Os camponeses e a democracia
Ivo Poletto
Pós-graduando de Sociologia na USP e assessor especial do Secretariado Nacional da Comissão Pastoral da Terra
Por que cresce a violência no campo, num período em que se podem organizar mobilizações pró-diretas e se tem outras liberdades? Mais ainda: por que se reprime tanto a renovação e a atuação de sindicatos combativos em tempos em que se permite organizar partidos e se pode até encaminhar a legalização de partidos comunistas?
Creio que a verdadeira resposta a esta pergunta, se baseada na análise do movimento real da sociedade brasileira, mostra que as lutas camponesas como as lutas operárias e as das periferias urbanas ameaçam as classes dominantes, o seu Estado e o seu projeto político.
Se for essa a razão histórica, do aumento da violência contra as iniciativas populares e as suas lideranças, não é inútil questionarmo-nos a respeito dos objetivos históricos e conjunturais do projeto de "abertura política" e dos "espaços" concedidos. Não resta dúvida de que são concessões conquistadas, mas é preciso garantir a continuidade da conquista popular. Sem fugir aos inevitáveis riscos e contradições das necessárias iniciativas pluriclassis-tas, é preciso precaver-se em relação aos resultados práticos de sua implementação. É importante que se evite, nesse parto doloroso, gerar um monstro: um estado burguês com cara popular!
Há os que insistem em dizer que os camponeses são uma classe politicamente atrasada. Por exemplo, diante do avanço das mobilizações de massa em favor das eleições diretas, não são poucos os que acham que se deveria deixar de lado essa "estória de reforma agrária", sugerindo que o pessoal do campo deve engajar-se nas "diretas"... O resto e nesse resto se põe a luta pela terra, a luta por um novo sindicalismo, a conquista de preços justos para os produtos dos pequenos lavradores viria depois de alcançada a "democracia plena", com o restabelecimento da eleição direta para presidente e para os demais níveis.
Mas, cabe perguntar, só haveria uma maneira de lutar pela democracia e pela eleição direta, indo à rua, às praças e às concentrações pró-diretas? Que tipo de democracia se alcançará se não forem alterados os mecanismos reais de decisão, não tendo os trabalhadores instrumentos reais para fazer valer os seus projetos econômicos e políticos? Os trabalhadores voltarão a ser massa de manobra a serviço dos interesses de parcela da burguesia menos privilegiada na atual política econômica?
Sem negar a importância da campanha "pró-diretas já", deixando de lado as reivindicações específicas, não se estaria correndo o risco de fazer uma "aliança que favorece o inimigo"? Creio que a luta popular pela construção de sua própria democracia uma organização política dirigida pelas próprias classes oprimidas, que corresponda às suas aspirações e se assente em sua cultura está acontecendo nos movimentos camponeses, operários e demais movimentos populares, e na teimosa busca de dar uma feição original e eficaz às suas organizações. Na cidade, no campo, na fábrica, no bairro, na roça coletiva de posseiros e índios, no movimento dos Sem Terra, nos sindicatos e nos partidos em que realmente podem participar e decidir.
Limitar a luta pela democracia às concentrações pró-diretas é proposta política tão estreita como a imposição da greve como única forma de os oprimidos contestarem os dominadores. E os desempregados, os que trabalham por conta própria, os camponeses, como é que esses podem "cruzar os braços e parar as máquinas"?
É preciso que as propostas políticas de luta popular deixem de partir apenas das cidades. Mais ainda, é necessário contar com a criatividade das diferentes classes oprimidas, respeitando também as disparidades regionais dentro de cada classe, para encontrar os caminhos de alianças reais e as formas eficazes, diferentes, mas combinadas de luta popular.
As lutas camponesas, combinadas com as lutas dos operários, dos desempregados e subempregados, bem como as lutas dos funcionários, servidores públicos e profissionais liberais, desestabilizaram o projeto político das classes dominantes, em 1983, bem mais que as mobilizações pró-diretas. Sem essas lutas, nem seriam possíveis aquelas mobilizações. Além disso, só a história dirá se essas mobilizações servem ao crescimento do poder popular, único instrumento da construção da democracia que interessa às classes oprimidas.
O espaço dos camponeses na política nacional
É preciso pensar melhor a participação popular e, em particular, a participação camponesa na política nacional. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a maior parte das interpretações sobre essa participação é feita por pessoas que vivem nas cidades, e mais, que a maioria das lutas é encaminhada por pessoas de classe média. Mesmo as análises feitas por especialistas, como os sociólogos, confundem a discussão.
Não basta admirar-se, de repente, diante das lutas travadas no campo. Não é suficiente alegrar-se com os avanços da organização camponesa, quando esta se parece com os avanços operários. É preciso ir mais adiante. As formas de luta e de organização dos camponeses são, necessariamente, diferentes das formas operárias. Os objetivos imediatos também são diferentes. É necessário, porém, encontrar nessas diferenças o que une essas classes, os interesses comuns, as bases de alianças reais. Fugir das diferenças achando que todos os "setores sociais" estão empenhados num mesmo tipo de luta, é irrealismo político e fonte do enfraquecimento das lutas pela falta de bases reais para alianças eficazes.
Afinal, o que é que os camponeses pensam da "democracia"? Para encontrar a resposta, só mesmo perguntando a eles. É possível, entretanto, examinar as ações e as lutas camponesas, buscando nelas pistas dessa resposta ou, ao menos, pistas das formas concretas da contribuição camponesa para a construção de uma sociedade democrática.
Segundo o relatório sobre os conflitos ocorridos no campo em 1983, recentemente publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocorreram 315 conflitos, envolvendo 217 171 pessoas e uma área de terra de 4553 273 ha. Estão incluídos alguns conflitos trabalhistas, aqueles que resultaram em violências físicas ou mortes. Os demais, como as lutas e greves em vista de melhores salários que só no Nordeste mobilizaram mais de 200 mil assalariados não estão computados nesse relatório.
O mesmo relatório que, com absoluta certeza, não pode registrar todas as ocorrências do período nos revela que, em 1983, mais de 200 mil trabalhadores rurais estiveram envolvidos em lutas e conflitos violentos. Muito mais de 500 mil participaram de mobilizações objetivando a conquista ou a defesa de seus direitos e interesses.
A qualidade das ações desenvolvidas não é igual. Ela varia conforme a situação concreta de cada região e depende do maior ou menor poder popular. A organização dos trabalhadores também não é uniforme. Os posseiros, em regiões em que a propriedade da terra é mais indefinida, organizam-se de um modo original, diferente dos "colonos" ou dos "candidatos a parce-leiro" nas áreas de colonização oficial, por exemplo.
Os pequenos proprietários do Sul organizam-se de maneira diferente, para enfrentar o apetite de-vorador das agroindústrias (empresas que tudo fazem para controlar a produção, a industrialização e a comercialização dos produtos agrícolas) e para sobreviver sob a antipopular política agrícola oficial. Diferentes ainda, e na mesma região, são as lutas e organizações dos Sem Terra, que têm de lutar contra a expansão das grandes propriedades capitalistas para não serem expulsos para outras regiões.
Cada um com a sua forma de luta
Os nordestinos têm formas próprias de luta, seja pela tradicional organização política dos "coronéis de terras", seja pela incidência periódica de estiagens, seja ainda pelo desenvolvimento da "indústria" e do "grande projeto seca" que amplia o monopólio capitalista de terra, da água, concentrando poder e renda. Os povos indígenas, além de enfrentarem grandes grupos econômicos e a FUNAI, têm, contra si e suas terras pequenos lavradores e são impedidos de trabalhar e produzir em terras brasileiras.
Onde há possibilidade, a ocupação direta da terra é o caminho assumido pelos Sem Terra. São os que lutam pela terra, são os que necessitam de reforma agrária. Suas ações e suas palavras, escritas ou não, revelam a decisão de fazer a reforma agrária que o povo do campo precisa. Não se trata de conseguir um novo "projeto" de um Congresso e de um governo dominados pela burguesia. É o projeto popular de conquista da terra, envolvendo a transformação da estrutura agrária existente.
Os Sem Terra são muitos. Basta ver o aumento do número de posseiros, reconhecido até pelos censos oficiais. Devem ser mais de 1 milhão. Só numa área grilada, no Sul da Bahia, entraram mais de 700 famílias em 1982/83. No Paraná, mais de 400 famílias entraram numa "fazenda", nela estão produzindo e sustentam a decisão de não sair, nem mesmo se o judiciário os condenar. Nesse caso, brigarão pela desapropriação.
Sua organização cresce de forma diversificada, em processo de articulação nacional. No Paraná, por exemplo, são milhares os inscritos no movimento dos Sem Terra. Apóiam os que lutam por terra. Apresentam projetos, alternativas, áreas disponíveis. Ameaçam. Planejam ocupações. Mobilizam outras classes, especialmente os que já são pequenos proprietários, mas também os assalariados da cidade e do campo, para que apóiem as suas lutas.
Há um elo comum entre todas essas formas de luta. Os Sem Terra, os pequenos proprietários, os assalariados, os colonos, os parceleiros, os parceiros, os posseiros todos eles, de modos diferentes e com objetivos imediatos originais, buscam a renovação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Isto significa, na prática, desatrelá-los do sindicalismo corporativo do Estado e libertá-los do uso e abuso dos pele-gos tradicionais. É um novo sindicalismo que nasce, dirigido coletivamente e voltado para as lutas das classes que o integram. Aos poucos, sem fugir das contradições, constrói-se, dentro do mesmo organismo de classe, a aliança das classes oprimidas do campo.
Quem são os camponeses
José dos Reis Santos Filho
José dos Reis Santos Filho é pesquisador do CEDEC
Existem vários tipos de trabalhadores rurais no interior do país, com características que variam de região para região. Apesar dessa diversidade, pode-se reuni-las em dois grandes grupos: os assalariados e os pequenos produtores.
Aqui, o significado das palavras menos conhecidas:
SEM TERRA: a designação já fala muita coisa. Pode levar a enganos, infelizmente! Se bem é certo que nos movimentos existentes a grande maioria de trabalhadores não possui chão seu para plantar, é verdade, ainda, que, apesar de minoritários, encontramos ali, também, pequenos proprietários cuja situação é de insegurança (terra de baixa produtividade, ou hipotecada, ou ameaçada pela especulação imobiliária, etc). Por outro lado, estão igualmente mobilizados, em torno da terra, trabalhadores urbanos de baixa renda (domésticas, motoristas, funcionários, etc.)
POSSEIROS: No direito brasileiro, a posse está situada entre o nada e a propriedade. Daí que o que há de mais marcante no posseiro é ter chegado à terra através de uma ocupação. O que implica dizer que não a adquiriu através da compra do domínio. Não tem, portanto, o título de propriedade.
COLONO: sustentadas por dispositivos legais, existem atividades cujo sentido original seria o acesso à propriedade da terra e seu aproveitamento agrícola. Essas iniciativas, caracterizadas como processos de colonização, implicariam a divisão, em lotes ou parcelas, de áreas incorporadas ou em vias de incorporação ao patrimônio público ou particular. Parceleiros ou colonos, seriam os trabalhadores que, através da compra, se tornassem possuidores de áreas pertencentes a projetos de colonização, privados ou oficiais.
PARCEIRO: a denominação indicaria que o trabalhador rural parceiro cultiva em terra cedida por proprietário e com ele divide a produção na proporção estipulada de comum acordo e através de contrato.
GRILEIRO: aparece como figura antagônica aos pequenos produtores, posseiros ou proprietários. Atua no sentido de conquistar a terra através de meios fraudulentos, violentos ou não.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Jan 2011 -
Data do Fascículo
Set 1984