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A volta e a reviravolta

A volta e a reviravolta

Francisco de Oliveira

Sociólogo e diretor do CEBRAP

Salto no aeroporto de Congonhas começo de março último, depois de quase dois anos de ausência da terrinha. Com "aquele" sentimento, já reforçado na viagem de avião: afinal, estava voando numa companhia do meu país, embora a Varig não seja, exatamente, do povo brasileiro. Não cheguei aos excessos de João Paulo II: não, não beijei a terra, não só porque não há terra no aeroporto, como porque a boca que mamãe fez não se destina a beijar a terra, oras.

A alegria da chegada durou pouco: passadas as revisões de passaporte, habituais – dirigi-me à porta onde você aperta um botão e é selecionado eletronicamente para submeter-se ou não à revisão das bagagens pela Polícia Alfandegária. Aí é que comecei a pôr os pés na "terra", não a da "pátria amada, salve, salve", mas a do arbítrio. Meu filho Miguel passou primeiro e foi beneficiado com a isenção da revisão; a mim me tocou as bagagens revistadas. Pensando em "dialogar", palavra do consenso hoje tão pregado e apregoado, disse ao senhor chefe dos fiscais que ele – o Miguel – era meu filho e como nossas bagagens eram conjuntas, se eu não estava também isento. Áspero, ele retrucou que eu iria para a revisão e se insistisse muito, o garoto também iria. E foi mais longe: já puxou o carrinho do Miguel e à força, obrigou-nos à revisão, recomendando a um dos fiscais "especial atenção para com minhas bagagens". Aí terminou o idilio.

Trabalho inútil o do fiscal, pois não costumo nem mesmo trazer as bebidas que são "direitos" dos viajantes, compradas nos "portos-livres" que todo aeroporto tem. Mesmo porque, vindo da França, não era exatamente de sede de bebida que eu vinha me saciar no Brasil. A história banal, nada exemplar como diria o autor do Dom Quixote, serve para marcar a primeira diferença: somos um país sem direitos. Vindo de uma amarga herança de fundação sobre a base de uma economia escravocrata, a sociedade brasileira foi se constituindo autoritariamente. Em lugar da tese da velha direita de que é preciso um Estado autoritário para constituir-se a Nação, o que existe, de fato, é outra coisa: o autoritarismo é a marca por excelência da formação da sociedade e as diversas formas de Estado autoritário não têm sido, ao longo de nossa história, senão a "conformação" estatal autoritária de uma sociedade intrínsecamente autoritária.

Mesmo sob a República, se fizermos as contas, apenas os escassos 19 anos que mediaram de 1945 a 1964 podem ser entendidos como algo que começava a escapar da camisa-de-força autoritária. E o fracasso do regime populista pré-64 e a posterior subida dos regimes explicitamente autoritários pós-64 têm em comum a impermeabilidade dos regimes políticos brasileiros à presença do povo na política. Não do "povo" mítico, mas concreto: dos trabalhadores e seus sindicatos, das organizações populares e suas associações e, finalmente, mesmo dos partidos políticos que se reclamam – certa ou equivocadamente – como representantes e portadores da vontade desse povo concreto.

O cidadão só existe no papel

A atitude do senhor chefe dos fiscais naquele dia em Congonhas revela, mesmo banalmente, essa marca profunda da sociedade e do Estado brasileiros. O cidadão é uma figura que não existe no direito brasileiro, senão formalmente. O que para mim foi um vexame sem maiores conseqüências, para o povo concreto revela-se no quotidiano das filas do INPS, nas conjunturas críticas das greves – sempre negadas, sempre "caso de polícia", como na República Velha – mesmo nas filas dos cartórios, onde o carimbo – reconhecimento de firma – reconhece o cidadão, e até nas operações-limpeza das batidas policiais que prendem quem está sem documento. E, entre nós que escrevemos, de onde vem o termo "periferia", usado e abusado por cientistas sociais, pela imprensa e pelos políticos, senão da negação da condição de cidadão pleno aos habitantes do que não é o "centro" da cidade? Vejam que "periferia", cuja expressão denotava uma distribuição da população pobre no espaço da cidade, a rigor hoje quer dizer "excluído", more onde morar.

Quem não é cidadão, numa sociedade onde a cidadania precisa ser outorgada pelo Estado, deve ser ladrão, contrabandista, gatuno. Foi o que fez o senhor chefe dos fiscais de Congonhas naquele dia: uma revisão "rigorosa" de minhas bagagens. Porque o Estado e seus agentes pensam e concebem o cidadão à sua imagem e semelhança: para um estado baseado no roubo e banditismo, na extorsão que vira lei mesmo escrita – os inúmeros artigos dos Códigos Civil e Penal onde a premissa maior é de que todos os cidadãos são suspeitos por definição – todo viajante é, em potencial, um contrabandista. Imagem e semelhança: o roubo das Capemis, Delfins, Coroa-Brastel, é transferido para outros: para o cidadão-contri-buinte que deve pagar o que a Ca-pemi roubou, ou para outras empresas que absorverão os patrimônios da Delfín e Coroa-Brastel. Não se nega o roubo, o assalto: se transfere a capacidade de roubar, e por esse mecanismo, a rigor se institucionaliza o roubo como a outra face dos processos econômicos de exploração.

Não é à toa que figuras como Maluf e Andreazza têm o topete de apresentar-se como candidatos à presidência da República: o que é que socialmente os sustenta? Seu aventureirismo não paira no ar: ele é uma exalação de uma parte da sociedade. Sou tentado a repetir a velha frase: Cada país tem o presidente que merece. Os Estados Unidos, de tanto martelarem na falsa saga do cow-boy, acabaram por ter por presidente um ridículo ex-ator de cinema, aliás sempre de papel secundário. O Brasil merece os Malufs e Andreazzas da vida? Não. Recuso a facilidade do jogo de palavras: é uma parte da sociedade que os merece. E mais rigorosamente: é a burguesia que os merece.

Encerrado o episódio, reintegrado na terra, no trabalho, no convívio, vi o outro lado do país, da terra sem aspas. Vi a crise, concretamente. Não através dos números frios, mesmo os das taxas de inflação acima dos 200%. Mas diretamente: que fazem as verdadeiras multidões que se concentram nas praças históricas das cidades, procurando driblar a crise através dos mil expedientes? Procurar sobreviver, através da venda de qualquer bagulho ou da prestação de serviços que a linguagem asséptica dos economistas chama de "informais": um jogo de soma zero que raia até os umbrais da economia simbólica, onde é o simples ato de trocar ou vender que assegura a não exclusão total e irremediável da sociedade de mercado; não se trata nem de ter "lucro", palavrão conceituai: trata-se de não ser excluído, de não ficar soterrado exatamente naquelas "periferias", espécie de Admirável Mundo Novo de onde não mais sairão.

Isso revela, por outro ângulo, a absoluta falta de direitos na sociedade brasileira: o trabalhador não tem um seguro-desemprego, não dispõe de nenhum mecanismo de defesa ante uma crise, a mais implacável de nossa história contemporânea. E ainda se assiste e se ouve declarações de autoridades que, no day-after da rejeição da emenda Dante de Oliveira, tratam de distinguir manifestantes legítimos dos "baderneiros". Um simples jogo de palavras, acautelamento para não amplificar os ensaios de saque? Não; a linguagem da exclusão, o reforço da exclusão autoritária, que à maneira da República Velha instaura como legítimo apenas aquele que tem propriedade: quem está desempregado não tem nem a propriedade do seu emprego, logo não pode fazer manifestações.

Passando da defensiva à ofensiva

Mas, para quem volta, o surpreendente nisso tudo é a admirável resistência popular, que da defensiva passou à ofensiva: que, através da campanha das eleições diretas-já, entrou na política rompendo o bloqueio elitista e institucional. Vi o magnífico comício-passeata do dia 16 de Abril do Anhangabaú. Levei pela mão o Miguel, cuja idade o livra ainda de não amargar nunca ter votado, para participar de seu primeiro comício, seu primeiro ato de minicidadão, gritando, cantando, vibrando: escrevo com cuidado que nós não nos somamos às multidões – linguagem freqüente entre os políticos que assim dizem que não são parte das multidões –, pois nós éramos da multidão.

E vi outra coisa magnífica: que o povo concreto – trabalhadores, sindicatos, partidos políticos reconhecidos e proscritos, associações – está muito além do regime, do que se convenciona chamar "classe política", dos militares, das médias e grandes burguesias. Esta é a lição mais importante da crise. E é por isso que ela é tão temida. O regime manteve até aqui o simulacro de uma sociedade que se representa: parlamento, assembléias, eleições. O povo concreto vem transformando-as em seu oposto. Tomando as eleições para si, vem transformando-as no limite do regime; cantou-se no Anhangabaú o "cisne branco" – hino da Marinha –: eleições diretas-já, canto de cisne do regime.

Os amplos movimentos de massa resgataram as eleições da abstração para dar-lhes um conteúdo concreto: para mudar o regime político e o sistema econômico, irmãos xipófa-gos. É isso que assusta. E por isso o assanhamento, a mal contida alegria, o despertar do pesadelo, depois da rejeição da emenda Dante de Oliveira: grande-burgueses, tec-nocratas do bando do assalto aos cofres do Estado, milicos, aventureiros malufo-andreazzistas, oportunistas aurelianistas, rejubilaram-se, correndo num frenesi de vermes na carniça, em direção à... negociação.

Por isso, é preciso prosseguir. Encostar o regime na beira do abismo e empurrá-lo, vazio abaixo. Não dar folga nem deixar recuperar o fôlego. Foi boa a volta, para viver a reviravolta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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