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Subúrbio

Subúrbio

Modesto Carone

Escritor e professor de Teoria Literária na UNICAMP

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O trem cruzava a Barra Funda quando me apoiei no vidro da janela e vi Eleonora debruçada sobre as grades do viaduto. Embora fosse noite as nuvens retinham no alto um halo incandescente; talvez por isso os traços do rosto se recortassem no escuro e o vestido parecesse iluminado. De qualquer modo o espanto me fez recuar contra os passageiros; ninguém protestou porque estavam todos entorpecidos pelo cansaço. Mesmo assim consegui abrir caminho até a porta do vagão e descer na primeira parada; a essa altura a plataforma se esvaziava e o rumor das escadas atingia o topo da rua. Como não achasse nenhuma condução na porta resolvi voltar a pé ao viaduto; afinal a pasta que eu trazia continha só papéis e a ansiedade me arrastava para o asfalto. Enquanto eu seguia a trama das vielas procurava não perder de vista a imagem inusitada; pois desde a adolescência não me vinha mais à mente uma visão tão clara de Eleonora.

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Sem dúvida a esperança de encontrá-la se desfez assim que subi os degraus que dão para o viaduto. Eu tinha pressentido o desenlace ao tocar o corrimão com a ponta dos dedos – o metal estava úmido e não registrava o mínimo passo. Apesar de tudo caminhei até o ponto mais elevado da pista: uma nuvem de fuligem se espalhava dos armazéns à estria dos dormentes. Foi atraído por ela que venci o desconforto e me aproximei das grades de ferro; nada. Só então reparei que um trem apontava na rampa da Barra Funda; mas não descobri o menor vestígio nos caixilhos cor de prata.

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A partir dessa noite não deixei mais de tomar o subúrbio: mal bato o ponto no escritório corro até a estação, compro a passagem e aguardo o primeiro trem da Zona Oeste. Minha grande preocupação é garantir um lugar perto da janela – uma luta difícil porque são os mais procurados. Logo que me sento faço um esforço concentrado para enxergar o que se passa do outro lado do vidro, uma vez que ele reflete em toda a extensão o movimento interior da cabine. Essa dificuldade me exaspera a ponto de sentir as juntas do corpo estalarem; é ao fim de algum tempo que alcanço o controle necessário para desempenhar minha missão. Basicamente ela consiste em contar os postes da estrada de ferro até a curva do viaduto e depois erguer os olhos para a estrutura de aço; quando a locomotiva apita embaixo, eu me fixo nas grades. Em geral a essa hora o sino da capela está soando; nos segundos de que disponho esquadrinho a área invocando o nome de Eleonora. Urna palpitação vigorosa se apodera dos meus músculos e me faz saltar do assento; só volto a me acomodar depois que o vagão ultrapassa o viaduto. Daí para a frente é irrelevante se prossigo ou não a viagem; basta dizer que o vestido de Eleonora e o rosto inflamado se confundem no escuro com a minha melancolia.

4

Foi diante disso que negligenciei definitivamente meu trabalho. De fato já não suporto o toque regular das máquinas nem o desembaraço dos colegas. Eles continuam tão voltados para as suas tarefas que não percebem o sol atrás das vidraças; assim que a noite chega picotam os cartões na saída do prédio e vão para casa sem o consolo de uma descoberta. Estou ciente de que a minha ainda é precária, mas pelo menos eu a tenho perante os olhos; tanto que não espero o fim do expediente para ir à estação: enquanto disparo pela calçada sinto na boca do estômago a vertigem do viaduto. Isso explica que a partida seja sempre carregada de tensão; mas me disci-plinei de tal modo que não dou muita importância a ela. Na realidade, antes mesmo que a composição saia do lugar eu já estou tranqüilo; só me crispo à vista da curva na Barra Funda; pois é nesse momento que grito o nome de Eleonora com a força que me resta nos pulmões. Já aliviado dirijo-me à porta automática e examino os passageiros – ninguém ouve a voz que o ruído das rodas nos trilhos abafa por completo; nessa circunstância não tenho outra coisa a fazer senão desembarcar na estação seguinte e ir dormir em paz. É certo que a impassibilidade de Eleonora às vezes me tira o sono; mas a idéia de que um dia ela possa atender aos meus apelos me deixa fascinado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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