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Classes, cultura e ação coletiva

Classes, culture and collective action

Resumos

O artigo faz uma revisão da literatura sobre classes e conflito social, analisando seus impasses. Em seguida, faz uma incursão aos legados de Pierre Bordieu e Marx sobre a matéria, indicando como poderiam ser integrados numa teoria renovada das classes sociais.

Classes Sociais; Conflito; Marxismo; Pierre Bordieu


The article surveys the literature on class and social conflict, focusing its theoretical dilemmas. Then it discusses Pierre Bordieu's and Marx's legacies on the subject, pointing out how they could be integrated in a renewed theory of social classes.

Social Classes; Conflict; Marxism; Pierre Bordieu


Classes, cultura e ação coletiva* * Este artigo é uma versão alterada de conferência de igual título realizada como parte das provas do concurso para Professor Titular em Sociologia Política da Universidade de São Paulo, no mês de março de 2004.

Classes, culture and collective action

Brasílio Sallum Jr.

Professor do Departamento de Sociologia da USP

RESUMO

O artigo faz uma revisão da literatura sobre classes e conflito social, analisando seus impasses. Em seguida, faz uma incursão aos legados de Pierre Bordieu e Marx sobre a matéria, indicando como poderiam ser integrados numa teoria renovada das classes sociais.

Palavras-chave: Classes Sociais; Conflito; Marxismo; Pierre Bordieu.

ABSTRACT

The article surveys the literature on class and social conflict, focusing its theoretical dilemmas. Then it discusses Pierre Bordieu's and Marx's legacies on the subject, pointing out how they could be integrated in a renewed theory of social classes.

Keywords: Social Classes; Conflict; Marxism; Pierre Bordieu.

Classe e ação coletiva: um vínculo problemático

Nos últimos decênios observa-se na teoria social um declínio acentuado e constante da concepção teórica de origem marxista, que vincula classe e política. Na literatura acadêmica predominam as teses de que as formas contemporâneas de protesto coletivo não são explicáveis pela dinâmica da luta de classes e de que, na sociedade atual, o proletariado perdeu importância como ator coletivo e, mais ainda, como sujeito histórico.

É muito difícil datar processos como este, especialmente porque a dinâmica intelectual é bastante diferenciada entre os países. Ainda assim, creio que a década de 1970 pode ser apontada como o momento em que o processo de declínio teve seu impulso básico, embora antes disso o paradigma teórico marxista tivesse sido objeto freqüente de contestação intelectual. O campo teórico marxista – fraturado naquele momento pelo movimento estruturalista – não conseguiu enfrentar com sucesso o conjunto de problemas político-intelectuais a que foi submetido. Tal conjunto de problemas era, de fato, muito grande e envolvia tanto questões remanescentes do passado próximo quanto novas. A redução do peso relativo do operariado industrial entre os assalariados, a participação crescente de não-proprietários na direção das corporações capitalistas e o crescimento das ocupações intermediárias entre os trabalhadores manuais e o empresariado eram alguns dos fenômenos que pareciam decorrer do desenvolvimento capitalista e contrariar as previsões dos marxistas.

Além de fazer frente aos desafios formulados com base nos fenômenos referidos, os intelectuais que se inspiravam na tradição marxista tiveram que lidar com uma questão ainda mais perturbadora: nenhum dos principais movimentos de protesto que marcaram a vida política do período – as revoltas estudantis de 1968, os movimentos antinucleares, os movimentos feministas, os contrários à guerra, os defensores dos direitos civis nos EUA e da preservação ambiental na Europa Ocidental – vinculava-se ao proletariado.

A literatura inspirada no marxismo (como, por exemplo, os trabalhos de Harry Braverman e Maurice Zeitlin) conseguiu enfrentar muito bem algumas daquelas questões mostrando, de forma convincente, que fenômenos tais como a redução do peso relativo dos operários entre os assalariados e a participação crescente de não-proprietários na direção das corporações não desmentiam o paradigma marxista.

Entretanto, a literatura mencionada não teve o mesmo sucesso em relação aos problemas suscitados pela expansão das "camadas intermediárias" e pela onda de protesto social não vinculada à classe operária. A teoria social marxista foi mal sucedida, especialmente, em lidar com o impacto desses fenômenos sobre a conexão esperada entre classe e política. Uma das questões a enfrentar aqui, a menor delas, era a de "ajustar" a emergência das "camadas intermediárias" à proposição, usual na tradição marxista, de que a estrutura social tenderia a simplificar-se com o desenvolvimento capitalista. A outra questão, mais importante, era incorporar o novo fenômeno ao quadro de referência político da teoria, quadro polarizado pela burguesia e pelo proletariado e que atribuía a esse último o papel de direção na luta pelo socialismo, o papel de sujeito histórico.

Não pretendo aqui examinar as diversas respostas dadas pelos marxistas às duas questões. Basta analisar o modo como um deles, Nicos Poulantzas, tentou respondê-las em Classes Sociais no Capitalismo de Hoje (Poulantzas, 1975). A escolha do Autor não é arbitrária: na época talvez ele fosse o teórico social de maior impacto no campo marxista. Em primeiro lugar, ele procura superar a "questão da consciência" como elo entre a classe em si e a luta de classes. De um lado, sustenta que as classes apenas existem em luta e, de outro, que elas resultam da operação não só das estruturas econômicas, mas também das estruturas política e ideológica. Isso constitui um avanço notável em relação à tradição, pois faz das superestruturas componentes essenciais da caracterização das classes. No entanto, ao afirmar que as classes só existem "em luta" quer dizer apenas que elas fazem parte de relações contraditórias e antagônicas nos planos econômico, político e ideológico, ainda que estejam completamente desorganizadas. Portanto, ao invés de enfrentar a questão da relação entre classe e ação coletiva, ele simplesmente a contorna suprimindo um dos termos em favor do outro, as classes em favor das práticas de classe.

Em segundo lugar, Poulantzas se opõe àqueles que negam o caráter de classe às camadas intermediárias de assalariados, seja porque se prendem a uma imagem dualista da sociedade que, segundo ele, se atribui erroneamente ao marxismo, seja porque ao se distribuírem tais camadas entre a burguesia e o proletariado, estas classes tornam-se mais complexas, heterogêneas e de unidade precária, atenuando as possibilidades de luta de classes (p. 212). Em terceiro lugar, denomina nova pequena burguesia, a classe dos assalariados que, alternativa ou cumulativamente, realizam trabalho improdutivo, desempenham trabalho de supervisão e/ou desenvolvem trabalho mental. Embora tal caracterização tenha sido muito questionada por teóricos marxistas, o que importa é que por seu intermédio Poulantzas reconhece que o capitalismo, a par de reduzir o peso da pequena burguesia tradicional, acaba por produzir uma nova classe além da burguesia e do proletariado, reduzido por ele aos assalariados da indústria que produzem bens materiais, executam ordens e efetuam trabalho manual.

Esta inovação na concepção marxista da estrutura de classes do capitalismo não serve, porém, como alavanca para que nosso Autor tire conseqüências inovadoras para a política da esquerda. É que embora a pequena burguesia tradicional e a nova pequena burguesia tenham bases econômicas distintas – de um lado, a pequena propriedade e a pequena produção e, de outro, o assalariamento não-proletário – suas afinidades ideológicas fazem delas subconjuntos da uma mesma classe, a pequena burguesia. Por essa via, o desenvolvimento do capitalismo gera uma nova classe, mas com características ideológicas que anulam suas possibilidades de ação política inovadora em relação às práticas burguesa e proletária. O novo se reduz ao antigo. Esta operação intelectual não deixa, porém, de ter conseqüências. Ao reconhecer a emergência de uma nova pequena burguesia, Poulantzas acaba produzindo alguma novidade teórica e política em relação ao marxismo: ao contrário do que sugeria Marx, a pequena burguesia, para ele, deixa de ser um fenômeno transitório e torna-se um fenômeno permanente do capitalismo, com seu individualismo, seu reformismo e sua crença na superior neutralidade do Estado1 1 . Esta reunião da nova e velha pequena burguesia numa só classe foi duramente criticada no campo marxista – por Wright (1979) entre outros – em função da grande diversidade político-ideológica existente entre elas. Além de diferentes economicamente, os críticos sublinharam as diferenças entre os individualismos, as perspectivas em relação ao Estado etc., que caracterizavam cada uma delas. . No entanto, embora passe a ser concebida como perene, para o nosso Autor, ela mantém a mesma incapacidade de fazer história que a pequena burguesia tradicional, oscilando entre os dois pólos que definem a conservação e a revolução no capitalismo, a burguesia e o proletariado.

Embora Poulantzas não se refira nas quase 400 páginas do livro aos movimentos de protesto que então fervilhavam no Ocidente (o que por si só é extraordinário), se pode supor que ele os identificaria como práticas pequeno-burguesas ou de algum segmento da pequena burguesia. Ainda assim, sua fidelidade ao marxismo, ainda que na versão "estruturalista", o obrigaria a reduzir o caráter eventualmente singular e inovador que pudessem ter aqueles movimentos sociais.

De fato, os problemas apontados na análise de Poulantzas sugerem que a pouca atenção, que os principais teóricos marxistas deram aos referidos movimentos de protesto, não era mera idiossincrasia do autor. A desatenção indicava haver, dentro da tradição marxista, uma dificuldade técnico-política para tratar do assunto: a projeção política das "camadas intermediárias" abalava, implicitamente, um dos seus pilares básicos, a atribuição ao proletariado da missão revolucionária de superar o capitalismo. De fato, embora naqueles anos os intelectuais marxistas apresentassem outras "soluções" para o "problema" das camadas intermediárias – Mallet (1963), por exemplo, entendera que elas constituíam uma "nova classe operária" e Wright (1979) as identificou como sendo apenas categorias sociais com "posições contraditórias de classe" – nenhum atribuiu a elas um status político muito relevante. Pelo contrário, o modo de interpretar sociologicamente as camadas intermediárias sempre foi condicionado à preservação do status político atribuído ao proletariado como portador privilegiado da revolução socialista.

É bem possível que mais do que as dificuldades de adaptar-se, em geral, às complexidades do desenvolvimento do capitalismo, foram a incapacidade do marxismo ajustar a elas a sua teoria das classes e da revolução o elemento crucial para que ele deixasse de desfrutar "de muita respeitabilidade nas ciências sociais" (Offe, 1985a, p. 149).

Fora dos limites da tradição marxista surgiram, do final da década de 1970 até meados dos anos 80, várias interpretações dos movimentos de protesto que também estudaram seus possíveis vínculos com as classes sociais.

Uma delas, elaborada por Alvin Gouldner (1979), retoma a linhagem inaugurada por Bakhunin no final do século XIX, identificando naqueles movimentos sociais a expressão dos interesses de uma Nova Classe, a dos intelectuais e da inteligentzia técnica, que surgia em quase todo o mundo e se chocava com os grupos que controlavam a economia e a política2 2 . Em torno de 1870, Michail Bakhunin – em oposição ao desenho positivo da nova sociedade socialista projetado pelos marxistas – assinalava que: "Será ... um governo muito complexo, que não se contentará em governar e administrar as massas politicamente, como todos os governos o fazem hoje, mas que também as administrará economicamente ... .Tudo isso exigirá um conhecimento imenso ... Será o reino da inteligência científica, o mais aristocrático, despótico, arrogante e desdenhoso de todos os regimes. Haverá uma nova classe, uma nova hierarquia de verdadeiros e pretensos cientistas e sábios, e o mundo se dividirá em uma minoria que dominará em nome do conhecimento e numa enorme maioria ignorante." apud Ivan Szelenyi e Bill Martin (1988), onde se encontrará uma excelente síntese das várias tentativas de se teorizar sobre a Nova Classe desde os anarquistas até Alvin Gouldner. . Os movimentos contra o establishment acadêmico, pela paz, pelos direitos civis, pelos direitos da mulher ou por proteção ambiental, são entendidos por Gouldner como formas de ampliar o acesso a empregos e melhores condições de trabalho para os profissionais de classe média e/ou para racionalizar o exercício do poder restringindo o arbítrio das corporações e do Estado.

A Nova Classe, tal como a entendia Gouldner, não crescia apenas no mundo capitalista ocidental de então, mas também nas sociedades do Leste dirigidas pelo Estado. Ela se expandia nos dois tipos de sociedades, disputando o poder com os capitalistas privados, proprietários de capital monetário, e com os antigos burocratas partidários do Estado socialista, graças ao seu conhecimento e educação, ao seu capital cultural, em suma. De outra parte, como a classe trabalhadora, também a Nova Classe ganha a vida mediante o sistema salarial, mas à diferença daquela ela pretenderia controlar o conteúdo do seu trabalho e as condições em que ele ocorre, encarnando o sonho de autogestão do trabalho a se realizar no futuro. O que caracteriza a Nova Classe, do ponto de vista econômico, é ser portadora do capital cultural, embora as outras classes também o possuam em alguma medida. Entretanto, o capital cultural que ela possui é não apenas quantitativamente maior, mas também difere do ponto de vista qualitativo. De fato, para Gouldner, a Nova Classe constitui também uma comunidade lingüística moldada pelo que denomina a Cultura do Discurso Crítico. As regras desta cultura, elaboradas ao longo da história, tornariam chave a necessidade de justificar as assertivas dos participantes dessa comunidade. Sua validade não dependeria do apelo a autoridades, mas, ao invés, do consenso voluntário entre os falantes, obtido por meio da argumentação. Assim, do mesmo modo que as demais classes, para Gouldner, a Nova Classe teria interesses materiais comuns, valorizar o seu capital cultural, e uma ideologia própria, a Cultura do Discurso Crítico.

Como se percebe, a argumentação e a linguagem seguem a tradição – as classes lutam umas contra as outras em busca da efetivação dos seus interesses materiais e perspectivas ideológicas – mas a perspectiva de Gouldner rompe com o paradigma marxista, apostando numa Nova Classe, a classe dos profissionais e de intelectuais, como sujeito histórico muito mais provável que o proletariado. Como argumenta ao final do livro: "O Manifesto Comunista afirmava que a história de todas as sociedades que existiram até agora era a história da luta de classes: homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres artesãos e oficiais e, depois, burguesia e proletariado. Mas nesta série havia uma regularidade não explícita: os escravos romanos não sucederam aos senhores, os plebeus não venceram os patrícios, os servos não derrotaram a nobreza feudal, os oficiais não triunfaram sobre os mestres. A classe mais baixa nunca chegou ao poder. Tampouco parece provável que isso venha a ocorrer agora." (p.123.)

Outra interpretação do fenômeno em pauta foi formulada pelos teóricos, em geral europeus, dos Novos Movimentos Sociais – Alberto Melucci (1980, 1985) e Claus Offe (1985a, 1985b) entre outros. Estes analistas os associaram às mudanças estruturais ocorridas no capitalismo contemporâneo, que estaria passando para uma fase pós-industrial, de informação (Melucci) ou de serviços (Offe). Eles não deixaram de reconhecer que os participantes dos novos movimentos sociais vinculam-se a segmentos da nova classe média, principalmente, e a setores "periféricos" e "não-mercantilizados" da população, como donas de casa, estudantes e aposentados. No entanto, eles acentuaram que, embora havendo um vínculo estrutural de classe dos agentes, as demandas dos novos movimentos sociais não tinham qualquer especificidade de classe, eram dispersas e universalistas ou, então, específicas de coletivos distintos das classes. Em suma: "a política de nova classe média é tipicamente uma política de uma classe, mas, em contraste com as políticas usuais do operariado e da velha classe média, não é uma política em favor de uma classe." (Offe, 1985b, p. 833.)

Com efeito, os movimentos antigos – particularmente o movimento operário – se mobilizavam como grupos sócio-econômicos, por meio de organizações formais e grupos de pressão política, para atingir interesses específicos (o crescimento econômico, uma participação maior na distribuição do produto social ou segurança para o status já adquirido), ao passo que os novos, com organizações mais informais e igualitárias, tentariam atingir objetivos que atravessam as linhas de classe como gênero, raça, paz, ecologia e autonomia local. Em lugar do individualismo e do progresso material, os novos movimentos valorizariam a autonomia pessoal, o reconhecimento e a autodeterminação.

Qual o significado global, então, dos novos movimentos sociais? Foram vistos como uma resposta defensiva em relação à expansão da máquina estatal e da economia capitalista para além da produção, em direção ao controle do consumo, dos serviços e das relações sociais em geral, invadindo as áreas de informação, de formação simbólica e as relações interpessoais. Os novos movimentos se rebelariam contra os efeitos colaterais negativos da mencionada expansão, cujas formas técnico-racionais de dominação e controle passaram a atingir todas as esferas da vida social e todos os membros da sociedade, perdendo – ao mesmo tempo – o Estado e o sistema econômico toda a capacidade de aprendizagem, de limitarem e corrigirem a si próprios.

A teoria da guinada cultural (cultural shift) de Ronald Inglehart (1977, 1980) apresenta outra perspectiva de explicação dos movimentos de protesto, mais distante ainda do marxismo, embora ele não deixe de reconhecer que Marx captou uma dimensão relevante da realidade inerente às fases iniciais do capitalismo industrial. No entanto, o próprio desenvolvimento capitalista teria produzido uma quantidade tão grande de riquezas diminuindo a importância dos conflitos econômicos, que Marx considerava centrais para a vida política. Da perspectiva de Inglehart, a abundância teria reduzido a utilidade marginal do determinismo econômico. Quer dizer, sob condições de escassez econômica, os fatores desse tipo têm um papel decisivo; mas quando a escassez diminui, outros fatores – pós-materialistas – tendem a moldar a sociedade em grau crescente. Estas observações referem-se ao nível societário da análise e manifestam-se mais fortemente nas sociedades capitalistas avançadas. Em cada sociedade, porém, a tendência global não se manifesta de forma uniforme nos estratos sociais (diferenças de classe) e ocorre de modo diferido no tempo (os valores mudam muito lentamente em função da persistência dos ensinados na tenra infância). Desta maneira o desenvolvimento capitalista posterior à II Guerra Mundial teria produzido uma quantidade tão grande de riqueza, que uma nova geração de classe média – mais liberada das necessidades materiais – estaria procurando suprir suas necessidades "pós-materiais", como a busca de identidade, significado pessoal e de qualidade de vida. Esta reorientação cultural ainda seria impossível para aqueles que, como os operários, concentram suas energias na luta pela sobrevivência. Os movimentos de protesto seriam, assim, afirmações dos novos valores resultantes da afluência produzida pelo capitalismo. Como é facilmente perceptível, em Inglehart ocorre um afastamento drástico em relação ao paradigma marxista: a guinada cultural é um dos frutos de um sistema que quanto mais se desenvolve, mais liberta o espírito dos grilhões utilitários que de início o amarravam, mais mostra sua face benévola.

Em termos substantivos, estas três interpretações do fenômeno em questão coincidem em muito pouco: Gouldner, os teóricos dos Novos Movimentos Sociais e Inglehart vêm neles manifestações da nova classe média. No entanto, além de terem diferenças marcantes entre si, podem ser ordenadas em uma série que apresenta graus crescentes de distanciamento em relação ao marxismo. Gouldner entende os movimentos como protesto em favor dos interesses materiais e ideais da Nova Classe (pelos menos parcialmente assimilável à nova classe média assalariada) e faz dela a portadora do futuro. Embora o esquema analítico tenha afinidade com o de Marx – a sociedade do presente é transitória e as classes são as portadoras da conservação e da mudança – o esquema teórico-político bipolar é abandonado pela redefinição do conceito de capital (que passa a incluir o capital cultural, além do monetário) e pelo reconhecimento da Nova Classe como portadora provável da história, quer dizer, da superação da sociedade contemporânea.

Os teóricos dos Novos Movimentos Sociais não negam que, na sua fase pós-industrial, o capitalismo continue sendo uma sociedade de classes, embora sublinhem a ocorrência de mudanças importantes na estrutura social, especialmente o surgimento da nova classe média. No entanto, para eles os movimentos de protesto não são expressão de luta desta classe, mas sim portadores de reivindicações transclassistas em favor de uma sociedade civil mais autônoma em relação ao mercado e ao Estado. Eles não se orientam para a superação da sociedade moderna, mas para defender alguns de seus valores, como autonomia pessoal, identidade, autenticidade e também direitos humanos, paz e meio ambiente equilibrado, contra um padrão de desenvolvimento econômico e político que se tornou demasiado seletivo, na medida em que tende a satisfazer de modo unilateral apenas alguns dos valores modernos, como progresso técnico, propriedade e renda, em geral reivindicadas pelos atores-chave da sociedade industrial remanescente.

Por último, a interpretação de Ronald Inglehart sobre a sociedade moderna e os novos movimentos sociais – supondo um vínculo direto entre a centralidade cultural da economia e a escassez de bens – dissocia-se completamente do marxismo. Interpreta o capitalismo como uma organização sócio-econômica capaz de produzir tanta riqueza que acaba por "desmaterializar" sua vida política, convertendo cada vez mais os atores individuais e coletivos em portadores de valores pós-materiais. No limite, é como se o capitalismo fosse capaz de absorver por si próprio algumas das virtudes espirituais que Marx imaginava serem o atributo do reino da abundância, o comunismo. O mais importante, porém, é que, embora o pós-materialismo tenda a ser mais acentuado entre indivíduos de classe média – menos sujeitos à escassez material – do que entre os trabalhadores, a explicação de Inglehart para a mudança cultural não tem relação alguma com a dinâmica da luta de classes (ou de grupos associados a elas), mas somente com a maior ou menor riqueza de que dispõem.

Embora essas três interpretações reconheçam o predomínio de ativistas da nova classe média nos movimentos de protesto, nenhuma delas consegue vincular, pelo menos de forma convincente, classe e ação coletiva.

Assim, é difícil aceitar que as diversas demandas dos novos movimentos sociais – despoluição, preservação da natureza ou desarmamento, por exemplo – possam ser reduzidas a interesses imediatos e de racionalização da Nova Classe identificada por Gouldner. Embora torne mais complexo e contrarie o esquema marxista com a identificação de uma Nova Classe portadora da história, Gouldner não se preocupa em analisar os movimentos sociais propriamente ditos, nem em mostrar, com rigor, os elos que supostamente os ligam a ela. Na verdade, a preservação da Floresta Amazônica ou da Antártida parecem tão distantes dos interesses da classe média profissional quanto da classe operária. E quanto ao desarmamento? Não são, na maioria das guerras, os filhos dos operários que vão para os campos de batalha? Por que, então, a classe média predomina tanto nos novos movimentos sociais? Em suma, as demandas dos movimentos sociais são demasiado diferenciadas para que, sem maior elaboração, possamos reduzi-las a interesses de uma classe, especialmente porque a maior parte dos seus membros ou contribui para efetivar políticas contrárias às demandas daqueles movimentos ou então não participa deles.

Diferentemente de Gouldner, os teóricos dos Novos Movimentos Sociais têm a virtude de focalizar bem a natureza dos valores, formas de organização e táticas dos movimentos sociais. No entanto, embora reconhecendo o predomínio de ativistas da nova classe média nos movimentos de protesto, também não conseguem explicar bem a ligação entre eles. Eles não entendem ser esse predomínio o resultado de relação articulada entre classe e ação coletiva, mas um vínculo contingente que decorre da melhor percepção que os membros das classes médias têm dos efeitos negativos da "colonização do mundo-da-vida", quer em função de sua instrução superior ou porque tais conseqüências negativas afetam mais diretamente o exercício de suas ocupações. De qualquer maneira, os teóricos a que nos referimos costumam tomar o "universalismo" ou, então, a "especificidade" das reivindicações coletivas pelo seu valor de face, vendo neles a defesa de alguns valores modernos sem procurar sistematicamente o vínculo entre os novos movimentos e a classe de onde provém a maioria dos seus ativistas e apoiadores. É como se as classes e seus interesses continuassem a existir, mas deixassem de ter relevância para explicar o protesto coletivo e a mudança social.

No caso da teoria da guinada cultural parece haver uma razão clara para que a classe média afluente e não a classe operária dedique-se aos movimentos "pós-materialistas". No entanto, o argumento de Inglehart supõe erroneamente que o enriquecimento crescente sacia os interesses materiais dos seus beneficiários. Esquece que a definição de interesse material varia no tempo. Numa sociedade aquisitiva, supridas certas "necessidades materiais", aparecem novas e o que era supérfluo torna-se necessário. E, se nos ativermos ao próprio argumento do autor, como explicar a presença tão pequena nos novos movimentos sociais das classes mais abastadas, cujas necessidades materiais estariam supostamente satisfeitas? De qualquer modo, do ângulo de Inglehart, a questão central não está aí, mas em explicar as mudanças ocorridas na cultura política dos países capitalistas avançados e como elas se manifestam de forma distinta nos vários níveis da atividade política.

A dificuldade principal da literatura examinada, subjacente aos problemas substantivos já apontados, é de natureza teórica: eles subestimam a relevância da cultura não apenas na articulação entre classe e ação coletiva, mas na conformação mesma dos dois termos.

De fato, em todas as três vertentes examinadas da literatura, as classes e seus interesses são considerados como dedutíveis das suas posições sócio-econômicas. E quando os movimentos sociais não expressam consciência, ainda que parcial, dos interesses vinculados àquelas posições não são vistos como manifestações de classe. Para Gouldner, por exemplo, os movimentos buscariam expandir a presença (o poder) da Nova Classe, tanto pelo controle de mais recursos materiais, quanto pela imposição aos demais litigantes de sua forma própria de resolver controvérsias, a Cultura do Discurso Crítico, derivada da sua atividade profissional técnico-intelectual. No caso dos teóricos dos novos movimentos sociais, o mesmo raciocínio funciona a contrapelo: eles não são considerados expressões da nova classe média porque o "universalismo" de suas reivindicações não se ajusta à concepção utilitária com que supõem sejam definidos os interesses de qualquer classe. A teoria da guinada cultural tem os mesmos pressupostos, embora eles só apareçam de forma indireta: a cultura dos agentes sociais é menos materialista, isto é, os valores pós-materiais tendem a se tornar mais importantes quanto menor a escassez econômica. Para Inglehart, pois, a cultura é variável dependente da economia. Escassez e afluência econômicas resultam em diferentes valores.

Esta exposição sumária – e certamente muito seletiva – da literatura sobre movimentos sociais, produzida nos anos 1970 até meados dos 80, mostra que ela tentou superar os desafios postos pelas novas formas de ação coletiva surgidas naquele momento. Não conseguiu, porém, resolver de forma consistente – contornou ou esvaziou – a questão da relação entre classe social e ação coletiva, que provocara tantas polêmicas na tradição marxista. Diga-se de passagem, que a deficiência teórica dessa literatura – a já apontada subestimação do papel desempenhado pela cultura na articulação e conformação dos dois termos – afetou também as pesquisas sociológicas realizadas sobre o operariado3 3 . De fato, similar concepção empobrecida de cultura caracterizou as pesquisas empíricas sobre "classe" e "consciência de classe" do operariado, realizadas até a década de 70 no Reino Unido. Um balanço crítico recente sobre essas pesquisas conclui que: "no final dos anos 1970, portanto, os debates sobre consciência de classe e imagem de classe sobre a sociedade chegaram a conclusões similares sobre a necessidade de um entendimento mais complexo do que até então se tivera sobre a relação entre classe e cultura. Entretanto, era pouco claro como os sociólogos deveriam proceder para pensar as relações entre posições estruturais e significados culturais, sem reduzir as crenças e os valores à estrutura." (Devine e Savage, 2004.) .

Mais ainda, a literatura sociológica passou a apresentar uma dissociação crescente entre as investigações sobre classes e os estudos sobre movimentos sociais e outras formas de ação coletiva.

Por um lado, as análises sobre classes sociais passaram a ser definidas quase totalmente por estudos sobre a estratificação social baseada em relações de emprego, com suas vertentes neo-marxista e neo-weberiana4 4 . Refiro-me aqui às denominações usuais dadas às duas orientações intelectuais que marcam os estudos mais destacados (em termos internacionais), que vêm sendo realizados há uns dois decênios sobre estratificação e mobilidade social. Suas figuras intelectuais mais proeminentes são, respectivamente, Eric Wright e John Goldthorpe. . Tais estudos tenderam a dissociar completamente as classes sociais da ação coletiva e, mais ainda, de qualquer atividade simbólica. Ainda que alguns deles procurem identificar funções econômicas complementares para os agregados ocupacionais hierarquizados, neles as "classes" são definidas "objetivamente" pelo analista, que não incorpora analiticamente as práticas classificatórias dos próprios agentes que ocupam aquelas posições. Embora tais estudos produzam, sem dúvida, conhecimento sociológico relevante, eles representam uma alternativa de investigação sobre a estrutura social muito menos ambiciosa, do ponto de vista heurístico, do que aquela sugerida – embora não realizada – pela teoria social clássica.

Por outro lado, os estudiosos dos movimentos coletivos tenderam a seguir a trilha aberta pelos teóricos dos novos movimentos sociais, desenvolvendo a análise da ação coletiva de forma quase totalmente desconectada da estrutura de classes, examinando preferencialmente seus vínculos, seja com a "sociedade civil", seja com a "cultura". Mesmo nas investigações orientadas pela perspectiva da "teoria da mobilização de recursos", ancorada no individualismo metodológico e na teoria da escolha racional, a dimensão cultural acabou sendo incorporada à análise dos movimentos sociais5 5 . A teoria da mobilização de recursos nunca fez referência à estrutura social. Por isso não foram tratadas aqui as investigações orientadas por ela. Sobre a "virada cultural" ocorrida na referida teoria consultar Nash (2000). . Assim, atualmente, as várias teorias sobre movimentos sociais encaram-nos como atores culturalmente moldados (embora de modo diverso, dependendo da perspectiva analítica), mas sem conexão determinada com a estrutura de classes6 6 . Encontra-se em Diani (1992), um excelente balanço global da literatura sobre movimentos sociais. .

Em suma, ainda que se tenha avançado muito em cada uma dessas duas áreas de estudo, as conexões entre a estrutura social e as práticas coletivas deixaram praticamente de ser exploradas. O presente estudo visa contribuir para fechar este vazio teórico cumprindo uma tarefa específica: o reexame da natureza das classes sociais. Trata-se, na seqüência, de explorar uma concepção de classes sociais que, em lugar de descartar a dimensão cultural – em função da dificuldade de evidenciar as articulações entre classe e cultura, definidas isoladamente – procura incorporá-la ao próprio sistema de estratificação. Com isso, pretende-se fazer avançar a teorização relativa às classes de modo a ajustar o seu passo aos avanços ocorridos no estudo sociológico dos movimentos sociais. Assim, embora não se vá examinar especificamente as teorias da ação coletiva, elas estarão no horizonte da discussão a seguir.

Classe e ação coletiva: Elos conceituais

Há um conjunto de estudos sociológicos que, nos últimos decênios, tem impulsionado, a meu ver, um movimento contrário às tendências predominantes antes descritas de dissociação entre os estudos sobre estrutura social e sobre ação coletiva. Serão aqui examinados alguns conceitos presentes nesses estudos e se tentará reelaborá-los para acentuar as possibilidades que têm de desenvolver uma concepção de estrutura de classes que contribua para superar a dissociação apontada. Tomo como referência central da análise a noção de classe social elaborada por Pierre Bourdieu, que considero o núcleo do movimento de reconstrução antes mencionado.

Em seus principais trabalhos sobre classes sociais, Pierre Bourdieu procura superar o que entende serem algumas limitações básicas da tradição marxista (Bourdieu, 1984, 1989). De um lado, opõe-se à sua tendência de substancializar as classes como atores coletivos realmente mobilizados com consciência plena, "incompleta" (sindicalista) ou falsa do sistema de exploração e dos interesses que decorrem dele; de outro, recusa-se a pensar o espaço social de forma unidimensional e objetivista, como se apenas as relações de produção fossem reais, ignorando-se o peso que as lutas simbólicas têm nos processos de representação e classificação do mundo social. A dimensão cultural, pois, passa a ser parte essencial das relações entre classes.

As classes, para ele, são construções teóricas que procuram identificar relações entre agentes que ocupam posições relativas vizinhas em função, principalmente, do capital econômico e cultural que possuem. É o montante e a composição do capital de que dispõem os agentes, aquilo que os distancia no espaço social, ele mesmo diferenciado em diversos campos (do econômico ao cultural), que têm lógicas próprias de operação, mas mantêm uma hierarquia decorrente de o campo econômico impor sua estrutura aos demais. Bourdieu supõe que agentes que ocupam posições relativas vizinhas no espaço social, estando sujeitos a condicionamentos similares, têm boa probabilidade de terem interesses, atitudes e práticas semelhantes.

Contudo, entre esse cálculo teórico e as práticas efetivas das diferentes classes há uma ponte a construir. Para Bourdieu o que faz a ponte entre as posições objetivas de classe – materiais e culturais – e suas práticas não é a consciência e sim o habitus de classe. Trata-se, o habitus, de um conjunto de disposições de conduta de cada classe em relação às outras, que resulta da incorporação por seus agentes das percepções que têm sobre sua posição relativa no conjunto das relações de classes. Estas disposições de conduta das várias classes, os seus habitus, estão segundo Bourdieu aquém do nível da representação explícita e da expressão verbal. O habitus, diz ele, é mais um inconsciente de classe do que uma consciência de classe.

É essencial sublinhar, com o Autor, que as categorias de percepção do mundo social são, no essencial, produtos da incorporação das estruturas objetivas do espaço social. Assim, elas "levam os agentes a tomarem o mundo como ele é e a aceitarem-no como natural, mais do que a rebelarem-se contra ele". O habitus dá o sentido do lugar próprio de cada um. Daí, diz ele, "o profundo realismo dos dominados" que funciona "como uma espécie de instinto de conservação socialmente constituído".

O habitus, porém, não é hábito, mas disposição para ação em relação a outras classes. Os limites entre as classes não são, pois, dados, mas ativa e dinamicamente produzidos e reproduzidos por agentes portadores daquelas disposições. Quer dizer, os agentes procuram ‘distinguir-se’, diferenciar-se socialmente de outras classes ou frações de classe. Assim, o espaço das classes traduz-se em um espaço de estilos de vida, diferenciados e hierarquizados de alto a baixo. Desta perspectiva, o conceito weberiano de estamento se "moderniza", já não se opõe em princípio à classe, torna-se inerente a ela.

Não se trata, além disso, de um espaço de posições estáticas que convertido em habitus. Ele decorre não apenas da posição que tal ou qual categoria de atores ocupa no espaço social em um momento dado, em função do volume e composição de seu capital, mas também da trajetória da categoria no tempo. Assim, a inclinação (...) da trajetória coletiva governa, através de disposições temporais, a percepção da posição ocupada no mundo social e a relação encantada ou desencantada em relação àquela posição, o que é uma das principais mediações através das quais se estabelece a relação entre posição social e "posição" política. O grau em que indivíduos e grupos se voltam para o futuro, a novidade, a inovação (...) ou, pelo contrário, orientam-se em direção ao passado, para o ressentimento social e o conservantismo depende do seu passado e de sua trajetória potencial, isto é, da extensão em que eles foram bem sucedidos em reproduzir as propriedades dos seus ascendentes e são (ou sentem-se) aptos para reproduzir suas propriedades na sua descendência (Bourdieu, 1984, 454-5).

O esquema teórico construído por Bourdieu também contempla a existência de certa variação nas disposições de conduta dentro de uma classe ou fração de classe, o que recomenda não interpretar de forma mecânica o habitus enquanto dispositivo homogeneizador. De fato, o habitus permite certa variedade de orientações de conduta dentro de uma classe ou fração de classe. Quais os fundamentos estruturais disso? Para Bourdieu, são as diferentes origens e trajetórias de indivíduos que ocupam posições similares no espaço social (por exemplo, parte do operariado urbano provém da baixa classe média, outra parte é constituída por ex-trabalhadores rurais etc.) que favorecem o surgimento de diferenças de perspectiva e de opinião entre os agentes de uma mesma classe social. Ainda assim, para ele, tudo "parece indicar que (... isso ocorre...) dentro dos limites dos efeitos de classe; desta forma, as disposições ético políticas dos membros de uma mesma classe aparecem como formas transformadas da disposição que caracteriza fundamentalmente a classe como um todo" (Bourdieu, 1984, p. 456)7 7 . Quer dizer, para ele a gama das disposições deriva da confluência entre a multiplicidade das trajetórias dos indivíduos (e suas famílias) e a trajetória/posição de classe. Isso significa que quanto menor a mobilidade social (ascendente ou descendente), menores são as chances de heterogeneidade dos habitus. E vice-versa. Quanto aos limites de classe tender a não serem ultrapassados, trata-se de hipótese – enunciada em A Distinção – que exige maior fundamentação empírica. . Esta percepção de que os limites de classe tendem a se impor à diversidade das interpretações presentes em cada classe, se traduz no visível ceticismo de Bourdieu em relação à relevância política das "diferenças de opinião" existentes entre as classes subalternas: para ele, sua capacidade de contestação parece estar sempre na dependência de sua associação com a fração intelectual (dominada) da classe dominante.

A concepção de que as classes sociais são categorias construídas que fixam probabilidades de ação, que só se efetivam por meio do habitus de classe e do sistema de símbolos que conformam estilos de vida e práticas de classe, tem estimulado o surgimento de um conjunto de novas investigações e de reflexões teóricas que indicam uma possível retomada dos problemas concernentes à relação entre classe, ação coletiva e política8 8 . Entre os trabalhos teóricos é particularmente relevante o de Klaus Eder (2002). Entre as investigações empíricas destacam-se as de Michèle Lamont (1992) que compara as altas classes médias francesa e norte-americana e a de David Crouteau (1995) a respeito das relações entre os movimentos esquerdistas de classe média e a classe operária. . Além disso, investigações orientadas por outros esquemas interpretativos têm reforçado a tendência apontada, na medida em que vêm produzindo valiosas reconstruções empíricas das conexões entre condições de vida de diversas classes e formas particulares de percepção da estrutura social e/ou padrões específicos de socialização9 9 . Ver, por exemplo, Willis (1991) sobre o processo de socialização de filhos de operários. .

Embora as tendências apontadas permitam algum grau de otimismo em relação aos futuros desenvolvimentos da sociologia política, o esquema conceitual armado por Bourdieu sugere haver tanta sintonia entre experiência social (posição e trajetória) e habitus que parece pouco apropriado para captar fissuras que possam contribuir para que seja rompido o processo circular de reprodução social10 10 . Bourdieu, decerto, recusa o rótulo de conservador. Do seu ponto de vista, este timbre só tem sentido do ângulo político-normativo; afirmar que as classes mais pobres tendem – sublinho – à subalternidade por falta de recursos culturais é ser apenas realista, diz ele, "como realista é o habitus proletário". .

Esta afirmação parece-me sustentável, ainda que se deva reconhecer que Bourdieu tenta identificar fontes de mudança social global. De fato, embora as relações objetivas de força – fundadas nas diferenças de recursos existentes entre as classes – tendam a reproduzir-se dinamicamente por meio dos habitus de classe, para Bourdieu (1989) há sempre algo de vago e indeterminado nos objetos do mundo social que, aliado ao caráter pré-reflexivo dos esquemas de percepção, abre espaço para a luta política, onde têm lugar central a disputa para manter ou transformar as categorias de percepção predominantes no espaço social. Para Bourdieu, isso pode ocorrer conjunturalmente nos períodos de crise, em que "os habitus saem de alinhamento nos campos onde operam, criando uma situação na qual 'a crença no jogo' (illusio) é temporariamente suspensa e os pressupostos 'dóxicos' (indiscutidos) são movidos para o nível do discurso, onde podem ser contestados" (Crossley, 2003, p. 44).

Quanto a isso, o problema não se restringe a que os movimentos de protesto coletivo, inclusive os não institucionalizados, ocorram também fora dos períodos temporários de crise, o que sugere há no processo corrente de reprodução social estímulos para o seu aparecimento. Ademais, na sociedade contemporânea, não só os meios de produção material se concentram aceleradamente, mas também os meios industriais de produção simbólica se oligopolizam em escala mundial, restringindo drasticamente os espaços para que os dominados possam preencher o "vago e indeterminado" existente entre os objetos e os esquemas de percepção. Tais espaços tenderiam mesmo a desaparecer, a menos que haja na sociedade fontes permanentes de produção "do vago e indeterminado", que abram espaço permanente para o conflito societário e para a política.

O conceito de contradição, central em Marx, referia-se precisamente à presença de "inconsistências" na estrutura das sociedades capitalistas que constituiriam suas fontes potenciais de conflito e transformação. Embora, o conceito não tenha centralidade na teoria social contemporânea, sustenta-se aqui que sua elaboração é chave para superar as dificuldades apontadas no esquema teórico de Bourdieu e para desenvolver uma teoria que vincule estrutura social e ação coletiva, classe e transformação social.

Entre os sociólogos contemporâneos, Anthony Giddens talvez tenha sido aquele que mais sublinhou a importância da questão, chegando a fazer da diferença entre contradição e conflito social um elo fundamental de sua "teoria da estruturação". Não é possível fazer aqui um balanço adequado de sua teoria. Basta dizer que ele entende por conflito a luta entre atores ou coletividades expressas em práticas sociais definidas, ao passo que o conceito de contradição (estrutural) diz respeito à disjunção de princípios estruturais da organização do sistema, que no seu processo de reprodução social negam-se mutuamente embora dependam um do outro. Ainda que as contradições estruturais sejam pressupostos para os conflitos sociais (mas não só entre classes), o essencial é que eles não decorrem necessariamente delas11 11 . Segundo ele, a razão disso é variarem "ao extremo as condições em que os atores estão não somente conscientes de seus interesses, mas também aptos e motivados para agir de acordo com eles" (Giddens, 1989, p. 162). Valeria lembrar que essa é uma maneira bem restritiva de pensar a relação entre contradição e conflito, pois faz a sua existência depender, antes de tudo, da "consciência de seus interesses", como se esses fossem unívocos. . Embora a reflexão de Giddens se faça a partir dos textos de Marx, é notável a sua dificuldade em analisar a contradição inerente à própria relação capitalista de produção. Ele inicia a análise, mas não a leva até o fim, quer escapando da linha de argumentação para combater a interpretação evolucionista presente em alguns textos de Marx, quer deslocando o foco da análise para a relação Estado/sociedade. De fato, embora ele pense "não ser irrazoável" representar, de forma não-evolucionista, a contradição estrutural do capitalismo como a existente entre a "apropriação privada" e a "produção socializada", afirma que o Estado "coloca-se no centro desta contradição" (Giddens, 1995, p. 238). Com efeito, "as próprias condições que possibilitam a existência do Estado põem em ação (e dependem de) mecanismos que se opõem ao poder de Estado. (...) A 'apropriação privada' pede 'produção socializada' ao mesmo tempo em que a nega. (...) embora o Estado dependa da forma mercadoria, ele depende simultaneamente da negação da forma mercadoria. (...) A mais direta expressão da mercantilização é a compra e venda de valores; quando os valores deixam de ser tratados como permutáveis em termos monetários, eles perdem o seu caráter mercantil. A natureza contraditória do Estado capitalista se expressa nos avanços e recuos entre mercantilização, desmercantilização [medicina socializada ou transporte subsidiado] e remercantilização" (Giddens, 1989, p. 256)12 12 . Alterei levemente a tradução, usando – por exemplo – mercantilização ao invés de mercadorificação (sic). Além disso, inseri entre colchetes exemplos de desmercantilização que aparecem mais adiante no próprio texto citado de Giddens. . Como se percebe, a idéia de contradição acaba referindo-se às tensões recíprocas entre âmbitos distintos da sociedade, que operam de forma necessariamente diversa, o "Estado capitalista" e a "sociedade civil". Certamente, a dependência mútua e a forma diferente de operação de um e outra tendem a constituir um núcleo gerador de conflitos sociais. Mas a existência de tensões entre partes heterogêneas de uma mesma sociedade não é uma situação demasiadamente corriqueira para merecer um conceito tão grandiloqüente?

Tanto a elaboração insuficiente do conceito de contradição presente nos trabalhos de Giddens como o caráter algo supérfluo da noção que acaba adotando13 13 . Tais dificuldades teóricas talvez expliquem, em parte, o abandono da questão em sua obra posterior. De fato, já em O Estado-nação e a Violência, edição original de 1985, o tema da contradição e de sua diferença em relação aos conflitos sociais desaparece, contrariando as expectativas geradas por A Constituição da Sociedade, edição original de 1984 (edição brasileira de 1989) e pela publicação em 1981(1ª edição) de A Contemporary Critique of Historical Materialism. indicam que é preferível o recurso direto a Marx para a tarefa que se tem em vista.

Entretanto, embora tenha sido Marx quem mais vinculou a estrutura de classes do capitalismo às suas contradições, ele não o fez de forma sistemática ou uniforme. De fato, há muitos Marx a quem se pode recorrer para discutir o assunto: o jovem, o maduro, o da retórica político-revolucionária, o analista das conjunturas histórico-políticas e, entre outros mais, o construtor da teoria crítica do capitalismo. É sobre os escritos deste último que incide nosso interesse, pois é nele que podemos encontrar as conexões conceituais almejadas, expostas em um plano propriamente teórico.

O núcleo da relação entre classes e contradição encontra-se exposta em O Capital, obra central do marxismo, entendido aqui como teoria crítica do capitalismo14 14 . Encontra-se em Rui Fausto (1987) demonstração convincente de que, ao contrário das interpretações usuais, o marxismo é antes uma teoria crítica do capitalismo do que uma teoria geral da história. O trabalho citado serve também de apoio à interpretação que faço da seção VII, embora Fausto não a tome como texto central na análise que lá desenvolve do conceito marxista de classes. . Embora muito raramente tenha sido objeto de análise que busque decifrar o conceito marxista de classe social, creio que o texto-chave sobre o problema é o que trata da "Reprodução do Capital", a seção VII do primeiro volume do livro.

Sublinhe-se, desde logo, que é nele que as classes são expostas pela primeira vez em O Capital, embora não como classes em luta. Elas aparecem aí como suportes de um processo contraditório, o processo de reprodução do capital. Neste processo de reprodução, a liberdade e a igualdade inerentes às relações entre os agentes da esfera da circulação de mercadorias convertem-se em seu contrário, em escravidão e desigualdade entre as classes polares do sistema.

Explico melhor: quando se estuda o processo capitalista em conjunto, no movimento reiterado do capital que passa da circulação para a produção imediata de mercadorias e desta para a circulação, de novo para a produção e assim por diante, tudo muda de figura.

Na medida em que os operários convertem os salários recebidos em mercadorias e as consomem em seguida para reproduzir a si próprios, eles só mantêm a liberdade de escolher o capitalista particular a quem vender de novo sua força de trabalho. Perdem, no entanto, a liberdade de não vendê-la a qualquer deles, pois a alternativa é o desemprego e, no limite, a fome. Tornam-se em conjunto, como classe proletária, escravos da classe capitalista, amarrados a ela por fios invisíveis tão poderosos como as correntes que prendiam os escravos romanos a seus senhores. Assim, a escravidão societária, de uma classe em relação à outra, é o fundamento da liberdade de contrato.

De forma similar, na medida em que se reitera o processo de reprodução do capital, a mais-valia, acumulada nos processos de produção imediatos, vai substituindo paulatinamente os capitais iniciais dos capitalistas, capitais que, por hipótese, eram fruto do seu próprio esforço. A partir de certo ponto, o capital de quem contrata trabalhadores e compra meios de produção passa a ser apenas mais valia acumulada, sobre-trabalho alheio convertido em capital. Por esta via, no limite, as relações de igualdade que imperam na circulação de mercadorias passam a ter como fundamento uma relação de desigualdade crescente entre as classes. Assim, a apropriação do trabalho sem troca é o fundamento da igualdade na troca.

Em suma, o desenvolvimento das relações mercantis – a expansão da troca e dos âmbitos de liberdade e de igualdade a ela inerentes – acaba por generalizar o mundo das mercadorias, gerando o capitalismo industrial, capitalismo que, por seu próprio funcionamento, conforma uma sociedade de classes em que se produz e reproduz constantemente, no plano societário, escravidão e desigualdade entre as classes. Assim, na sociedade dominada pelo capital, a liberdade e a igualdade passam a ter como alicerces escravidão e desigualdade. Por esta via, na base da liberdade e igualdade experimentadas pelos operários na troca, bem como da autoridade disciplinadora que experimentam no processo de produção imediata (sobre o que não se fará aqui mais do que esta menção), estão a sua reprodução como parte de uma classe socialmente escravizada e explorada, obrigada reiteradamente a vender sua força de trabalho à classe oposta dos proprietários privados dos meios de produção e de vida.

Portanto, nesta interpretação de Marx, na raiz da experiência operária estão estas contradições: a liberdade que é e não é liberdade e a igualdade que é e não é igualdade, para usar a fórmula da dialética. São tais contradições e seus desdobramentos, para além das diferenças de fortuna e cultura, que abrem reiteradamente a possibilidade para o conflito social fundado em classes ou, nos termos de Marx, à luta de classes.

Sublinhe-se que o problema está sendo tratado de forma sintética e bastante abstrata. Em O Capital, o processo capitalista é exposto por Marx no limite extremo de seu domínio sobre a sociedade, como se ela obedecesse plenamente à sua lógica de funcionamento: todas as articulações entre os agentes de classe submetem-se aí à sintaxe do capital. Isso vale também para as formas ideológicas com as quais os agentes desempenham suas funções – a forma-salário, a forma-lucro etc. Não há, em O Capital, análise de atividades de associações operárias que contrariem o comportamento do proletariado como massa, a não ser em um caso específico, o da limitação da jornada de trabalho, mas isso decorre das exigências da lógica da argumentação. Da mesma forma, não se incorpora naquela obra qualquer expressão cultural própria do proletariado.

Inserido o capital no tempo e no espaço, considerados o grau variável com que conforma as diferentes sociedades, as qualificações distintas dos assalariados, os diversos setores em que trabalham a diferenciação de atividades assalariadas de concepção e direção, a segmentação do capital segundo suas diferentes funções – e assim por diante – a estrutura de classes, as formas de representá-la tornam-se muito mais complexas. Isso para não mencionar todas as formas de ação coletiva e de manifestação cultural que passam a entrar no campo de observação histórico-sociológico e/ou histórico-político. Neste caso, porém, já não se estaria no registro intelectual da "teoria crítica do capitalismo", de O Capital ou dos Gründrisse, mas no registro de O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte ou As Lutas de Classe na França.

Ainda assim, a exposição anterior serve para indicar que – embora as formas dominantes de classificação, o direito e o Estado tenham uma grande capacidade de saturar o "algo vago e indeterminado" que existe, segundo Bourdieu, entre as relações objetivas de classes e as percepções pré-reflexivas sobre elas – a operação mesma do capitalismo encarrega-se de produzir, permanentemente, contradições que desafiam o saber e o poder estabelecidos. Desse modo, a experiência mesma de cada classe de atores, diversamente posicionada na estrutura social, é ambígua e dinâmica, na medida em que, como diria Marx, o sistema capitalista de classes é contraditório (e cíclico)15 15 . No nível de generalidade com que se trata aqui o assunto, seria descabido discorrer sobre o possível efeito dos ciclos do sistema sobre a percepção das suas contradições. .

A perspectiva de Marx corrige a de Bourdieu também por sublinhar que o capitalismo é um sistema (embora contraditório): com isso ele enfatiza os pressupostos a partir dos quais os atores desenvolvem suas práticas, mobilizando os recursos materiais e culturais inerentes às suas posições e trajetórias de classe, e tendem a reproduzi-lo, embora as contradições inerentes à sua operação introduzam na experiência dos agentes uma maior possibilidade de emergirem conflitos.

Permita-se aqui uma breve digressão. A "correção" de Bourdieu por Marx pode operar também ao revés: a noção de habitus de classe permite superar a idéia, presente no marxismo, de "classe em si" (e sua correlata "para si"), sublinhando a relevância da perspectiva (prática e simbólica) dos explorados e dominados ainda que ela não seja elaborada reflexivamente e que eles não estejam revolucionando o sistema. É bem verdade que no registro teórico de O Capital, a perspectiva dos dominados é suprimida da exposição e, de direito, nela não tem lugar. No entanto, no registro histórico-político – ou, melhor, sociológico – a noção de habitus permite captar os códigos internalizados de forma pré-reflexiva que conformam grande parte das práticas sociais, inclusive as das classes subalternas. Tais práticas podem ser politicamente relevantes, mesmo quando não põem em questão as modalidades vigentes de reprodução social. O melhor exemplo disso encontra-se na análise que o próprio Marx faz da participação dos camponeses no processo histórico que levou à ascensão de Luiz Napoleão ao poder de Estado na França em 1852. Naquele episódio, sem associação nacional ou organização política própria que permitisse sua participação autônoma na vida política francesa, a atuação política unitária do campesinato passa a depender dele encontrar para si um representante "externo"16 16 . O termo é de Marx. Luiz Bonaparte tornou-se seu representante "externo" na medida em que não era camponês nem foi instituído como representante pela atividade política autônoma dos camponeses. No entanto, ele só pôde tornar-se representante de classe pelas disposições adquiridas pelo campesinato francês desde a grande Revolução Francesa, com a qual fora libertado da semi-servidão e transformado em um conjunto de proprietários livres, condição garantida depois por Napoleão I, no começo do século XIX. . Foi a tradição histórico-cultural internalizada pelo campesinato francês – o seu habitus, diria Bourdieu – que lhe permitiu encontrar na figura e nas idéias de Luiz Napoleão a possibilidade de realização – ilusória, é verdade – de suas aspirações. Foi isso que fez deste Bonaparte o depositário da votação massiva do campesinato no plebiscito que, em 1852, legitimou o golpe de dezembro de 1851. O caso reconstituído por Marx em O Dezoito Brumário diz respeito a uma classe em declínio que majoritaria e ilusoriamente vê na consolidação do poder de Luiz Napoleão a possibilidade de restaurar suas condições anteriores de vida. Entretanto, a busca da restauração da ordem anterior, vigente na época do primeiro Napoleão, não era, no entendimento de Marx, a única prática camponesa possível. Ele enfatiza a possibilidade não plenamente efetivada de uma prática camponesa revolucionária, mencionando como seus indícios uma série de irrupções coletivas contra as mudanças adversas ocorridas nas condições camponesas de vida. Assim, embora a prática política camponesa predominante fosse conservadora, suas disposições coletivas tinham abertura suficiente para que, em certas circunstâncias, pudessem desenvolver práticas contrárias à continuidade da ordem social.

A digressão anterior permite confirmar, pelo caminho inverso, a importância que tem uma concepção menos estreita de habitus para que a teoria das classes de Bourdieu possa se converter em alicerce de uma teoria da ação coletiva. Assimilando-se o conceito de contradição, tal como sugerido por Marx, à concepção de estratificação desenvolvida por Bourdieu abre-se a possibilidade de se explicar mais adequadamente os movimentos sociais radicais e a eventual ruptura de certa ordem social.

Em suma, não são apenas as posições e trajetórias das classes e dos atores (divergentes ou não) que explicam a possibilidade de variação das disposições de conduta inerentes a cada classe; a própria experiência social de cada classe – e especialmente a das dominadas – é, como disse antes, ambígua e dinâmica, na medida em que o sistema capitalista de classes é contraditório e cíclico. A ambigüidade introduzida na experiência das classes sociais pelas contradições do capitalismo, amplia os limites dos esquemas pré-reflexivos de percepção e das disposições de conduta que caracterizam o habitus de cada classe social. Assim alterada, a teoria das classes torna-se mais sensível que o esquema teórico original de Bourdieu para explicar a emergência de movimentos de contestação à ordem estabelecida que, de quando em vez, irrompem no fluxo previsível da dinâmica social.

Considerações finais

Neste artigo, as classes sociais foram identificadas como componentes da estrutura social contraditória produzida pelo capitalismo; elas não são atores coletivos, mas fixam balizas, por sua posição relativa nos planos material e cultural, à sociabilidade cotidiana, aos movimentos sociais, aos grupos de pressão e às coletividades moldadas por aparelhos institucionais; as disputas simbólicas e a cultura são um elo essencial na vinculação das classes, enquanto componentes da estrutura social, com os atores sociais que participam da vida coletiva17 17 . Eder (2001) desenvolve extensamente essas conexões, embora opere com um conceito de contradição social diverso. Tenta vincular classe e ação coletiva através de conteúdos culturais próprios de cada classe. Rose (1997) faz tentativa distinta procurando identificar diferenças não nos conteúdos, que podem variar historicamente, mas nas suas formas. De fato, para ele "as formas de consciência, de movimentos e de política são específicos de classe". Esta discussão não pode ser feita aqui em função do nível de generalidade com que tratamos o problema. .

Embora se tenha apontado para as balizas materiais e culturais que a estrutura e os habitus de classe tendem a estabelecer para as práticas sociais e para a ação coletiva, nada se disse especificamente – e nem se pretendeu dizer – sobre a própria emergência dos atores coletivos ou sobre a relação dos atores coletivos constituídos e as classes sociais.

No entanto, a discussão que se desenvolveu em torno das classes sociais, na qual os esquemas teóricos de Bourdieu e Marx tiveram lugar proeminente, orientou-se no sentido de elaborar uma concepção das relações de classe que apontasse para os constrangimentos e oportunidades (práticas e simbólicas) de articulação entre os agentes para se constituírem e atuarem como atores coletivos. O tema, pois, esteve sempre no horizonte da exposição, pois o exame da constituição e da atuação dos atores coletivos é a ponte que poderá, talvez, permitir reconectar, de forma teoricamente consistente, classe social e política.

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  • *
    Este artigo é uma versão alterada de conferência de igual título realizada como parte das provas do concurso para Professor Titular em Sociologia Política da Universidade de São Paulo, no mês de março de 2004.
  • 1
    . Esta reunião da nova e velha pequena burguesia numa só classe foi duramente criticada no campo marxista – por Wright (1979) entre outros – em função da grande diversidade político-ideológica existente entre elas. Além de diferentes economicamente, os críticos sublinharam as diferenças entre os individualismos, as perspectivas em relação ao Estado etc., que caracterizavam cada uma delas.
  • 2
    . Em torno de 1870, Michail Bakhunin – em oposição ao desenho positivo da nova sociedade socialista projetado pelos marxistas – assinalava que: "Será ... um governo muito complexo, que não se contentará em governar e administrar as massas politicamente, como todos os governos o fazem hoje, mas que também as administrará economicamente ... .Tudo isso exigirá um conhecimento imenso ... Será o reino da inteligência científica, o mais aristocrático, despótico, arrogante e desdenhoso de todos os regimes. Haverá uma nova classe, uma nova hierarquia de verdadeiros e pretensos cientistas e sábios, e o mundo se dividirá em uma minoria que dominará em nome do conhecimento e numa enorme maioria ignorante."
    apud Ivan Szelenyi e Bill Martin (1988), onde se encontrará uma excelente síntese das várias tentativas de se teorizar sobre a Nova Classe desde os anarquistas até Alvin Gouldner.
  • 3
    . De fato, similar concepção empobrecida de cultura caracterizou as pesquisas empíricas sobre "classe" e "consciência de classe" do operariado, realizadas até a década de 70 no Reino Unido. Um balanço crítico recente sobre essas pesquisas conclui que: "no final dos anos 1970, portanto, os debates sobre consciência de classe e imagem de classe sobre a sociedade chegaram a conclusões similares sobre a necessidade de um entendimento mais complexo do que até então se tivera sobre a relação entre classe e cultura. Entretanto, era pouco claro como os sociólogos deveriam proceder para pensar as relações entre posições estruturais e significados culturais, sem reduzir as crenças e os valores à estrutura." (Devine e Savage, 2004.)
  • 4
    . Refiro-me aqui às denominações usuais dadas às duas orientações intelectuais que marcam os estudos mais destacados (em termos internacionais), que vêm sendo realizados há uns dois decênios sobre estratificação e mobilidade social. Suas figuras intelectuais mais proeminentes são, respectivamente, Eric Wright e John Goldthorpe.
  • 5
    . A teoria da mobilização de recursos nunca fez referência à estrutura social. Por isso não foram tratadas aqui as investigações orientadas por ela. Sobre a "virada cultural" ocorrida na referida teoria consultar Nash (2000).
  • 6
    . Encontra-se em Diani (1992), um excelente balanço global da literatura sobre movimentos sociais.
  • 7
    . Quer dizer, para ele a gama das disposições deriva da confluência entre a multiplicidade das trajetórias dos indivíduos (e suas famílias) e a trajetória/posição de classe. Isso significa que quanto menor a mobilidade social (ascendente ou descendente), menores são as chances de heterogeneidade dos
    habitus. E vice-versa. Quanto aos limites de classe tender a não serem ultrapassados, trata-se de hipótese – enunciada em
    A Distinção – que exige maior fundamentação empírica.
  • 8
    . Entre os trabalhos teóricos é particularmente relevante o de Klaus Eder (2002). Entre as investigações empíricas destacam-se as de Michèle Lamont (1992) que compara as altas classes médias francesa e norte-americana e a de David Crouteau (1995) a respeito das relações entre os movimentos esquerdistas de classe média e a classe operária.
  • 9
    . Ver, por exemplo, Willis (1991) sobre o processo de socialização de filhos de operários.
  • 10
    . Bourdieu, decerto, recusa o rótulo de conservador. Do seu ponto de vista, este timbre só tem sentido do ângulo político-normativo; afirmar que as classes mais pobres tendem – sublinho – à subalternidade por falta de recursos culturais é ser apenas realista, diz ele, "como realista é o
    habitus proletário".
  • 11
    . Segundo ele, a razão disso é variarem "ao extremo as condições em que os atores estão não somente conscientes de seus interesses, mas também aptos e motivados para agir de acordo com eles" (Giddens, 1989, p. 162). Valeria lembrar que essa é uma maneira bem restritiva de pensar a relação entre contradição e conflito, pois faz a sua existência depender, antes de tudo, da "consciência de seus interesses", como se esses fossem unívocos.
  • 12
    . Alterei levemente a tradução, usando – por exemplo – mercantilização ao invés de mercadorificação
    (sic). Além disso, inseri entre colchetes exemplos de desmercantilização que aparecem mais adiante no próprio texto citado de Giddens.
  • 13
    . Tais dificuldades teóricas talvez expliquem, em parte, o abandono da questão em sua obra posterior. De fato, já em
    O Estado-nação e a Violência, edição original de 1985, o tema da contradição e de sua diferença em relação aos conflitos sociais desaparece, contrariando as expectativas geradas por
    A Constituição da Sociedade, edição original de 1984 (edição brasileira de 1989) e pela publicação em 1981(1ª edição) de
    A Contemporary Critique of Historical Materialism.
  • 14
    . Encontra-se em Rui Fausto (1987) demonstração convincente de que, ao contrário das interpretações usuais, o marxismo é antes uma teoria crítica do capitalismo do que uma teoria geral da história. O trabalho citado serve também de apoio à interpretação que faço da seção VII, embora Fausto não a tome como texto central na análise que lá desenvolve do conceito marxista de classes.
  • 15
    . No nível de generalidade com que se trata aqui o assunto, seria descabido discorrer sobre o possível efeito dos ciclos do sistema sobre a percepção das suas contradições.
  • 16
    . O termo é de Marx. Luiz Bonaparte tornou-se seu representante "externo" na medida em que não era camponês nem foi instituído como representante pela atividade política autônoma dos camponeses. No entanto, ele só pôde tornar-se representante de classe pelas disposições adquiridas pelo campesinato francês desde a grande Revolução Francesa, com a qual fora libertado da semi-servidão e transformado em um conjunto de proprietários livres, condição garantida depois por Napoleão I, no começo do século XIX.
  • 17
    . Eder (2001) desenvolve extensamente essas conexões, embora opere com um conceito de contradição social diverso. Tenta vincular classe e ação coletiva através de conteúdos culturais próprios de cada classe. Rose (1997) faz tentativa distinta procurando identificar diferenças não nos conteúdos, que podem variar historicamente, mas nas suas formas. De fato, para ele "as
    formas de consciência, de movimentos e de política são específicos de classe". Esta discussão não pode ser feita aqui em função do nível de generalidade com que tratamos o problema.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005
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