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A versão Lula

A versão Lula

PERGUNTA – Como você vê a transição do autoritarismo para a democracia no Brasil?

LULA – Existem duas formas de se fazer a transição do regime autoritário para o regime democrático. A primeira, como todos queremos, no Brasil, é disputando com o regime; ou seja, ganhando do regime pelo voto secreto e, a partir daí, fazendo as mudanças necessárias para democratizar o país. Eu acho que esta é a forma que pode levar a um regime democrático sólido e efi-caz, na medida em que o povo participa da sua construção.

A outra forma de transição implica a responsabilidade de as oposi-ções arcarem com o ônus político de aceitar as imposições do regime autoritário que, ao invés de deixar o poder de vez, quer sair paulatinamente. Quer dizer: aos poucos vai-se abrindo o espaço para as oposi-ções assumirem. Mas, quando o regime autoritário chega a isso, é porque a sua situação econômica já não permite mais a sua continuidade, pois comprometido com o sistema econômico internacional, o regime não pode mudar o quadro. Então, ele tenta abrir as portas para que outros façam as mudanças que ele não pode fazer. Me parece que isto é um pouco o que acontece no Brasil.

Eu acho que esta forma de transição não é eficaz. Na minha opinião ela não é prudente, neste momento, porque o regime autoritário, no Brasil, é tão decadente, tão comprometido com o processo de corrupção e de entrega do país aos interesses multinacionais que ninguém de oposição deveria assumir, mesmo um governo de transição, sem colocar toda esta situação de modo muito claro para a população.

A transição é muito mais eficaz quando o povo participa das decisões. Esta é a proposta do Partido dos Trabalhadores. O que a gente quer é que o povo brasileiro saiba, detalhe por detalhe, cada decisão tomada pela oposição e pelas pessoas que podem chegar ao governo. Isso para permitir que, amanhã, o povo possa cobrar o governo.

Não se pode falar, no Brasil, de um pacto como o de Moncloa, ocorrido na transição espanhola. Primeiro porque a tradição dos partidos políticos na Espanha é secular, eles eram muito fortes; segundo porque existia, na Espanha, um movimento sindical que, mesmo na ilegalidade – com as Comisiones Obreras e as outras organizações –, estava sempre mobilizado e criando grandes embaraços para o regime franquista. Além disso, na Espanha o rei bancou o pacto e, aqui no Brasil, além de não termos rei, o regime não tem autoridade moral e política para bancar algo dessa natureza. Então, não se pode comparar a experiência espanhola com a do Brasil. A gente não pode, pura e simplesmente, transportar a experiência histórica de um país como a Espanha para cá, para justificar um acordo com o governo.

Nós não podemos confundir acordo com transição. Eu acho que acordo não leva, necessariamente, ao governo de transição, mas sim a um governo imobilista, a um governo muito mais comprometido com o poder do que com o povo.

Os dez pontos do Partido dos Trabalhadores

HAMILTON – Você falou de duas hipóteses de transição: a primeira através de eleições diretas, a segunda através de concessões. A hipótese das diretas o regime descarta, enquanto a de concessões, quem descarta é você. Qual o caminho que resta, então?

LULA – Em primeiro lugar, é preciso salientar que o governo não está fazendo nenhuma concessão às oposições. Na verdade, são alguns setores da oposição que fazem concessões ao governo. Aí a coisa muda de figura. Uma coisa é quando você tem uma posição sólida, enraizada no movimento popular e com forte poder de pressão, o que leva o governo a vislumbrar a possibilidade de perder o poder e, então chama a oposição para negociar, senão a entrega total, ao menos a entrega parcial do poder. Hoje, no Brasil, acontece exatamente o inverso: na medida em que o povo foi à rua e deu um aval à oposição, esta, ao invés de continuar a mobilização popular para conseguir mais força, fraqueja e alguns dos seus setores começam a fazer concessões ao governo: concessão no discurso, concessão nas propostas... Isso reverte o quadro. As eleições diretas podem ser aprovadas no Congresso Nacional se se criar um clima favorável para as oposições conquistarem as diretas. Este clima não está sendo criado porque há setores que estão tentando desmobilizar a população. Eu acredito, ainda, que nós podemos democratizar a legislação partidária, legalizar os partidos clandestinos, mudar a estrutura sindical e, depois, convocar as eleições diretas com todos os partidos concorrendo para chegar a um governo de transição: isso se faz colocando o povo na rua, organizando-o por bairro, por local de trabalho, e pressionando o governo.

O diretório nacional do PT definiu, recentemente, dez pontos que acreditamos que sejam essenciais para solucionar a crise no Brasil e é em torno deles que tentaremos reunir o mais amplo arco de forças sociais, em busca da democratização do país. Os pontos são os seguintes: 1. Revogação da Lei de Segurança Nacional e todas as leis repressivas, bem como os dispositivos constitucionais sobre medidas de emergência e o "Estado de Emergência", além do desmantelamento do aparato repressivo; 2. Rompimento imediato com o Fundo Monetário Internacional e a imediata suspensão do pagamento da dívida externa, seguida de uma investigação de caso por caso; 3. Imediato reajuste salarial para todos os trabalhadores, com base na inflação dos últimos seis meses, e a adoção, daí por diante, da escala móvel de salários; 4. Criação do salário desemprego e a adoção de medidas econômicas para gerar empregos, em grande escala, para as diversas regiões do país; 5. Reforma agrária sob a direção e controle dos trabalhadores e que garanta terra para quem nela trabalha; 6. Restabelecimento da liberdade e autonomia sindicais, com o reconhecimento efetivo do direito de greve, e o desatrelamento da estrutura sindical do Estado; 7. Reformulação, com a participação dos trabalhadores, das leis sobre trabalho, salário, previdência social e aposentadoria; 8. Atendimento de emergência às necessidades básicas das populações mais carentes em termos de alimentação, saúde, habitação, educação, transporte, vestuário, recreação, lazer e cultura, com fundos provenientes dos lucros das multinacionais, grandes proprietários rurais e sistema bancário e financeiro; 9. A mais ampla liberdade de organização partidária, inclusive para as correntes hoje consideradas ilegais, o restabelecimento das eleições diretas para prefeitos de todos os municípios, inclusive aqueles considerados áreas de segurança nacional, a renovação da lei Falcão, da lei das inelegibilidades, dos casuísmos, da legislação partidária e eleitoral e de quaisquer restrições à livre propaganda e ao direito do voto que deve ser estendido aos analfabetos, soldados e cabos; 10. Solidariedade com os povos de todo o mundo que lutam contra o imperialismo e a opressão de governos antidemocráticos; o restabelecimento das relações diplomáticas, culturais e comerciais com Cuba e o reconhecimento da Frente Farabundo Marti, como legítima representante do povo salvadorenho. Eu acredito que um governo que proponha esses compromissos vai possibilitar que estas reformas de base sejam assumidas por toda a sociedade que, com total liberdade de organização, criará condições para que todas as forças políticas participem efetivamente das decisões deste país.

Ganhar tempo e limpar as gavetas

HAMILTON – Esse governo poderia ser resultado da negociação?

LULA – Não, teria que ser escolhido através de eleições diretas.

HAMILTON – Sim, mas e se o Congresso não aprovar as diretas e, num processo de negociação entre setores das oposições e o governo, você foi convidado a participar de um governo de transição...

LULA – Veja bem: eu não acredito que o governo negocie o poder. A transição, para o governo, é mais uma forma de ganhar tempo para uma limpeza de gavetas destinada a esconder o que existe de corrupção e arbítrio. Por outro lado, um governo que assuma sem as eleições diretas para presidente da República vai assumir subordinado ao que está aí. A avaliação do PT é a de que todo e qualquer acordo feito pelas elites é apenas a confirmação daquilo que é a história do Brasil: toda vez que o povo brasileiro ou as classes trabalhadoras começam a se organizar e a adquirir consciência, as elites se unem para evitar que o povo continue a sua marcha, para tentar manipulá-lo, usá-lo como marionete para que não conquiste os seus objetivos. Eu tenho afirmado que se o Partido dos Trabalhadores quiser contribuir para a formação política deste povo e a formação histórica da Nação, não pode participar de acordos mesmo porque, reafirmo, a gente não vai conseguir, na situação atual, um acordo decente com o regime. Questões básicas como as mencionadas, reforma agrária, autonomia sindical, salário mínimo condizente com as necessidades reais do povo, política de pleno emprego e todas essas coisas não encontrarão, nas elites, quem esteja disposto a ceder para a classe trabalhadora.

Depois, eu acho também que é impossível o entendimento para se chegar a um acordo, porque não conheço na história do mundo ninguém que entregou o poder através de um acordo. Depois, porque se as oposições estivessem fortes e organizadas não fariam um acordo, mas tomariam o poder. Por estas duas razões, eu não acredito em acordos: de um lado, o governo não quer, e de outro, as oposições não têm, ainda, suficiente força acumulada para fazer o governo ceder diante daquilo que queremos.

HAMILTON – Há quem diga que essa posição é de intransigência e gera o impasse...

LULA – A imagem do impasse que está sendo criada pelos meios, de comunicação precisa ser desfeita. Na verdade, o impasse já existe para a classe trabalhadora. O desemprego é uma forma de impasse; quando se consegue emprego é o impasse do salário; com o salário vem o impasse da assistência médica, se se consegue a assistência médica é o impasse da saúde e quando consegue a saúde é mandado embora... Daí eu pergunto: o que ganhamos com um acordo com o regime? O que interessa agora é a eleição direta, porque ela, sim, abre a perspectiva de mudar o regime... As oposições têm que pagar para ver e não fazer oposição de brincadeira. Tem que dizer ao governo que não vai ao Colégio Eleitoral porque sabe que a divisão do PDS é estratégica, e mostrar ao regime que é ele quem deve arcar com a escolha de um presidente da República sem nenhum respaldo popular. Se as oposições ficarem com medo, imaginando que haverá retrocesso, a coisa vai ficar feia e o governo vai tirar proveito dessa fragilidade.

As oposições não podem ficar a vida inteira discutindo a possibilidade ou não de um impasse, mesmo porque o impasse faz parte da vida política e é através dele que se consegue colocar a casa em ordem. Existe, em política, um negócio chamado medição de forças: se o regime tem mais gente no Congresso, as oposições têm muito mais gente nas ruas...

Organizando, retomar o anseio de participação

HAMILTON – Então, qual é o caminho que você aponta?

LULA – A gente tem que retomar o anseio de participação popular que havia até o dia 25 de abril. Temos que sair da fase das grandes manifestações para organizar a população, porque não basta, pura e simplesmente, o povo ir às ruas e gritar "diretas-já"; este povo precisa se auto-afirmar, em termos organizativos, nos seus bairros e nos seus locais de trabalho. É preciso inventar mil formas de manifestações, desde os "panelaços", passeatas, minicomícios, mini-assem-bléias, planfetagens e murais, até chegar às condições para, junto com o movimento sindical, a CUT e a CONCLAT, assumir a greve geral, não como um empecilho, mas como uma arma política da classe trabalhadora para a conquista de algumas das suas principais reivindicações.

O movimento pelas diretas não pode mais jogar o seu peso só sobre o Congresso Nacional que não aprovou as diretas e deixou o povo desanimado e frustrado. O Congresso precisa ser legitimado, mas quando todos tiverem total liberdade de organização e todas as correntes políticas da sociedade puderem disputar em igualdade de condições. Ou seja, cada líder político precisa desenvolver a política do feijão com arroz, cada liderança responsável por um sindicato, uma comunidade, um partido político tem que recomeçar as reuniões por bairro onde mora, por local de trabalho, para discutir com as pessoas as razões por que queremos as eleições diretas-já: queremos mudar o regime e as estruturas políticas deste país e não apenas eleger o próximo presidente da República.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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