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A agricultura soviética e a perestroika: as prioridades numa perspectiva de longo prazo

QUESTÃO AGRÁRIA, HOJE

A agricultura soviética e a perestroika: as prioridades numa perspectiva de longo prazo* * Tradução de Régis de Castro Andrade.

Téodor Shanin

Professor da Universidade de Manchester

Ao longo de 1987 a União Soviética passou por um processo de profundo questionamento de suas opções futuras. Nesse período, o aspecto humano da estrutura social revelou-se bruscamente, despertando grandiosas esperanças: toda mudança parecia realizável e concebível. A realidade social e as estruturas herdadas do passado foram encaradas de maneira diversa; e bastaria que se mantivesse essa nova maneira de ver para que tudo melhorasse. Que essa mudança de atitude tenha ou não sido eficaz e durável é outra questão; o fato é que 1987 ficará gravado para sempre na memória dos que o viveram, do mesmo modo como em 1968 na Europa Ocidental uma geração política nutriu-se de representações e conceitos que em seguida tornaram-se normativos: a esquerda os retoma nas suas palavras de ordem e ideais ao passo que a direita lembra-se delas com ódio e angústia. Existe igualmente entre os reformistas soviéticos no poder essa vontade de reestruturar profundamente a sociedade soviética. Posta em pratica, ela faria da perestroika a transformação social mais ambiciosa a que o mundo teria assistido nesse fim de século.

Quando se acalmaram as turbulências da história soviética em 1987, certas polêmicas, sugestões e documentos revelaram-se essenciais para compreender essa revolução das percepções e das idéias. Alguns fatos parecem mais evidentes porque foram debatidos num âmbito que por definição dá a eles maior divulgação, como as sessões plenárias do Comitê Central de janeiro, junho e outubro. No que diz respeito à agricultura soviética, os novos sintomas foram menos visíveis. Os dois documentos mais significativos nessa área foram publicados em março e circularam em meios inesperados, ou então de difícil acesso. Não obstante, eles são bem conhecidos na URSS, porque ambos são particularmente ilustrativos da frénésie que reinou naquele ano.

A AGRICULTURA SOVIÉTICA ANTES E DEPOIS DE POLTÁVIA

"Os Três Dias de Poltávia ou um monólogo sobre a mão-de-obra camponesa e a weltanchaaung dos agricultores" foi publicado em março de 1987 por Znamya1 1 "Tri dnya y Poltave etc." Znamya, nº 3, 1987. . O leitor ocidental requer uma explicação a respeito disso. O "Três Dias de Poltávia" não tem nada de monólogo. São as atas de uma reunião ocorrida no fim de 1986. Agricultores, administradores e sociólogos participaram dela, bem como professores, filósofos e escritores. Esse colóquio foi realizado por iniciativa de Fedor Morgun, o secretário do partido regional da Poltávia, representando a mais alta instância administrativa local e conhecido por seu radicalismo, seu talento de escritor e seu perfeito conhecimento da agricultura. Poltávia é uma cidade de província situada na Ucrânia, no coração das terras mais férteis da zona cerealista da URSS. Znamya é uma publicação da União dos Escritores, "reestruturada" pelo comité executivo eleito recentemente. Essa publicação reflete a maneira pela qual os escritores colocaram-se na vanguarda dos debates sobre os problemas sociais, ultrapassando os próprios institutos de sociologia e as teorias oficiais. Preocupando-se com os agricultores e também com o corpo social e a ética, ela também foi reveladora da linha ideológica de Gorbatchev, pressagiando uma nova era.

O debate de Poltávia tratou da situação atual da agricultura, das coletividades rurais e da política agrícola da província, mas analisou igualmente outras zonas cerealistas do país. Ele constitui, portanto, o panorama de meio século de história do conjunto do campo soviético depois da coletivização stalinista.

De acordo com o relatório, três características comuns permitem descrever o espírito e a prática das políticas agrícolas precedentes: o zelo improdutivo, o autocanibalismo e a megalomania. A União Soviética produz atualmente duas vezes mais adubos químicos que os Estados Unidos, seu rebanho de vacas leiteiras é quatro vezes maior e sua agricultura cinco vezes mais mecanizada que a americana. No entanto, penúrias incessantes de produtos agrícolas coincidiram com uma demanda crescente e com a necessidade de investir mais para atendê-la. Essa demanda crescente de máquinas, de produtos químicos, de energia e de esforços consideráveis coexiste com a falta de terra, de mão-de-obra e de recursos bem como com a estagnação da produção per capita. Na Ucrânia, a produção de cereais está estagnada há quinze anos. O esforço para aumentar as unidades de produção ao invés de aumentar sua eficiência e a qualidade da agricultura foi aprovado por um sistema de gestão e de estímulos altamente centralizado. Os "zelosos esforços" de administração criaram penúria, em lugar de suprimi-las. As repetitivas campanhas através da mídia para melhorar a agricultura, o fluxo incessante de diretivas, as demandas, as ameaças e as encarnações oficiais não produziram resultados em termos de produção destinada ao mercado, ao mesmo tempo em que aumentavam as importações de gêneros alimentares.

A conseqüência mais importante desse "zelo permanente" foi um desastre ecológico e a alienação dos que estavam diretamente ligados à produção. Quanto à ecologia, os sinais são bem conhecidos: destruição das florestas e erosão do solo, desaparição de mananciais e poluição dos rios, chuvas ácidas espalhadas pelo vento por muitos quilometros, degradação do clima e dos microclimas. O impacto ecológico sobre a agricultura e a qualidade de vida das coletividades rurais da Ucrânia foi particularmente severo, resultando na perda de uma grande parte das terras aráveis e na diminuição da fertilidade do solo. A terra da Poltávia, o tchernozíom, uma das mais férteis do mundo, constituía-se de 10% de humo criado pela vegetação rasteira que ali crescia há milênios. Hoje em dia, essa porcentagem baixou para 5% em razão da superexploração do solo. O desperdício é muito alto devido à produção mantida no local por muito tempo, mal estocada e deficientemente transportada; esse é mais um exemplo de má gestão ecológica. Tais desastres provocados pelo homem devem-se ao "autocanibalismo", isto é, à pilhagem de recursos do solo para produzir ganhos de curto prazo, sem preocupar-se com as consequências de longo prazo, numa corrida desenfreada e autodestrutiva. Esse fenômeno reproduziu na agricultura soviética o mesmo espírito de especulação e lucro dos robber barons americanos. Mas aqui não foi a ganância nem a "propriedade livre" que levaram à pilhagem do solo: foi um sistema de gestão e uma estrutura social estabelecidos por Stalin e plenamente realizados por Brejnev.

A esse "zelo fútil" e à degeneração ecológica somou-se a megalomania, que aparece na transferência de uma experiência mal digerida da utilização da grande indústria à agricultura. Essa orientação revelou-se particularmente contraproducente. Grandes unidades de produção garantem uma agricultura eficiente, a mecanização é condição do seu bom funcionamento e a utilização intensiva de adubos químicos assegura o aumento da produção: ainda que tudo isso seja mais complicado do que parece, tais proposições tornaram-se artigos de fé e tidas por garantias de sucesso. A ideologia do gigantismo com frequência associou-se ao oportunismo: a corrida do equipamento pesado se traduziu em vantagens aos produtores de máquinas agrícolas e as unidades maiores garantiram promoções mais rápidas aos burocratas das províncias.

Esse país que possui a maior mina do mundo, as maiores siderúrgicas e escavadoras, também detém o recorde de tamanho dos tratores - eles pesam tanto que destroem toda vida orgânica por onde passam - e do número de equipes de operários permanentes, cuja administração constitui um grande problema. Ao mesmo tempo, os campos foram inteiramente desprovidos de todo pequeno material sobre o qual repousa a agricultura moderna, e de todos os serviços de manutenção do equipamento. Como disse um economista do trabalho, participante do colóquio de Poltávia, essa política desconsiderou o fato de que na agricultura "não existe nenhuma relação direta entre o investimento humano e material e os resultados", e de que o tipo de divisão do trabalho empregado na indústria pesada "não se justifica nem social nem economicamente" na agricultura2 2 Ibid., p. 206. .

Os produtos efetivos desse gigantismo foram, mais uma vez, julgados quantitativamente, e não qualitativamente, na maneira de conceber os projetos e de apreciar seus resultados. Um dos exemplos apresentados referia-se a uma comparação reveladora das variações da produção de leite na URSS e nos EUA. Ao longo dos últimos 25 anos, o número de vacas leiteiras dobrou na União Soviética (crescendo proporcionalmente as despesas de forragem e de construção de edifícios), ao passo que se reduziu de 2/5 nos Estados Unidos. Paralelamente, a produção de leite por vaca na União Soviética passou de 72% da produção por vaca nos EUA para 38% hoje em dia. A maioria dos participantes reconheceu todavia que o aspecto mais negativo do modo de produção aplicado à agricultura de Poltávia não se revelava nas cifras da produção. Os piores efeitos fizeram-se sentir na estrutura social e no meio ambiente rural.

Antes de falar desses problemas, lembremos algumas das políticas anteriores que suscitaram as mais severas críticas no colóquio de Poltávia. Elas pertencem todas à era Brejnev, mas têm raízes no stanilismo e mesmo em concepções anteriores da noção de progresso. Elas foram condenadas em bloco pelo governo de Gorbatchev como erros grosseiros, mas a violência das críticas mostra não apenas a atualidade desses problemas como a objetividade dos participantes que os discutiram sem preocupar-se com as posições oficiais. À vontade evidente de tratar desses assuntos de viva voz, num momento em que isso era julgado impopular, senão perigoso, revela a gravidade de uma polêmica já antiga.

Três dessas políticas e concepções fundamentais foram objeto de críticas. A primeira partia do princípio de que os conflitos de interesse que dividiam os membros dos kolkhoses e sovkhoses representavam uma forma particular de agricultura capitalista, por mínima e acessória que fosse: a sua limitação progressiva e eventual supressão deveriam, em conseqüência, representar uma das condições necessárias e suficientes para o avanço do socialismo. Em segundo lugar, para a hierarquia os sovkhoses tinham precedência sobre os kolkhoses, pois a propriedade estatal equivalia a socialismo. A transformação dos kolkhoses em sovkhoses, portanto, era considerada como ideologicamente vantajosa e devia ter preferência. Por razões ideológicas similares, as gigantescas fazendas de criação, de formação recente, eram tidas por expressões supremas do desenvolvimento agrícola. Em terceiro lugar, as unidades de tamanho maior eram naturalmente preferidas às menores, levando a um esforço sistemático de ampliação tanto dos kolkhoses quanto dos sovkhoses.

Dentro dessa mesma lógica e segundo os mesmos princípios ideológicos, 40% das pequenas cidades da União Soviética - e em várias regiões do país, mais da metade - foram declaradas "localidades impróprias para a produção agrícola" ao longo dos anos 70. Essa decisão foi logo seguida pela retirada dos serviços ali existentes, pela destruição das coletividades locais e pela reinserção dos seus habitantes em cidades maiores (quando não pela expulsão pura e simples da população). Esse declínio do número de pequenas cidades - muitas das quais perderam sua representação política — é considerado hoje em dia um dos fatores mais importantes do despovoamento do campo, dispersando a capacidade de trabalho humano existente e causando dano à ecologia.

Às dificuldades da agricultura de uma região que, possuindo o solo mais fértil do mundo e a tecnologia de uma superpotência, não conseguiu atender às necessidades da população, deixam entrever as razões do saldo humano negativo dessas políticas; mas a descrição feita em Poltávia desses aspectos humanos é pior do que se poderia prever. Um êxodo maciço despovoou os campos do centro-norte (região de Moscou), onde vivia aproximadamente metade da população rural. Há ali centenas de localidades abandonadas. A rapidez e o caráter seletivo da imigração rural - os jovens, os homens válidos e os de maior escolaridade saíam em primeiro lugar - esvaziaram aquelas localidades e transformaram as demais em guetos rurais representativos do fracasso humano. O alcoolismo e a criminalidade infestaram várias regiões. Os serviços, aí, são mínimos, o abastecimento é insuficiente e a vida cultural é estagnada. No campo, a taxa de natalidade é muitas vezes mais baixa que nas cidades superpovoadas. A vontade de trabalhar, o amor tradicional à terra e a preferência pela atividade rural declinaram nesse contexto. Vários participantes do colóquio de Poltávia concluíram que a perda dos agricultores revelou-se ainda pior que as perdas de produção, e é mais difícil de corrigir. Por mais desastrosa que tenha sido a queda da produção agrícola, o que mais sofreu nesse processo foi a reprodução social dos agricultores e dos campos.

O conjunto do sistema administrativo foi objeto de uma crítica de fundo, com seu cortejo de conotações sociais e éticas; trata-se de um sistema centralizado, de um intervencionismo extremo e impeditivo de uma prática agrícola eficiente, mas que é intrinsecamente racional na medida em que representa os interesses individuais e coletivos dos que os conceberam. Para estes, sua única tarefa e único dever como cidadãos é garantir a lealdade total e a imediata execução pelas bases das ordens recebidas (ou pelo menos redigir um diligente relatório atestando que elas foram obedecidas). Outra conseqüência desse sistema é provocar uma total apatia; uma falta de iniciativa que tende a ser vista como virtude cívica. O servilismo natural ou imposto dos quadros técnicos, que cediam com submissão e entusiasmo aos menores desejos dos seus superiores e diziam aos administradores o que eles queriam ouvir, é em parte responsável pelo funcionamento desse sistema de administração. Nesse contexto desenvolvem-se uma moralidade e uma visão ambíguas com relação à "maneira pela qual as tarefas são realizadas". A queima do esterco abandonado cada ano nos campos - quando fazia uma falta terrível - foi mencionada como exemplo da má gestão por parte das dirigentes e da apatia por parte dos executantes.

Para corrigir essa gestão burocrática é necessário não apenas superar essa apatia, mas tomar certas medidas que tornem eficientes as ações corretivas. É preciso lutar contra a institucionalização da injustiça social na zona rural, os privilégios injustificados, a impotência dos agricultores e as verdades mentirosas. O fato de que o nome de Tatiana Zaslavskaia tenha sido tão citado como os de Marx e Lenin dá uma idéia da natureza do debate. O artigo de Zaslavskaia, muito discutido em Poltávia3 3 Zaslavskaya, T. "Chelovecheskii faktor razvitiya ekonomiki i sotrialnaya spravedlivost". Komunist, nº 13, 1986. , trazia informações sobre a vida cotidiana dos camponeses; mas argumentava ao mesmo tempo que a perestroika constitui fundamentalmente um processo ético e social, que diz respeito à justiça, à economia e à política. Essa ótica é a mesma dos que apóiam Gorbatchev na União Soviética.

O argumento se completa pela menção de uma evidência essencial. Um aspecto fundamental das políticas de Gorbatchev visando estimular a agricultura é a utilização de equipes contratuais ipodryard) que permitem a famílias .ou cooperativas rurais obter uma concessão de terra numa fazenda coletiva e equipamentos por um período determinado; essas famílias ou cooperativas podem assim dirigir seus esforços para o aumento da produção e dos seus rendimentos. O sucesso de algumas dessas experiências foi noticiado na imprensa soviética. No colóquio, contudo, constatou-se que na região da Poltávia, a maior parte das equipes contratuais era "fictícias". Por que razão?

A explicação está no poder do sistema burocrático que continuava a impor sua vontade aos produtores; e "a despeito das tentativas de reduzir (os poderes) da administração da agricultura, esta continua a representar uma superestrutura, ou uma instância centralizadora. E cada instância deve justificar sua existência, deve prestar contas (...) ao passo que a equipe contratual não pode funcionar se não dispõe de poder de decisão"4 4 "Tri dnya...", p. 212. .

DO PASSADO AO FUTURO: QUATRO MODELOS DE EVOLUÇÃO RURAL

Em que medida os "Três Dias de Poltávia" forneceram uma imagem realista da vida rural soviética? Tal generalização requer inicialmente a exclusão da maioria das regiões não-eslavas, que apresentam diferenças sociais e climáticas às vezes radicais. De vários pontos de vista o campo estoniano se parece mais à Hungria que a Perm ou à Poltávia. Mas com relação à Rússia, à Ucrânia e à Bielo-rússia, as três repúblicas eslavas que reúnem mais de três quartos da população da União, o quadro se assemelha ao da Poltávia, apesar das suas diferenças.

Isso é confirmado pelas estatísticas relativas à economia e à sociedade rural preparadas pelos especialistas em economia rural de Novossibirsk ao longo da última década. Paradoxalmente, informações algo parecidas foram publicadas no estrangeiro pelo "dissidente" Lev Timofeev, que foi preso por ter descrito sem autorização a situação desastrosa do campo soviético5 5 Timofeev, L. 'Soviet Peasants (or the Peasant Art of Starving) New York, 1985. .

As questões debatidas na Poltávia e em outros lugares foram mais diversificadas no que concerne ao futuro. Tal diversidade e uma certa incerteza revelam-se naturais e saudáveis quando se faz um esforço para considerar as coisas de um ponto de vista novo. Mas a evidência do passado e as perspectivas do futuro nos deixariam simplesmente espantados se não tentássemos concentrar a análise nas diversas opiniões emitidas. Essa análise trata de quatro modelos de agricultura e de sociedade rurais que foram objeto dos debates.

Antes de desenvolver esse ponto, relembremos a definição estrita de um modelo de análise. Um modelo consiste na simplificação deliberada de uma realidade social complexa com o objetivo de evidenciar suas características de princípio e sua dinâmica. Na melhor das hipóteses, um modelo de análise se esclarece através de superestimações ou exageros, e nesse sentido funciona como uma espécie de caricatura. Na questão que nos ocupa, cada modelo induziria uma importante carga complementar de idéias recebidas e de alternativas políticas, mas também certas indicações de sua integração à estrutura social e uma história social ligada a uma ética específica.

Durante um século ou mais, a agricultura e os camponeses que a praticavam foram considerados pelos dirigentes regionais como um problema a resolver e uma população a transformar. Os camponeses russos foram considerados pela maioria dos dirigentes como um freio ao progresso e uma das principais causas do seu atraso; eles constituiriam um interior bárbaro habitado por seres miseráveis e primitivos. Esse interior deveria dar lugar a um mundo novo e melhor6 6 Shanin, J. Russia as a Developing Society Yale University Press (ver em particular os capí tulos 4 e 5). . Como em 1917, a sociedade nova, tal como a concebiam os dirigentes, deveria ser socialista.

Durante o período que nos interessa diretamente, ou seja, os cinquenta anos da coletivização iniciados no fim dos anos 20, quatro conjuntos de conceitos fundamentais exprimiram e orientaram a política, e/ou a inspiraram diretamente. O primeiro predominou no período de coletivização sob Stalin. Ao mesmo tempo em que a legislação e as aproximações táticas eram alteradas e falsificadas, o princípio subjacente não mudou por duas gerações. O fundamento desse primeiro modelo pode ser definido como segue: quanto mais extensiva e mecanizada for a agricultura, melhor ela será. O caráter amarrado à terra da unidade camponesa familiar era, portanto, responsabilizado pela pobreza da zona rural, pela baixa produção agrícola e pelo subdesenvolvimento do país como um todo.

Para superar esse estado de coisas seria necessário transformar a agricultura camponesa, tomando-se por base o modelo aplicado com sucesso em Manchester, Sheffíeld, Detroit e no Sarre. A população rural deveria ser civilizada e integrada ao novo mundo por via da cultura industrial, do fordismo socialista, cuja vanguarda seria constituída pelos quadros proletários do partido. Problemas tais como perdas sofridas pelos camponeses e a possível oposição desses últimos seriam problemas de curto prazo. Os benefícios conseguidos compensariam essas perdas e serviriam de propaganda.

As modificações fiscais, segundo os planos de teóricos como Preobrazhens, seriam um dos instrumentos a empregar, como aliás qualquer outra medida utilizada segundo o princípio "o fim justifica os meios". Essa política deveria ser firmemente implantada, e com prioridade quaisquer que fossem os custos; ela seria imposta aos camponeses para o seu próprio bem.

Uma vez implementado, o novo sistema constituído por grandes unidades intensamente mecanizadas contribuiria, em prazo mais longo, para a solução de todos os problemas. O aumento necessário da produção solucionaria o problema da pobreza e permitiria a realização definitiva do socialismo e da coletivização, objetivos aos quais nenhum camponês poderia opor-se.

Os expurgos dos anos 30 provaram que mesmo entre os quadros dirigentes stalinistas havia mal-estar com respeito à política agrícola adotada. Mas somente após a morte de Stalin foi feita uma crítica sistemática desse modelo, propondo-se alternativas. A essa altura era já evidente que p primeiro modelo não havia funcionado como previsto. As zonas de grandes unidades continuavam desesperadamente pobres e a produção permanecia estagnada (de 1941 a 1945, tal estado de coisas deve-se em boa parte à guerra; mas independemente disso, era claro que as coisas não funcionavam bem no setor agrícola). Mesmo o objetivo de "pressionar a agricultura em benefício do crescimento industrial" não era atingido, pois essa agricultura não produzia o suficiente para ser útil a outros setores.

O segundo modelo reiterou a preferência por uma agricultura extensiva e inspirava-se, também ele, na experiência industrial do século XIX. Afirmava-se agora, todavia, que a estrutura de planificação centralizada em grande escala só levaria ao funcionamento eficiente da empresa na indústria como na agricultura sob condição de um aumento importante dos investimentos.

Durante os anos de Kruschev e Brejnev, em conseqüência, verificou-se um sensível incremento da produção de inputs agrícolas, tais como tratores, implementos, adubos, etc. Estimulou-se também a formação de mão-de-obra para a agricultura. As diferenças entre o campo e a cidade foram reduzidas: por um lado, eliminou-se a "servidão" de fato que decorria da negação aos camponeses do passaporte interno para impedi-los de imigrar para outras regiões; por outro lado, foram fixados pisos salariais e de aposentadoria para os camponeses dos kolkoses. Os pagamentos que comprimiam e limitavam as unidades familiares foram suavizados.

A nova estratégia para a agricultura provocou um aumento da produção e da produtividade rurais no início da era Kruschev e também no período Brejnev. Esse segundo modelo, em que "o resultado é função do investimento", parecia funcionar. Mas alguns anos mais tarde, porém, o crescimento se reduziu e, como a população crescia, bem como suas necessidades, Kruschev foi obrigado a importar cereais pela primeira vez. Tais importações também seriam feitas por Brejnev, em escala cada vez maior, utilizando-se dos recursos cambiais provenientes das minas siberianas. As subvenções estatais aos gêneros alimentícios, destinados ao mesmo tempo a manter baixos os preços e a subvencionar os agricultores, atingiram somas enormes.

Um aspecto ainda mais importante dessa questão é o fracasso dessa política de investimento em provocar um crescimento regular da produção de gêneros alimentares. A zona rural declinou social e ecologicamente. Ficou bem claro no colóquio da Poltávia que esse modelo atingiu seus limites há muito tempo.

O terceiro modelo é bem conhecido dos economistas ocidentais especializados no setor agrário. O tamanho das unidades não é limitado (ainda que a maioria dos economistas o considerem excessivo). Admite-se igualmente a política de investimentos crescentes, mas soma-se a isso a motivação pessoal do camponês, que o leva a trabalhar duro e a economizar, no contexto da luta contra o desperdício e em favor de métodos mais eficientes de cultivo. O princípio geral é a busca do lucro, a concorrência e o risco de falência, isto é, o arsenal completo do homo economicus.

Para garantir a eficiência dessa política não basta efetuar os investimentos necessários; é necessário criar um mercado de produtos agrícolas. Uma grande parte da opinião pública soviética e muitos economistas aceitam essa concepção como uma estratégia satisfatória para o setor, mas a encaram de maneira mais "soviética". Eles sustentam uma teoria segundo a qual para lutar contra o capitalismo, a venda da terra e da mão-de-obra deve ser proibida. Da mesma forma, ao implementar essa política, o governo deveria dar prioridade aos interesses nacionais. Essa concepção poderia obter completa adesão por parte de um bom número de economistas ocidentais nos seus próprios países.

Em contraste com a opinião geralmente veiculada pela mídia ocidental, porém, as alternativas soviéticas não se resumem à preferência conservadora pela centralização, por um lado, e à adoção, pelos reformistas, do "modelo ocidental". Se fosse assim, a questão principal seria a de saber que dose de capitalismo injetar na agricultura soviética. Tal formulação. faz abstração da experiência presente e das concepções que os intelectuais e os planejadores soviéticos têm do futuro.

No que diz respeito à experiência, seria razoável analisar o país por excelência em que prevalece a livre economia e em que uma agricultura altamente mecanizada é voltada para a produção: os Estados Unidos. Muita gente, inclusive os que participam ativamente do debate soviético, consideram o sistema americano adequado para resolver os problemas atuais; os sociólogos americanos, porém, inquietam-se com a crise agrícola naquele país7 7 Para mais detalhes, ver Buttel, F. e Newby, H., The Rural Sociology of the Advanced Societies, Assenheld, 1980; Havens, E. et alii, Studies in Tranformation of US Agriculture, Westview, 1986; Friedman, H., "Family Farm and International Food Regimes", in Shanin, J. Peasants and Peasants Societies, Blackwell, 1987. . Os insucessos de muitas empresas agrícolas causam alarme. Às subvenções são numerosas e, a despeito dos esforços por parte do Estado, as coletividades rurais se desintegram e tornam-se refúgios de grupos retrógrados e de marginais. Os lucros impressionantes alcançados pela gestão burocratizada do setor agrícola contrapõem-se às tentativas desesperadas, e frequentemente fracassadas, por parte dos agricultores americanos, de sobreviver.

Pouco a pouco o livre mercado da produção agrícola torna-se um mito. A experiência americana aponta mais na direção da grande unidade de produção monopolista e burocrática, do que na direção de um modo de produção múltiplo, limitado ou médio, orientado pelo lucro e buscando ajustar-se flexivelmente às necessidades dos consumidores.

Ainda mais importante é o fato de que no Ocidente não se aborda, com respeito ao terceiro modelo, os aspectos mais relevantes dos debates de Poltávia. A hipótese é a de que os problemas mais sérios da agricultura e das coletividades rurais soviéticas estão ligados à reprodução social e à qualidade de vida no setor, e não à produtividade agrícola; eles não podem ser resolvidos sem que os interesses nacionais sejam salvaguardados. Para os produtores rurais, uma produtividade agrícola elevada não implica necessariamente uma vida decente a longo prazo; essa concepção é reforçada por uma visão socialista do futuro.

Aqui surge o quarto modelo, que foi recentemente posto em discussão pelos sociólogos e economistas rurais radicais, ou seja, pelos intelectuais ligados a uma "sociologia da economia", como eles mesmos dizem. Sua proposição inicial é a de que o desenvolvimento a longo prazo de agricultura baseia-se na estrutura social da vida rural. Se a qualidade de vida não satisfaz as necessidades da população rural, isso leva ao êxodo da elite, que ao emigrar deixa atrás de si o que há de pior nas comunidades e um campo despovoado.

Esse fenômeno já ocorreu em certas regiões da URSS e não há como revertê-lo. O simples aumento salarial não basta para estancar o processo, como se observou no período Brejnev. Somente coletividades ativas e ricas, gozando de boa qualidade de vida, podem garantir níveis demográficos suficientemente' equilibrados, e servir de base a concepções e políticas ecológicas saudáveis, orientadas para a satisfação das necessidades e capazes de um efetivo aumento da produtividade. Isso implica mais conforto material, sim; mas requer também uma vida cultural mais rica e a possibilidade de escolha dá atividade (e por isso mesmo uma economia rural mais equilibrada, constituída por pequenas unidades de produção, integrando serviços públicos e atividades artísticas).

O que se sugere aqui não é um mero aditivo, ou contrapartida, ao interesse econômico ou a outros fatores sociais, culturais ou comunitários. Trata-se, antes, de uma concepção segundo a qual o meio de melhorar a produção é tornar os camponeses senhores de suas próprias unidades de produção e seu meio ambiente, e responsável por eles. A realização desse objetivo geral implica o renascimento das coletividades locais e uma mudança das estruturas de direção das relações sociais na zona rural — em suma, implica a sua desburocratização. Não se pode eliminar ou abolir facilmente uma burocracia, mas pode-se limitar sua influência, seu tamanho e seu status mediante a criação de pólos de poder alternativo. Coletividades rurais autogeridas e pequenas unidades agrícolas independentes constituem uma realidade sociopolítica alternativa, capaz de substituir o sistema de gestão que levou à estagnação da agricultura na URSS.

A nova consciência dos perigos ecológicos, bem como da dilapidação dos investimentos e da produção no campo soviético disparou um sinal de alarme que soa continuamente nos últimos anos. "é preciso um senhor" da terra. A "falta de um senhor" torna-se "falta de responsabilidade", e daí passa-se à constatação de que evitar tal situação é condição do sucesso de uma verdadeira política de desenvolvimento planificado. A simples privatização não seria suficiente. Pelo contrário, ela contribuiria para acentuar o declínio ecológico, das forças produtivas e do meio ambiente. A única solução real a longo prazo parece ser a da transferência do "poder" e da responsabilidade às coletividades rurais, tornadas fortes ò suficiente para resistir às pressões exteriores e à ação interna de atravessadores egoístas e poderosos.

Como o terceiro, esse quarto modelo pode ser criticado com base na experiência e nas suas incoerências internas: dificilmente será possível reconstituir ou recriar coletividades rurais desintegradas. A reconstrução do poder das coletividades rurais no quadro de uma gestão burocrática pode parecer utópica, em particular se ele não envolve definições precisas de ação social adequadas a tal mudança. Da mesma forma, a autonomia local das coletividades envolveria tendências autárquicas e tendências perigosas do ponto de vista dos seus membros e do conjunto da sociedade.

As experiências que podem servir de lição — seja ela a comuna rural da época da NEP, de 1921 a 1928 na URSS, ou instituições semelhantes existentes até hoje em países não-europeus - são ambivalentes. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Por sua própria natureza, os modelos de análise -excessivamente teóricos - não podem ser utilizados diretamente em programas de reforma. Cada um desses modelos constitui um processo heurístico que explica a lógica interna da argumentação. A maneira pela qual eles se associam - e nessa associação alguns ganham preponderância - serve de fundamento ao programa político. Em outras palavras, um programa político é uma combinação de características lógicas provenientes de diferentes interesses, necessidades e concepções.

Atualmente na URSS as escolhas (e a sua implementação) situam-se na fronteira do segundo, terceiro e quarto modelos. Esses modelos se associam a diferentes enfoques globais e a distintas forças políticas no âmbito da perestroika: os reacionários que buscam sua inspiração no passado; os moderados que se restringem à modernização econômica (disfarçando assim seus pendores burocráticos) e os radicais, que consideram a perestroika como uma revolução destinada a transformar profundamente a sociedade e a levá-la ao socialismo (sendo que nos dois primeiros modelos isso já foi alcançado, ainda que alguns ajustamentos sejam necessários).

Ainda com referência aos modelos de análise, os radicais da perestroika não são contra a tecnologia moderna, e para eles seria desejável associar a produtividade rural ao lucro pessoal. Sua posição/porém, deve ser bem compreendida: eles se referem a uma associação entre o "econômico" e o "social", e a um problema relativo a "fatos humanos".

O PRESENTE E O FUTURO SEGUNDO O INSTITUTO DE NOVOSSIBIRSK

A nossa discussão sobre o futuro da agricultura e da zona rural soviética refere-se, no que segue, a um documento interno intitulado Metodologia e perfil geral de uma concepção da transformação do setor agrícola na sociedade soviética. Ele foi publicado em Novossibirsk em março de 1987 e redigido por T. Zaslavskaya, V. Smirnov e A Shaposhnikov8 8 Zaslavskaya, T.Smirnov, V. e Shappshnikov, A. Metodologiya i obshchie kontury konseptii perestroiki upravleniya agranym sektorom sovetskogo obshchestva, Novossibirsk, 1987. . Em setembro de 1987, em Moscou, esse documento foi debatido por um grupo de eminentes economistas, sociólogos e cientistas políticos.

Durante a longa era Brejnev, caracterizada pela estagnação geral, o Instituto de Economia e de Organização Industrial de Novossibirsk, sob a presidência de Abel Aganbegyan, transformou-se num centro de pensamento alternativo. Distante de Moscou e bem visto localmente em razão dos serviços que prestava às indústrias nascentes da Sibéria, o Instituto transformou-se num centro de formulação, aperfeiçoamento e execução de novas idéias.

Ao longo dos seus trabalhos, o Instituto utilizou-se de modo importante da economia em sentido estrito, do método fundamental da econometria, cuja aplicação é nova no país, e do centro de estudos sociológicos dirigido por Zaslavskaia.

Recentemente empossado em Moscou, na chefia do Departamento da Agricultura, Mikhail Gorbatchev, o mais jovem membro do Politburo, rapidamente percebeu a notável combinação de recursos intelectuais presente em Novossibirsk, e começou a convidar seus membros para reuniões oficiosas sobre os problemas econômicos e sociais que o interessavam. Quando assumiu a chefia do governo, seus aliados e conselheiros intelectuais saíram da obscuridade e apareceram ao seu lado.

O documento redigido por Zaslayskaya e sua equipe oferece evidências suplementares, mais sistemáticas, no sentido de reforçar as críticas feitas na Poltávia. Ele nos informa de que nos últimos vinte anos o crescimento anual da produtividade agrícola (estimada a cada cinco anos) decresceu de 4,4% a 1,2%. Um fato mais grave ainda é o de que, a despeito das revisões para baixo dos objetivos do planejamento agrícola, a taxa de realização efetiva desses objetivos caiu de 84% a 46%. O pior, porém, é que a produtividade da mão-de-obra no setor não cresceu nos últimos vinte anos. Tudo isso ocorreu apesar dos consideráveis investimentos realizados ha agricultura e dos aumentos dos salários dos trabalhadores. Enfim, a metodologia apresentou uma lista suplementar dos graves problemas ecológicos referentes às florestas, ao solo e às águas, bem como novos elementos relativos ao trabalho agrícola: apenas um trabalhador em quatro executava verdadeiramente as tarefas que lhe haviam sido confiadas.

No que diz respeito aos serviços, o documento mostrou que a saúde dos trabalhadores agrícolas piorou em relação à dos trabalhadores urbanos, e que as instituições médicas são manifestamente ineficazes na zona rural. O problema da habitação é particularmente agudo nessa zona e paradoxalmente os subsídios estatais para resolvê-lo foram reduzidos. O mesmo pode-se dizer da educação: uma considerável defasagem persistia entre a cidade e o campo desse ponto de vista, tendo mesmo aumentado em detrimento desse último.

O documento demonstrou que o sistema de gestão agrícola era contra produtivo e com frequência irracional em relação aos objetivos oficiais: ele privilegiava as grandes unidades produtivas sem se importar com as conseqüências, porque essas unidades eram mais fáceis de gerir e desenvolvia a autarquia regional. Os dirigentes não se sentiam responsáveis pelos resultados deficitários, uma vez que as perdas financeiras eram cobertas por consideráveis dotações estatais. Não existia uma verdadeira "chefia" responsável pelo meio ambiente, pois que as principais empresas não tinham nenhum vínculo com as autoridades locais. A escolha dos quadros agrícolas era feita pela cúpula; daí decorria seu caráter burocrático e "um fluxo incessante de papelada". Na última década, os únicos índices positivos, segundo o documento, foi a redução da mão-de-obra manual e a melhoria do nível cultural das localidades rurais.

As pesquisas de opinião realizadas na zona rural revelaram um grande aumento das reivindicações salariais, de melhores condições de trabalho e de melhor qualidade de vida. A população rural se recusa cada vez mais a viver "à moda antiga".

Passando das constatações à análise e às sugestões, a Metodologia rejeitou a noção, enunciada no primeiro modelo, segundo a qual "a acumulação leva à abundância", e sugeriu a necessidade de combinar pequenas e grandes unidades de produção. Essa perspectiva remonta, em sua origem, às teorias de Alexander Chayanov, de acordo com as quais a "otimização repartida" e a "integração vertical" seriam as características de uma agricultura eficaz9 9 Chayanov, A. Osnovnye idei i formy organizatsii sel'- kbozkooperatsii, Moscou, 1927 (ver igualmente Theory of Peasant Economy, do mesmo autor, pp. 262-67, Manchester, 1986). A recente reabilitação de Chayanov e a próxima republicação de suas obras na União Soviética devem restabelecer e tornar explícita essa vinculação intelectual. .

A Metodologia também rejeitou o segundo modelo, baseando-se deliberadamente na argumentação de Abel Aganbegyan sobre o conjunto da economia soviética. Segundo Aganbegyan, seria necessário passar rapidamente de um modelo "extensivo" de desenvolvimento a um modelo "intensivo", do simples crescimento dos investimentos, do seu montante e objetivos, à melhoria da qualidade e à utilização eficiente dos meios de produção. O conceito e a estratégia das mudanças propostas pelaMetodologia associam, na verdade, o terceiro e o quarto modelos; sua especificidade, porém, está em que limita o alcance do último, ou seja, limita a visão do longo prazo implícita na sua aplicação.

O estudo começa por estabelecer de modo esquemático a interdependência e a relação de causalidade recíproca vinculando o "econômico" e o "social" no contexto "das estruturas das localidades rurais". Em resumo, o "contexto social" define modelos de fluxos migratórios que influem por sua vez na produção rural, e define o "contexto econômico" das oportunidades de emprego que repercutem no social etc... As crescentes demandas rurais relativas à qualidade da vida representam uma evolução importante em razão da migração, na medida em que a carência de mão-de-obra impõe restrições cada vez maiores à produção agrícola.

Segundo esse documento, o sistema de produção agrícola na União Soviética necessita ao menos de 27 milhões de trabalhadores para funcionar em regime de plena capacidade. Foi estabelecida uma relação das características específicas da mão-de-obra rural: as qualidades humanas exigidas para as atividades em questão, o considerável impacto negativo da elevada mobilidade horizontal da mão-de-obra agrícola, a significação psicológica da divisão do trabalho, a complexidade das formas de mão-de-obra utilizadas e as exigências de uma gestão altamente diversificada do pessoal empregado para garantir a eficiência da produção.

Na sua análise dos graves problemas atuais e de longo prazo da agricultura e da sociedade rural soviética, o tom geral do estudo de Novossibirsk está longe de ser pessimista. Mesmo não fazendo concessões nas críticas que formula, ele transmite a convicção de que os problemas podem ser resolvidos, e que sua verdadeira solução já está a caminho. Nessa perspectiva, é necessário elaborar rapidamente um programa fundamental de reformas adequadas e específicas destinadas a realizar progressivamente a reconstrução social.

A estratégia proposta pela Metodologia consiste numa transformação multidirecional da sociedade rural associada à transformação da estrutura agrícola. Seu objetivo global se define como uma construção do sistema social visando privilegiar o "fator humano"; esse processo associa o esforço pessoal ao interesse coletivo, desenvolve a justiça social e desburocratiza a gestão. As pequenas unidades cooperativas familiares sob contrato devem estar a salvo de restrições paternalistas e burocráticas para tornar-se o núcleo de um sistema de produção associando a pequena e a grande unidades.

É preciso conceber uma gestão unificada da agricultura, das regiões e da população para melhorar as condições ecológicas. Para isso, é necessário democratizar o poder local, submetendo-o às coletividades e às autoridades locais. Isso requer a estrita divisão das responsabilidades entre as autoridades centrais do Estado, do partido e das organizações locais para garantir a independência de ação de cada uma das partes segundo suas competências específicas (liberando assim as autoridades locais da tutela dos secretários do partido).

As autoridades locais seriam responsáveis pela sua própria gestão e pela agricultura em sua área de competência. Conseqüentemente, o poder da administração centralizada com relação às questões agrícolas deve ser limitado, e as múltiplas restrições legais devem ser eliminadas. Seria necessário também que a direção das empresas pudesse relacionar-se em pé de igualdade Com a administração central a respeito da execução de obrigações e de contratos entre ambos. Embora essa seja uma medida controversa, é preciso, em seguida, aumentar os preços dos produtos alimentares; essa medida justifica-se enquanto política econômica de estímulo à auto-regulação e à auto-responsabilidade, e tem por objetivo eliminar as carências próprias do sistema de economia dirigida. Enfim, impõe-se buscar o planejamento da agricultura numa multiplicidade de projetos alternativos cujo estudo deve preceder qualquer decisão, para que as melhores soluções, decorrentes do debate sobre as diversas alternativas, possam prevalecer.

Por sua própria natureza, esse esboço representa mais um novo enfoque que uma lei ou um organograma de gestão. Ele delimita claramente, porém, as posições dos partidários da reestruturação no setor agrícola e no campo. O problema consiste numa reconstrução a longo prazo das relações de poder no seio do sistema social, de modo a criar estruturas capazes de limitar as regras burocráticas todo-poderosas. Tudo isso, enfim, orienta-nos no sentido de privilegiar o "fator humano" e a qualidade da vida social.

Tal ponto, de vista associa explícita e definitivamente o "econômico" ao "social" no planejamento, na legislação e na organização, criando em conseqüência um governo mais transparente e uma participação maior de todos nas decisões políticas. Nó âmbito rural, isso significa a regeneração da vida comunitária, representando esta uma esfera de poder a serviço das autoridades centrais e agindo como mandatário deles. Isso corresponde ao que alguns autores chamam "sentimento de chefia" do campesinato (cbustvo khozyaind).e aproxima-se bastante das proposições das jornadas da Poltávia.

A regeneração do poder comunitário associado a um interesse pessoal redefinido conscientemente a longo prazo, mantendo-se entre os dois termos uma relação de influência recíproca, é concebida como um meio de livrar o campo da corrupção, do embrutecimento pelo álcool, do sentimento de alienação e da degeneração a longo prazo. O objetivo é tornar o mundo rural mais eficiente, agradável e humano nos sentidos ecológico e ético: um lugar onde as pessoas gostem de viver e para onde queiram voltar. Os autores reconhecem as dificuldades a enfrentar para realizar tal objetivo, mas os resultados a longo prazo e o custo social envolvidos na sua não-realização justificam a aplicação do método proposto. É no custo relativo das alternativas (sejam elas a simples passividade ou reformas limitadas e essencialmente econômicas) que se baseia a resposta dos reformistas aos detratores do seu programa. Com efeito, qualquer outro caminho seria ainda penoso.

Há um problema, fundamental da agricultura e da sociedade, rural que a Metodologia não aborda. Trata-se da diversidade do país e da maneira pela qual essa diversidade poderia ser levada em conta por um projeto e/ou uma lei. O debate da Poltávia e as sugestões de Novossibirsk referem-se às grandes regiões da URSS: a Rússia, a Ucrânia e a Bielo-Rússia, que são regiões produtoras de cereais, de leite e de forragem, e que foram completamente coletivizadas no início dos anos 30. As periferias não-eslavas, que dispõem de condições climáticas e de produção agrícola particulares (o algodão no Uzbequistão, a vinha na Geórgia etc), que são diferentes em sua agricultura e em sua cultura, que foram coletivizadas em outros períodos e apresentam outros resultados (como por exemplo a Lituânia ou o Cazaquistão) — essas regiões necessitarão um enfoque mais diversificado na tentativa de compreendê-las e transformá-las.

Na verdade, seria possível dizer que o documento redigido em Novossibirsk dirige-se a elas indiretamente, pois não seria contraditório com ele afirmar-se que planos regionais eficientes deveriam ser elaborados nas zonas mencionadas, e não simplesmente planos elaborados por burocratas moscovitas para serem executados pelas regiões. O núcleo do problema, segundo a Metodologia, consiste em criar uma "gestão descentralizada", que leve em consideração as condições locais tais como elas são entendidas, planejadas, executadas e supervisionadas pelas próprias regiões.

Em definitivo, para uma boa compreensão do debate contemporâneo sobre a agricultura e a sociedade rural soviéticas, deve-se situá-la no contexto mais geral da economia e da sociedade no tempo da perestroika. Seus sucessos e seus fracassos estão relacionados à política agrícola no seu conjunto. A União Soviética hoje representa uma economia vasta, complexa e integrada cujo financiamento se explica pelas inter-relações entre seus diversos setores. Se ela pretende sobreviver, a perestroika deve proporcionar melhorias das condições de vida dos cidadãos soviéticos. Na opinião geral dos intelectuais, dos administradores e das pessoas comuns, a agricultura é um dos setores da economia onde mais rapidamente se pode obter progressos. A perestroika, em seu estágio inicial, foi recentemente definida por um dos seus principais teóricos como um progresso ainda por realizar.

Há um amplo consenso de que a agricultura é um setor piloto revelador dos êxitos e fracassos do esforço geral de reformas. Atualmente, na União Soviética, a agricultura e a sociedade rural estão no centro dos planos mais urgentes de desenvolvimento e dos projetos essenciais de reconstrução a longo prazo para a transformação da sociedade a partir da sua base.

A sequência desse debate é uma luta política entre os defensores da perestroika, os conservadores que gostariam de mudar a economia sem debilitar a burocracia e os reacionários que se opõem completamente a ela, ou seja, aqueles para quem a simples crítica à dolce vita de Brejnev ou à ordem stalinista é anátema. Primeira etapa e primeira batalha: os vários pré-projetos devem tornar-se decretos e os respectivos recursos financeiros devem ser desbloqueados. Segunda etapa e segunda batalha: as leis e as diretivas deverão ser executadas apesar da memória popular ainda fresca do fracasso da política reformista de Kruschev, rejeitada pela conjugação das forças de oposição da nomenklatura e de seus dóceis partidários na base social.

Os apelos da Poltávia e de Novossibirsk por uma mudança rural radical constituem um projeto de futuro e uma sugestão de ação; mas eles são ao mesmo tempo um elemento da luta política. Na falta dessas idéias, projeções e projetos as mudanças sugeridas não poderão se realizar. Apesar de sua ajuda, contudo, as mudanças poderão ser recusadas, obstadas ou desfiguradas a ponto de perderem toda significação. Mas enquanto perdurar essa vontade de crítica e de análise que define o contexto das reformas, fixa seus objetivos e institui a luta política, é nesse terreno que elas poderão realizar-se.

  • 1 "Tri dnya y Poltave etc." Znamya, nş 3, 1987.
  • 3 Zaslavskaya, T. "Chelovecheskii faktor razvitiya ekonomiki i sotrialnaya spravedlivost". Komunist, nş 13, 1986.
  • 5 Timofeev, L. 'Soviet Peasants (or the Peasant Art of Starving) New York, 1985.
  • 6 Shanin, J. Russia as a Developing Society Yale University Press (ver em particular os capí
  • 7 Para mais detalhes, ver Buttel, F. e Newby, H., The Rural Sociology of the Advanced Societies, Assenheld, 1980;
  • Havens, E. et alii, Studies in Tranformation of US Agriculture, Westview, 1986;
  • Friedman, H., "Family Farm and International Food Regimes", in Shanin, J. Peasants and Peasants Societies, Blackwell, 1987.
  • 8 Zaslavskaya, T.Smirnov, V. e Shappshnikov, A. Metodologiya i obshchie kontury konseptii perestroiki upravleniya agranym sektorom sovetskogo obshchestva, Novossibirsk, 1987.
  • 9 Chayanov, A. Osnovnye idei i formy organizatsii sel'- kbozkooperatsii, Moscou, 1927 (ver igualmente Theory of Peasant Economy,
  • do mesmo autor, pp. 262-67, Manchester, 1986).
  • *
    Tradução de Régis de Castro Andrade.
  • 1
    "Tri dnya y Poltave etc."
    Znamya, nº 3, 1987.
  • 2
    Ibid., p. 206.
  • 3
    Zaslavskaya, T. "Chelovecheskii faktor razvitiya ekonomiki i sotrialnaya spravedlivost".
    Komunist, nº 13, 1986.
  • 4
    "Tri dnya...", p. 212.
  • 5
    Timofeev, L.
    'Soviet Peasants (or the Peasant Art of Starving) New York, 1985.
  • 6
    Shanin, J.
    Russia as a Developing Society Yale University Press (ver em particular
    os capí tulos 4 e 5).
  • 7
    Para mais detalhes, ver Buttel, F. e Newby, H.,
    The Rural Sociology of the Advanced Societies, Assenheld, 1980; Havens, E.
    et alii, Studies in Tranformation of US Agriculture, Westview, 1986; Friedman, H., "Family Farm and International Food Regimes", in Shanin, J.
    Peasants and Peasants Societies, Blackwell, 1987.
  • 8
    Zaslavskaya, T.Smirnov, V. e Shappshnikov, A.
    Metodologiya i obshchie kontury konseptii perestroiki upravleniya agranym sektorom sovetskogo obshchestva, Novossibirsk, 1987.
  • 9
    Chayanov, A.
    Osnovnye idei i formy organizatsii sel'- kbozkooperatsii, Moscou, 1927 (ver igualmente
    Theory of Peasant Economy, do mesmo autor, pp. 262-67, Manchester, 1986). A recente reabilitação de Chayanov e a próxima republicação de suas obras na União Soviética devem restabelecer e tornar explícita essa vinculação intelectual.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 1991
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