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A ordem do discurso: da participação à política

The order of discurse: from participation to politics

Resumos

Com base na Análise do Discurso e com referência ao caso brasileiro argumenta-se que a participação política deve ser pensada na sua dimensão discursiva, como secularização do "efeito de piedade" próprio ao discurso teológico.


On the basis of Discourse Analysis and with regard to the Brazilian case it is argued that political participation should be seen in its discourse dimension, as secularization of the "piety effect" which is distinctive of the theological discourse.


REFORMAS

A ordem do discurso: da participação à política* * Este texto faz parte de uma pesquisa subvencionada pelo Conseil de Recherches en Sciences Humaines du Canada (CRSH). Trata-se de versão muito modificada de exposição apresentada ao seminário sobre heurística e método do Centre Interuniversitaire d'Analyse du Discours et de Socio-critique des Textes (CIADEST), Montréal.Tradução de Gabriel Cohn.

The order of discurse: from participation to politics

Andre Corten

Professor de Ciência Política e de Análise do Discurso na Universidade de Quebec (Montreal) e pesquisador-visitante no CEDEC

RESUMO

Com base na Análise do Discurso e com referência ao caso brasileiro argumenta-se que a participação política deve ser pensada na sua dimensão discursiva, como secularização do "efeito de piedade" próprio ao discurso teológico.

ABSTRACT

On the basis of Discourse Analysis and with regard to the Brazilian case it is argued that political participation should be seen in its discourse dimension, as secularization of the "piety effect" which is distinctive of the theological discourse.

A participação é um termo muito presente no vocabulário político brasileiro (e latino-americano), especialmente na expressão "democracia participativa" (Benevides, 1991). No esquema ético-político da esquerda brasileira a participação política é buscada como um fenômeno expressivo1 1 Sobre isso ver o debate sobre a caracterização teórica dos movimentos sociais por Ana Maria Doimo (1995). . Num modelo político representativo, contudo, a participação com freqüência é puramente instrumental. Ela visa conferir legitimidade aos dirigentes e sustentá-la. A democracia participativa existe, quando muito, no nível da política local (Jacobi, 1994).

A participação não passaria então de uma utopia? Ela é uma utopia na medida em que a participação na política nacional só existe de maneira muito limitada, mas sobretudo porque ela não pode desenvolver-se, devido a uma "ordem determinada do discurso"2 2 Numa acepção mais restrita que a de Foucault (1971). Aqui, uma ordem determinada do discurso é definido pelos modos de circulações que definem os tipos de discursos caracterizados pelos seus "efeitos". . É uma utopia no sentido de Mannheim (1930). Tendo-se demonstrado como a participação é impossível numa ordem dada do discurso pode-se enfrentar como ela seria possivel quando essa ordem não mais se impõe. O Brasil está realmente determinado por essa ordem? Se não, a utopia estaria nele mais próxima?

Não existe a participação na política porque ela não corresponde ao modo de funcionamento atual do discurso social3 3 Tomo o conceito de discurso social numa acepção ainda mais ampla que a de Angenot, para quem se trata do discurso de uma época determinada. O discurso social que aqui se tem em vista é o discurso social que ocorre com a modernidade, "...o Discurso Social de uma período determinado, mesmo quando uma divisão de trabalho diferencia discursos canônicos, suas temáticas, retóricas, sua eficácia social e seu estatuto, não é simplemente feito de uma justaposição de sistemas semióticos autônomos, que evoluem conforme sua própria lógica e sob a influência de metas e questões locais. É porisso que falo de uma interdiscursividade generalizada ... é o Zeitgeist da história tradicional das idéias, a 'ideologia dominante nas versões mecânicas do materialismo histórico, da hegemonia cultural, da epistemé transdiscursiva, das 'structures of feeling dominante (emergente ou recessivo), isto é, um conceito global que pretende dar conta de um momento da produção simbólica como exibindo uma espécie de 'unidade orgânica' ou pelo menos antagonismos regulados e inteligiveis" (Angenot, 1988b: 6-7). (Angenot, 1988) tal como pode ser definido a partir de Hobbes e de Austin. É urna utopia (não-realizável) em política porque resulta, no interior do discurso social, de um outro tipo de discurso. A participação é o "efeito" de um discurso, mas esse discurso não é o discurso político. Esse discurso é o discurso teológico. O discurso que busca as paixões das massas pode exceder o campo das religiões (Sanchis, 1995) mas ele funciona como um discurso teológico4 4 Isto ainda é uma mera hipótese. Ela pode explorada no plano dos movimentos sociais, no plano do estudo do sentimento nacionalista e dos movimentos utópicos (Löwy, 1990). .

O discurso da teologia da libertação parece ser o caso por excelência dessa "interferência", na medida em que esses teólogos politizam o discurso teológico. Esse ângulo de aproximação é em parte ilusório quando se fica adstrito à analogia léxica. A articulação entre o discurso teológico e o político no discurso social moderno dá-se no nível da circulação discursiva, Esse conceito, que se encontra em Michel Foucault (1972), em Jean-Pierre Faye (1972) e especialmente na escola francesa de Análise do Discurso (Maingueneau, 1991; Orlandi, 1987) pode ganhar em precisão quando retrospectivamente descoberto em Thomas Hobbes (1671) e em John Austin (1962).

Este texto teórico visa distinguir os diferentes tipos de discurso (político, teológico e jurídico)5 5 De fato a realidade popde ser vista como construida por um processo de linguagem. Ver a definição de Seguin (1994) do discurso, o discurso é um "processo de liguagem de construção da realidade". a partir de diferentes modos de circulação discursiva. Esses tipos não são dados, determinados pelo seu "conteúdo". A ordem do discurso define, num discurso social dado, os "efeitos" que podem ser esperados de cada tipo de discurso. Dois conceitos são principalmente mobilizados: modo de circulação discursiva e efeitos. Sua compreensão permite apreender como num discurso social dado a participação como efeito discursivo não é da ordem do discurso político, porque não é produzido pelo modo de circulação que dá ao discurso político sua especificidade. A participação pode influir tangencialmente a política quando mobiliza uma "multidão" que crê na verdade de uma versão narrativa. Essa mobilização não é em si política mas religiosa. Ela pode entrar em contradição com procedimentos políticos, em especial os da democracia. Este texto visa propor de modo fundamental a questão da participação na política. Ele não oferece solução alguma. Pelo contrário, no seu pessimismo ele se pretende provocador.

HOBBES E AUSTIN

Como novo esforço centrado na discursividade, usando conceitos e técnicas em parte tomadas da Linguística moderna, a Análise do Discurso apenas existe a partir do final dos anos 60 (Pêcheux, 1969, 1975; van Dijck, 1985). De há muito existiam teorias do discurso. Pode-se descobri-las retrospectivamente em Hobbes. Já se encontram nele muitos dos elementos da teoria dos performativos e dos atos ilocutórios do filósofo inglês da liguagem John Austin. Também encontram-se aplicados por ele os conceitos de efeitos de discursos e de circulação discursiva. A noção de efeito de discurso já aparece no Leviatã. Releiamo-no mais rente. Hobbes especifica que, quando se fala de palavra de Deus, isso "não designa uma parte do discurso que os gramáticos denominam nome ou verbo, nem palavra isolada alguma (...) mas um discurso ou propósito completo, pelo qual aquele que fala afirma, nega, ordena, promete, ameaça, deseja ou interroga (Hobbes, 1971:443). Em seguida ele fala dos "efeitos da palavra de Deus, ou seja, a coisa mesma que a palavra de Deus afirma, ordena, faz temer ou promete". Está em questão o fiat do primeiro relato da criação. "No começo Deus criou o céu e a terra. (...) Deus disse: 'Faça-se luz, e a luz se fez" (Gênese, I, 1, 3).

"Faça-se luz" é um enunciado que não é nem verdadeiro nem falso. É do mesmo tipo que a enunciação dos famosos exemplos de Austin (1962) "batizo esse navio Queen Elizabeth" ou o "sim" do casamento. Registre-se, é certo, uma diferença fundamental de nível: entre Deus e sua criatura! "A enunciação da frase é a execução de uma ação", diz Austin (1962:5). Para voltar a Hobbes, como ele bem nos diz, a palavra de Deus não é um termo isolado, é um discurso. Deus não diz "luz" como um conferencista que terminou a projeção de transparências. Ele diz, relata-nos Gênese, "que se faça a luz".

Não se trata portanto do poder das palavras tal como é retomado numa teologia pentecostal na moda6 6 O poder das palavras pronunciadas com fé de "remover montanhas" éw o tema de uma dos grandes best-sellers pentecostais atuais. Ver Don Grosset (1979), Hoje na 23.a edição, é pregado textualmente na Igreja Internacional da Salvação do pastor R. R. Soares, por exemplo. — "questão ingênua", nos diz Bourdieu (1982:103) — mas do "efeito do discurso". É o que Austin bem compreendeu ao superar a concepção dos verbos performativos com sua teoria dos "atos ilocutórios". Bourdieu vê as palavras portadas por agentes autorizados, Austin vê o discurso e seus efeitos. É por isso que sua teoria dos "atos ilocutórios" é sem dúvida mais importante que a dos "atos perlocutórios", ainda que Searle (1969) tenha em seguida limitado a teoria do "ilocutório" ao tentar definir a "convenção" que torna tais atos possíveis. Com efeito, Searle define os termos da convenção de enunciação pondo peso nas condições sociais da enunciação, enquanto em Austin tudo ainda está aberto para ver-se essa convenção no próprio discurso.

Neste texto três tipos de discurso — jurídico, político, teológico — são definidos pelos seus "efeitos". Trata-se de mostrar como essa "convenção" de que fala Austin está inscrita no próprio discurso, no "interior das relações de discurso" (Ducrot, 1972:15) ou naquilo que se pode denominar circulação discursiva. Para tanto teremos ainda que voltar a Hobbes, pois este permite esclarecer o questionamento de Austin quando fala de "consecução lógica" — nós diremos circulação lógica. Isso permitirá ver com nitidez como uma enunciação não tem apenas um efeito de verdade ou de falsidade (sem que haja, de resto, correspondência entre lógica e efeitos de verdade e falsidade) mas também outros "efeitos". São esses outros "efeitos" que se denominam "atos ilocutórios", e são eles que permitem, por seu turno, ver a verdade e a falsidade como um "efeito de discurso". Esses efeitos não são da mesma ordem que os dos "atos perlocutórios" (que têm conseqüências externas ao discurso enunciado) dos quais o fiat divino parece ser a forma inaugural (a criação) e que de modo mais trivial podem ser descritos na eficácia de um discurso eleitoral para convencer pelo sim e pelo não e para levar a votar.

Para dar aos conceitos toda a sua precisão retomemos textualmente a distinção entre atos "locutórios", "ilocutórios" e "perlocutórios", tal como Austin os expõe na sua oitava conferência: "Entendemos /pelo ato locutório/ sumariamente, a produção de uma frase dotada de um sentido e de uma referência, com esses dois elementos constituindo aproximadamente a significação — no sentido tradicional do termo. Sustentamos, em segundo lugar, que nós produzimos também atos ilocutórios: informar, comandar, advertir, empreender etc — vale dizer, enunciações com um valor convencional. Finalmente, definimos os atos perlocutórios — atos que provocamos ou realizamos pelo fato de dizer uma coisa. (...) As ações dessas três classes são — enquanto tais, bem entendido — submetidas às dificuldades e restrições próprias às ações, a saber, à necessidade de distinguir a tentativa do êxito, o intencional do não-intencional etc. Feito isso, cumpre examinar em pormenor essas três classes. Devemos distinguir o ilocutório do perlocutório, estabelecer a diferença entre "ao dizer isso (ao estar em condições de dizê-lo) eu o preveni" e "pelo fato de dizer isso (pelo conteúdo) eu o convenci, surpreendi, retive".

O presente texto comporta quatro partes e uma conclusão. Na primeira parte trata da circulação lógica conforme é analisada por Hobbes. Trata-se de uma forma elementar de circulação discursiva. A segunda, terceira e quarta precisam, a partir do conceito de "ato ilocutório", os três diferentes modos de circulação discursiva que dão conta dos três efeitos diferentes que caracterizam os discursos jurídicos, políticos e teológicos. A conclusão retorna ao "ato perlocutório". Como "conseqüência não-convencional" do discurso teológico, a participação não poderia ser reinscrita no discurso político?

CIRCULAÇÃO E EFEITO LÓGICO

A concepção de Hobbes é nominalista. A representação das coisas se faz nas palavras — denominações convencionais (que permitem deter a degradação das sensações) — e não no espírito. Não se conhece "a consecução que vai de uma coisa a outra, mas a que vai de uma denominação de uma coisa a uma outra denominação da mesma coisa" (Hobbes, 1971:60). "A razão não é senão o cálculo (ou seja, a adição e a substração) das conseqüências das denominações gerais sobre as quais nos pusemos de acordo para notar e significar nossos pensamentos" (Hobbes, 1671:38). Essas conseqüências não se calculam somente no interior de um texto mediante uma argumentação. Elas circulam entre textos. "Os autores que tratam de política adicionam entre si os pactos para encontrar os deveres dos homens; os jurisconsultos adicionam entre si as leis e os fatos para encontrar o que é justo ou injusto na conduta dos particulares" (Hobes, 1971:37).

As denominações gerais produzem efeitos no discurso, conseqüências: por exemplo, permitir enunciar o que é justo e injusto. Essas conseqüências resultam de uma circulação e essa circulação é regrada por um cálculo por adição e subtração. É precisamente no discurso que se faz o encadeamento, pois a consecução não é entre coisas mas entre diversas denominações (eventualmente de uma mesma coisa).

Hobbes é contudo obrigado a distinguir dois tipos de discurso. Um começa por definições de palavras e, por um cálculo lógico — "matemático" — chega a uma conclusão. É chamado ciência, diz Hobbes. O outro começa por uma opinião ou por algumas afirmações de um outro homem no qual se tem fé, e chega numa crença. O discurso científico é uma representação da circulação lógica entre as categorias. A crença é uma representação de uma relação entre pessoas. De fato os dois tipos de "conseqüências" são mescladas.

Assim, por exemplo, quando se examina cuidadosamente a sua famosa definição da instituição da República (no capítulo XVI do Leviatã) na qual ele formula sua concepção do pacto social, nota-se que a representação resulta de uma consecução lógica através do contrato de cada qual com cada qual, mas que a autorização (que não aparecia no De Cive) supõe que se ponha fé na existência de "um grande número de homens" reunidos (correspondendo de fato a um espaço nacional). A conseqüência lógica no discurso permite dizer o que "é justo dizer em todas as circunstâncias, para não importa que fim, a não importa quem etc..." — o que Austin considera o aspecto locutório. Mas já a autorização envolve a ilocução e a perlocução. Autorizar é um performativo. A autorização não se faz em todas as circunstâncias, para não importa que fim nem a não importa quem. Ela se faz porque se sabe que um grande número de pessoas já estão lá para realizar um acordo e passar uma convenção.

O ideal de uma locução pura, dirá Austin, é às vezes atingido. Mas não é o caso geral. O que nos interessa aqui, contudo, é outra coisa. O fato de que a circulação lógica tem conseqüências no discurso produz portanto um "efeito de discurso". Não se trata de um poder das palavras mas de uma resultante da sua circulação. É precisamente esse "efeito" que denominamos lógico. Mesmo esse efeito não pode ser qualificado em termos de verdadeiro e falso. Ao nominalismo interessa pôr isso em evidência. Pode-se assim concluir pelo fracasso do "efeito lógico" sem dizer que ele é falso ou, ao contrário, pelo seu "sucesso" sem dizer que é verdade. O que indica ao mesmo tempo que o efeito de verdade poderia ser produzido por outros procedimentos (de circulação).

JURÍDICO: "EFEITO DE NORM ATIVIDADE"

"O direito, diz Legendre, apresenta-se como uma acumulação de escritos (...) Uma massa textual em movimento ininterrupto" (Legendre, 1988:298). Mas desde Bakhtin (Holquist, 1981), introduzido na Análise do Discurso por Kristeva, admite-se que todo discurso está em permanente movimento pelo seu caráter dialógico. Legendre precisa: o discurso jurídico produz efeitos de normatividade porque ele se inscreve "num universo genealógico de textos".

Temos então três noções para definir: textos, genealógica, e efeitos de normatividade. O direito é uma massa textual que se constitui por um "está escrito" inaugural, por um corpus monumental de "está escrito". Isto aplica-se igualmente à Common Law, explica Legendre. Um "está escrito" que se inscreve num tempo mitológico mais do que histórico. Essa relação no discurso organiza-se numa genealógica, devendo-se entender este termo no sentido forte. A genealógica não é a mera sucessão do tempo histórico, a genealógica é a ordem da filiação. A filiação é uma encenação — maior — da função biológica da reprodução. É sob o modo da filiação e de todo o seu simbolismo que se opera o movimento dos textos.

Seria apreciável uma precisão dessa genealógica dos textos, sua definição por marcas formais. Não é esse o propósito de Legendre. E o trabalho está para ser feito. Mas ela permite entrever como ela produz um efeito de normatividade, se retomamos a formulação de Searle segundo a qual um "ato ilocutório" é um ato que indica ao auditor que "a situação especificada pela regra R está realizada" (Searle, 1972:91). Graças à genealógica esas regras não são (estritamente) convencionais, pois elas mesmas são válidas porque a situação especificada por regras anteriores realizou-se. Por seu turno, essas regras anteriores são válidas porque a situação especificada por regras ainda anteriores se realizou, e assim por diante.

Na concepção de Austin o efeito de normatividade poderia ser qualificado de "valor ilocutório" produzido por uma — ou talvez várias — classe(s) determinada(s) de enunciação. O efeito de normatividade não é o efeito de coação. Ele se caracteriza pela maneira pela qual se sabe e se sente como certos enunciados devem ser recebidos. Em Austin ele é da ordem dos verbos vereditivos (Austin, 1962:152). No final da sua obra apresenta-se uma lista de vereditivos (contestada por Searle): quitar, sustentar (em virtude da lei), avaliar, condenar, interpretar como, avaliar, pronunciar (como um fato), compreender, fixar etc. O discurso jurídico mediante esses verbos produz um sentido unívoco quando é enunciado (Landowski 1989:77). "Dizendo" ele reduz a pluralidade de interpretações a uma única. É precisamente nessa medida que ele teve êxito. O discurso jurídico produz o efeito de fazer compreender que essa é a única solução mantida. Ele não tem a ver com o verdadeiro e o falso; ele sustenta, ele se pronuncia, ele fixa. O caráter prescritivo do enunciado — no sentido de que ele levaria à obediência — não é explícito; ele é uma conseqüência que não está contida no "dizendo" mesmo quando esse "dizendo" fixa sanções se a solução fixada não for aceita.

A redução a um sentido unívoco é um efeito no discurso. Esse efeito é normativo na medida em que ele fixa a regra de compreensão da situação. As atitudes que esse efeito tem por conseqüência não são mais diretamente da ordem do discurso: atitudes de adesão, de desvalorização, de culpabilidade, de transgressão ou de rebelião. Mas essa redução só se distingue verdadeiramente do discurso quando desemboca num ato (de obediência ou de transgressão — a transgressão reforçando a regra fixada ao levar os alocutores a se posicionar em relação à regra). Essas atitudes são da mesma ordem que o sentimento de dever responder a uma interrogação. Em outras palavras, "significando" não se transmite somente uma informação de ordem cognitiva mas afetiva. Austin nos diz: "A execução de um ato ilocutório inclui portanto a garantia de ter sido bem compreendido" (Austin, 1962:116). Essa compreensão não é somente cognitiva, e é precisamente isso que caracteriza o efeito normativo no próprio discurso.

POLÍTICA: O "EFEITO DE NARRATIVA"

O discurso político parece muito pobre em comparação com o discurso jurídico. Dubois (1962) o vê como uma combinação de discurso didático e polêmico. Ainda que vise a persuadir, seu aspecto "perlocutório" (convencer a votar pelo sim ou pelo não) parece ter primazia sobre seu aspecto "ilocutório". O fato de dizer que o candidato adverso teve aventuras extra-conjugais ou consumiu drogas não é verdadeiramente recebido como um discurso político: basta que essas asserções tenham por efeito levar os eleitores a não votar nele. Não é portanto por acidente que as campanhas eleitorais são sujas. Do contrário, são maçantes.

O discurso político é pobre porque os efeitos, ao invés de operar no discurso, parecem exteriores. Não é tampouco por acaso que se tenha privilegiado métodos de análise que desuperficializam os textos (Pêcheux, 1969). Tem-se a impressão de uma luta de palavras, de palavras-chave — de que se lança mão para a ocasião (Veron, 1978) — inseridas em frases predicativas simples (nas quais se dá um atributo — freqüentemente apreciativo — a um objeto).

As categorias políticas circulam numa topografia. Elas são sustentadas por posições sociais. Seu caráter "entimemático" (Angenot, 1982) é razoavelmente explícito. As regras são de tomar ou conservar o poder. É assim que o discurso "democrático" com freqüência parece conservador, contra a participação (Solervicens, 1995): trata-se de "defender a democracia", de conservar o poder.

O projeto de Jean-Pierre Faye 1972) de uma narrativa geral — que jamais foi retomado de maneira global — oferece uma saída a essa concepção, talvez demasiado entimemática. No final de um erudito e apaixonante estudo sobre a liguagem totalitária, ele propõe a hipótese de que essa circulação de categorias possui uma sintaxe própria. Ao invés de permanecer no plano da topografia ele nos conduz ao plano de uma topologia. Por topologia ele concebe de certo modo uma topografia da própria língua política, por oposição a uma topografia das posições sociais.

O material de base dessa topologia são narrações imediatas. Sobre o incêndio do Reichstag há várias versões narrativas imediatas. O que importa para a compreensão da topologia não é saber qual é a versão verdadeira e quais as falsas. Reencontramos aqui, no plano narrativo, as preocupações que tinha Austin no plano proposicional. Na querela de narrações que constitui o enquadramento da circulação das categorias políticas produz-se um efeito que torna mais ativa uma das versões. Faye denomina esse efeito um "efeito de narrativa". Esse efeito resulta de uma transformação da sintaxe profunda, que torna enunciável algo que não o era, que não podia ser ouvido. Na querela de narrações sobre o incêndio do Reichstag, a versão — são os comunistas, os criminosos (comunistas=judeus) — tornou-se ativa (vale dizer, de certo modo verdadeira no plano narrativo) porque algo tornou-se enunciável: a solução é o extermínio dos judeus. Transformação de um enunciado que se encontra em 1924 em Mein Kampf: "nas circunstâncias em que a raça resiste vitoriosamente os mestiços sucumbem".

Em que sentido devemos entender esse efeito de narrativa em relação ao que entendemos como "efeito ilocutório"? O "efeito ilocutório" é um efeito no discurso, o "efeito de narrativa" é um "efeito" sobre a narrativa. Nas transformações profundas da língua política resultantes da circulação das categorias algo se torna enunciável, em conseqüência, um efeito se produz na narrativa, na história. A história narrada que, nesse nível, (salvo numa crítica da economia narrativa, diz Faye) não se pode distinguir do que chamamos a história real, é doravante essa. O efeito de narrativa é esse fato de tornar aceitável o que até agora era inaceitável. Esse "efeito" não se situa sobre o eixo verdadeiro/falso mas sobre o eixo aceitável/inaceitável.

Para retornar ao caráter "entimemático" do discurso político — entimemático no sentido de que se reporta a regras (tomar ou conservar o poder) — ele caracteriza seu funcionamento na medida em que este, no seu caráter didático e polêmico, oculta os efeitos sobre a narrativa e portanto a emergência de novas categorias políticas. Isso se traduz no discurso das organizações revolucionárias, do qual se mostrou o caráter mimético relativamente ao discurso do "poder".

Na história do Brasil várias versões narrativas existem sobre a dificuldade do Brasil se constituir em nação (Oliveira, 1994). Cada uma dessas versões caracteriza um período de sua história. Desde a época colonial, quando através do patronato se formou um princípio de unidade do social (dilacerado de resto pela violência das relações de opressão) no sistema de mediações (através dos santos) nenhum efeito de narrativa instituiu no período contemporâneo uma nova língua política propriamente brasileira. Pelo contrário, no seu caráter didático e polêmico o discurso da "nova república" oculta os "efeitos de narrativa" mais profundos. Esses somente se manifestam no caráter inaceitável de certos enunciados. Os conflitos religiosos apresentados como "guerra santa" são um signo dessa inaceitabilidade.

TEOLÓGICO: O "EFEITO DE PIEDADE"

O interesse despertado pelo discurso teológico resulta do que acaba de ser dito concernente à ocultação no discurso político dos efeitos sobre a narrativa, efeitos que no entanto exprimem a sintaxe da língua política. A tese de Carl Schmitt sobre a teologia política (1922) de certo modo abriu essa trilha de pesquisa, ao mostrar a homologia de estruturas sistemáticas das categorias teológicas e políticas. Ou, para simplificar, ao mostrar a influência semântica das categorias teológicas sobre as categorias políticas. Trata-se aqui de ultrapassar esse plano da influência semântica, como de resto Schmitt faz em parte em seu texto de 1969.

Esse interesse é também justificado por uma hipótese de minhas próprias pesquisas, que, partindo do estudo dos movimentos sociais no Brasil, conduziu à consideração de que o discurso teológico teria a ver com aquilo que se chama participação nos movimentos sociais no Brasil (Corten, 1990). Retomada aqui essa hipótese formula-se assim: o discurso teológico caracteriza-se pela produção de um efeito de piedade, ou, em termos secularizados, um efeito de participação.

Antes de entrar no estudo desse efeito de piedade ou efeito de participação na perspectiva do "efeito ilocutório" (e não somente "perlocutório") é necessário distinguir a teologia dogmática, que se aproximaria mais do discurso jurídico — que aliás saiu dela — e o discurso teológico, que, como o definiu Schleiermacher (1821), evangeliza mas também simplesmente entretem o sentimento religioso da comunidade (eclesial). Na sua relação com a revelação esse discurso tem um caráter profético. É o caso do discurso da teologia da libertação, que reivindicou explicitamente esse caráter profético (entendido como denúncia) mas também do discurso pentecostal. Ambos representam formas do discurso do "romantismo teológico latino-americano" (Corten, Fridman, Deret, Doran, 1995). Esse discurso fala à imaginação mais que à razão (sem no entanto cair no irracionalismo). Na sua fase de refluxo (desde 1985) — a teologia da libertação acentua entretanto o aspecto racionalizante (Mariz, 1992).

A questão dos verdadeiros e dos falsos problemas chamou a atenção dos pensadores políticos clássicos. Hobbes lhe dedica longas passagens no Leviatã. Ele conclui que a palavra profética não pode conduzir a um efeito de obediência (contrariamente à instituição da República). O que quer dizer — mas esse não é o propósito da sua argumentação, voltada para submeter a teologia à política — que essa palavra tem efeitos no próprio discurso. O profeta é aquele que pela sua imaginação vê signos dos tempos nos eventos. Tradicionalmente os signos da presença de Deus são os milagres, os sacramentos, a própria Igreja, vale dizer o "povo de Deus" (Corten, 1991). A profecia consiste em discernir esses signos, "movida pela fé, conduzida pelo Espírito" (para retomar a formulação do Vaticano II) mas ela própria é signo do Espírito. A palavra do profeta é nesse aspecto a palavra de Deus, a palavra com seus efeitos talvez diminuídos mas animados pelo fiat divino inaugurado na primeira narrativa da criação: "Deus disse: 'Que se faça luz' e a luz se fez".

Quais são os verdadeiros profetas? Os que fazem milagres? Este efeito "perlocutório" forte não é exigido na tradição bíblica. Os que anunciam o futuro? Sim, mas eles podem retomar algo já anunciado em outra profecia. Além disso, é somente "movido pela fé" que seu séquito pode discernir os signos do designio de Deus. De fato o profeta é aquele que, pelo seu discurso — e sua vida exemplar — anima essa fé. Seu discurso é recebido como um discurso de fé. É o que também diz Schleiermacher admirador de Spinoza. O profeta é aquele que produz um efeito de piedade. Ele discerne signos dos tempos mas sua palavra deve ser discernida como signo e isso só é possivel no funcionamento de um discurso que produz um efeito de piedade, um entusiasmo — etimologicamente, um transporte divino — uma paixão. Chegamos ao ponto: os pensadores políticos clássicos — Hobbes e Spinoza — enxergam no teólogo aquele que "agita as paixões da multidão".

A profecia corresponde exatamente a uma "ilocução" como a define Searle: o profeta afirma que "a situação especificada pela regra R está realizada". Contrariamente ao discurso jurídico, as regras R são reveladas uma vez por todas na Bíblia (e somente na Bíblia na tradição protestante). Em primeiro lugar, se o profeta pode afirmá-lo, é porquanto tem uma vida exemplar — mas a tradição registra exceções. O profeta afirma que o que está enunciado num corpus de textos sagrados realizou-se. Ele o afirma porque discerne um signo. Não é pois somente sua vida de piedade que lhe permite afirmar e ser ouvido, é o discernimento de um signo dos tempos. O efeito de seu discurso é de ser escutado mas ser escutado supõe a compreensão de palavras freqüentemente enigmáticas. É recebido como um discurso de fé, de mistério. O efeito "ilocutório" é um "efeito de verdade". Para além da razão (que permite julgar o verossímil) o discurso do profeta é recebido como "verdadeiro"8 8 Nos cultos pentecostais as afirmações do predicante são pontuadas pelos "é verdade" da assembléia. . O "efeito perlocutório" de seu discurso é de sucitar um transporte divino. É o que o pensamento político clássico traduz por agitar as paixões. Hobbes na Inglaterra pretende opor-se a essa agitação das paixões sucitada pela revolução puritana; é por essa razão que ele consagra a metade do Leviatã (1651) a questões teológicas. Spinoza nas Províncias Unidas critica a agitação das paixões das seitas calvinistas que põem em perigo a efêmera república. Isso justifica seu Tractatus Teologico-politicus (1670).

Estudemos agora a circulação do discurso profético. E como essa circulação produz efeitos. De um lado há um corpus de textos sagrados9 9 Estou consciente de que ficam fora de meu campo de estudos as religiões afro-brasileiras, nas quais não existe um corpus de escritos. — para os evangélicos (entre os quais os pentecostais) somente a Bíblia. Esse corpus é ativado na profecia, pelo discernimento dos signos dos tempos. Os signos dos tempos são "eventos, exigências, demandas". Esses eventos, exigências, demandas tornam-se realidade pelo discurso teológico. São construídos em termos de linguagem pelo discurso (Seguin, 1994). Para o crente, tornam-se ao mesmo tempo palavra: palavra de Deus. Os eventos são encenados num discurso e produzem efeitos de entusiasmo. Os eventos apenas são signos através da palavra. O discurso profético pode telescopar a tradição. Ele não é regido por uma "filiação". Ainda que afirme que o que fora anunciado num texto sagrado realizou-se, não é a genealógica que produz o efeito de entusiasmo. É o discernimento do signo que produz esse efeito.

Esse discernimento resulta do poder visionário ou das capacidades de imaginação fora do comum do profeta, diz Spinoza. Ele escapa a toda circulação lógica. De resto, ele não torna enunciável o que não o era, pois o profeta afirma que o que havia sido anunciado — e portanto dito ainda que às vezes de modo enigmático — realizou-se. Trata-se de um modo de circulação diferente do discurso jurídico e do discurso político. Na falta de termo melhor chamarei esse modo de especular, para designar o fato de que o profeta discerne signos mas é signo pela sua palavra. O discurso da revelação e o discurso do referente circulam paralelamente; no deslumbramento tornam-se um. O signo que incendeia o discurso da revelação por um efeito de "espelho ardente" é descoberto pela imaginação do profeta. Os procedimentos de citação implícitos ou explícitos são então procedimentos constitutivos do funcionamento do discurso teológico (Panier, 1978; Almeida, 1979).

O "povo de Deus" torna-se inteiramente profético quando reconhece a palavra do profeta. Ele participa do discernimento dos signos dos tempos, dos signos da presença e do designio de Deus. É nesse sentido que se pode falar de efeito de piedade, isto é, de efeito de participação. Apresentado de modo secularizado como o tenta Spinoza, dir-se-ia que esse "efeito de participação" corresponde à agitação — à manipulação — das paixões da multidão. O "efeito ilocutório" toca assim um registro que não é o do verdadeiro e do falso, nem do normativo, nem do aceitável; é o registro das paixões longamente estudado pelos filósofos (Meyer, 1991) e mesmo hoje pelos analistas do discurso (Parret, 1986; Greimas, 1991). Mas o "efeito de participação" não é somente da ordem do "perlocutório", ele é também do "ilocutório". O "povo de Deus", que é uma identidade coletiva, é recebido como palavra de Deus, é verdade.

Para terminar, convém salientar as implicações do que vem de ser dito no plano da análise política. O discurso político é entimemático, tendo por regras tomar e sobretudo conservar o poder. Ele visa conter as paixões da multidão e sobretudo manipulá-las. Aquilo que se denomina participação tem a ver assim no discurso social moderno com um campo que não é do político, com um campo aqui tomado como o do discurso teológico profético. Isso permite dar uma chave de interpretação ao estudo dos movimentos sociais — que durante séculos foram de fato movimentos religiosos, no mais das vezes "heréticos".

CONCLUSÃO

A superestimação prática e teórica do ato "perlocutório", assim como a interpretação sociologista do "ato ilocutório", são responsáveis pelas ilusões sobre a participação na política. O ato de perlocução é produzido, diz Austin, pelo fato de dizer algo, ou seja, ele produz efeitos — ou conseqüências — nos outros ou em si próprio. Como precisa Austin: "Os efeitos suscitados pelas perlocuções são verdadeiras conseqüências, destituídas de qualquer elemento convencional" (Austin, 1962:102). Conseqüências verdadeiras: para o discurso jurídico, a obediência ao que foi pronunciado, para o discurso político: votar por ou contra. Para o discurso teológico, o entusiasmo na participação. Esse entusiasmo como "conseqüência desprovida de todo elemento convencional" mede-se pelo fato de que as reuniões estão repletas, as igrejas estão cheias, as conversões de multiplicam — as cifras de crescimento espetacular do movimento pentecostal (tirante os exageros, é muito rápido para os pentecostais — da ordem de 7% por ano) constituem uma ilustração de conseqüência "não convencional".

O discurso teológico produz um efeito de piedade, ele arrebata. Mas esse efeito "perlocutório", essa conseqüência "não convencional", pode ainda menos ser separada do efeito "ilocutório" do que em outros discursos. O discurso teológico deve ser recebido como fé, piedade, mistério, nesse sentido como verdade. Ele mantém a piedade na comunidade, dizia Schleiermacher (1988; Thouard, 1994) porque ele é recebido como um discurso de fé. Ele produz a fé porque é recebido como fé. Efeito "perlocutório" e "ilocutório" são duas faces do mesmo fenômeno.

Observemos entretanto a conseqüência "não convencional" em si mesma. A multidão mobilizada, como conseqüência "não convencional", pode interferir em outros modos de circulação do discurso? A circulação própria à política traz à cena e põe em competição diversas versões narrativas contando a história. A força dessas versões resulta do caráter mais ou menos verossímel relativamente ao que elas relatam. Se uma versão narrativa é sustentada em bloco, não por ser mais verossímil mas por ser "revelada", é de se cogitar de uma influência do teológico sobre o político. Para Hobbes, é claro, os portadores "fanáticos" dessa versão desviam-se da política. No que concerne a Spinoza, as interpretações divergem. O poder da multidão pode tornar-se, segundo Negri, uma realidade autônoma10 10 Na interpretação de Spinoza certos autores, como Negri (1982), ao fazerem a distinção entre poder e potência, mostram que o desvio não é entretanto necessário. .

Poderá o "perlocutório" ser "reinjetado" no discurso, um pouco sob o modo da televisão interativa? Sim, pode, mas por meios discursivos (o que telescopa a televisão interativa). Ele pode fazê-lo pelos meios convencionais, diria Austin. Vale dizer, meios que supõem um contrato enunciativo entre interlocutores (discursivamente mas não desde logo sociologicamente autorizados como pensa Bourdieu). Os pensamentos e os sentimentos do auditório podem encontrar suas marcas no discurso. O orador, na medida em que sente que sua ilocução é bem sucedida, insere os pensamentos e os sentimentos de seu auditório em marcas do seu discurso. Isso tem a ver com o aspecto dialógico do discurso, o que designa o campo da circulação discursiva. A mobilização participativa como "efeito perlocutório" (conseqüência independente do discurso) pode ser "reinjetada" no discurso teológico.

Por que não pode ser "reinjetada" num outro discurso? No discurso político, por exemplo? Este foi sem dúvida o próprio objetivo da teologia da libertação. A participação — á paixão da base — suscitada pelo discurso teológico de conscientização na leitura do Evangelho deveria poder entrar no discurso político. Era essa a especificidade da relação específica das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) com os movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores. É verdade, também, que a participação não foi objeto de rejeição — como vimos, ela está mesmo muito presente no léxico político brasileiro (e latino-americano). Pelo contrário mesmo, a participação permitiu o crescimento de um novo discurso político, o discurso da "nova esquerda" (Corten, 1990). Mas, na medida em que esse discurso ganhava força, a mobilização da participação baixava (Doimo, 1995). Isso não é uma simples constatação. A análise que se pode fazer do PT (Corten, 1995:99-134) é que quase era necessário que a lógica do poder eclipsasse num momento dado a "paixão de base".

Quando ela não é desviada na pretensão à "verdade" de versão narrativa, a participação produzida pelo discurso teológico não pode ser "reinjetada" num outro discurso. A razão disso encontra-se em que o "contrato enunciativo" que permite a "reinjeção" e portanto um aumento contínuo da participação não é o mesmo no discurso teológico que no discurso político. O primeiro repousa sobre um corpus sagrado, constituído por uma massa quase ilimitada de enunciados enigmáticos, a partir dos quais o discurso do referente será continuamente transformado sobre a base de um contrato enunciativo de verdade. Ao passo que o segundo repousa sobre um corpus muito pobre de enunciados didáticos e polêmicos relativamente fechados, encarregados de assegurar uma certa coesão sobre a base de uma crença no verossímil e a consciência daquilo que é não-enunciável. O que se denomina o "refluxo" dos movimentos sociais é o obstáculo no plano da ordem do discurso à passagem de um "contrato enunciativo" a um outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Panier, Louis 1978. "La citation biblique dans le discours didactique. Eléments pour une approche sémiotique".
  • *
    Este texto faz parte de uma pesquisa subvencionada pelo Conseil de Recherches en Sciences Humaines du Canada (CRSH). Trata-se de versão muito modificada de exposição apresentada ao seminário sobre heurística e método do Centre Interuniversitaire d'Analyse du Discours et de Socio-critique des Textes (CIADEST), Montréal.Tradução de Gabriel Cohn.
  • 1
    Sobre isso ver o debate sobre a caracterização teórica dos movimentos sociais por Ana Maria Doimo (1995).
  • 2
    Numa acepção mais restrita que a de Foucault (1971). Aqui, uma ordem determinada do discurso é definido pelos modos de circulações que definem os tipos de discursos caracterizados pelos seus "efeitos".
  • 3
    Tomo o conceito de discurso social numa acepção ainda mais ampla que a de Angenot, para quem se trata do discurso de uma época determinada. O discurso social que aqui se tem em vista é o discurso social que ocorre com a modernidade, "...o Discurso Social de uma período determinado, mesmo quando uma divisão de trabalho diferencia discursos canônicos, suas temáticas, retóricas, sua eficácia social e seu estatuto, não é simplemente feito de uma justaposição de sistemas semióticos autônomos, que evoluem conforme sua própria lógica e sob a influência de metas e questões locais. É porisso que falo de uma interdiscursividade generalizada ... é o Zeitgeist da história tradicional das idéias, a 'ideologia dominante nas versões mecânicas do materialismo histórico, da hegemonia cultural, da epistemé transdiscursiva, das 'structures of feeling dominante (emergente ou recessivo), isto é, um conceito global que pretende dar conta de um momento da produção simbólica como exibindo uma espécie de 'unidade orgânica' ou pelo menos antagonismos regulados e inteligiveis" (Angenot, 1988b: 6-7).
  • 4
    Isto ainda é uma mera hipótese. Ela pode explorada no plano dos movimentos sociais, no plano do estudo do sentimento nacionalista e dos movimentos utópicos (Löwy, 1990).
  • 5
    De fato a realidade popde ser vista como construida por um processo de linguagem. Ver a definição de Seguin (1994) do discurso, o discurso é um "processo de liguagem de construção da realidade".
  • 6
    O poder das palavras pronunciadas com fé de "remover montanhas" éw o tema de uma dos grandes best-sellers pentecostais atuais. Ver Don Grosset (1979), Hoje na 23.a edição, é pregado textualmente na Igreja Internacional da Salvação do pastor R. R. Soares, por exemplo.
  • 8
    Nos cultos pentecostais as afirmações do predicante são pontuadas pelos "é verdade" da assembléia.
  • 9
    Estou consciente de que ficam fora de meu campo de estudos as religiões afro-brasileiras, nas quais não existe um corpus de escritos.
  • 10
    Na interpretação de Spinoza certos autores, como Negri (1982), ao fazerem a distinção entre poder e potência, mostram que o desvio não é entretanto necessário.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1996
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