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Cultura e mega-sociedade mundial

ESTADO, REFORMAS E DESENVOLVIMENTO

Cultura e mega-sociedade mundial

Renato Ortiz

Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP

Minhas reflexões partem de um princípio, de uma hipótese: a existência de processos mundiais que transpassam as realidades locais e nacionais. Nesse sentido, penso que a noção de fenômeno social total é sugestiva, ela nos permite apreender determinados aspectos atuais enquanto elementos sui generis de uma dimensão social. A totalidade dos processos mundiais nos leva, assim, a falar de uma sociedade global, com sua autonomia específica em relação aos fatos nacionais. Meu objeto, enorme na sua dimensão, é portanto essa "mega-sociedade", que comumente entendemos como sendo o "mundo". Evidentemente, acredito que esse movimento na direção de uma realidade global é antigo, encontrando suas raízes nos séculos passados, e na própria história do capitalismo, mas, para mim, hoje ele se impõe como uma condição. Meu interesse é, pois, refletir sobre essa contemporaneidade, olhando para o passado recente, que é ainda presente, em um futuro que se anuncia, mas não sabemos ainda muito bem como.

É sempre possível dizer que a noção de mundo é bastante antiga, mas penso que ela se revestia antes de um caráter particular, no sentido de específico, de limitado. Certamente as religiões universais sempre a tiveram em consideração. Tanto o islamismo como o budismo nunca se contentaram com as restrições impostas pelas sociedade que os criaram. Eles transbordavam as fronteiras dos povos, expandindo-se para além de seus locais de origem. Também a cristandade na Idade Média formava um "mundo". Com seus valores, crenças e costumes, ela se espraiava por um espaço extenso, congregando grupos distintos. No entanto, eu diria que apesar dessa compulsão pela universalidade, esses "mundos" eram domínios relativamente fechados. As fronteiras entre eles eram claras e, creio, muitas vezes intransponíveis. A guerra das cruzadas é um exemplo do choque entre universalidades antagônicas, mas aponta também para a rigidez das barreiras culturais. Evidentemente não se pode negar um intercâmbio comercial e intelectual entre o Ocidente e o Oriente; porém, se essas culturas se tocavam, se comunicavam, não é menos verdade que giravam em órbitas diferentes. Cada uma possuía seu próprio centro, podendo até mesmo integrar elementos que vinham de fora, desde que, é claro, adaptados à sua rotação.

Uma maneira de se ilustrar essa autonomia das culturas é retomando-se o conceito de economia-mundo cunhado por Braudel. Para ele, uma economia-mundo evoluiria no interior de um círculo de trocas envolvendo uma área geográfica delimitada. Ela conteria assim um centro a partir do qual se articularia, estendendo-se até os limites de sua influência. A história dos homens pode então ser contada como uma sucessão de economias-mundo que se interpretam e se excluem, buscando fixar ou extrapolar suas presenças. Da mesma forma que as religiões universais conheciam seus centros, as economias-mundo giravam em torno de seus núcleos específicos. A difusão cultural, assim como o universo das trocas, se fazia levando-se em consideração os círculos concêntricos que a determinavam. A pergunta que me interessa fazer, pois nosso tema é sobre a atualidade, é a seguinte: em que momento essas economias-mundo, independentes entre si, tornam-se uma só? A resposta, autores como Braudel e Wallerstein procuram no desenvolvimento do capitalismo entre os séculos XV e XVIII. Porém, apesar do esforço teórico realizado, penso ser este ainda um período relativo à pré-história de nosso world-system. A rigor, é somente no século XIX que a economia se internacionaliza, no sentido em que entendemos hoje, enquanto estrutura, não como trocas eventuais entre países. Nesse instante, existe um único mundo organizado a partir das exigências do mercado capitalista.

A meu ver, essa é uma transformação capital para entendermos nossa modernidade. A emergência de um sistema econômico mundial (que possui conseqüências no plano político) não implicaria na constituição de um espaço cultural correspondente? Dito de outra forma. Sabendo que o conceito de civilização é de natureza extranacional, e que se estende sobre uma área geográfica determinada, em que medida, quando o espaço de interação entre os homens abrange o globo terrestre, não estaríamos diante de uma "civilização mundial"?

Algumas transformações que ocorrem durante o século XIX apontam para essa direção. Um exemplo: o tempo. Embora os homens tenham construído as clepsidras e os relógios em épocas mais remotas, eles não pautavam sua vidas cotidianas pelo tempo mensurado por esses mecanismos. Os relógios eram poucos, possuíam uma função de adorno (nas igrejas eram verdadeiras obras de arte), e o ritmo da sociedade encontrava-se ainda marcado pelo caminhar da natureza. Cada lugar tinha sua hora específica, determinada pelo levantar e pelo cair do sol. É somente na passagem do século XVIII para o XIX que, em algumas capitais da Europa (Berlim, Londres e Paris), é inventado um "tempo médio". O dia torna-se assim um conceito abstrato, que não mais se encontra em consonância com o clarear e o escurecer, das noites e das tardes, mas segundo o movimento do sol em relação à Terra.. Tempo "científico", interpretado e medido pelos astrônomos. Todavia, essa fórmula de se entender o escoar das horas tem um impacto restrito; apenas algumas grandes cidades ajustam seus relógios de acordo com ela. Ao longo do século XIX, assistimos a uma luta incessante entre esse tempo da capital e os tempos locais, regionais, que resistem a se dobrar diante da racionalidade moderna. Com o advento da hora nacional, o conflito se estanca. Todas as partes da nação passam a vibrar em uníssono. O que interessa para nossa discussão é que a progressão dessa hora-padrão, no início, interna a cada país, no final do século se impõe para o planeta como um todo. A escolha de Greenwich como meridiano de referência de uma hora universal não é algo meramente técnico. Ela tem um significado muito mais amplo. O mundo no qual os homens agora circulam, para constituir uma engrenagem única, tem que se ajustar à maneira de se contabilizar o fluir do tempo, sem o que sua racionalidade não encontraria meios para se concretizar. O tempo, representação social por excelência, se adequa às exigências de uma civilização urbano-industrial. Tempo mundial, que se impõe a todos os países, independentemente de sua peculiaridade, ou de suas idiossincrasias. No entanto, se podemos captar a emergência dessa modernidade-mundo na virada do século XIX para o XX, não resta duvida de que ela é ainda parcial, incipiente. Somente alguns países a contêm: é no pós-guerra (1945) que esse processo vai se consolidar. O movimento que se encontrava em germe no período anterior se intensifica, adquirindo proporções até então desconhecidas. O advento das multinacionais e de uma cultura de massa internacionalizada representam mudanças radicais no âmbito mundial. Na verdade, devemos admitir que este século assiste a uma outra revolução, profunda, mas distinta das que haviam ocorrido antes. A primeira delas, classicamente conhecida como a grande "revolução industrial", repousava sobre um sistema técnico específico, carvão, ferro e vapor. Com isso, os homens puderam romper com a estreiteza do Antigo Regime. Mas já no final do XIX, uma outra transformação se manifesta, um novo sistema emerge, fundamentado no petróleo, nas ligas de metal, na eletricidade. Isso irá permitir um avanço tecnológico sem precedentes, cujas implicações podem ser sentidas, por exemplo, nos meios de transporte (ônibus, automóvel, avião). Mas a dinâmica da modernidade exige novos saltos. O advento da microeletrônica, da microbiologia e da energia nuclear formam a base de sustentação de uma materialidade técnica recente que possibilita o desenvolvimento de uma "sociedade informática". Não é por acaso que os sociólogos irão relacionar o que se passa nos domínios da economia e da tecnologia com o surgimento de um novo padrão societário, vagamente denominado de pós-industrial. A recorrência na utilização do prefixo "pós" (pós-modernidade) revela a meu ver um esforço na tentativa de se compreender essa configuração social. Realidade que redefine de maneira drástica as relações sociais e tem um impacto forte sobre o tema que estamos tratando. O conjunto do aparato tecnológico, sobretudo na área das comunicações, constitui hoje a infra-estrutura material de uma cultura que se mundializa. O planeta pode então ser pensado como um sistema, uma rede informacional, cujas partes encontram-se interligadas. As chamadas novas tecnologias abrem de fato a perspectiva para uma cultura mundializada. Os satélites de comunicação possibilitam o desenvolvimento de cadeias televisivas planetárias, da mesma forma que a informatização incentiva o surgimento dos jornais e das firmas globais. Dentro desse contexto novos elementos são agregados ao tempo padronizado que o século XIX nos havia legado. Não é mais suficiente que o batimento do mundo seja regularizado em torno de uma única cadência. A idéia de uma rede de comunicação tende a privilegiar a instantaneidade em detrimento dos tempos locais. A modernidade-mundo que vivemos fundamenta-se sobre a noção de ubiqüidade, fazendo com que simultaneamente partes longínquas do sistema possam falar entre si. Um evento remoto torna-se próximo, e o que nos rodeia pode estar afastado a distância.

Dizer que a cultura contemporânea repousa sobre uma infra-estrutura tecnológica tem implicações diversas. Isso significa que a relação entre cultura e técnica, pela sua amplitude, é hoje crucial. Não quero com isso dizer que o aparato tecnológico (em última estância, diriam alguns) seja o responsável direto pelas transformações sociais. Não creio que a "revolução" das técnicas engendre por si mesma novos padrões de cultura. A sensibilidade mosaica do homem moderno (sua tendência ao sincretismo, diriam os pós-modernos) não decorre da existência da televisão, ou de qualquer outro jogo de linguagem como sugeria McLuhan, nem a ubiqüidade do tempo das tecnologias informacionais. É a modernidade como um todo, enquanto cultura, no sentido antropológico do termo, que determina a civilização que estamos vivendo. No entanto, apesar dessas ressalvas, não se pode perder de vista que a técnica é atualmente um fato maior. Seja como propulsora dos meios de comunicação, seja como irracionalidade, como queria Marcuse. Poderíamos fazer aqui toda uma digressão a respeito de como tecnologia e ciência são elementos fundantes das sociedades industrializadas. Mas isso nos afastaria do tema em debate. Quero simplesmente ressaltar que cultura e tecnologia são faces de uma mesma realidade. A visão romântica que via a técnica como algo externo à cultura (veja no século XIX a reação dos artistas à invenção da fotografia) não é mais convincente, ela é insustentável. Walter Benjamin tinha razão quando contra-argumentava com Adorno: é impossível fazermos uma distinção radical entre o meio cinematográfico e o filme produzido. No cinema a técnica é interna ao processo artístico, enquanto mídia e expressão. Penso que esse traço pode ser generalizado. Cinema, televisão, vídeo, fotografia e rádio são manifestações técnicas e culturais.

É esse substrato material que permite um avanço sem precedentes da modernização. Já no século passado o telégrafo e os cabos submarinos permitiram uma aproximação dos continentes, e a invenção da fotografia e do cinematógrafo intensificou o intercâmbio de imagens. As redes de televisão, informação, correio e transporte durante o século XX irão reduzir cada vez mais as distâncias. No entanto, devo sublinhar que nesse contexto as últimas transformações, advindas da "terceira revolução industrial", adquirem uma dimensão mais ampla, eu diria mesmo, radical. Até há algum tempo os diferentes ramos das indústrias culturais desenvolveram-se de maneira autônoma, do ponto de vista tecnológico. Cada uma delas possuía sua especificidade em um meio técnico correspondente. O quadro começa a mudar. A própria noção de informação não mais se identifica à idéia de notícia, de programas culturais, como sugere o senso comum. Ela abrange concepções distintas, informação de base (banco de dados), informação cultural (filmes, jornais, livros, etc), e know-how (administração, invenções, etc), tudo num só conjunto. Informática e telecomunicação fazem parte de um mesmo domínio (os franceses inventaram inclusive um termo para caracterizar essa situação — a telemática), e os meios de comunicação se articulam a um único sistema. Som, imagem e texto podem ser convertidos em dígitos (bits) e reconvertidos em informação original quando chegam a seu destino. Atividades que se desenvolvem paralelamente tornam-se interligadas. A televisão já não está simplesmente conectada aos diversos canais (grandes redes, TV-parabólica, TV a cabo, etc), mas a tela faz o papel de vídeo, integrando os cassetes, os jogos eletrônicos e o computador. Surge no horizonte o "telecomputador" que armazena e operacionaliza palavras, números e imagens. As potencialidades de uso dessas tecnologias são ainda fantásticas (distantes da realidade imediata), mas não devemos cair na visão excessivamente otimista daqueles que as cultuam. A tendência para a unificação do sistema técnico, sobre o qual repousa a cultura contemporânea, promove, ao lado do processo de diferenciação de segmentação imposto pelo novo padrão técnico (um empresário pode se comunicar diretamente com o cliente; uma universidade, com o uso de antenas parabólicas, é capaz de falar com qualquer lugar do mundo), um movimento no sentido inverso. Na medida em que os custos de produção e de implantação dessas tecnologias são elevados, e que o mercado tornou-se global, a competição nessa escala só pode ser enfrentada com uma concentração das grandes companhias que nele atuam. Pode parecer paradoxal, mas a mundialização propicia a diferença, ao mesmo tempo em que reforça a tendência de monopolizaçã£o que vinha ocorrendo. Na verdade são as grandes firmas globais (indústrias de eletrônicos, cadeias de televisão, agências publicitárias, empresas cinematográficas) que controlam o fluxo de "informação" do sistema mundial. Se, portanto, já havia um vínculo forte entre cultura, economia e política, que o conceito de "indústria cultural" procurava compreender, ele torna-se agora mais presente. O imbricamento se apóia inclusive na materialidade técnica que a envolve.

Uma cultura mundo pressupõe um outro conceito de tempo, rápido, instantâneo, célebre. Mas sabemos que tempo e espaço são categorias indissociáveis, por isso nossas concepções espaciais são redefinidas. A unicidade mundial requer um território que transcende as partes que o constituem. Uma cultura mundo tende à desterritorialização. Os exemplos disso são vários. Um carro esporte da Mazda é desenhado na Califórnia, financiado por Tóquio, o protótipo é criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem é feita nos Estados Unidos e México, usando componentes eletrônicos inventados em New Jersey, fabricados no Japão. Uma campanha publicitária de cerveja, realizada pela Saathi & Saatchi,é concebida na Inglaterra, rodada no Canadá e editada em Nova York. Por isso a lógica das grandes corporações é ditada pela competição do mercado global, e não mais pelas exigências nacionais. Ela requer uma administração específica que enfraquece os laços particulares, minando os vínculos entre as empresas e os países. No passado recente, as grandes companhias ainda se enraizavam em algumas cidades ou em nações. Mas o que dizer das articulações gerenciais que já não mais possuem um centro geográfico, espalham-se por todo o globo, sendo coordenadas a partir de uma rede de comunicações. O movimento de desterritorialização é uma realidade, e o planeta surge como espaços produtivos integrados pelo managing global.

Também nas artes esse processo se manifesta. O pós-modernismo simboliza e apreende uma transformação profunda da sociedade. Quando os arquitetos pós-modernos se voltam contra o modernismo, eles propõem um entendimento estético radicalmente distinto. Ansiosos em recuperar o passado, as cores locais, eles advogam a legitimidade de todas as formas produzidas pela história da humanidade. Porém, assim o fazendo, eles esvaziam o espaço de suas raízes tradicionais. Os pós-modernos pretendem construir uma memória cibernética que em princípio conteria todas as formas arquitetônicas possíveis. Colunas gregas, frontispício clássico, estilo japonês, presente e passado, tudo faria indiferentemente parte desse megaconjunto. Caberia apenas ao arquiteto, de posse desse léxico gramatical, selecionar o que lhe interessaria, misturando os traços em função da demanda existente. As formas estéticas ganham portanto em abstração, mas perdem em identidade, desterritorializando-se para compor um espaço abstrato, semiológico. O "sincretismo" pós-moderno exprime um desenraizamento cuja expressão artística se ancora na existência de um world-system, não mais se fixando a lugares ou narrativas particulares.

A idéia de desterritorialização coloca em cheque a noção de centro. As teorias sobre o marketing global exprimem esse aspecto com clareza. Elas se referem à organização das multinacionais como algo do pretérito; sua hierarquia rígida e identificação com o país de origem surgem como uma defasagem. No seio de um capitalismo flexível, as decisões já não podem mais ser centralizadas, em nível de um país ou de uma empresa, é necessário que elas se rearticulem. Flexibilidade. A história econômica no final deste século dá sinais de se modificar; é como se houvesse um dinamismo interno à mundializaçao. No seu início, ela se fundamentava ainda em princípios geo-orientados. O colonialismo e o imperialismo encontravam sua caracterização última em terrenos bem delimitados. Ele era inglês, francês ou americano, carregando em si uma especificidade do seu núcleo irradiador. Hoje presenciamos um processo de dilatação das fronteiras, e as nações perdem sua posição de centralidade. Creio que a discussão sobre a pós-modernidade reforça essa dimensão. A mundialização promove o policentrismo. Contrariamente às religiões universais que eram narrativas mítico- ideológicas evoluindo em torno de um eixo fixo, o mundo encontra-se descentralizado. Percebemos o advento de um universo sem "grandes-relatos", isto é, carente de pontos rígidos de orientação. Não creio porém que isso se deva simplesmente a uma perda da legitimidade da ciência, ou das ideologias, como pondera Lyotard; existem causas mais amplas. A ausência de referências estáveis está estreitamente ligada à expansão do sistema mundial, que nos envolve física e espiritualmente. Quando o espaço se encontra materializado enquanto mundialidade, a totalidade deixa de ser abstrata, ela é concreta, real. Ela é inexorável, e o local, o imediato, passa agora a constituir um problema. Talvez fosse correto dizer que é na expansão do "universal", na sua realização, e não no seu desaparecimento, que reside a problemática do particular. A ênfase no cotidiano, no prosaico, se dá quando a totalidade deixa de ser utópica, isto é, irreal, e se aninha inclusive nos pequenos atos de nossa existência.

Quando nos debruçamos sobre a realidade que nos cerca, nos surpreendemos com a rapidez com a qual caminha o processo de desterritorialização. McDonald's, Coca-Cola, cosméticos Revlon, calças jeans são hoje consumidos por todos nas ruas de Nova York ou de Paris, na Zona Franca de Manaus, nos pontos mais longínquos da Ásia ou da América Latina, deparamo-nos com marcas familiares, Sony, Ford, Mitsubitshi. Qual o significado disso? Primeiro, que a mundialização não se sustenta apenas sobre uma base técnica. Há um universo habitado por objetos compartilhados em ampla escala. A sociedade de consumo é a sua expressão. São esses objetos que constituem nossas paisagens e engendram um habitat que se estende da utilidade desses utensílios ao simulacro de sua presença. Porém, essa proliferação não se faz ingenuamente; ela traz um chancela, caracterizando-se pelo esvaziamento dos conteúdos específicos em detrimento dos valores e dos traços locais. Sem essa modernidade-objeto, que impregna os aeroportos internacionais (são idênticos em qualquer parte do mundo), as ruas do comércio (com suas vitrines e mercadorias em exposição), os móveis de escritórios, ou das residências, dificilmente uma cultura-mundo teria possibilidade de florescer.

Mas, creio, existem outras conseqüências. A formação de uma cultura internacional-popular, cujo fulcro é o mercado, representa uma situação inteiramente nova, que nos desafia a pensá-la fora dos quadros tradicionais. Vejamos alguns exemplos. Todos conhecemos a propaganda da Marlboro, um homem forte, cavalos, a paisagem rude e finalmente, o cigarro. Ela foi concebida na França, rodada no interior dos Estados Unidos e certamente editada em outro lugar qualquer. No entanto, não me interessa mais sublinhar o aspecto de desterritorialização da produção, é o próprio encadeamento das imagens que chama a atenção. O que essa publicidade global faz é capitalizar determinados símbolos e referências culturais reconhecidos internacionalmente. A virilidade, valor universal, é traduzida em termos imagéticos, imediatamente inteligíveis, a despeito das sociedades nas quais o anúncio é veiculado. Outro exemplo: a telenovela brasileira. Quando ela é exportada realiza-se um processo de transmutação. O número de capítulos é reduzido, a estória é compactada, o merchandising retirado, assim como tudo que lembre em demasia os matizes locais. O que é sobremaneira brasileiro torna-se supérfluo, sendo por isso eliminado. A trilha sonora é modificada, e é introduzida uma faixa com músicas de fácil entendimento do público internacional. Os produtos das telenovelas reinterpretam portanto as cenas em termos de um código estético, de uma linguagem de vídeo, comum aos consumidores do mercado exterior.

A aceitação desses produtos levanta questões intrigantes. Tudo se passa como se grupos similares de pessoas, habitando lugares diferentes, tivessem as mesmas necessidades de consumo. Existiriam assim referências de vida, disponibilidades cotidianas e estéticas, que transcenderiam as fronteiras. A compreensão desses fenômenos pode nos levar a imaginar o desenvolvimento de um mundo no qual as necessidades e os desejos se encontrariam inteiramente padronizados. A um modo global corresponderia uma "cultura global", única, imperativa. Mas é possível, sem contradizer o que vínhamos dizendo, nos abrirmos para uma outra perspectiva. Afirmar que existem estratos internacionais significa atribuir uma realidade concreta a grupos que, independentemente de suas origens espaciais, partilham de expectativas comuns. É isso a meu ver, que confere veracidade à estratégia publicitária que se pretende global, homogênea. Embora na ideologia de seus promotores o público-alvo seja muitas vezes idealizado como sendo o planeta na sua totalidade, na verdade os apelos se enraízam em segmentos cujos estilos de vida estão próximos. Estilos permeados pela inserção particular dos grupos em suas sociedades (faixa de renda, viver em cidade, ser jovem, etc.) e por uma educação permanente no trato com os objetos de consumo e os meios que os veiculam. Ao lado das realidades nacionais e de classe, surge assim um estrato social desterritorializado.

Mas podemos aprofundar um pouco mais nossa análise. A atualização de símbolos e de referências reconhecíveis não significaria o surgimento de uma memória coletiva internacionalizada? À primeira vista, tal formulação pode surpreender, pois nos acostumamos a falar apenas em memórias nacionais. Porém não devemos esquecer que as nações são frutos recentes da história, e que as culturas nacionais, enquanto consciência coletiva, cimento entre os cidadãos de um mesmo país, não existiam antes do século XIX. É somente naquele momento que os valores, costumes e ritos de uma nação, muitas vezes inventados, como a comemoração do 14 de julho na França, se articulam no interior de um todo orgânico. Por outro lado, temos tendência a negligenciar o fato de que a consolidação de uma memória nacional pressupõe já um primeiro passo à desterritorialização. O camponês, o operário, o patrão, presos às suas realidades modais, devem se afastar delas para se identificarem como membros de um país. Esse conflito entre o local e o nacional é uma tensão permanente no processo de construção nacional e, como vimos, se manifesta até na maneira de se aprender a cadência do tempo. As horas locais resistem à hora nacional até o momento em que isso se torna impossível. Um segundo de desterritorialização, acoplado às transformações tecnológicas e econômicas, implica na liberação ainda maior de uma potencialidade transcendente às nações. Penso que essa é a fase que estamos vivendo. Voltando aos exemplos anteriores, eu diria: o oeste já não é mais americano, a telenovela deixa de ser brasileira. As imagens e símbolos operacionalizados pertencem a um domínio comum, por isso inteligíveis. A eficácia da propaganda da Marlboro reside em algo que lhe é anterior, uma educação visual permitida pelo cinema e pela televisão, que divulgaram entre os povos uma imagem verossímil do western. Movimento que evidentemente pressupõe uma socialização imagética, em grande parte favorecida pelas indústrias culturais. Filmes de Hollywood, histórias em quadrinhos, livros de detetive, publicidade, são formas de expressão que, se originalmente estavam vinculadas a espaços determinados, aos poucos se distanciam deles. As estrelas de cinema, Greta Garbo, Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, pôsteres e anúncios, fazem assim parte de um imaginário coletivo internacional (por isso recicláveis enquanto protagonistas de futuras estórias cinematográficas ou filmes publicitários).

A presença de uma cultura-mundo não significa a negação das culturas locais ou nacionais. Nesse sentido, talvez fosse interessante distinguir entre os termos "global" e "mundial". Há na idéia de globalização uma conotação que nos sugere uma certa uniformidade. Quando falamos de uma economia global, nos referimos a uma estrutura única subjacente a toda e qualquer economia. Creio que o universo da cultura não pode ser pensado da mesma maneira. Uma cultura mundial não implica no aniquilamento das partes: ela deve coabitar com uma variedade de manifestações culturais. Porém, se aceitarmos o fato de que se encontra em formação um imaginário coletivo internacional, não podemos escapar à pergunta de como ele se relaciona com as memórias locais ou nacionais. Dito de outra forma, a emergência de processos mundiais engendra uma nova "situação cultural" (retorna o conceito da Antropologia) na qual as partes já não mais se relacionam entre si como antes, pois se encontram articuladas a uma totalidade distinta. A mundialidade redefine os traços particulares. Por exemplo, é possível que em determinados casos o nível local se relacione diretamente com a dimensão mundial, sem passar anteriormente pelo que seria nacional. Isso acontece com a consciência negra expressa no ritmo da música popular. África-Bahia-Caribe formam um universo de práticas e expressões que, para existir, levam em consideração a subalternidade da raça negra nas sociedades atuais e o ludismo das gerações descendentes de escravos. Constrói-se assim um circuito, um conjunto de símbolos, que unificam grupos e consciências, separadas pela distância e pelas nacionalidades. No entanto, dizer que as partes permanecem não significa afirmar a harmonia do sistema. Essa posição bastante difundida entre os pós-modernos e os apologistas da técnica é enganosa. A pluralidade do mundo contemporâneo não é simétrica, na verdade ela tem pouco de democrática. Primeiro porque a modernidade-mundo é marcadamente ocidental, colocando de imediato um problema. Em que medida outras tradições, não-ocidentais, devem se ajustar a ela? Mas podemos ainda nos perguntar sobre o sentido dessa mundialização. Uma maneira seria pensá-la como universalização. O homem teria hoje condições de se livrar de seu provincianismo, de seu localismo. Os ideais do iluminismo, que eram antes um exercício do pensamento utópico, encontrariam agora meios de se realizar no cidadão-mundo. Infelizmente, essa alternativa, que se encontra no horizonte, deve disputar espaço com outra tendência, mais consistente e menos encantadora. O tema do nacional-popular pode nos esclarecer esse ponto. Quando Gramsci procura entender a realidade italiana, ele se volta em especial para a problemática do nacional-popular. O conceito adquire em seu pensamento um valor heurístico, articulando os diversos níveis da estrutura ao bloco histórico. Pode parecer deslocada essa referência a Gramsci, afinal a mundialidade torna obsoleta a preocupação com a construção nacional. Isso é verdade; no entanto há algo que merece ser recuperado na reflexão gramsciana: a noção de hegemonia. Seu interesse pela nação decorria de uma inquietação política, pois ela não era homogênea, encontrando-se divada por poderes e antagonismos. A questão que se colocava era, portanto, como essa hegemonia seria construída, e em benefício de quem se exerceria. O tema se repõe em nível mundial. Uma cultura-mundo não orientaria o consenso no interior de um sistema no qual convivem interesses e concepções diversas? Não seria ela fator de hegemonia? No cenário da ordem política e econômica planetária, abre-se a perspectiva de a cultura desempenhar o papel de elemento de dissolução das contradições (um exemplo disso foi a guerra do Golfo, espetáculo bélico e televisivo mundial no qual censura, interesses políticos, militares e a afirmação inequívoca do chauvinismo ocidental encontravam-se mesclados). A manutenção do status quo (ainda em construção), uma preocupação interna das nações, desdobra-se assim em escala internacional. Por isso a discussão que fizemos sobre a descentralização do mundo deve ser complementada. O fim das referências fixas não significa a ausência tout court de orientação. Se a centralidade já não se constrói mais como no passado é porque as relações de força passam pela rede de interação que constitui o sistema mundial. Daí a importância do controle do fluxo das informações. A flexibilidade do capitalismo não se identifica porém à liberdade das partes, à democratização da cultura. As hierarquias permanecem, mas rearticuladas, redefinidas; a hegemonia adquire portanto uma outra expressão, conferindo aos antigos países "centrais" uma posição privilegiada num mundo pontilhado pelas diferenças-desigualdades profundas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 1993
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