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Qual o lugar dos sindicatos?

CONSTITUINTE

Qual o lugar dos sindicatos?

Roque Aparecido da SilvaI; Márcia de Paula LeiteII

IDiretor do CEDEC

IISocióloga e anafista de dados do SEADE

"Art. 2.º

Os trabalhadores e os empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão direito de constituir, sem autorização prévia, organizações de sua escolha, bem como o direito de se filiar a essas organizações sob a única condição de se conformar com os estatutos das mesmas."

"Art. 3.º

1) As organizações de trabalhadores e de empregadores terão direito de elaborar seus estatutos e regulamentos administrativos, de eleger livremente seus representantes, de organizar a gestão e a atividade dos mesmos e de formular seu programa de ação.

2) As autoridades públicas deverão abster-se de qualquer intervenção que possa limitar esse direito ou entravar o seu exercício legal."

Convenção nº 87 da OIT

Tomando-se por base essas definições da Convenção 87 da OIT, sobre liberdade e autonomia cindical, podemos dimensionar a profundidade das mudanças que deverão ocorrer na legislação sindical brasileira para que esse direito seja assegurado aos trabalhadores.

Com efeito, as mudanças terão que se dar inicialmente a nível da própria Constituição, que em seu artigo nº 166 estabelece que os sindicatos devem exercer funções delegadas pelo poder público e colaborar com a preservação da paz social, transformando-os em uma força orgânica de colaboração com o Estado, e ferindo uma das razões fundamentais de sua existência, que é a de fomentar e defender os interesses dos trabalhadores, conforme estipula a própria Convenção nº 87.

Cabe então ao Congresso Constituinte extirpar da Constituição esta herança do autoritarismo do Estado Novo, assegurando aos trabalhadores a liberdade de constituir suas organizações livremente, estruturando-as como melhor lhes convier, gerindo-as de maneira independente e definindo seus programas autonomamente. Cabe ademais à Constituinte assegurar liberdade de ação aos sindicatos na busca da realização de suas aspirações, vedando qualquer limitação ao direito de greve por lei complementar. Seria ainda fundamental assegurar na própria Constituição o direito dos trabalhadores se organizarem a nível dos locais de trabalho, como estabelece inclusive a proposta elaborada pela Comissão Afonso Arinos.

É necessário ter claro que uma definição nesse sentido por parte dos constituintes consistiria em um passo fundamental no sentido de assegurar as bases de uma sociedade mais livre, democrática e participativa, na medida em que garantiria a liberdade de ação e reunião aos trabalhadores.

Uma tal mudança constitucional abriria caminho para que o Brasil ratificasse a Convenção nº 87 da OIT, o que viria facilitar o acesso do movimento sindical a fóruns internacionais contra qualquer violação da liberdade sindical no país, ampliando-se assim as frentes de luta pela preservação de suas conquistas. Ao mesmo tempo, seriam exigidas transformações profundas nos títulos V e VI da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que se referem respectivamente à estrutura sindical e negociação coletiva — e nos Decretos-leis nºs 4.330 e 1.632 que, baixados pelo governo militar, ainda regulam o direito de greve no país.

A estrutura sindical definida pela CLT traduz perfeitamente os objetivos estabelecidos para os sindicatos nas Constituições brasileiras desde 1937. Enquanto promotores da colaboração entre o capital e o trabalho eles não precisam de elevado grau de organicidade nem de capacidade de mobilização. Da mesma forma, não se necessita, e portanto a legislação não contempla, qualquer forma de organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Para a solução dos problemas enfrentados pelos trabalhadores existe a Justiça do Trabalho, que, segundo sua filosofia, pauta suas decisões por princípios equânimes. A ela se deve recorrer individualmente, restringindo-se nesse sentido a atuação dos sindicatos aos seus departamentos jurídicos, encarregados de encaminhar os processos. Um pressuposto fundamental desta filosofia é o de que o conjunto dos direitos dos trabalhadores estariam consolidados em lei, que a Justiça do Trabalho tem por função fazer com que sejam cumpridas. Vale lembrar ainda o preceito de que os sindicatos devem ser rigidamente controlados pelo Ministério do Trabalho, a partir do qual a lei estabelece a necessidade de reconhecimento das associações sindicais pelo Ministério.

A partir desses princípios os sindicatos são constituídos por base territorial e categoria profissional, de acordo com as definições da Comissão de Enquadramento Sindical do Ministério do Trabalho. Em cada região pode-se constituir oficialmente apenas um sindicato por categoria, o qual detém o monopólio da representação, tanto no sentido de ser o único representante legal do conjunto dos membros da categoria, como no plano da negociação coletiva. Esta inexiste a nível dos locais de trabalho devido à própria ausência de formas de organização nessa instância. Por outro lado, as federações somente podem negociar se receberem mandato específico do sindicato de base.

Com o monopólio da representação, o sindicato constitui-se no pólo dinâmico da estrutura sindical, com as negociações coletivas se dando de forma atomizada a nível de cada localidade. Essa fragmentação do movimento sindical se torna ainda maior pela setorização de sua ação mesmo a nível de cada região. Não só um sindicato de um mesmo ramo de produção tem datas-base diferentes para negociar seus convênios de uma região para outra, como em uma mesma localidade cada categoria tem uma data-base diferente. A atomização da organização e da ação sindical é levada às últimas conseqüências quando a lei estabelece a superposição entre os sindicatos que poderíamos chamar de ramo de produção e os de profissão: engenheiros, desenhistas, assistentes sociais, enfermeiros, etc. Em muitas grandes empresas existem mais e quinze sindicatos representando os trabalhadores, fazendo com que a atomização dos sindicatos no Brasil seja muito maior que a dos países em que prevalecem os sistemas chamados de pluralismo sindical.

Nesse sentido, a estrutura sindical e de negociação coletiva caracteriza-se por um corporativismo atomizado que é adequado à heterogeneidade estrutural do país, contribuindo para a reprodução das desigualdades tanto a nível inter-regional como entre as diferentes categorias, ao mesmo tempo que assegura a sua própria auto-reprodução. A grande maioria dos sindicatos expressa, dessa forma, um baixíssimo grau de articulação intersindical, desenvolvendo uma prática local e setorizada.

O complemento fundamental dessa estrutura que busca o imobilismo das organizações dos assalariados é o imposto sindical, que assegura a sobrevivência dos sindicatos independentemente de sua representatividade junto aos trabalhadores.

E como a sobrevivência financeira da maioria das organizações dos trabalhadores no Brasil ainda depende do imposto cobrado pelo Estado e repartido entre os sindicatos, isso significa que a legitimidade das entidades sindicais é assegurada mais pelo Estado do que pelo conjunto dos trabalhadores.

Ainda segundo a lei, aquelas organizações que conseguem superar todas as dificuldades legais à ação coletiva, rompendo com a filosofia que estabelece sindicatos para promover a colaboração, e impulsionando formas de mobilização e ação em defesa das demandas dos trabalhadores, podem ter suas diretorias destituídas pelo Ministério do Trabalho, que nomeia interventores para continuar administrando a entidade. Assinale-se que embora a legislação não tenha sido modificada a esse respeito, quando assumiu o Ministério do Trabalho o ministro Almir Pazzianotto se comprometeu a não intervir nos sindicatos durante sua gestão.

Nestes cinqüenta anos de vigência dos princípios da lei sindical de 1939 mantém-se plenamente verdadeira a afirmação da comissão que elaborou o seu anteprojeto no sentido de que "toda a vida das associações profissionais passará a gravitar em torno do Ministério do Trabalho: nele nascerão; com ele crescerão; ao lado dele se desenvolverão; nele se extinguirão", conforme nos recorda J.A. Rodrigues.

É a ruptura com esta tradição autoritária que está em questão no momento atual. Frente à instalação dos trabalhos constituintes no país desde o início do presente ano, a discussão a respeito da questão da institucionalidade sindical, bem como do direito de greve, adquire fundamental importância.

Não há dúvida, entretanto, de que, face à composição conservadora do Congresso Constituinte, a capacidade que o movimento sindical venha demonstrar no sentido de interferir nessa discussão constitui um dos aspectos centrais na definição do novo quadro institucional.

Não seria demais lembrar o que aconteceu, por exemplo, na Constituinte de 1946, quando a Assembléia Nacional manteve os preceitos fundamentais da institucionalidade anterior, ao mesmo tempo que optou por remeter as principais questões a propósito dos interesses trabalhistas à legislação vigente, conservando praticamente intata a estrutura sindical corporativista herdada do Estado Novo.

Convém recordar, entretanto, que tão importante quanto o caráter conservador do Congresso, enquanto entrave a transformações significativas nos princípios que regem as vida sindical do país, constituem as grandes divergências que marcam o movimento sindical atual a esse respeito.

Com efeito, se é verdade que a grande maioria dos dirigentes sindicais são unânimes em reivindicar a maior liberdade e autonomia para as organizações dos trabalhadores, o movimento sindical tem se caracterizado pela existência de duas concepções bastante distintas do modelo de sindicalismo a ser adotado no país. Enquanto para alguns a liberdade e autonomia dos sindicatos significa a total libertação das entidades representativas dos trabalhadores da interferência do Ministério do Trabalho, com a conseqüente abolição da necessidade do reconhecimento dos sindicatos pelo Ministério, assim como do princípio da unicidade e do imposto sindical — uma proposta que assume os preceitos da Convenção nº 87 da OIT —, para outros trata-se apenas de diminuir a interferência do Ministério do Trabalho na vida cotidiana dos sindicatos, garantindo-lhes maior liberdade de ação.

E, se a corrente mais conservacionista é predominante no interior do movimento, seria necessário lembrar que, por outro lado, a tendência que tem se mostrado favorável a uma transformação mais profunda da institucionalidade sindical brasileira congrega os setores mais combativos do movimento sindical atual, constituindo a expressão de um vigoroso processo de lutas que abarca setores de ponta da economia brasileira. Segundo a pesquisa realizada pelo CEDEC em 1981 e 1983, "Estrutura e Representação Sindical", embora 75% dos sindicalistas paulistas entrevistados fossem favoráveis ao fim da necessidade de reconhecimento obrigatório dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho, apenas 20% propunham o fim da obrigatoriedade legal da existência do sindicato único por categoria e base territorial, e 53% eram a favor da abolição da contribuição sindical.

Esse movimento, que tem se caracterizado por uma grande disposição de luta, responsável pela maior parte das greves que têm ocorrido no país desde 1978, tem sido marcado também pela presença de algumas tendências novas em relação ao movimento sindical de períodos anteriores, as quais justificaram inclusive sua denominação de "novo sindicalismo". Enraizado nas bases, propondo a livre negociação coletiva e rechaçando a interferência do governo e da Justiça do Trabalho nas relações entre empregados e patrões, questionando o autoritarismo patronal, assim como aspectos importantes da organização do processo de trabalho adotada pelas empresas, essa mobilização vem renovando consideravelmente a vida dos sindicatos, transformando-os em órgãos mais representativos dos trabalhadores, ao mesmo tempo que tem se chocado frontalmente contra a institucionalidade sindical vigente.

Nesse processo, os setores mais modernos do movimento sindical vêm não só conquistando novos direitos como também criando novas formas de organização, ao mesmo tempo que vêm implementando novas maneiras de se relacionar com o patronato. Dessa forma, o sindicalismo tem atuado num processo crescente de consolidação de novas conquistas, entre as quais cabe destacar a diminuição da jornada de trabalho, a extensão da estabilidade, o direito dos sindicatos atuarem no interior das empresas, assim como o direito de organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, através da difusão da experiência de comissões de empresa. Paralelamente, o movimento sindical vem conseguindo diminuir a interferência do Estado no relacionamento entre trabalhadores e empresários através do fortalecimento da prática da negociação direta com o patronato. E assim que o país vem assistindo a um vigoroso movimento grevista que vem se processando à margem da legislação vigente, passando por cima tanto da lei de greve, como das principais características das relações de trabalho impostas pelo atual quadro institucional, as quais transformam os sindicatos em órgãos burocratizados e assistencialistas.

Dessa forma, o movimento sindical atual se encontra num impasse caracterizado pela seguinte situação: se o seu setor mais moderno e combativo tem se mostrado suficientemente forte para imprimir uma nova dinâmica ao movimento, a qual aponta no sentido de profundas modificações nos princípios que regem a vida sindical do país, ele constitui ainda minoria no interior do quadro sindical, havendo uma grande maioria de sindicalistas brasileiros resistentes a reformas mais significativas da institucionalidade sindical. Nessa medida, á capacidade de pressão do sindicalismo sobre o Congresso Constituinte será também afetada por essa divisão no interior do movimento e dependerá fundamentalmente de como ele vai conseguir lidar com as divergências.

Cabe lembrar, entretanto, que se há sérias discordâncias em relação à institucionalidade sindical, o mesmo não acontece no que se refere ao direito de greve, que vem sendo definido há longos anos pela unanimidade do movimento sindical como o ponto central e prioritário a ser conquistado, sendo entendido inclusive como ponto inicial fundamental para que as outras conquistas possam avançar.

Na pesquisa realizada pelo CEDEC sobre "Estrutura e Representação Sindical", por exemplo, a reformulação da lei de greve foi considerada como a principal prioridade pelo conjunto dos entrevistados em todo o país, sendo que, em São Paulo, 83% dos entrevistados se colocaram a favor do direito irrestrito de greve, contra apenas 15% que, embora tenham se posicionado favoravelmente em relação ao direito, admitiram, entretanto, algumas limitações a ele.

Nesse sentido, a luta pelo direito irrestrito de greve pode se constituir num importante ponto de unificação da ação sindical a partir da qual as lideranças podem avançar visando amainar suas divergências e encontrar um ponto comum de partida para encaminhar a luta pela autonomia e liberdade sindical. Esta, por sua vez, por mais limitações que possa vir a ter, deverá de qualquer forma avançar no sentido de vir a contemplar as novas tendências que as mobilizações trabalhistas vêm apontando, incorporando as marcas imprimidas pelas lutas levadas a cabo pelos setores mais combativos do sindicalismo atual, sob pena do quadro institucional legal continuar absolutamente defasado em relação ao movimento real.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1987
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