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Ecologia e recursos energéticos no debate político da Itália

ESPECIAL

Ecologia e recursos energéticos no debate político da Itália

Enzo TiezziI; Riccardo BasosiII

IQuímico-físico, diretor do Departamento de Químico da Universidade de Siena, Hollo; autor de Tempi Siorici. Tempi Biologici. Ed. Garzanti

IIQuímico-físico, professor da Universidade de Sieno. Itália, professor-visitante do Medical College) of Wisconsin (USA)

1. Questões teóricas

Se é verdade que a riqueza é a condição necessária para a libertação frente à miséria, a História demonstrou freqüentemente que ela não pode ser considerada uma condição suficiente, dependendo do uso que dela é feito.

Um uso correto da riqueza e dos recursos naturais é sua aplicação num processo de desenvolvimento cujos aspectos qualitativos são tanto mais essenciais quanto mais se trata de países relativamente atrasados no plano científico e tecnológico. E justamente na maior atenção aos aspectos qualitativos do desenvolvimento antes que nos maus exemplos "quantitativos" do modelo ocidental, que pode ser encontrada uma solução irreversível aos problemas da miséria e, simultaneamente, da conservação dos recursos naturais.

Os países em vias de desenvolvimento que a criticamente tomaram o caminho proposto pelos modelos econômicos de tipo norte-americano têm ou terão o máximo de concentração de poluição e urbanização juntamente com a criminalidade, desemprego e, em última instância, pobreza.

É melhor uma sociedade em "desenvolvimento" apoiada no uso de energia e recursos renováveis que uma sociedade em "crescimento" baseada apenas no saque e na poluição. Se não se encontrarem formas para dar uma resposta correta ao grande desafio do controle da interdependência econômica e ecológica, nossos filhos se encontrarão, em breve, vivendo numa "sociedade pré-agrícola" ao invés de num país "pós-industrial".

Talvez seja necessário acrescentar uma reflexão de ordem teórica sobre esta questão-chave, que se refere ao equacionamento de um desenvolvimento econômico correto, que em suas linhas essenciais pode ser proposto tanto para nós, na Itália, quanto para o Brasil.

O ponto de partida do raciocínio é a observação de Kuhn, um dos maiores filósofos da ciência vivos e professor em Harvard, de que o passar do tempo traz anomalias que a teoria existente não está mais em condições de explicar. A separação entre teoria e realidade pode se tornar enorme e, conseqüentemente, causa de graves problemas. É justamente o que está acontecendo hoje com as teorias sócio-econômicas vigentes, sustentadas por axiomas científicos baseados na fé, e a realidade natural do planeta.

Este fenômeno tem um nome na filosofia da ciência: chama-se "troca de paradigma". O novo paradigma representa, em relação ao velho, uma clara evolução: novos critérios, novos valores, novas categorias, inclusive o conceito de tempo não mais reversível, mas irreversível como em todos os processos biológicos e termodinâmicos reais. O exemplo mais famoso que Kuhn nos traz é o da evolução biológica e da teoria de Darwin. A grande novidade era a presença de um novo parâmetro no estudo das espécies existentes: justamente o tempo. Uma visão completamente diferente da realidade que os grandes cientistas daquele momento histórico — os melhores entre eles, os mais velhos, os mais respeitados — não entenderam ou não quiseram entender. O próprio Darwin dizia: não posso exigir que os meus melhores colegas, que utilizaram toda sua vida trabalhando com um modelo, com uma teoria (o velho paradigma), aceitem uma teoria tão diferente (o novo paradigma). A mesma coisa acontece hoje em relação às questões do meio ambiente. Pela primeira vez na história da humanidade surgem algumas crises que poderiam envolver todo o planeta. O problema demográfico, a possível modificação permanente da atmosfera e do clima, o risco de um conflito nuclear e o esgotamento dos recursos energéticos, ou melhor, os limites colocados pela natureza para o seu uso. São estas as quatro questões mais visíveis de uma nova crise global (do meio ambiente, energética, econômica), que envolve todo o equilíbrio biológico. A crise é a conseqüência lógica de um uso absurdo, tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto de vista físico-termodinâmico, dos recursos do solo, da natureza e do homem. Os recursos do solo considerados, erroneamente, inesgotáveis; a natureza considerada, erroneamente, um sistema em condições de recuperar eternamente as danos sofridos; o homem considerado, erroneamente, apto a receber sem conseqüências as agressões químicas e psicológicas ou, de qualquer forma, capaz de dominar processos de desequilíbrios de dimensões planetárias com suas próprias habilidades e tecnologias.

As capacidades tecnológicas do homem criaram um sistema artificial cuja potencialidade de modificar a natureza é enorme. Geralmente estas modificações se traduzem na destruição de algumas espécies biológicas ou do patrimônio genético, implicando a destruição da complexidade biológica; na redução da diversificação e da possibilidade de adaptação às mudanças; em explosões de determinadas populações, quase sempre simples ou simplificadas, enfim, na maior vulnerabilidade. Disso se depreende que uma análise sócio-econômica séria não pode prescindir do conhecimento científico dos grandes equilíbrios biológicos e do peso que, neles, têm os conceitos da renovabilidade e da limitação dos recursos, bem como das leis da termodinâmica.

Bilhões de anos, com uma complexidade e uma evolução que não se pode repetir, foram necessários para criar o patrimônio biológico de uma espécie; nas próximas décadas a intervenção do homem será responsável pelo desaparecimento de uma espécie existente a cada quinze minutos.

A responsabilidade pelo meio ambiente assume então um papel fundamental nas escolhas políticas e econômicas e coloca-se com extrema urgência o problema de uma divulgação, em todos os níveis, de uma cultura ecologista séria.

As novas condições do planeta, agredido por um modelo energético concentrado em unidades de produção gigantescas, mudaram radicalmente em poucos anos. A chuva tem hoje uma acidez dez vezes maior que a que caía nos tempos de nossos avós, e as centrais elétricas movidas a carvão têm neste fenômeno um papel extraordinário. As usinas nucleares despejam na agricultura e nas espécies vivas partículas radiativas que não estão presentes nos ciclos naturais, algumas delas completamente ausentes do planeta Terra, artificiais, com resultados imprevisíveis para as futuras gerações. Nesse sentido, George Wald, prêmio Nobel para a medicina e a biologia, afirma que cada dose de radiação é uma overdose.

Poucos anos na história estão desordenando equilíbrios biológicos milenares. As tecnologias apoiadas em energia não-renovável e de alto risco estão no banco dos réus e, de fato, à luz de novas descobertas se tornam velhas e superadas. A termodinâmica, e particularmente o conceito de entropia, e a evolução biológica, com base em seu novo paradigma, demonstram claramente que alguns ramos das velhas teorias científicas, estáticas e mecanicistas, são inadequados para explicar a realidade. Entre as teorias inadequadas estão certamente a tecnologia nuclear e as teorias econômicas favoráveis ao aumento indiscriminado do produto nacional bruto, que representa cada vez menos um índice de bem-estar e desenvolvimento. A palavra "desenvolvimento" é bem aceita no novo paradigma biológico, ao contrário da palavra "crescimento".

É importante assinalar que a transição para um novo paradigma implica um confronto com a natureza e nunca como hoje este discurso foi tão importante. Trata-se obviamente do problema dos valores. A questão dos valores, escreve Kuhn, pode encontrar uma resposta apenas em termos de critérios completamente externos à ciência normal, e é esse recurso a critérios externos que torna revolucionários os debates a respeito dos paradigmas mais evidentes. Está em jogo algo mais fundamental que critérios e valores. Os paradigmas não fazem apenas parte da ciência, mas eles são"também parte da natureza".

Resulta disto uma "concepção evolutiva da ciência" que, por outro lado, com suas descobertas, com sua tecnologia, com sua forma de mudar o ambiente, é resultado da natureza e do processo evolutivo. O problema é o de selecionar as escolhas certas, de ter a coragem da autocrítica e de abandonar os mitos tecnológicos não-controláveis de crescimento ilimitado e de manipulação de alto risco da matéria, sob pena de comportar-se como o aprendiz de feiticeiro, que atua com.base em conhecimentos perigosamente incompletos, desenvolvendo experiências que fogem ao seu controle e colocam em risco o própro equilíbrio do planeta. O realismo ecológico rompe com a racionalidade econômica. Uma nova geração de cientistas e de pesquisadores rompe com uma velha geração muito confiante nas especializações tecnológicas.

Passaram-se mais de cem anos desde quando Max Planck colocou os fundamentos das leis da termodinâmica que Einstein considerava as leis fundamentais da ciência; mais de cem anos desde a descoberta da teoria da evolução biológica; mais de cem anos desde a introdução na ciência de um novo conceito de "tempo", mas muitas teorias sócio-econômicas dominantes, muitas escolhas energéticas continuam a ignorar a existência destas idéias, as condenando a cem anos de solidão, como o clã dos Buendia no romance de García Márquez.

2. Não existe uma boa tecnologia nuclear

Elementos deste debate, sobre a possibilidade ou não de uma opção nuclear limitada, se encontram não apenas no interior da esquerda brasileira, mas é geral na esquerda internacional. Mas os recentes posicionamentos da social-democracia alemã e do Partido Trabalhista inglês e o quadro geral depois de Chernobyl são fatores que apontam o desenvolvimento cada vez mais claro do abandono total da opção nuclear, pelo menos no que se refere às posições da esquerda européia tradicional e parlamentar.

Nesse debate a nossa posição contra a política nuclea", pacífica ou não, é muito clara e totalmente apoiada sobre considerações científicas. Apresentamos, de forma resumida, algumas das motivações mais significativas que podem ser consideradas válidas para países tão diferentes entre si como a Itália e o Brasil.

As usinas nucleares, em condições de bom funcionamento, servem para produzir energia elétrica, que é uma forma de energia muito nobre e muito cara, mas que não esgota os principais aspectos de consumo de energia de um país.

Grande parte do consumo energético de tipo industrial, domiciliar e outros de um país desenvolvido ou não, é térmico, isto é, energia sob a forma de calor sob diferentes temperaturas. Por exemplo, na Itália, 65% da energia total utilizada são de energia térmica, apenas 15% são de energia elétrica. Para um país menos desenvolvido é razoável a expectativa de uma situação mais desequilibrada. As usinas nucleares, com uma enorme mobilização de capitais, podem, na melhor das hipóteses, contribuir com uma pequena porcentagem "estruturalmente" limitada do consumo elétrico. A insistência em se propor o caminho nuclear se justifica apenas no caso em que se queira seguir uma política de "tudo elétrico", como a da França, estimulando artificialmente necessidades elétricas no uso industrial, doméstico e outros, de forma que o consumo permanece coerente com uma oferta excessiva. Isto se explica apenas num contexto de desenvolvimento estratégico-militar que escapa completamente a critérios de "conveniência" energética pura. A opção nuclear, no fundo, é funcional a uma lógica de desperdício de recursos e contraditória com a racionalidade termodinâmica, isso porque propõe um modelo baseado numa lógica de oferta de energia totalmente afastado de uma avaliação articulada da qualidade da demanda energética. Na Itália, por exemplo, os sete milhões de aquecedores elétricos domésticos de água representam um consumo equivalente ao que produz uma grande usina nuclear, enquanto que as necessidades domiciliares de aquecimento de água poderiam ser atendidas facilmente pelo metano ou pelo calor residual produzido pelas usinas elétricas tradicionais, que ê normalmente descarregado no meio ambiente, tendo como resultado uma grande poluição física.

As usinas nucleares, para responderem às exigências de uma economia de escala próprias deste tipo de tecnologia, exigem obras e equipamentos de grandes dimensões, coerentes com um modelo econômico centralizador e tendencialmente autoritário, e que considera incômodos, apesar de tudo, os controles indispensáveis da atividade tecnológica por parte das instâncias políticas democráticas.

Sem insistir nos riscos de militarização que estão embutidos nessa opção, é estúpido subestimar as fontes energéticas alternativas que possuem, estruturalmente, uma natureza descentralizadora, baseada em pequenas dimensões e que permite adequar a oferta à demanda efetiva sem desperdícios de recursos e com evidentes benefícios, inclusive de natureza econômica.

As fontes alternativas e a poupança energética, além de serem decisivamente mais seguras e compatíveis com o ambiente, permitem o desenvolvimento do setor de eletrônica, de engenharia de sistemas e, em geral, de tecnologias avançadas amplamente superiores àquelas que a tecnologia nuclear permite. Estes conhecimentos, para ficarem realmente à disposição em todo planeta, reclamam um real equacionamento e uma transferência de know-how que poderá dar um enorme impulso às capacidades locais que existem e estão disponíveis também fora dos países industrializados.

Os recursos energéticos renováveis — solar, eólico ou dos ventos, biomassa ou energia obtida da decomposição de produtos orgânicos como lixo, esgoto, etc, hidráulicos, geotérmicos, aproveitando o calor natural do interior da terra, etc. — estão geralmente disponíveis em muitos lugares e em dimensões praticamente infinitas: o sol envia para a Terra uma quantidade de energia dez mil vezes superior ao consumo mundial; somente as biomassas representam dez vezes o consumo energético da Terra.

Vale também a pena considerar que a poupança energética de parte dos países industrializados efetivamente possível com o desenvolvimento das citadas tecnologias é da ordem de 20 a 25%, o que tornaria disponível para os países em vias de desenvolvimento mais de um bilhão de toneladas equivalentes de petróleo por ano, o que representa aproximadamente o dobro do consumo anual desses países. Também sob este ângulo a contribuição da energia nuclear, cerca de 4 a 5% do consumo total, resultaria irrelevante.

Pode parecer excessivo repetir as razões do "não ao nuclear" do ponto de vista dos problemas que traz para o campo sanitário e de segurança, problemas que, após Chernobyl, se tornaram familiares para a opinião pública em geral. Mas todos aqueles que sustentam ainda a validade da escolha nuclear se apressam em acrescentar que esta mesma escolha deve se realizar em condições de máxima garantia de segurança e saúde da população. Mas qual saída pode ser dada nesta confiante espera dos setores econômicos e políticos? A atual tecnologia nuclear utiliza maquinaria de grande complexidade, constituída por milhões de componentes (alguns subsistemas são inteiramente tradicionais: bombas, tubos, válvulas), sujeitos à deterioração e quebra. Reduzir a intervenção de emergência do operador humano com o objetivo de evitar erros implica a fabricação de dispositivos de controle informatizados que tornam ainda mais complexo o sistema, pelo que, conforme ensinam as disciplinas relativas às probabilidades, mais dificilmente controlável. Isto é o que só pode oferecer no plano da segurança: aumento exponencial dos custos para equipar as instalações de outros sistemas de segurança não correspondem a significativos ganhos de confiabilidade.

Em conseqüência, há a possibilidade de catástrofes com dezenas de milhares de vítimas. Mas, mesmo em condições de funcionamento normal, populações e trabalhadores estão expostos àquelas pequenas doses de radiatividade capazes de desencadear, mesmo em prazos longos, os mecanismos do câncer e leucemia.

Frente aos riscos, a comparação com os benefícios demonstra que mesmo que se utilizem os métodos de cálculo certamente criticáveis do KWH nuclear das empresas de eletricidade, mesmo que se incluam nesses cálculos o custo "real" da usina nuclear, não será possível justificar o risco com avaliações de natureza econômica.

Além disso, há a questão do "lixo" nuclear. A questão dos detritos radiativos que se produzem no fim do ciclo do combustível nuclear é, paradoxalmente, uma questão preferencialmente moral e política, mais que técnica. Do ponto de vista técnico, de fato, a explicação é muito breve: não existem atualmente métodos científica e tecnologicamente confiáveis para resolver o problema. À pergunta sobre a possibilidade de métodos de tratamento desses materiais que garantam, no decorrer de milhares e milhares de anos, durante os quais permanecem radiativos, que não entrem em contato com o mundo vivo, a resposta é: não. O problema se torna, portanto, um problema moral e político. O "lixo" nuclear representa, como se sabe, um risco à saúde não somente e não tanto para as populações contemporâneas à utilização da usina nuclear geradora de eletricidade, mas sobretudo para as gerações futuras: não é, portanto, admissível jogar para os milhares das gerações futuras um problema aberto por uma geração que não está capacitada a resolvê-lo. Esta geração apenas pode esperar que, no futuro, alguém esteja em condições de fazê-lo de forma definitiva ou, provisoriamente, a cada milênio se organize e se pague a guarda e sobretudo a memória do "lixo" nuclear existente.

Pode-se hoje dizer que os vários métodos utilizados no passado para a alocação do "lixo" de alta radiatividade e com longo tempo para o esgotamento de sua vida radiativa não foram aceitos como razoáveis ou satisfatórios, com exceção de um, em relação ao qual hoje se concentram os estudos e os debates: trata-se do depósito em formações geológicas profundas. Depósito no subsolo, colocação no fundo do mar, nos gelos antárticos ou em formações profundas sob o mar, envio extraterrestre por meio de tecnologias espaciais, transformação dos elementos em outros elementos menos tóxicos ou cuja radiatividade se esgote em menos tempo: estes são todos métodos insatisfatórios.

O método de depósito em formações geológicas profundas prevê a inserção do "lixo" ou resíduos radiativos — alguns dos quais (iodo 129, netúnio 237) têm tempo de esgotamento de radiatividade da ordem de milhões de anos — num meio vitreo: os materiais assim produzidos, guardados em containers especiais, seriam depois colocados em depósitos situados, justamente, em formações geológicas profundas, como granitos, formações de sal ou argilosas. O primeiro ponto em discussão na comunidade científica refere-se à possibilidade de garantir, ao menos por milhares de anos, a integridade do meio vitreo. No atual estado tecnológico não se pode afastar em absoluto a possibilidade de haver um vazamento de radionuclídeos. No caso em que haja o vazamento, a garantia dos materiais radiativos não vazar para o meio ambiente ficaria como atribuição da própria natureza geoquímica da rocha do depósito que, segundo sua estrutura, poderia exercer uma espécie de barreira natural contra a difusão dos radionuclídeos, isto na medida em que as condições favoráveis do ambiente geológico e da estrutura química dos radionuclídeos se mantivessem no tempo.

Há exemplos muito conhecidos de isolamento natural e espontâneo no tempo, mas estes infelizmente não representam o caso geral.

Se isso não acontecesse, a difusão de radionuclídeos seria possível, tendo como causa a circulação de água, ainda que mínima, e, novamente, todos concordam com relação ao fato de que não existe qualquer formação geológica para a qual se possa excluir por muito tempo um risco desse tipo.

Em conclusão, nos parece inevitável a tomada de consciência de que os procedimentos utilizados hoje para o confinamento do "lixo" atômico, ainda que necessários, estão bem longe de oferecer níveis de segurança aceitáveis para as populações e, menos ainda, para as gerações futuras. Ainda uma última reflexão sobre o risco de empobrecimento tecnológico progressivo e sobre os riscos de marginalização daqueles países que escolhem o caminho da não-implementação da opção nuclear.

Parece-nos que seja válido exatamente o contrário. Os países que fizeram esta escolha têm hoje mais problemas do que aqueles que inteligentemente, ou por oportunidade histórica, a evitaram.

Quem hoje lamentasse não ter desenvolvido a tecnologia dos "dirigíveis" seria louco. Porém, houve um momento na história na qual foi necessário coragem para abandonar esta tecnologia que permitia "com pouca segurança" atravessar o oceano muito mais rapidamente que com os navios.

As usinas nucleares são os "dirigíveis" de hoje e apenas um país com um grau de autonomia internacional muito baixo compraria de um país industrializado tecnologias que os países industrializados espetacularmente estão abandonando.

3. A experiência do movimento ecológico na Itália

O movimento ecológico italiano, em suas expressões mais modernas e conscientes, como a Liga para o Meio Ambiente, sem dúvida nasceu e cresceu no berço da esquerda.

Tendo decidido não se constituir em partido, suas relações com a esquerda, seja comunista, socialista, ou católica, são extremamente dialéticas. Muitos ecologistas, mesmo que não todos, são ao mesmo tempo militantes nos partidos da esquerda ou do movimento sindical, mas isso não trouxe, ao menos até agora, conseqüências negativas para a autonomia do movimento. Pelo contrário, isto constitui, até hoje, a principal garantia de que a esquerda tradicional corrija os erros cometidos nas escolhas relativas à relação do homem com a natureza e ao uso dos recursos naturais.

Ao invés de teimar em se ater a uma inútil fé no poder carismático das tecnologias que não têm em conta as principais leis da física e da biologia, é necessário considerar duas questões fundamentais: 1) o homem é responsável por importantes processos que colocam em questão sua própria sobrevivência; 2) o homem tem a capacidade e o dever de corrigir tudo isso reencontrando o ponto de partida da própria ação futura, numa nova e indispensável relação homem-natureza, em base científica e social. O homem tem o poder e a capacidade de acelerar ainda mais o processo de degradação — para fins de lucros, de consumismo, de hegemonia — do planeta, levando-o à morte em dezenas ou centenas de anos, ou de diminuir o próprio processo para níveis naturais, oferecendo à humanidade e à natureza mais alguns milhões de anos de vida.

A conseqüência lógica das considerações anteriores é a busca do conceito de "equilíbrio biológico" e dos modos complicados, difíceis e delicados para mantê-lo. Tudo isso coloca para a esquerda e as forças sindicais democráticas um grande esforço de reciclagem conceitual e também modificações significativas na forma tradicional de fazer política.

Uma análise sócio-econômica séria não pode prescindir do conhecimento científico dos grandes equilíbrios biológicos e do peso que neles têm os conceitos de renovabilidade e de limitação dos recursos e das leis da termodinâmica.

Porém, tudo isso parece ser ignorado pelos economistas; tanto o pensamento marxista quanto o liberal, em suas diferentes perspectivas do progresso tecnológico, não têm em conta a complexidade dos equilíbros biológicos e a limitação natural e inevitável dos recursos: isso porque as "culturas humanistas" — marxistas ou capitalistas — não possuem um parâmetro fundamental em sua análise histórica: "o tempo biológico". Nesse sentido, são "estáticas" e extremamente limitadas ao programar o futuro. O tempo biológico, através do qual se mede a evolução da vida na Terra, é dividido em períodos correspondentes a milhões de anos no estudo do passado. De fato, bilhões de anos nos separam da origem da Terra!

"Os tempos biológicos e os tempos históricos possuem ritmos diferentes." A história do homem da qual possuímos documentação é de apenas alguns milhares de anos. Um tempo insignificante em relação à história biológica da Terra, quase uma fração infinitamente pequena, portanto, um flash estático da cultura biológica.

As grandes modificações empreendidas pelo homem em escala planetária exigem, pelo contrário, para que se possam programar as medidas necessárias, que os próximos dez anos sejam comparados aos milhões de anos passados, do ponto de vista biológico. Exige-se, portanto, que as análises biológicas sejam prioritárias em relação às exigências históricas normais: um estudo histórico clássico não possui mais as unidades de mensuração passadas e futuras para nos dizer o que acontecerá.

O tempo está modificando as unidades de medida na relação homem-natureza. A escala que se subentende nessa evolução é a de tipo logarítmico e se desenvolve numa série geométrica, com crescimento exponencial; da mesma forma se desenvolvem os fatores limitadores, como o aumento da população, etc. O tempo biológico apresenta uma assimetria misteriosa, enquanto que o nosso período histórico está caracterizado por uma série de gargalos que vêm à tona ao mesmo tempo e a curto prazo. Trata-se de recolher os sinais da natureza com agilidade e profundidade analítica para não sermos os autores de nossa própria extinção.

Para percorrer tal caminho, dois instrumentos são necessários: a termodinâmica e a biologia. Uma cultura científica moderna não pode deixar de considerar a entropia e a evolução darwiniana. Poderíamos sintetizar tudo isso com uma frase: "a esquerda necessita da biologia".

Os limites das culturas econômicas, humanistas e tecnológicas podem encontrar uma nova fronteira na "nova aliança" epistemológica entre o homem e a natureza.

Trata-se de procurar um diálogo, até agora difícil, entre diferentes mundos, superando as limitações de formações culturais fortes e profundas que, muitas vezes, não permitem uma visão global, de ver além. É preciso convencer o biólogo de que somos evolucionistas darwinianos convictos, mas que uma evolução demasiado rápida pode ser contrária à sobrevivência da espécie humana ou à justiça social. É preciso convencer o químico-físico que ninguém coloca em dúvida as leis da termodinâmica. E que justamente porque sabemos que as atividades do homem criam entropia, isto é, liberam demasiada energia no meio, podendo comprometer a vida, às vezes é preciso freá-las. É preciso convencer o engenheiro que não estamos contra o desenvolvimento, mas que freqüentemente o assim chamado progresso tecnológico vai em direção contrária ao progresso social e biológico, em suma, ao progresso humano. É preciso explicar ao sindicalista ou ao economista que sua visão dos processos produtivos não pode prescindir dos conhecimentos temodinâmicos e biológicos. É preciso explicar ao historiador, ao sociólogo e ao humanista, que a história, a relação entre homens e a sociedade, não é estranha à biologia e à ecologia, que chegou o momento de não considerar estas duas ordens de fenômenos separadamente, mas de integrá-los num nível cultural novo, um nível efetivamente interdisciplinar.

A morte da natureza foi o pressuposto necessário para a agressão manipuladora com que o capitalismo implementou a exploração dos recursos e o ideal científico do conhecimento de um mundo que se tornou previsível e, portanto, controlável justamente pelo seu novo caráter passivo e inanimado. Assim, em sua "Atlântida", Francis Bacon descreveu o ideal de uma sociedade fragmentada de acordo com a organização hierárquica estabelecida pela indústria capitalista, entregando aos cientistas e aos técnicos a tarefa de garantir o progresso na exploração da natureza.

Se é fácil, respondendo à cultura de direita, dizer que nenhum equilíbrio social e estabilidade biológica serão possíveis sem justiça social, mais difícil é pedir à cultura de esquerda — sobretudo histórica e econômica — para enxertar em sua própria bagagem a termodinâmica e a biologia, sobretudo quando os sapos a serem engolidos chamam-se Thomas Robert Malthus ou os "limites do crescimento".

A atitude mais perigosa, dentro da esquerda, é a de atribuir a especialistas, a cientistas reconhecidos e a técnicos, as decisões no campo científico-tecnológico. As classes políticas dirigentes são em geral de origem jurídico-econômica ou humanista-sociológica e, geralmente, carentes de maturidade ecológica. A cultura biológica permanece, assim, às margens da política e da cultura oficiais. No melhor dos casos são tomadas posições em nível de discurso em defesa do meio ambiente, mas quando os problemas ecológicos entram em choque com as vantagens econômicas e com a questão da defesa da estrutura de emprego existente, a tendência é sempre aquela de subestimar a gravidade do problema meio ambiente, sem existir preocupação pelas conseqüências — mesmo sobre a economia e sobre o emprego —, graves ou menos graves, a que estarão sujeitas as futuras gerações. O papel dos cientistas especialistas aos quais se atribuem a tomada de decisões é fundamental nessa última fase: o político descarrega a própria consciência atribuindo ao cientista as responsabilidades. O cientista é em geral um tecnocrata superespecializado em sua disciplina e impregnado pelo mito de que a tecnologia possui uma ilimitada capacidade milagrosa. Além do mais, se o cientista especializado é de esquerda, por certo coloca em evidência o problema imediato de emprego e muito dificilmente o desenvolvimento surge em termos de equacionamento de empregos futuros e estáveis, e mais dificilmente ainda vinculado a soluções harmônicas com o meio ambiente e a natureza. Surgiu recentemente na Itália a absurda defesa de 3.500 empregos no setor nuclear e mecânico, que se contrapõe aos 250 mil empregos que se criariam se os investimentos no setor nuclear fossem dirigidos para as fontes energéticas renováveis. Em resumo, o problema não é enfrentado globalmente: com globalidade econômica, política, social, biológica, ambiental, termodinâmica.

O movimento pelo meio ambiente no seio da esquerda italiana move-se no sentido de promover uma cultura ecológica. Mas ainda é cedo para se dizer que tenham havido resultados de significação ampla; a atitude de certa subestimação com os ecologistas ainda prevalece.

Ainda há muito chão pela frente a fim de que da "consciência de classe" se passe à "consciência de espécie". Mas esse caminho é obrigatório e nos resta apenas a possibilidade de decidir se queremos aceitar esse processo como expressão de nossa inteligência e compreensão das coisas ou se queremos sofrê-lo como conseqüência de grotescos e irreparáveis erros: isso tanto na Itália quanto no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1987
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