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Sambódromo: um importante espaço de lazer popular

Sambódromo: um importante espaço de lazer popular

Edgar Graeff

Professor, arquiteto e foi um dos fundadores da UnB

Os primeiros no Brasil a falar, com fundamento, de um espaço especialmente projetado para o desfile anual de Escolas de Samba foram os arquitetos Alfredo Brito e Joca Serran. Estudaram o assunto com muita seriedade. Se não me engano, foram assessorados e animados por Sérgio Cabral, esse notável homem de pensamento que se fez político para melhor defender as manifestações culturais do povo carioca.

Mas acredito que o fato de a Passarela ter sido projetada e construída exatamente agora, em "ritmo de Brasília", deve-se à presença de Darcy Ribeiro no governo do Estado do Rio de Janeiro. Quem o conhece bem e reconhece seu profundo e ativo sentimento de povo e de cultura brasileira; quem sabe da sua aguda lucidez e sua coragem cívica – temperada, é bem verdade, por uma certa dose de autoritarismo – só podia esperar isso mesmo: que Darcy Ribeiro arrancasse a idéia do ar para realizá-la na prática, com aquela mesma garra que revelou na concepção e construção da Universidade de Brasília.

E quem conhece Leonel Brizola – mesmo discordando dos seus deslizes personalistas, como no caso das últimas eleições no Rio Grande do Sul, onde, por mera arrogância de cacique ferido, rompeu a unidade das oposições e entregou, de mão beijada, o poder ao PDS –, quem o conhece bem, repito, não pode deixar de admirar sua correção e espírito democrático quando no poder, e sua extraordinária sintonia com o apelo das aspirações populares, fonte principal, de certo, do seu reconhecido "carisma". Brizola não falharia num momento desses.

A figura do autor do projeto da passarela, Oscar Niemeyer, também se confunde com o espírito reinante nestes tempos de mudança. Talvez seja útil explicar – principalmente para os jovens que em 1964 estavam nascendo ou na infância – que a realização de Oscar Niemeyer, na sua obra esplêndida, não resultou de uma atitude acomodada, nem diante dos "papas" da arquitetura mundial nem diante dos "donos" do poder. Niemeyer jamais se comportou como "bom moço".

A rebeldia intelectual e artística do grande arquiteto não se manifestou só na adesão ao movimento da arquitetura moderna no Brasil, quando isso ainda era uma temeridade. Sua personalidade vigorosa e independente se revelou já nos fins da década de 30, quando projetou, com Lúcio Costa, o Pavilhão do Brasil para a Feira Mundial de Nova Iorque. É a partir desse Pavilhão que as atenções dos especialistas do mundo inteiro se voltaram para o trabalho inovador dos arquitetos brasileiros.

Sobre a rebeldia política de Oscar Niemeyer não há o que se possa dizer que todos não conheçam. Sua posição é pública e notória: ele sempre se declarou, repetiu em todas as circunstâncias que é comunista. Ele toma, quase agressivamente, desde os idos de 1945, essa atitude de homem livre.

Que venham, portanto, as mais severas críticas a esta recente obra do Oscar – mas que ninguém lhe peça para se pautar pelos padrões dessas "escolas", "movimentos", maneirismos, modismos da arquitetura, inventados para distrair o tédio da burguesia que forjou esta sociedade de consumo dirigido que aí está (no Brasil e fora dele).

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O carnaval é, sem dúvida, a maior festa popular do Brasil e, quem sabe, do mundo. Nele, o "povão" joga o papel principal: faz a festa e se diverte diante de si mesmo, quer desfilando na Passarela ou na Avenida, quer assistindo ao seu próprio desfile das arquibancadas ou dos passeios.

O desfile das Escolas de Samba dessa maravilhosa São Sebastião do Rio de Janeiro é considerado, muito justamente, o maior espetáculo da terra, a maior festa popular regularmente realizada no mundo. E, por aí, se tem a medida da importância do novo programa de necessidades que a sociedade brasileira formula para a arquitetura de hoje. Ele reflete aspirações e necessidades eminentemente populares. E, é curioso notar que muitas restrições têm sido feitas à Passarela em nome da economia: um absurdo gastar-se tanto dinheiro público na construção do "circo", quando é tão grande a carência de "pão".

Ora, a crise da economia brasileira é antiga. Mas até hoje poucos ergueram suas vozes contra a construção de gigantescos pavilhões para exposições de produtos industriais; ou de tantos e tão refinados centros de convenções, ou desses vastos parques de exposições agropecuárias, montados em quase todas as cidades grandes e médias do país, para o solene desfile das lustrosas e faceiras vacas dos senhores fazendeiros. É que, nesses casos, as obras atendem a necessidades, aspirações e interesses das classes dominantes.

Na medida em que as classes trabalhadores ganham peso no jogo das forças políticas do país, começa a modificar-se o conceito da arquitetura. E, como parte desse processo, hoje ganham importância e significado os espaços destinados aos lazeres das massas populares.

Há menos de um século, a jornada normal de trabalho de ura assalariado era de cerca de 16 horas. A idéia de lazer, aplicada aos trabalhadores, confundia-se com a do ócio, que transportava pesada carga de ingredientes pecaminosos... Que poderia fazer um trabalhador ocioso – perguntavam-se os patrões – senão ficar a pensar maus pensamentos?

A conquista da jornada de oito horas de trabalho é muito recente, em particular nos países subdesenvolvidos como o nosso. Mas, com base nessa conquista, se vêm multiplicando rapidamente as obras de arquitetura destinada a abrigar as atividades de lazer das grandes massas da população trabalhadora. E é dentro dessa perspectiva histórica que se deve procurar entender o real significado social, cultural e político da Passarela do Samba.

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A Praça da Apoteose constituiu um capítulo especial da Passarela. Essa invenção de Niemeyer, fazendo a avenida desembocar na praça, causou muita celeuma e debates entre sambistas e comentaristas especializados em Carnaval. Que a Praça feria a tradição dos desfiles, sempre enquadrados na avenida; que os sambistas se atrapalhariam, ficando sem saber o que fazer no vasto espaço vazio. Na verdade, uma certa desconfiança sobre a competência criadora do "povão". E o que se viu, foi um ensaio geral de apropriação do novo espaço pelas escolas, com alguns momentos de autêntica apoteose. Desse primeiro encontro, primeira amostra de reconhecimento, ficou a convicção de que no próximo ano o desfile das Escolas de Samba alcançará uma dimensão nova, com o pleno domínio da Praça.

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No plano político, já foi demonstrado que realmente não é lícito confundir a Passarela com o "circo". As Escolas de Samba, quase todas, foram levar seu potencial de empolgação para animar a outra apoteose, aquela da Candelária, fazendo da colossal manifestão pelas diretas-já uma outra grande festa popular.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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