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Messianismos em conflito: interpretação teológico-política de os sertões

Messianisms in conflict: teological-political interpretation of os sertões

Resumos

O ensaio investiga os fundamentos teológico-políticos da obra seminal de Euclides da Cunha, Os sertões, dando especial ênfase à relação entre messianismo e potencial construção da nação. Nele, não se aplica simplesmente o modelo "teológico-político" à leitura da obra, para comprovar, uma vez mais, a tese da equivalência estrutural entre conceitos teológicos e políticos. Mais do que isso, analisa os conflitos da época a partir das exigências teológico-políticas e, assim, compreende as oportunidades e as consequências de suas ruínas (no sentido duplo de destruição causada e de ruína da própria estrutura teológico-política). O ensaio contribui para uma nova percepção crítica do papel de Os sertões, no que diz respeito à complexa tradição messiânica brasileira.

Teologia política; Messianismo; Antagonismo; Ruína; Sensibilidade; Literatura; Brasil; Euclides da Cunha


The essay investigates the theological-political grounds of Euclides da Cunha's seminal work, Os sertões, with special emphasis put on the relation between messianism and potential construction of the nation. This paper does not simply apply the "theological-political" model to the reading of the work, in order to prove once more the structural equivalence between theological and political concepts. More than that, it analyses the conflicts of the period on the basis of theological-political exigencies. It thus understands opportunities and consequences of its ruins (in the double sense of caused destruction and of the ruin of the theological-political structure itself). With regard to the complex Brazilian messianic tradition, this essay contributes to a new critical perception of the Os sertões role.

Political theology; Messianism; Antagonism; Ruin; Sensibility; Literature; Brazil; Euclides da Cunha


Messianismos em conflito: interpretação teológico-política de os sertões* * Agradeço o incentivo de Marisa Velozo e Angélica Madeira, o estímulo intelectual de Pedro Vieira Veiga e Maurício Martins do Carmo, bem como a leitura atenta de Eden Clabuchar Martingo, que, certamente, tornaram este texto mais rico e interessante.

Messianisms in conflict: teological-political interpretation of os sertões

Pablo Sanges Ghetti

Diplomata de carreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Londres (Birkbeck), e mestre pela PUC-Rio

RESUMO

O ensaio investiga os fundamentos teológico-políticos da obra seminal de Euclides da Cunha, Os sertões, dando especial ênfase à relação entre messianismo e potencial construção da nação. Nele, não se aplica simplesmente o modelo "teológico-político" à leitura da obra, para comprovar, uma vez mais, a tese da equivalência estrutural entre conceitos teológicos e políticos. Mais do que isso, analisa os conflitos da época a partir das exigências teológico-políticas e, assim, compreende as oportunidades e as consequências de suas ruínas (no sentido duplo de destruição causada e de ruína da própria estrutura teológico-política). O ensaio contribui para uma nova percepção crítica do papel de Os sertões, no que diz respeito à complexa tradição messiânica brasileira.

Palavras-chave: Teologia política; Messianismo; Antagonismo; Ruína; Sensibilidade; Literatura; Brasil; Euclides da Cunha.

ABSTRACT

The essay investigates the theological-political grounds of Euclides da Cunha's seminal work, Os sertões, with special emphasis put on the relation between messianism and potential construction of the nation. This paper does not simply apply the "theological-political" model to the reading of the work, in order to prove once more the structural equivalence between theological and political concepts. More than that, it analyses the conflicts of the period on the basis of theological-political exigencies. It thus understands opportunities and consequences of its ruins (in the double sense of caused destruction and of the ruin of the theological-political structure itself). With regard to the complex Brazilian messianic tradition, this essay contributes to a new critical perception of the Os sertões role.

Keywords: Political theology; Messianism; Antagonism; Ruin; Sensibility; Literature; Brazil; Euclides da Cunha.

Este ensaio investiga os fundamentos teológico-políticos da obra seminal de Euclides da Cunha, Os sertões, dando especial ênfase à relação entre messianismo e potencial construção da nação. O desafio deste escrito não é simplesmente aplicar o modelo "teológico-político" à leitura da obra, comprovando-se mais uma vez a tese da equivalência estrutural entre conceitos teológicos e políticos (Schmitt, 2002b; Derrida, 2003; Benjamin, 2006). Mais do que isso, é preciso analisar os conflitos da época a partir da própria intransigência teológico-política, e, assim, compreender as oportunidades e as consequências de suas ruínas (no sentido duplo de destruição material e simbólica, mas também de ruína da própria estrutura teológico-política). O ensaio contribui, desse modo, para nova percepção do papel de Os sertões, crítica, mas também aberta ao aprendizado sobre a realidade brasileira que esse clássico ainda pode provocar, no que diz respeito ao complexo messianismo no país.

São identificados três elementos que contribuem para a complexidade do discurso de Euclides da Cunha: o messiânico (promessa de nacionalidade, aberta, mas ancorada em experiências histórico-espaciais), o guerreiro (em que a promessa se realiza através da identificação dos limites positivos e negativos do que pode ser a nação, não sem componente de abertura, de perigo), e o ruinoso (em que a dimensão poética do absurdo do conflito messiânico, sensível para com o sofrimento alheio, assume preponderância, de modo a ensejar a oportunidade de desconstrução do discurso teológico-político, que é, como veremos, dominante). Estas chaves interpretativas contribuem para perspectiva crítica sobre o lugar de Os sertões na história do discurso sobre a questão nacional brasileira. Tais pontos serão analisados individualmente e serão precedidos por reflexão sobre a premissa teológico-política da interpretação proposta.

Premissa teológico-política

A interpretação teológico-política, portanto, é ponto de partida, mas não necessariamente de chegada. Não se trata de dado irredutível, e sim de hipótese inicial de reflexão, que, por sua vez, deve ser tomada em sua complexidade. Certamente, é quase inegável que conceitos políticos modernos como os de soberania popular, utopia social, direitos humanos, estado de exceção, representação, entre outros, podem encontrar equivalentes teológicos mais antigos; respectivamente soberania divina, messianismo em sentido estrito, dignidade humana, milagre e visibilidade. No entanto, esta "precedência" da teologia incorre em erro ao negligenciar as fortes relações de poder que sempre permearam o próprio discurso teológico (Agamben, 2007), e a própria existência da teologia como apologia institucional (Boff, 1994, p. 178).

A premissa teológico-política deve ser ainda mais especificada. O messianismo é o elemento central aqui, seja do ponto de vista religioso (messianismo em sentido estrito), político (utopia social) ou nas formas de sociabilidade que os combinam. Ainda que conserve a marca da experiência histórica que lhe deu origem, a crença no messias, tal premissa também aponta para um elemento transplantado a outros contextos, o que Derrida chama de "messianicidade" (Derrida, 1996). Assume-se, além disso, que alguma forma messiânica seja imprescindível na construção da nacionalidade. A nação não é jamais um dado; é imaginada, inventada, projetada (Grossesse, 2004). Mesmo consolidada, não pode persistir no tempo sem ao menos a promessa de renovação de sua fundação, a promessa de retorno e purificação - e aqui a distinção de Arendt entre fundação e revolução não se sustenta, sendo ambas indissociáveis em experiências políticas modernas (Arendt, 1991; Derrida, 1994, pp. 34-35).

A promessa radical e intensa do momento messiânico, ainda que marcada por experiências concretas de dor e dificuldade, tende ao proselitismo e tem dificuldade em conviver com visões de mundo alternativas; ressalte-se que o messianismo em tela tem raízes monoteístas, o que dá combustível, em última instância, ao fundamentalismo (Nancy, 2001). Está-se a um passo da irredutível conflitividade da modernidade. Nas pesquisas pós-coloniais, a nação moderna é fundada por uma combinação poderosa de ancoragem concreta, local, particular, e impulso de afirmação universal desta mesma particularidade (Fitzpatrick, 2001; Derrida, 1991). É precisamente em virtude do conflito que uma identidade forte acaba por surgir (sempre por diferenciação), contrabalançando as tendências universalistas e mantendo a ancoragem concreta. Neste sentido, a formação da unidade política é, pelo menos do lado concreto, função da distinção entre amigos e inimigos (Schmitt, 2002a; Mouffe, 2006, pp. 8-34). Há grande poder descritivo nessa abordagem, mas deve-se tomar cuidado para evitar sua essencialização.

Não é impossível se observar a domesticação ou trégua dos conflitos teológico-políticos. O reconhecimento do mérito do adversário, e sua legitimidade enquanto adversário, não elimina o conflito, mas pode regulá-lo ou suspendê-lo. Nesse caso, os atores em conflito, sejam nações, movimentos políticos ou religiões, reconhecem-se como partícipes de uma ordem social comum. Ocorre que, ao estenderem a linha de pertença a esta ordem comum, não podem, sob pena de perderem a identidade, alcançar o mundo inteiro ou todas as pessoas. Sempre restam espaços ou grupos que não se podem abrigar pelo manto da copertença. Exemplo clássico é a diferença, por um lado, entre as relações "internacionais" entre as potências coloniais no contexto europeu, e, por outro, destas diante dos povos colonizados, ou mesmo entre si, nos espaços reconhecidamente disponíveis para a colonização (Schmitt, 2003).

No caso de Canudos, o que estava em jogo era tanto uma promessa de nação, republicana, universalista (que enquanto promessa tem um lado de vacuidade, de abertura), como a escolha de (o lado da determinação) pontos focais de atração e distanciamento, ou amizade e hostilidade, que permitiriam a modelagem de uma identidade nacional. Euclides da Cunha é fundamental, precisamente, porque dá conta de ambas as dimensões, e não sem ambiguidades quanto aos fatores de delimitação dos contornos da nacionalidade. De tal forma que se pode depreender de sua obra um terceiro elemento, qual seja, o desastre, a ruína, o absurdo de Canudos, que implica a todos, sertanejos e republicanos, jagunços e generais.

O canto messiânico

Não há messianismo e não há promessa sem a experiência do deserto; não simplesmente a do deserto real, mas também, na expressão de Derrida, do "deserto do deserto" (Derrida, 1996, p. 37). Isso quer dizer que a promessa messiânica se faz presente na interseção entre a vivência e a memória do deserto histórico, bíblico e tradicional, por um lado, e a experiência que faz, do deserto, o deserto da promessa: a travessia pelo espaço de vastidão e solidão, vacuidade e abandono (Derrida, 1996, p. 22).

Em Os sertões, não falta a ambiência desértica. Euclides da Cunha propõe uma verdadeira fenomenologia dos sertões brasileiros, aludindo ao deserto, e, como veremos, sublimando-o. Suas descrições não se furtam a externar, não sem poesia, as impressões do autor:

daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho de sertão - quase um deserto - quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes... (Cunha, 2003, p. 47).

Em outros momentos, a referência a deserto é comum: "margem de deserto" (Cunha, 2003, p. 44), "o regime desértico ali se firmou" (Cunha, 2003, p. 47) etc.

Mais importante que a referência em si ao deserto, é o que faz do sertão mais desértico (no sentido de intensidade da promessa messiânica) do que o próprio deserto. O "deserto" sertanejo traz em si, em sua temporalidade única, o germe do gozo e da fartura (textualmente, o paraíso). Isso porque o sertão não se encaixa nas categorias geográficas hegelianas - estepes ou planícies, vales férteis e, finalmente, litorais e ilhas (Cunha, 2003, p. 80) -, mas, ao mesmo tempo, realiza-as todas em sua transmutação quando da passagem do período das secas para o das chuvas:

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes... Na plenitude das secas são positivamente o deserto. [...] Ao sobrevir das chuvas a terra [...] transfigura-se em transmutações fantásticas, contrastando com adesolação anterior. [...] E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono (Cunha, 2003, p. 81).

E, assim, compreende-se melhor uma seção de texto anterior e seu iniciar evocativo: "e o sertão é um paraíso" (Cunha, 2003, p. 77). Vê-se também como sobressai aqui o poeticamente tentador hegelianismo natural (mas cientificamente inaceitável) de Euclides da Cunha: "a natureza compraz-se num jogo de antíteses" (Cunha, 2003, p. 82).

Além disso, a construção narrativa desse espaço físico incomparável encaixa-se perfeitamente ao projeto de construção da "raça", do brasileiro autêntico. O homem ali enfrenta uma natureza "tenaz e inflexível" (Cunha, 2003, p. 66), e será capaz de reconhecer o paraíso exatamente porque enfrentou a travessia das "veredas sertanejas", que "é mais exaustiva que a de uma estepe nua" (Cunha, 2003, p. 65). Assim, o sertão, "isolador étnico" (Cunha, 2003, p. 80), seria capaz de forjar o sertanejo, um mestiço digno, capaz de ser "o cerne vigoroso da nossa nacionalidade" (Cunha, 2003, p. 140).

Perceba-se que, não obstante o notado elogio ao sertanejo - "o sertanejo é, antes de tudo, um forte" (Cunha, 2003, p. 157); é um "titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos" (Cunha, 2003, p. 313) -, não há lugar para a sua cultura. A civilização parece ser única, e a seta da história aponta inexoravelmente para formações sociais de tipo europeu (não se pode negligenciar o aporte hegeliano aqui). Não haverá um florescimento cultural autêntico a partir de uma base étnica nova. Ao contrário, esta base étnica demanda proteção da civilização para que se consolide e possa conviver algum dia com "estádio social superior" (Cunha, 2003, p. 154).

Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos (Cunha, 2003, p. 103).

Note-se a incongruência: por um lado, a crença na emergência de uma raça forte e única, forjada por meio inóspito, isolado, e, portanto, propício para tanto; e por outro, a raça por vir deve ser guiada por modelos civilizacionais da "raça superior", única garantia de futuro digno. Em ambos os casos, o futuro, a promessa do porvir é capturada pelo determinismo, geográfico, racial ou cultural. Mas essas expressões de promessas messiânicas devem ser abordadas mais a fundo, passando pelo fervor republicano de Euclides da Cunha e por sua descrição do messianismo português e sertanejo.

Em "A nossa vendeia", o autor baiano propõe uma comparação entre a Revolução Francesa, e sua revolta camponesa e monarquista, a Vendeia, e o movimento republicano brasileiro, com sua revolta similar, a de Canudos, que seria superada como teria sido a primeira. Mas, naquele momento (março de 1897), não há dúvida ou ambiguidade: "a República sairá vitoriosa desta última prova" (Cunha, 1994, p. 71). Seguindo o cientificismo e positivismo que reinavam em seu tempo, Euclides da Cunha parecia inabalável em sua "fé no progresso"1 1 Para um estudo do triunfo desta fé no progresso, ver Nisbet (1994, pp. 171-178). Para essa temática em Euclides da Cunha, ver Ventura (1996, p. 285). , e não é por acaso que esta última se tenha tornado uma religião organizada (e que ainda hoje subsiste no Rio de Janeiro). Como veremos, esta fé será abalada em Canudos.

Em Os sertões, contudo, além de analisar o "fanatismo" do Conselheiro e suas origens, o autor também ataca o fanatismo republicano, ilógico, voluntarista, imitador. Os retratos de Floriano Peixoto e de Moreira César são implacáveis, nesse sentido: "O fetichismo político [em relação à memória de Floriano] exigia manipansos de farda [Moreira César]" (Cunha, 2003, p. 368). O tema religioso é tão significativo que Cunha equipara a campanha de Canudos a uma cruzada:

A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não enxergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável (Cunha, 2003, p. 583).

Quanto à descrição do "messianismo" do Arraial, é interessante que Euclides da Cunha não deixa de notar suas heranças lusitanas: "o elemento emocional da raça superior" (Cunha, 2003, p. 187). Aqui, os fatores socioculturais parecem preponderantes, de modo que o atraso brasileiro seria devido ao apego a desequilíbrios típicos da Idade Média europeia. De todo modo, a religiosidade sertaneja também agrega outros elementos: as "crendices populares" africanas e indígenas. Além disso, a análise da contribuição étnica não deixou de figurar nessa interpretação de Canudos, e, sobretudo, do Conselheiro, tido como "documento raro de atavismo" e dotado de "constituição mórbida" (Cunha, 2003, p. 201). Teria sido um louco capaz de sintetizar um tempo e um meio:

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo na agitação do que surgiu (Cunha, 2003, p. 200).

Vê-se que, apesar de certo reconhecimento das origens europeias do messianismo, a visão de Euclides da Cunha do movimento religioso de Canudos e de seu líder é bastante pejorativa. Não se deu valor aos problemas sociais, às raízes do messianismo na crise de valores, de sociedade e de modelos de legitimidade, desencadeada pela República (Queiroz, 1997, p. 208). A obra de Queiroz é importante, assim, para resgatar o sentido funcional dos movimentos messiânicos. No entanto, a autora não dá ênfase a seu aspecto histórico, apesar de reconhecê-lo (Queiroz, 1997, pp. 217-220), inscrito numa tradição, como uma forma que se transmite de geração em geração para conferir sentido e promover a ação diante da crise, da desgraça, do desespero. Este mesmo impulso messiânico, como vimos no âmbito do positivismo e do republicanismo, parece articular-se de diversas maneiras para dar sentido à ação em contextos que não se encaixam perfeitamente na caracterização da crise social, nem no desejo idílico pelo paraíso na terra. O recurso a uma imagem de futuro e à sua promessa no presente pode, ao contrário, ser tido como expressões cotidianas da busca por sentido2 2 Para essa discussão, ver Derrida (1996) e sobretudo Agamben (1999), que tratam o tema do messianismo numa dimensão fundamental, para não dizer ontológica, ao lado das dimensões histórica e funcional do fenômeno. .

A visão pejorativa dos movimentos messiânicos ainda encontra adeptos na antropologia. Se Euclides da Cunha adota a visão do messianismo como atraso puro e simples (clara em "A nossa vendeia" e partes de Os sertões), também o classifica, em sua obra seminal, como uma espécie de transição entre dois estágios mentais e culturais. Tal é o caso do gnosticismo, que se coloca entre o paganismo e o cristianismo, e que caracteriza o Conselheiro, o "gnóstico bronco" (Cunha, 2003, pp. 201-203). Esta oscilação não evita uma caracterização negativa que ainda perdura e que, a rigor, a informa. Pode-se encontrar exemplo notável na obra de Roberto DaMatta (que não deixa de reconhecer a sua inerradicabilidade): "como a loucura, a perversão, a desonestidade [...], o messianismo é um tipo de convidado indesejável" (DaMatta, 1996, p. 2).

Acrescente-se, por último, que a influência duradoura de Os sertões - referência fundamental inclusive para brasilianistas norte-americanos (Levine, 1993) - e seu brilhantismo na caracterização dos fanatismos em conflito, não o exime do messianismo (num sentido amplo), ou ao menos do salvacionismo (se se quiser dar ênfase ao aspecto redentor impessoal da ciência), típicos do final do século XIX e início do XX. Com seu destaque na inelutabilidade da civilização europeia e dos valores puros da República, apesar de suas deturpações brasileiras e da amargura de seu projeto de nacionalidade, Euclides da Cunha parece manter-se firme no campo da fé de seu tempo.

O canto guerreiro

A questão da relação entre conflitividade e nacionalidade já foi explicitada na primeira seção deste ensaio, associada à temática teológico-política e à literatura pós-colonial. De qualquer forma, as bases para a indissociabilidade entre nação e conflito encontram-se muito bem-assentadas na teoria social moderna. Com Freud, nota-se que "é sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade" (Freud, 1997, p. 71). Foucault, por seu turno, sem abandonar a dinâmica do conflito de uma sociedade instada sempre a defender-se, propõe uma inflexão com a ideia de predomínio da rivalidade, civil, sobre a guerra, militar (Foucault, 1997, p. 201). Essa seria uma função histórica do Iluminismo, que, pode-se aduzir, propõe também a regulamentação da própria guerra, por meio do direito dos conflitos armados, por vezes chamado - infeliz eufemismo - de direito humanitário. Trata-se de tornar mais complexos os limites de hostilidade e afetividade na constituição da nação moderna. De todo modo, a guerra não desaparece, e, de fato, a sua domesticação parcial coexiste com a radicalização do antagonismo para com os que não seriam de forma alguma dignos de lutar, "raças inferiores", povos primitivos ou, mais recentemente, fundamentalistas religiosos3 3 O tema é bem-desenvolvido, em relação a consequências para o holocausto, em Agamben (2003). .

O positivismo e o cientificismo euclidianos não deixam de ser herdeiros das Luzes - os seus mais tenazes. Euclides da Cunha conserva aqui um pouco da disputa civilizacional, civil e ideal, ao condenar a Guerra de Canudos e a campanha militar da República, em particular. Cunha confere sempre dignidade aos sertanejos: eles não são homini sacri, ou seja, não podem ser mortos sem sacrifício, sem luta digna, pautada pelas normas da civilização (Agamben, 2003). No entanto, não deixam de ser primitivos e, portanto, condenados à extinção; ou, pelo menos, seria a sua cultura que estaria condenada. Como os selvagens de outrora, que tanto contribuíram para a conformação da identidade ocidental, e do projeto ocidental de universalização paradoxal de seu mundo social particular, trata-se de seres valorosos, mas, ao mesmo tempo, patéticos, infantis, mentalmente atrasados. Observe-se, nessa direção, a importância de duas seções sucessivas de texto.

A primeira ("Por que não pregar contra a República") faz uma espécie de mea-culpa, afirmando que não se percebeu "o traço superior do acontecimento" de Canudos, tendo a campanha se tornado "uma entrada inglória" (Cunha, 2003, p. 270). A segunda diz respeito à "missão abortada" (Cunha, 2003, p. 273), que teria sido solução mais "nobre e prática" que o "argumento único [...] a bala" (Cunha, 2003, p. 272). Trata-se de uma missão da Igreja que teria o objetivo de convencer o Conselheiro a dispersar e, sobretudo, desarmar o arraial. A missão não é confrontada pelo fanatismo dos canudenses ou de seu líder; ao contrário, a intransigência é do frei João Evangelista do Monte Marciano. A missão é recebida quase cordialmente (Cunha, 2003, p. 275) e, diante das ordens radicais do frei, Antônio Conselheiro reage de modo sereno e ponderado. Teria sido uma oportunidade desperdiçada. Além disso, toda a loucura e "atavismo" apontados como características de Antonio Conselheiro (Cunha, 2003, pp. 199-238), neste curto espaço, sobre a oportunidade perdida, parece infundado4 4 O retrato do Conselheiro, nesse ponto, assemelha-se ao desenhado por Levine, através de outras fontes, como respeitador da Igreja e de sua doutrina tradicional, em especial, em sua versão local, manifesta em suas alianças com os sacerdotes do sertão (Levine, 1993, pp. 193 e ss.). .

Ressalte-se o pano de fundo de primitivismo religioso que pode ser corrigido ou sublimado, por um lado, e o fundamento étnico da dignidade sertaneja, por outro. São essas características que classificam os sertanejos como inimigos legítimos, quase imbatíveis na guerra, mas passíveis de doutrinação civilizadora, num conflito espiritual inevitável. Desse modo, a distinção entre o mestiço do interior e o mestiço do litoral é essencial ao esquema euclidiano, dentro da conformação identitária brasileira. O mestiço do litoral, em que a influência negra era marcante, corresponde ao tipo geral do mestiço, que como tal não enfrentara a agrura da luta e não evoluíra de modo autônomo: era proteiforme, desequilibrado e degenerado (Cunha, 2003, pp. 150, 151, 155). O sertanejo é diferente, mas constitui a contraprova da regra geral da mestiçagem: é uniforme, forte e retrógrado (Cunha, 2003, pp. 150, 153, 155). Este último aspecto é crucial para se compreender a possibilidade de evolução, de diálogo, de missão civilizatória, ao invés de destruição, pura e simples, embora esta última ainda esteja à espreita. O sertanejo encontra-se em posição extremamente delicada; localiza-se no limiar mesmo entre a atração e a repulsa, entre o amigo e o inimigo do projeto de nação republicana5 5 Lembre-se, contudo, que tal lugar limítrofe contrasta, pelo menos em fins do XIX, com o não lugar do negro, em relação a quem a literatura racialista de Nina Rodrigues planejava códigos penais para diferentes raças (Capeller, 1995). .

Além disso, no que concerne ao conflito em si, os pretensos fortes e primitivos do sertão levavam vantagem. Não apenas porque conheciam o terreno (a caatinga era aliada dos jagunços), mas também porque se estava diante de um exército de degenerados cuja inconstância e indisciplina eram incomparáveis à altivez do homem do sertão. O sertanejo conhece o conflito, o perigo, e enfrenta-o. O soldado está apenas aprendendo com o conflito e esbarra na sua própria condição étnica: "homens de todas as cores, amálgamas de diversas raças", que vão para a "batalha como para algum folguedo turbulento" (Cunha, 2003, p. 402). E como já foi dito, não são, segundo o próprio Euclides da Cunha, muito diferentes dos canudenses em matéria de superstições. Sobretudo quando Moreira César é atingido (na terceira expedição republicana), os soldados começam a atribuir poderes sobrenaturais ao Conselheiro, ou a acreditar nas crenças populares que o envolviam (Cunha, 2003, p. 436).

O autor de Os sertões tampouco se furta a discutir a própria natureza da guerra, e a extrair daí implicações para o conflito de Canudos. Ainda discorrendo sobre a segunda expedição, Euclides da Cunha criticava o "triunfo antecipado" e a "crença espontânea" na vitória (Cunha, 2003, p. 326). Segundo ele, "nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. Está nela o melhor estímulo dos que vencem" (Cunha, 2003, p. 326). Também considera a guerra "uma coisa monstruosa e ilógica em tudo" (Cunha, 2003, p. 326), de modo que são necessárias as características primitivas do homem, que o medo e a "certeza do perigo" estimulam.

Percebe-se, assim, que os sertanejos são louvados incessantemente por suas virtudes físicas e étnicas, mas combatidos por suas falhas intelectuais. Falta-lhes alcançar o estágio de maturidade da civilização, apesar de serem eles os portadores da semente de esperança de uma identidade brasileira própria, marcada por uma raça autóctone e única. Quer-se aproveitar esse elemento étnico e destruir, por assimilação e doutrinação, o mundo espiritual de Canudos. Nesse sentido, o denso texto de Adriana Johnson (2005) apresenta um lampejo crucial: apesar de tentar denunciar um crime, o da destruição física do arraial, Euclides da Cunha comete outro ao subtrair de Canudos o seu meio mais nobre e mais radical: a decisão política de Antônio Conselheiro e seus seguidores de lutar por manter-se à margem da nova civilização que se criava (não se tratava de ganhar benefícios ou reivindicar benefícios perante o Estado). Segundo Cunha, o antagonismo entre Belo Monte e a República era inevitável, mas não era um confronto político, pois o movimento "não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional" (Cunha, 2003, p. 268). Sonega-se de Canudos algo que os sertanejos certamente tinham, e que a literatura política em língua inglesa chama de agency, capacidade de ação, subjetividade num sentido político e exterior ao direito estatal (Singer, 2009).

Dessa forma, Os sertões desvaloriza o momento propriamente político de Canudos: a decisão de antagonizar a República, tornando-a idêntica ao mal, e, portanto, fazendo-a instrumento para a articulação de uma série de outros desejos: de sobrevivência, comunhão religiosa, liberdade, não opressão, legitimidade política etc. Esta decisão nunca deixa contar com um elemento incontrolável, pouco afeito à previsibilidade do cálculo racional, mas, igualmente, sempre passa também pela tensão com relação a esse mesmo cálculo, que não pode ser totalmente suspenso. A teoria política de Ernesto Laclau, por exemplo, não deixa de reconhecer o valor do Arraial enquanto movimento político (apesar de que dentro de limites históricos e materiais da estrutura social, da sedimentação social em que viviam):

um dia o Conselheiro chegou a um vilarejo onde as pessoas estavam se revoltando contra os coletores de impostos e pronunciou as palavras que se tornariam a equivalência chave de seu discurso profético: "A República é o Anti-Cristo". Daquele momento em diante seu discurso proveu uma superfície de inscrição de todas as formas de descontentamento rural, tornando-se o ponto inicial de uma rebelião de massas [...]. As pessoas aceitaram-no [tal discurso] porque era o único disponível que se dirigia às agruras por que passavam (Laclau, 2000, p. 83).

Dessa forma, ficam muito claras as implicações políticas de qualquer interpretação do fenômeno Canudos e, assim, o caráter político da obra de Euclides da Cunha, em particular (sem desconsiderar, decerto, a sua pluralidade e vitalidade estilística e sua tormenta individual). Belo Monte e o sertanejo em geral são instrumentalizados duplamente em favor da constituição da República. Por um lado, são inimigos dignos dela, que devem ser combatidos legitimamente, para que possam servir à construção nacional em bases mais sólidas; que são portanto capazes, com o tempo, de aprender e civilizar-se. Por outro, seu ideário, seu universo simbólico é reduzido aos patamares mais vis da existência humana; sua radicalidade política, para usar termos de Laclau (2000) e Mouffe (2006), parece ser tão intensa, que precisa ser simplesmente eliminada. Daí também a insistência de Johnson sobre o simbolismo do anúncio euclidiano da destruição total do Arraial, o que contrariaria a versão histórica (2005, pp. 379-380). Os sertanejos são o outro hostilizado-instrumentalizado pela nova sociedade em gestação, e não algo completamente marginal como pensa Zizek (2004) em suas menções a Canudos. E isso ocorre apesar de Euclides da Cunha ter também identificado diversos problemas semelhantes, e quase simétricos, na própria campanha republicana. As tropas republicanas são racialmente "inconsistentes" e, ao mesmo tempo, são ideologicamente hígidas. Ou seja, não podem usufruir da grandeza espiritual que está a seu alcance com essa "herança inesperada" (Cunha, 2003, p. 269), a República.

O conflito de Canudos e o antagonismo Canudos-República são instrumentalizados em prol de um projeto republicano que, diante de suas graves dificuldades, permanecia rigorosamente por vir. É uma forma de messianismo (mais laica) combatendo e tentando assimilar, em parte, uma outra (mais religiosa).

O canto ruinoso

É hora de fazer aquelas indicações prometidas acerca de um terceiro horizonte de leituras da obra, ainda sob a égide mais ampla da inter-relação entre messianismo e construção da nacionalidade brasileira. Adriana Johnson faz crítica pertinente à pertença de Os sertões ao discurso hegemônico e excludente que conserva uma estrutura social perversa no Brasil, embora deixe de dar a devida ênfase à valorização do sertanejo, enquanto pedra fundamental deste mesmo discurso, e às críticas de Cunha ao próprio fanatismo dos representantes da República (Johnson, 2005). Ocorre que, como clássico, o livro de Euclides da Cunha pode ser sempre ressignificado, reapropriado. E não se deve negligenciar o caráter poético da obra, que se presta, mais ainda, a tal empreitada (com o qual vem de acréscimo a questão biográfica e autobiográfica da escrita).

Tem sido uma tônica da leitura de Euclides da Cunha, nos últimos anos, o reconhecimento de seu caráter dilacerado, atormentado, e dos limites, das contradições e das impossibilidades que ele apresenta ou que deixa entrever ao leitor (Lima, 1997; Madeira, 2004). Johnson (2005), corretamente, afirma que a constatação do caráter fragmentário e aporético de Os sertões não o exime de fazer parte e de contribuir para uma ordem de poder excludente e perversa. Mas não há incompatibilidade entre as duas abordagens. A estrutura de poder em questão demandava, e ainda demanda, a convivência com graves paradoxos. Mais do que não excludentes, tais abordagens são complementares.

Um discurso crítico sobre a história brasileira não deve evitar, por exemplo, o paradoxo de nossos messianismos, que persistem sem deixar de falhar uma vez após a outra, infinitamente. A ruína de Belo Monte é também a ruína da República, é também o dilaceramento do próprio Euclides (mudo de registro para o primeiro nome propositalmente), como escritor, como profissional, como pessoa. O sonho de Euclides é rigorosamente impossível, já para a sua época. "O cerne vigoroso da nacionalidade" (Cunha, 2003, p. 140) já não tinha a menor chance de desenvolver-se devido à aceleração do tempo e diminuição do espaço que estava em marcha. Ele se debatia com uma "civilização de empréstimo" (Cunha, 2003, p. 269). Por seu turno, a "guerra das raças", em que se baseia, é fruto de outro empréstimo, não só bizarro, em se tratando de país fortemente miscigenado, como resultado da leitura bastante infeliz do próprio Gumplowicz, para quem tal guerra é posterior à criação da unidade política, e não seu fundamento (Lima, 1997, p. 32). O Brasil tornou-se cada vez mais mestiço, e cada vez menos homogêneo etnicamente. A cultura popular foi valorizada. A República jamais foi remotamente parecida com o sonho apolíneo de Euclides.

Toda essa ruína da história (mais do que história da ruína), toda essa ruína de projetos de Brasil pode ser interpretada, por sua vez, de modos bem distintos. Tem-se a possibilidade de uma abordagem cínica ou desesperada, segundo a qual qualquer projeto de futuro se torna inviável ou, ao menos, em que predomine a indiferença. Pode-se resumir isso, nas palavras de Jean-Luc Nancy, como a esfera da desolação (Nancy, 2005, pp. 147-153). Tem-se, ainda, o caminho da superação; aqui cada derrota leva a um aprendizado e a um acúmulo de forças, de forma que o momento de maior derrota represente também a maior oportunidade de reação. Zizek (2007) chama isso de "argumento de Hölderlin", enquanto, com Nancy, pode-se intitular esfera da consolação (Nancy, 2005, pp. 147-153). Finalmente, pode-se perquirir uma última hipótese, qual seja, a ruína como oportunidade na fragilidade (Derrida, 2003, p. 13); não de um saber instrumentalizado, ou de continuidade num caminho ideal pré-definido, mas a chance da experiência ético-política enquanto abertura e oportunidade de criação singular de sentidos. Aqui a experiência da ruína abre, de maneira radical, a própria questão do sentido - como na obra de Nancy, em todos os sentidos do termo (Guibal, 2004) -, num difícil para-além das estruturas teológico-políticas dominantes; pode-se chamar tal questão (e o que há nela que não se esgota na arquitetura de uma questão) de esfera de sensibilização. Não se está aqui no âmbito da oposição entre o sensível e o inteligível: o sensível de sentido, enquanto direção e questão, explode essa polaridade, mas sem deixar de notar que essa explosão já acontece no interior da percepção e das aporias da relação vivente-meio (Nancy, 2005, pp. 179-188).

A interpretação crítica de Euclides pode perpassar todas as três esferas. Mas apenas o último termo merece maior destaque no âmbito desta seção. Os outros dois, de certo modo, são formas de resposta à experiência da ruína que a negam, contornam ou escamoteiam. Como a ruína está sempre presente, ainda que de forma virtual, a desolação e a consolação fazem parte parte das experiências messiânico-conflitivas que foram discutidas até agora. Mais além disso, enfrentar a ruína enquanto ruína é espaço próprio de pensamento sensível. Não se pode negar, em que pesem todos os senões já referidos, que Euclides era mestre nessa arte de manter-se firmemente fiel à incontornabilidade da tragédia de Canudos enquanto tragédia. Com todas as suas escolhas problemáticas e sua pertença ao universo teórico de seu tempo, aliado a uma estrutura de poder dominante, a fidelidade ao acontecimento ruinoso e tormentoso de Canudos foi marca sua. Seu livro não foi redentor, apesar de toda a sua descritividade gráfica. Seu poder discursivo foi usado para perseverar no coração do paroxismo de seu tempo. Como realidade complexa, mesmo essa sensibilização pode ser reduzida a um discurso de exculpação (muito gira em torno do sentido da vergonha, que pode ser lida como ensejando abertura ao outro mais digna e verdadeira que a mera culpa). A ambiguidade é inevitável, mas é difícil não ver, ao menos na descrição da entrada dos prisioneiros no acampamento militar, o triunfo frágil da sensibilidade:

Os combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial, in extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o das trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os arcabouços esmirrados e sujos, cujos molambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros - a vitória tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana - do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos... (Cunha, 2003,pp. 749-750).

Pode-se chamar a atenção para esse aspecto de tragédia sui generis de Os sertões. O livro representa algo que é, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, "trágico e imundo", glorioso e vil, o vigor da experiência concreta e a mais pura elaboração estética e atribuição de sentido a interlocutores excluídos. Não se trata de tragédia em que o herói estivesse bem-delimitado, em que ele fosse dotado de grandeza, em que houvesse instância superior para juízo de ações dos homens e relação com o mundo "real" ou a tradição. Muito embora tais elementos não estivessem totalmente ausentes, a ruína já os preenchia desde o início. Talvez haja algo de drama barroco no relato de Euclides6 6 A proximidade do Barroco em Os sertões é apontada por Haroldo de Campos (Campos, 1997, pp. 51-57). : personagens dilacerados; trauma ininterrupto e insolúvel; gênero indiscernível, cuja marca é o luto. E logo, mais do que o Barroco, simplesmente, tem-se algo próximo do drama barroco como concebido por Benjamin, já em seu deslocamento do termo, pela ênfase em seu elemento enlutado, o Trauerspiel (Benjamin, 1998, 2004). E muito embora o texto euclidiano não seja exatamente alegórico - em sua forte ancoragem concreta, Euclides está mais próximo da tragédia clássica (Schmitt, 1985) -, há algo de alegórico em sua estética literária.

É dessa maneira que a tensão e o hibridismo de Os sertões, apontados pela crítica contemporânea, podem ter um sentido mais profundo do que aquele afeito à intenção do autor, ou de sua colaboração com os esquemas conceituais de dominação de sua época - especialmente relevantes no que diz respeito a seu lugar contemporâneo. Assim, como o indeciso soberano barroco de Benjamin, Euclides não decide se faz ciência ou arte, se o Brasil tem ou não esperança de futuro, ou mesmo quais de seus personagens representam a civilização (termo com certa vacuidade nessa leitura). Ao não decidir cabalmente, apesar de haver inúmeras decisões pontuais, escolhas vocabulares e rítmicas, Euclides apresenta, põe em cena (faz mise-en-scène) o sertanejo. Desse modo, seu drama pode ser reativado e sua posição política invertida; precisamente aqui, vê-se a chance de sentidos novos, deslocados, a chance de sensibilidades renovadas para com o sofrimento alheio e as fragilidades intrínsecas ao discurso e ao pensar. Além disso, a explosão do sertão, a explosão do excluído, enquanto excluído, sem vontade de integração, não deixa de permanecer, assim, fora do mundo da República. A vitória desta última não conquista o imundo - que pode ser lido como colapso de um mundo, de um universo de sentido (Nancy, 2002, p. 16) -, que permanece impávido seja na morte, a não rendição, seja na vida, a morte-vida que descreve entre os prisioneiros. Independentemente da linguagem conceitual e de suas deficiências, transparece uma escrita aberta ao sofrimento indizível.

* * *

Se este ensaio demonstra que Os sertões está ancorado na teologia-política e na conflitividade inerente a seus messianismos, percebe-se também que é pensável, a partir dessa mesma obra, uma desconstrução sensível da sua marca soberana. Eis nesta sensibilização, que não é propriamente euclidiana, mas que também está presente nele, a chance de um outro elemento messiânico. Essa outra "messianicidade" é ruinosa e vazia e, portanto, começa a ir além dos messianismos históricos. Sem renunciar a suas heranças, ela enseja firme abertura para a alteridade e delicada virada pós-teológico-política. Tal virada não significa o fim das correspondências teológico-políticas, mas o anúncio de um desarmamento improvável de sua marca soberana. E, talvez, não seja de todo impossível pensar o Brasil, ainda que não exatamente a nação, sob o traço tênue da sensibilidade.

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  • *
    Agradeço o incentivo de Marisa Velozo e Angélica Madeira, o estímulo intelectual de Pedro Vieira Veiga e Maurício Martins do Carmo, bem como a leitura atenta de Eden Clabuchar Martingo, que, certamente, tornaram este texto mais rico e interessante.
  • 1
    Para um estudo do triunfo desta fé no progresso, ver Nisbet (1994, pp. 171-178). Para essa temática em Euclides da Cunha, ver Ventura (1996, p. 285).
  • 2
    Para essa discussão, ver Derrida (1996) e sobretudo Agamben (1999), que tratam o tema do messianismo numa dimensão fundamental, para não dizer ontológica, ao lado das dimensões histórica e funcional do fenômeno.
  • 3
    O tema é bem-desenvolvido, em relação a consequências para o holocausto, em Agamben (2003).
  • 4
    O retrato do Conselheiro, nesse ponto, assemelha-se ao desenhado por Levine, através de outras fontes, como respeitador da Igreja e de sua doutrina tradicional, em especial, em sua versão local, manifesta em suas alianças com os sacerdotes do sertão (Levine, 1993, pp. 193 e ss.).
  • 5
    Lembre-se, contudo, que tal lugar limítrofe contrasta, pelo menos em fins do XIX, com o não lugar do negro, em relação a quem a literatura racialista de Nina Rodrigues planejava códigos penais para diferentes raças (Capeller, 1995).
  • 6
    A proximidade do Barroco em
    Os sertões é apontada por Haroldo de Campos (Campos, 1997, pp. 51-57).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      2010
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