiva ("em que todos aceitem" sua identidade nacional), na qual a soberania reside, mas que é acima de tudo delegada aos atores políticos.

Essa perspectiva reflete uma espécie de nacionalismo resultante de uma forma de identidade cultural mais fraterna e não necessariamente beligerante. Exemplo de formulação desse tipo é a de Benedict Anderson (2008)ANDERSON, B. 2008. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras., que radica o nacionalismo em mudanças estruturais impostas pela modernidade, como a secularização e diferentes concepções de tempo, e em fenômenos que permitiram a formação de identidades nacionais, como o capitalismo impresso (novelas e jornais). Para ele, o nacionalismo conteria uma "profunda camaradagem horizontal", que explicaria por que tantas pessoas se dispuseram "não tanto a matar, mas sobretudo a morrer" por essas "criações imaginárias" tão recentes, chamadas de nações (Anderson, 2008, p. 34). Sua ênfase recai sobre os laços internos que se desenvolvem entre essa comunidade imaginada, um nacionalismo que apela à fraternidade e não ao conflito.

Para a direita, portanto, a identificação nacional seria uma maneira de aceitar um destino comum a compatriotas e permitir que o Estado aja com base nessa comunidade política. Assim, a soberania política é "delegada aos seus representantes nos distintos poderes do Estado" (Podemos, p. 8), sendo que "nenhuma pessoa que se possa atribuir a soberania do povo comete o delito de sedição" (MNR-A3, p. 9). Esses setores reafirmam a ideia de uma nação boliviana como forma de resgatar esse pacto social, marcado não por um nacionalismo ativo (como o nacionalismo que luta contra o imperialismo), mas sim por uma autoridade do Estado fortalecida diante do que se entende como uma ação facciosa interna, que prejudica a coletividade. Essa é a ideia que está por trás do nome "Bolívia: uma nação", dado ao documento do Podemos. Como argumentou Gamal Serhan (2010)SERHAN, G. 2010. 3 set., constituinte dessa agrupação:

[...] o plurinacional só consegue reconhecer o diverso, ressalta o que nos separa, não ressalta o que une. Para que se organiza um Estado? Para ressaltar o que une [...]. Esta era a tarefa importante para a gente, era nossa oportunidade de concluir a construção da nação boliviana.

Nesse sentido, a concepção de Constituição que os setores oposicionistas possuem é a de uma Constituição de consenso. Ao identificar a postura ideológica do setor majoritário da Constituinte como "étnico-indigenista" e "andino-centrista", ou seja, como uma agressão contra os que não se incluem como parte das "nações originárias", a oposição sugere que um consenso com base na formulação plurinacional seria nitidamente inviável (Lazarte, 2009LAZARTE, J. 2009. "Plurinacionalismo y multiculturalismo en la Asamblea Constituyente de Bolivia". Revista Internacional de Filosofía Política, n. 33, pp. 71-107., pp. 82-85). Além disso, o projeto plurinacional apontaria a diferenciação étnica como base de funcionamento do próprio Estado, o que causaria um amálgama entre sociedade e Estado (próprio dos processos totalitários), pois o social estatizado seria um "recurso permanente de poder" (Lazarte, 2009, p. 90).

Há, contudo, algumas agrupações da oposição (MNR e MNR-FRI) que defendem a ideia da multinacionalidade da Bolívia, sem, com isso, defender a proposta da situação de criação de um Estado plurinacional. Não há polêmicas nas propostas de visão de país do MNR, MNR-FRI, AAI e Podemos com relação à incorporação de direitos indígenas já consolidados internacionalmente (livre-determinação, autogestão, direito a territórios indígenas etc.). Podemos, MNR e MNR-FRI incluem a possibilidade de autonomias indígenas no âmbito municipal, e AAI a estende a todos os âmbitos, desde que seja estabelecida por referendo.

Os direitos indígenas são vistos como direitos de "minoria" que devem ser garantidos, mas de maneira alguma devem afetar a ordem geral de funcionamento do Estado. Documentos da AAI (p. 18) e do Podemos (p. 73) enfatizam que recursos naturais do subsolo são de inteira responsabilidade do Estado, mesmo que sejam encontrados em territórios indígenas. Para Gamal Serhan (2010), por exemplo, a tendência natural do processo é que as reivindicações indígenas, de caráter mais simbólico, acabem desaparecendo e que esses povos optem por uma forma de gestão territorial mais "moderna", como a autonomia municipal:

Em dez ou quinze anos, [...] a autonomia indígena vai desaparecer e terminará sendo subsumida pela autonomia municipal. [...] a longo prazo, os próprios povos indígenas se darão conta de que a autonomia municipal é muito mais efetiva que a autonomia indígena. A autonomia indígena é mais um símbolo [...].

Resumidamente, os ideais de sujeitos de soberania na Constituinte revelam perspectivas diferentes com relação à nação e ao Estado bolivianos. Em sua maioria nacionalistas, algumas agrupações reivindicam um nacionalismo ativo, que se define perante adversários e que persegue determinadas agendas políticas (inclusive apesar e contra o Estado); outras idealizam um nacionalismo passivo, que serviria como base para a atuação do Estado, verdadeiro executor da soberania. Contudo, algumas agrupações mais indigenistas apresentaram uma perspectiva completamente diferente de sujeito de soberania, que não se encaixa nas teorias de nacionalismo: povos indígenas autônomos que, apesar de enxergar o Estado como fonte de autoridade, consideram-no um ente externo.

Projeto de novo Estado

O debate sobre os sujeitos de soberania na Bolívia desemboca necessariamente, no contexto da Constituinte, em demandas de reformas estatais, tanto simbólicas como operacionais. Esta seção irá explorar com mais profundidade a relação entre esses sujeitos e suas projeções de Estado ideal, como este se reestrutura para se enquadrar aos ideais de comunidade política das agrupações da Constituinte. Assim, faz-se necessário entender os adjetivos que acompanham esse "novo Estado" ("plurinacional", "comunitário", "unitário", "descentralizado" ou "autonômico"), todos com grande carga normativa.

Com relação à situação, a grande maioria das agrupações é favorável à criação de um Estado plurinacional14. Como nos pode adiantar a análise das reconstruções históricas feita por essas agrupações, a ideia da "plurinacionalidade" é formulada como uma resposta ao diagnóstico de que se vive em um Estado colonial e monocultural, daí a necessidade de se romper com relações de dominação baseadas na etnia (colonialismo) e de se institucionalizar a diversidade cultural do país. No entanto, para além desse diagnóstico geral, a expressão "Estado plurinacional" ganha diferentes conteúdos conforme o projeto político da agrupação que define esse tipo de Estado.

Por um lado, a plurinacionalidade remete à democracia participativa e comunitária, reiterando um ideal de Estado que respeite e se coordene com esferas de poder locais e autônomas, ou seja, que mantenha uma relação de pacto e equilíbrio de poder com essas esferas. Em uma perspectiva mais indigenista (Ayra-Conamaq), a plurinacionalidade está relacionada à reconstituição das nações indígenas, com direito à livre-determinação, jurisdição, gestão territorial e política. Como vimos na análise das propostas de autonomia indígena, essa visão desloca o sujeito da soberania da estrutura formal do Estado para as estruturas comunitárias de poder. Gabino Apata (2010)APATA, G. 2010. 23 ago. defende que, para que haja plurinacionalidade de verdade, a perspectiva dos povos indígenas deve ser integrada na estrutura institucional do Estado boliviano: "a visão, os povos indígenas originários têm que impactar, é isso que eles esperam". Um exemplo do que seria essa "visão" seriam os direitos do meio ambiente, da "mãe terra". Também dirigente do Conamaq, Rafael Quispe, durante um seminário em agosto de 2010, reclamou que o governo não estaria implementando o Estado plurinacional porque não estaria respeitando os direitos da "mãe terra" e dos povos indígenas (em especial com relação ao direito de consulta). Ou seja, o governo do proceso de cambio precisa agir sempre pactuando com as comunidades indígenas, as quais lutaram pela "mudança".

Mas perspectivas mais marxistas, como CN-PI e AS, também defendem esse fortalecimento das esferas locais de poder, com a construção de "micropoderes" (CN-PI, p. 66), em uma pátria "comunitária e socialista" (subtítulo do documento da AS).

Por outro lado, há uma visão de Estado plurinacional que enfatiza seu apelo unificador, sua capacidade de criar uma totalidade estatal diante dos "abismos estruturais que foram o obstáculo da integração" (MAS-IPSP, p. 34). Assim, o Estado deve ser plurinacional e descentralizado, mas refletir certo caráter "nacional" boliviano, unitário. Adolfo Mendoza (2010)MENDOZA, A. 2010. 4 set., que foi assessor de movimentos camponeses e indígenas durante a Constituinte, entende que a plurinacionalidade representa principalmente a ideia de que o "nacional é plural", como contraposição a uma ideia homogênea de nação. Assim, "o nacional plural" não se esgotaria "no indígena", o que seria uma compreensão "reduzida". A pluralidade incluiria outras formas de identificação política, para além da comunidade indígena, como a identidade regional ou departamental, sintetizando diversas dimensões culturais e territoriais do país.

Contudo, nos debates da Constituinte surge também uma proposta intermédia entre as duas demandas (comunitária e de unidade) colocadas à plurinacionalidade: a ideia de um quarto poder, o Poder Social. Segundo a maioria das agrupações que o propõem, esse poder seria composto por representantes dos movimentos sociais e povos e nações indígenas (eleitos por voto direto ou por procedimentos tradicionais, como usos e costumes), que fiscalizariam as ações dos demais poderes de maneira independente (MAS-IPSP, p. 36; MOP, p. 15; ASP, p. 4; MBL, p. 26). O Poder Social representa uma demanda radical de incorporação dos setores mobilizados durante as "guerras neoliberais" na estrutura do Estado, sem com isso subordinar esses movimentos à lógica estatal15.

As posições com relação ao Estado refletem as diferenças identificadas anteriormente com relação aos sujeitos de soberania. Alguns setores buscam no Estado plurinacional a viabilidade de um ideal de nação boliviana plural, mas ainda assim unificada. O Poder Social também remete a essa ideia, mas é uma forma de concepção dessa unificação mais desconfiada do Estado, que teria a função de vigiá-lo. Já a plurinacionalidade vislumbrada pelos movimentos indígenas remete ao pacto com o Estado, à visão indígena que precisa ser consultada nas decisões estatais.

Mas as reformas sugeridas ao Estado boliviano também refletem demandas que não se resumem à sua característica plurinacional. As tarefas de bem-estar e de "repartição equitativa de todos os recursos existentes e dos benefícios" (MAS-IPSP, p. 34) se materializam na defesa de um "Estado social". Essa perspectiva, que enfatiza as tarefas de desenvolvimento, estabelece uma relação da sociedade com o Estado mais mediada pelos serviços de bem-estar do que pela participação e pela codeterminação de políticas públicas.

Graças às fragilidades do Estado boliviano, historicamente pouco capaz de garantir direitos sociais mínimos (saúde, educação, moradia etc.), as demandas de bem-estar feitas pelos setores populares se encaixam em um esquema de comprometimento (engagement) e afastamento (estrangement) com relação ao Estado. Em um estudo sobre El Alto, cidade na região metropolitana de La Paz, Sian Lazar descreve um esquema de comprometimento marcado por relações clientelistas em momentos eleitorais - apoio político em troca de empregos públicos ou de construção de infraestruturas básicas (asfaltamento de estradas, obras para escolas e hospitais etc.), mas que garante a agência da comunidade como um todo16 - conjugada com uma relação cotidiana de afastamento, visível nos questionamentos populares acerca da corrupção e do individualismo da classe política, que enfatizam uma postura de "cidadãos apesar do Estado" (Lazar, 2008LAZARTE, J. 2009. "Plurinacionalismo y multiculturalismo en la Asamblea Constituyente de Bolivia". Revista Internacional de Filosofía Política, n. 33, pp. 71-107., pp. 109-17). Dessa forma, as demandas por mais recursos estatais não necessariamente implicam uma identificação com o Estado.

Essa dinâmica não é particular de El Alto e pode ser percebida em diferentes níveis em outras regiões bolivianas, inclusive com relação aos povos indígenas. Os mesmos sindicatos, comunidades rurais ou de vizinhos, que demandam recursos, escolas, hospitais e obras de infraestrutura do Estado, podem adotar estratégias de mobilização contra políticas estatais desfavoráveis, que comprometam as autonomias setoriais ou locais, com base em um discurso simbólico de disjunção entre Estado e cidadãos, como ocorreu nas mobilizações de 2000 a 2005.

Para além da plurinacionalidade e das tarefas de bem-estar, a maioria das agrupações que apoiam o governo apontou também a necessidade de se ter um Estado "unitário" e "descentralizado", aparente contradição jurídica que foi incorporada na nova Constituição. Na realidade, essa afirmação surge para contrapor o projeto "divisionista" dos departamentos orientais, que estariam buscando a fragmentação do país com projetos radicais de autonomia. O centralismo, na interpretação desses grupos, seria uma característica relacionada exatamente a essa carência de visão total e nacional do território. Ele não se oporia ao regionalismo, mas seria complementar a ele:

Dentro dos aspectos negativos do centralismo político, podemos apontar: crescimento e desenvolvimento desigual das regiões; [...] fator de dispersão e causa da perda e desmembramento territorial, por não ter tido a capacidade de assentar soberania nos confins do território nacional; [...] desenvolvimento desigual, o que trouxe como efeito o regionalismo departamental (MAS-IPSP, p. 36).

Essa postura explica por que, nessa perspectiva, o "centralismo" seria combatido com unidade e descentralização do poder.

Já a oposição também critica o centralismo do Estado boliviano, mas não enxerga o regionalismo como consequência lógica da descentralização. Com uma visão mais intuitiva da questão, ela defende que, para se combater o centralismo, é necessário justamente fortalecer a esfera regional. É dessa concepção que surge a ideia de um Estado "autonômico"17, defendida por todos os partidos da oposição, com maior ou menor ênfase. As autonomias departamentais são defendidas tanto com argumentos históricos, que apontam as desigualdades sofridas pela região (como o faz a AAI, de Vaca Diez), como de nível normativo, que enfatiza a descentralização do poder e o aperfeiçoamento da democracia (como o faz o MNR-A3, p. 4).

Todavia, a oposição também não se coloca contra um Estado "unitário". Como visto antes, ela também denuncia a fragmentação do país, mas enxerga como grande propulsora dessas não as autonomias departamentais, mas sim a proposta de plurinacionalidade, que exacerbaria a identidade indígena. É curioso notar como as palavras de ordem "unidade e descentralização", amplamente consensuais na Constituinte, eram dispositivos para resolver problemas completamente diferentes. Se retornarmos às formas de identificação de soberania nacional, são essas as palavras de ordem as que mais fornecem informações sobre quais são os adversários opositores ao ideal de nação boliviana que cada grupo reivindica. Se a esquerda mais nacionalista denuncia o regionalismo, também identificado com elites políticas locais favoráveis às multinacionais, como adversário da unidade nacional (o conceito de plurinacionalidade é muito generoso para canalizar as críticas aos setores "antipátrias"), a direita identifica o indigenismo constitucionalizado como uma ameaça à nação boliviana. Contudo, se a primeira entende que deve derrotar seu adversário, ainda que de maneira pacífica, eleitoral, a segunda pressupõe quase uma postura de superação civilizatória, uma opção pela modernidade, como se vê nos debates acerca da autonomia indígena.

De todo modo, reiterar a importância da ideia de nação é, para os grupos de oposição, promover o fortalecimento do Estado boliviano, já que este seria o executor supremo da soberania. Mas a oposição também critica o governo do MAS-IPSP por ser centralista e autoritário, dotado de um "populismo conservador e antidemocrático" e "estatismo econômico" (MNR-A3, p. 2).

Uma forma de interpretar essa contradição é pela demarcação das diferenças entre a autoridade estatal (que seria a esfera da legalidade identificada por Lazarte [2009]) e a presença estatal nas diversas esferas da vida social (nas políticas públicas, na economia etc.). Dessa forma, é possível enxergar coerência na proposta de fortalecer a autoridade estatal, que estaria fragilizada diante de uma sociedade com pouco apego à legalidade, e de criticar certo "estatismo" do MAS-IPSP, que interferiria em esferas que deveriam ficar a cargo da sociedade. Se a dinâmica identificada por Sian Lazar (2008) de afastamento e comprometimento com relação ao Estado prevê o primeiro no âmbito simbólico (cidadãos apesar do Estado), quando há políticas desfavoráveis ou que ferem autonomias locais, e prevê o segundo quando há distribuição de recursos via políticas sociais e obras de infraestrutura, a direita boliviana parece propor normativamente uma relação inversa. O comprometimento precisa ser desinteressado, baseado, sobretudo, na universalidade da lei e na identificação simbólica com o Estado-nação boliviano, e o afastamento seria com relação à regulação estatal da economia, que é justamente a que favorece a distribuição de recursos para estratégias locais e setoriais de desenvolvimento econômico.

Outra forma de interpretar essa aparente contradição é pela contextualização da trajetória histórica dos grupos que a propõem. Como operadores majoritários do Estado no período anterior, eles sofreram com o questionamento de sua autoridade e identificam a necessidade de fortalecê-la. Mas eles já não são mais esses operadores e se veem reféns de uma estrutura estatal que eles mesmos alimentaram e que pouco privilegia outras esferas do Estado ou da sociedade civil que agora ocupam. A estratégia política encontrada foi fortalecer essas outras esferas, mas o diagnóstico da fraqueza do Estado que haviam feito no passado se mantém.

De forma resumida, as demandas por reforma estatal dos grupos constituintes refletiram, em grande medida, o que eles projetaram como sujeitos de soberania. A plurinacionalidade é quase consensual na esquerda, mas mantém significados muito distintos conforme o grupo que a defende. A relação de comprometimento com o Estado por parte de projetos da esquerda se dá principalmente através de demanda por recursos estatais para tarefas de bem-estar e infraestrutura, enquanto para a direita se dá em termos de uma identificação simbólica e de respeito às leis. Por fim, a bandeira da unidade (assim como a das autonomias) revela os setores sociais que representam características contra as quais o nacional é forjado, sejam eles "antipátrias" (como as elites regionais) ou representantes de práticas sociais anacrônicas (como os grupos indígenas).

***

A análise dos documentos sobre visão de país das dezesseis agrupações da Constituinte revela entendimentos políticos radicalmente diferentes sobre o que seria a ordem política ideal na Bolívia. As discordâncias variaram de compreensões diferentes com relação a demandas comuns - como descolonização e plurinacionalidade - a concepções completamente distintas sobre em que consistiriam a nação e o Estado bolivianos.

Apesar de este estudo não abordar a Constituinte como um todo, sendo menos abrangente que estudos que analisaram todo processo, da convocação da Assembleia à aprovação do texto final (Schavelzon, 2010; Gamboa Rocabado, 2009b), ele contribui para aprofundar o entendimento crítico acerca dos atores constitucionais e suas disposições políticas no contexto em foco.

De certa maneira, a leitura dos documentos constitucionais pode tanto fortalecer visões simpáticas ao processo constitucional, como a de Schavelzon (2010), que reconhece, no decorrer do processo, a criação de uma "teoria nativa", cujas ambiguidades e aberturas são justamente as que permitem a expressão de formas políticas comunitárias indígenas dentro da estrutura do Estado, quanto visões desfavoráveis, como a de Gamboa Rocabado (2009, pp. 503-05), que condena os constituintes por falta de vontade política para a criação de consensos nacionais e por desconhecerem "a teoria constitucional"18 e os "temas importantes" que deveriam ser privilegiados.

Se analisarmos o processo constituinte do ponto de vista das sínteses conformadas no campo da esquerda, a análise de Schavelzon é consistente. Com todas as suas divergências, as agrupações da esquerda conseguiram montar um arcabouço constitucional dotado de acordos em temas centrais, sendo possível enxergar a Constituinte como um grande encontro entre setores populares. A análise da história boliviana dotou esses setores com uma pauta comum, a descolonização do Estado boliviano, que construiu uma narrativa coerente, apresentando "texturas e coerências internas" de mitos e motivos em um "sabor peculiar" do passado boliviano (Smith, 1986). Além disso, a plurinacionalidade do Estado também se mostrou outro ponto de encontro, um conceito que atualizava a demanda por descolonização dentro das tarefas estatais. Contudo, talvez mais do que uma "teoria nativa", esses termos condensaram tensões do campo apoiador do proceso de cambio, e suas ambiguidades na realidade refletiam acordos possíveis a respeito de temas que seriam mais tarde objetos de disputa19. Apesar da sólida base ideológica "descolonizadora", as posições com relação à nação e ao Estado boliviano indicavam expectativas contraditórias: se alguns buscavam a consolidação da primeira e a domesticação do segundo (para que servisse aos interesses populares e nacionais), para outros, essas esferas representavam entidades paralelas, com as quais se pactua políticas, não por meio de uma relação de mando mas de coordenação.

Entretanto, se reconhecidas as imensas diferenças entre as visões de país da situação e da oposição, ganha força a visão de Gamboa Rocabado (2009, p. 508), que entende a Constituinte como um grande desencontro, um "labirinto da solidão". Segundo esse autor, "a Assembleia fracassou ao mostrar que não conseguiu estender uma ponte que transitasse da solidão a um Nós, sendo capaz de pactuar em longo prazo, pois muitos constituintes equivocadamente acreditaram que todo o contato contaminava". Ainda que reconheça que as diferenças entre os grupos participantes da Constituinte são reais, Gamboa Rocabado (2009, p. 508) atribui o fracasso da construção de consensos nacionais ao exagero em detalhar tais diferenças, à falta de vontade em "curar feridas", à "covardia" que impedia compatriotas de se contemplarem mutuamente.

Porém, as diferenças entre situação e oposição na Constituição dificilmente se justificam somente pela suposta "covardia" ou ignorância (como Gamboa Rocabado também argumenta) dos constituintes. Se houve falta de vontade política em criar consensos, isso provavelmente se explica por outras questões, como o fato de os grupos da Constituinte portarem projetos políticos radicalmente diferentes, inclusive com noções inversas de afastamento (ou autonomia) e comprometimento com relação ao Estado. Isso fez com que consensos propostos por uma parte e por outra fossem dificilmente aceitos como consensos gerais.

Por um lado, a direita portava um ideal de ordem política liberal e estatista, que, em grande medida, prescindia de enraizamento na história e na sociedade bolivianas (como demonstrou a negativa em analisar o passado do país), com uma visão de nação passiva e subordinada à legalidade estatal. Por outro lado, a esquerda pautava coletividades políticas ativas, através ou apesar do Estado, e que se relacionavam com ele de maneira interessada, em busca de redistribuição de recursos.

A conclusão a que se chega com esta análise dos documentos de visão de país na Constituinte é de que o novo arranjo constitucional boliviano, que fundou um "Estado plurinacional comunitário" em contraposição ao antigo "Estado colonial, republicano e neoliberal", é menos um resultado de sínteses no interior dos grupos apoiadores do proceso de cambio e mais um pacto possível em torno de conceitos disputáveis futuramente, uma trégua prenhe de tensões. E também que, menos um "labirinto da solidão", no qual os atores políticos caminham de olhos vendados, em uma incapacidade de comunicação quase esquizofrênica, a Constituinte seria mais um encontro de antagonismos, no qual direita e esquerda definem seus projetos através do embate, não em isolamento. Esses opostos se veem, se reconhecem, se lembram e se moldam, um na contramedida do outro.

  • ALBÓ, X. 2008. "El perfil de los constituyentes". Tinkazos, ano 11, n. 23-24, pp. 49-63.
  • ANDERSON, B. 2008. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras.
  • ELKINS, Z.; GINSBURG, T.; MELTON, J. 2009. The endurance of national constitutions. Cambridge: Cambridge University Press.
  • GAMBOA ROCABADO, F. 2009. "La asamblea constituyente en Bolivia: una evaluación de su dinámica". Fronesis - Revista de Filosofía Jurídica, Social y Política, v. , 16, n. 3, pp. 487-512. Disponível em: <http://www.revistas.luz.edu.ve/index.php/frone/article/viewFile/3471/3374>. Acesso em: 18 set. 2011.
    » http://www.revistas.luz.edu.ve/index.php/frone/article/viewFile/3471/3374
  • GELLNER, E. 1983. Nations and nationalism. Ithaca, NY: Cornell University Press.
  • HALL, S. 1979. "The great moving right show". Marxism Today, [janeiro], pp. 14-20.
  • HOBSBAWM, E.; RANGER, T. 1983. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press.
  • LAZAR, S. 2008. El Alto, rebel city. Self and citizenship in Andean Bolivia. Durham: Duke University Press.
  • LAZARTE, J. 2009. "Plurinacionalismo y multiculturalismo en la Asamblea Constituyente de Bolivia". Revista Internacional de Filosofía Política, n. 33, pp. 71-107.
  • MARTÍNEZ DALMAU, R. 2008. El proceso constituyente boliviano (2006-2008) en el marco del nuevo constitucionalismo latinoamericano. La Paz: Enlace.
  • NAIRN, T. 2003. The break-up of Britain: crisis and neo-nationalism. Altona Vic: Common Ground.
  • PLATT, T. 1987. "Entre ch'axwa y muxsa. Para una historia del pensamiento político aymara". In: BOUYSSE-CASSAGNE, T. et al. Tres reflexiones sobre el pensamiento andino. La Paz: Hisbol.
  • RIVERA CUSICANQUI, S. 1993. "La raíz: colonizadores y colonizados". In: ALBÓ, X.; BARRIOS, R. Violencias encubiertas en Bolivia. V. 1: Cultura y Política. La Paz: Cipca/Aruwiyiri.
  • SCHAVELZON, S. 2010. A Assembleia Constituinte na Bolívia: etnografia do nascimento de um Estado plurinacional. Tese de doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional.
  • SCHILLING-VACAFLOR, A. 2010. "Bolivia's New Constitution: towards participatory democracy and political pluralism?". Giga Working Papers, n. 141. Disponível em: <http://www.giga-hamburg.de/dl/download.php?d=/content/publikationen/pdf/wp141_schilling.pdf>. Acesso em: 18 set. 2011.
    » http://www.giga-hamburg.de/dl/download.php?d=/content/publikationen/pdf/wp141_schilling.pdf
  • SMITH, A.D. 1986. The ethnic origins of nations. Oxford: Blackwell.
  • SVAMPA, M.; STEFANONI, P. 2007. "'Evo simboliza el quiebre de un imaginario restringido de la subalternidad de los indígenas'. Entrevista con Álvaro García Linera, vicepresidente de Bolivia". In: MONASTERIOS, K.; STEFANONI, P.; DO ALTO, H (eds.). Reinventando la nación en Bolivia. Movimientos sociales, Estado y poscolonialidad. La Paz: Plural Editores/Clacso.
  • VICEPRESIDENCIA del Estado Plurinacional de Bolivia. 2010a. Miradas: nuevo texto constitucional. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia/Idea/UMSA. Disponível em: <http://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/texto_miradas_ncpe.pdf>. Acesso em: 18 set. 2011.
    » http://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/texto_miradas_ncpe.pdf
  • _____. 2010b. Nueva constitución política del Estado. Conceptos elementales para su desarrollo normativo. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia/Idea. Disponível em: <http://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/ncpe_cepd.pdf>. Acesso em: 18 set. 2011.
    » http://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/ncpe_cepd.pdf
  • CONSTITUIÇÃO Política do Estado de Bolívia (promulgada em 2009). Disponível em: <http://www.presidencia.gob.bo/download/constitucion.pdf>. Acesso em: 8 set. 2011.
    » http://www.presidencia.gob.bo/download/constitucion.pdf
  • CONVENÇÃO 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais. Disponível em: <http://www.institutoamp.com.br/oit169.htm>. Acesso em: 8 set. 2011.
    » http://www.institutoamp.com.br/oit169.htm
  • Documentos sobre "Visão de País" (fevereiro-março de 2007)
  • AAI (Alianza Andrés Ibáñez). Visión de país.
  • APB (Agrupación ciudadana "Autonomía para Bolivia"). La visión de un país autonómico.
  • AS (Alianza Social). Por una patria comunitaria y socialista. Hacia una reforma constitucional revolucionaria exordio necesario para los oprimidos.
  • ASP-Tapia (Alianza Social Patriótica, documento apresentado por Humberto Tapia). Visión de país. Propuesta de cambio revolucionario en democracia.
  • ASP-Vargas (Alianza Social Patriótica, documento apresentado por David Vargas). Exposición: Visión de país.
  • Ayra-Conamaq (Movimiento Ayra, documento apresentado por Evaristo Pairo, representante do Conamaq). Propuesta "Visión de País".
  • CN-PI (Concertación Nacional - Patria Insurgente). Visión de país. Patria Insurgente Sol para Bolivia.
  • MAS-IPSP (Movimiento al Socialismo - Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos). Visión de país desde las naciones indígenas y originarias y la sociedad civil.
  • MBL (Movimiento Bolivia Libre). Visión de país. Propuesta a la Asamblea Constituyente.
  • MCSFA (Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria). Discurso "Visión de País".
  • MNR-A3 (Movimiento Nacionalista Revolucionario A3, Santa Cruz). Visión de país.
  • MNR-FRI (Movimiento Nacionalista Revolucionario - Frente Revolucionario de Izquierda). Principios y políticas para la Nueva Constitución Política del Estado.
  • MOP (Movimiento Originario Popular). Visión de país.
  • Podemos (Poder Democrático y Social). Bolivia - una nación.
  • UN-Lazarte (Unidad Nacional, documento apresentado por Jorge Lazarte). Del país que tenemos al país que queremos: moderno y democrático. Cambiar nosotros mismos para cambiar el país.
  • UN-Pol Achá (Unidad Nacional, documento apresentado por Ricardo Pol Achá). Propuestas - Unidad Nacional.
  • MENDOZA, A. 2010. 4 set.
  • APATA, G. 2010. 23 ago.
  • TOLA, M. 2010. 23 ago.
  • SERHAN, G. 2010. 3 set.
  • NUNY, P. 2010. 18 ago.
  • *
    Este artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado realizada com financiamento do CNPq. Agradeço imensamente aos comentários e indicações de Bernardo Ricupero, orientador da dissertação, e de James Dunkerley, Rafaela Pannain e do(a) parecerista anônimo(a) da revista Lua Nova.
  • 1 Todas as traduções de citações e termos em língua estrangeira foram feitas pela autora. A expressão "indígena-originário-camponeses" (indígena originario campesinos) foi uma criação da nova Constituição boliviana, entendida no texto como um adjetivo único, que expressa direitos específicos dirigidos a um sujeito que amalgama essas três categorias. Ver Schavelzon (2010, pp. 71-81).
  • 2
    A vice-presidência publicou em conjunto com o Instituto Internacional para la Democracia y la Asistencia Electoral (Idea) duas extensas coletâneas de artigos com posições variadas sobre o novo texto constitucional (Vicepresidencia, 2010a; 2010b). Além disso, destacaria as interpretações que têm enxergado a nova Constituição boliviana como parte de um "novo constitucionalismo latino-americano", em conjunto com Equador e Venezuela (Martínez Dalmau, 2008). Sobre os desafios de implementação da Constituição, em especial relacionados ao aprofundamento da democracia participativa e pluralista, ver Schilling-Vacaflor (2010).
  • 3
    A Guerra da Água (2000), que reverteu a privatização do sistema de abastecimento de água em Cochabamba, e a Guerra do Gás (2003), que derrubou o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada e impôs a chamada "agenda de outubro", que pedia nacionalização e industrialização dos hidrocarbonetos, reforma agrária e Assembleia Constituinte. Esses processos de mobilização social culminaram na eleição de Evo Morales em 2005, com 53,7% dos votos.
  • 4
    Silvia Rivera Cusicanqui (1993) é uma das principais expoentes acadêmicas dessa visão. Ela identifica a antiga contradição entre colonizador europeu e colonizado índio como a principal contradição da sociedade boliviana de hoje.
  • 5
    Serão feitas apenas referências às páginas dos documentos, já que todos foram apresentados em um mesmo período/data: fevereiro-março de 2007.
  • 6
    Segundo Lazarte (2009, p. 80), esse bloco careceria de "razões argumentadas" e ofereceria somente "afirmações repetidas sobre o 'neocolonialismo', o 'neoliberalismo', as 'discriminações', os 500 anos de exploração".
  • 7
    É curioso notar como nações indígenas e povos originários não aparecem como "patriotas", o que poderia se explicar tanto pela sua reivindicação de soberania própria (seriam patriotas com relação às suas nações somente) quanto pela obviedade do seu patriotismo (intrínseco à sua condição de povos originários, que necessariamente se oporia aos interesses estrangeiros).
  • 8
    Pelo menos não no caso das proposições políticas da esquerda boliviana no contexto da Constituinte. É possível argumentar que o separatismo foi um espectro mais vivo nos conflitos entre o governo Evo Morales e a chamada "meia-lua" - os departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz e Tarija -, mas essa postura também não está explícita nos documentos dos constituintes e das forças políticas representantes dessas regiões na Constituinte.
  • 9
    Como colocou o representante dos indígenas das terras baixas, Pedro Nuny (2010): "Os povos indígenas também lutaram pela República nos distintos eventos bélicos de defesa de nosso território boliviano. Provavelmente sejam os que mais vidas sacrificaram [...]. Por isso é que nos sentimos bolivianos também, este é o nosso outro nome, outro termo em que nós nos reconhecemos".
  • 10
    Com a modificação nas leis sobre propriedade agrária durante o período republicano (a partir de meados do século XIX), tais formas de jurisdição indígena foram seriamente afetadas. Muitas comunidades indígenas do altiplano foram incorporadas às fazendas do período republicano como mão-de-obra servil, situação que duraria até a Reforma Agrária de 1953. É importante destacar que as antigas titulações coloniais foram usadas pelas comunidades indígenas durante o período republicano para combater o avanço das fazendas crioulas (Rivera Cusicanqui, 1993, p. 40).
  • 11
    O direito de consulta é um dos pontos mais polêmicos da Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais, adotada em 27 de junho de 1989. Seu artigo 6º dispõe: "1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente".
  • 12
    Tal posicionamento do MAS-IPSP é surpreendente por vir de um partido que estava naquele momento à frente do Estado e que teria também como preocupação garantir sua governabilidade, principalmente em relação à política de recursos naturais não renováveis. Sua posição pode ser explicada, contudo, pela grande presença de constituintes ligados organicamente aos povos indígenas em sua bancada. No documento final da Constituição, porém, a definição do direito de consulta não aparece de maneira ampliada e só garante mesmo que sejam feitos procedimentos formais de consulta (Art. 30, II, 15).
  • 13
    Em 2007, Álvaro García Linera, já vice-presidente da Bolívia, defende, em uma entrevista, que o governo do MAS-IPSP seria "o primeiro governo que, em séculos, se preocupa com a construção de um Estado no sentido weberiano e hegeliano do termo, como representação da vontade e dos interesses gerais da sociedade" (García Linera apud Svampa e Stefanoni, 2007, p. 154). Em sua leitura, partidos e vanguardas não substituem o potencial universalista da sociedade, mas o Estado apresenta uma "marca [huella] objetivada" desta universalidade (p. 164).
  • 14
    MBL (p. 14) e CN-PI (p. 73) comentam sobre a característica "multinacional" da Bolívia. A AS (p. 2) menciona diversas vezes a existência das nacionalidades indígenas e a necessidade de incorporá-las no sistema institucional, mas atenta que a fórmula "Estado plurinacional" pode ser uma forma de "dissimular" um "cogoverno" com a direita por não apontar por uma transição socialista clara. O documento da ASP-Vargas (p. 5) é o único que se coloca contra a ideia de plurinacionalidade, por dotar as nacionalidades indígenas do direito de "se separar".
  • 15
    Muito criticado pela oposição como demonstração dos desvios autoritários do MAS-IPSP, o Poder Social não foi incorporado no texto final da Constituição.
  • 16
    Para Lazar (2008, p. 92), o clientelismo político em El Alto não pressupõe uma relação passiva de cidadãos com o Estado, mas sim uma relação ativa, uma forma de as comunidades pautarem onde e como investimentos públicos devem ser feitos nas suas zonas: "clientelismo aqui aparece como um meio pelo qual os clientes procuram superar a despersonalização da política eleitoral e criar uma democracia local mais direta e menos delegativa".
  • 17
    A oposição não chega a propor um Estado federativo, mas algumas propostas de autonomia que defende chegam a ser até mais radicais do que a ideia de uma federação. Um exemplo seria o estatuto autonômico promovido pelo Departamento de Santa Cruz em maio de 2008, que outorgava ao Departamento amplos poderes para legislar e administrar a política agrária.
  • 18
    Gamboa Rocabado faz referência a uma única teoria constitucional, que define a Constituição como "um mecanismo que devia funcionar e produzir algo para ser cumprido a partir de estruturas baseadas em incentivos", enfoque inspirado nas formulações de Giovanni Sartori. São ignorados trabalhos que enfatizam o "novo constitucionalismo" latino-americano (Martínez Dalmau, 2008), assim como trabalhos que, contrariamente à ênfase da engenharia institucional, defendem processos constituintes inclusivos e participativos, constituições flexíveis e de conteúdo detalhado (Elkins, Ginsburg e Melton, 2009).
  • 19
    Os conflitos entre grupos indígenas e o governo Evo Morales são exemplos de como essas disputas reaparecerem tão logo a nova Constituição foi aprovada. Um dos principais conflitos é acerca da construção de uma estrada que corta o território indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), com grupos indígenas denunciando os prejuízos que serão causados às suas práticas tradicionais, e governo e grupos camponeses defendendo os benefícios econômicos da estrada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2012
  • Aceito
    04 Dez 2015
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br