PENSANDO O BRASIL
Não é preciso entender. Basta gostar
Por que a música clássica não goza da mesma popularidade dos demais gêneros musicais? Será que para apreciá-la são necessários conhecimentos especiais? O maestro Diogo Pacheco, diretor de dois programas de música clássica da Rádio Eldorado de São Paulo, e do "LIGUE PARA UM CLáSSICO", na TV Cultura, discorda dessa idéia e, neste depoimento concedido a Marijane Lisboa, de LUA NOVA, nos diz por quê.
Existe uma idéia generalizada de que para se gostar de música clássica é preciso entender do assunto. Quem criou esse preconceito foi justamente uma elite, que não quer se ver misturada com os demais. Para ouvir música clássica, basta ter sensibilidade, assim como para saborear uma boa macarronada, não se precisa entender de cozinha. Quem tem que entender de cozinha é quem faz o macarrão, assim como de música clássica, têm que entender os intérpretes e os compositores.
Quanta gente, nas décadas de 60 e 70, amava os Beatles e não entendia inglês! Como não compreendiam o texto, o que lhes agradava mesmo era a música. Precisamos, portanto, acabar com esse preconceito tolo de que estamos imbuídos. Já formei corais com operários, comecei, por exemplo, com um coral do SENAI. Lá cantávamos músicas em francês, alemão, músicas antigas, renascentistas e todos gostavam muito do que faziam.
As pessoas dizem que não cantam porque não têm ouvido e voz. Ora, se conseguem falar, têm, efetivamente, ouvido e voz, e essas são as duas coisas essenciais para se cantar. O resto é treino, e deveríamos ter academias de canto como temos as de ginástica, balé, etc.
Portanto, o problema da música clássica no Brasil é hoje, a meu ver, única e exclusivamente um problema de ignorância. E quando falo em ignorância, não é de forma pejorativa. Quero dizer desconhecimento. As pessoas não gostam de música clássica porque não sabem o que é.
No meu programa, por exemplo, recebo grande quantidade de cartas pedindo para tocar "a música do desodorante", que é, nada mais nada menos, que as "Quatro Estações", de Vivaldi, usada como fundo musical de um anúncio de desodorante. Ou "a música do 2001", que é o "Assim Falou Zaratustra", de Richard Strauss.
O problema é que no Brasil se tem pouquíssima oportunidade de ouvir música clássica. Em São Paulo, se tirarmos a Rádio Eldorado, que tem vários programas do gênero, e a Rádio Cultura com metade de sua programação de música clássica não se ouve mais nada no rádio. O meu programa de televisão, "LIGUE PARA UM CLÁSSICO", na sua última emissão com João Carlos Martins, teve uma teleaudiência de 850 mil pessoas, e, só na capital de São Paulo, de 358 mil. Ou seja, as poucas oportunidades oferecidas são aproveitadas e bem aproveitadas.
Nesse programa costumamos fazer um concurso, onde os telespectadores tentam adivinhar as músicas que são tocadas no seu início. Na maioria das vezes acertam. Outro dia, tocou-se uma música que até eu mesmo não conhecia não sou eu quem escolhe as músicas e todas as respostas sorteadas estavam certas!
Acredito que este preconceito contra a música clássica está sendo aos poucos superado. Quando eu era jovem, quem ia a concertos eram os velhos; hoje, que sou velho, quem vai aos concertos são os jovens. 70% dos meus ouvintes do programa da Eldorado são jovens entre 16 e 20 anos. O mesmo ocorre com o público que assiste aos concertos da Sinfônica do Estado: 70% têm menos de 30 anos.
Assim, se as pessoas tivessem mais oportunidades de ouvir música clássica nas rádios, salas de espetáculo, etc., não precisariam ir ao cinema ou ver comerciais da TV, para descobrirem, de repente, que ela também é bonita. O problema é que ninguém veicula música clássica neste país. O empresário brasileiro só quer jogar no certo, investir hoje para ganhar ontem. E quando faz algo, faz errado, como o "Concertos para a Juventude", da Globo, que às 10 horas da manhã, no domingo, só pode encontrar a juventude... dormindo.
Acredito que a iniciativa privada poderia fazer muito pela música no Brasil, pois poderia patrociná-la. Mas ela, além de não ter estímulos não existem incentivos fiscais também não conhece música clássica e não a vê como um bom investimento. Nos EUA, por exemplo, vamos assistir a uma ópera e lemos: "Esta ópera foi montada graças ao Chase Manhatan Bank", ou tal obra foi feita "graças aos donativos da Fundação Rockefeller". O Rockefeller, quando morrer, não será apenas recordado como um homem que fez fortuna, mas como alguém que fez um hospital, a Fundação Rockefeller, ajudou a construir o Lincoln Center, etc. O empresário americano é um homem, portanto, que quer ser admirado pelas suas obras sociais, e não só pela sua capacidade de ganhar dinheiro.
Ganhar o apoio das empresas
Há dois anos tive a idéia de elaborar um projeto, que se chamava "Concertos on the Rocks", que seria realizado no Palace. Aí se poderia beber um uísque, enquanto se ouvisse música, coisa que não se pode fazer no Municipal. Expus esta idéia a vários empresários, e na época, nenhum deles se sensibilizou com ela. Agora, acabei de receber uma cartinha de Gastão Eduardo Vidigal que diz: "Prezado Diogo Pacheco, reporto-me a sua carta de 6 de julho de 1983, e a minha resposta de 9 do mesmo mês. Creio ser chegado o momento de estudarmos a oportunidade de participarmos como co-patrocinadores de concertos de orquestra sinfônica, nos moldes sugeridos por sua correspondência. Aguardando sua visita, envio um abraço, Gastão Eduardo Bueno Vidigal". Isso será uma coisa maravilhosa, e talvez a iniciativa privada esteja começando a perceber o que pode fazer neste campo.
A televisão, como meio poderosíssimo de comunicação, também poderia fazer muito pela música clássica. Mas é claro que não se pode filmar um concerto do jeito que ele é feito no teatro. Assim como não se pode filmar uma peça de teatro, e passá-la na televisão. Neste caso, até eu, que sou maestro, que gosto de música, portanto, desligo a televisão, porque fica uma coisa chatíssima. é preciso ter criatividade e bolar um programa de música clássica especialmente para a televisão. Mas, se mesmo eu, que não sou do ramo, consigo 800 mil ouvintes na Cultura, imagino o que não conseguiria alguém competente nesta área.
Ao nível da escola, também se poderia fazer muito pela educação musical. Antigamente havia uma matéria obrigatória canto orfeônico mas não se tinham bons professores. Hoje, temos educação artística, e o problema continua o mesmo, porque não há escolas que formem professores de música.
Faltam escolas especializadas no Brasil, para os diversos instrumentos e gêneros musicais. O sujeito vai tocar fagote e não tem onde estudar. Quer estudar flauta, violino, etc., e não tem onde. A única coisa que temos são conservatórios de piano, e é justamente por isso que temos bons pianistas: João Carlos Martins, Moreira Lima, Nelson Freire, etc., que por serem excelentes, estão sempre fora. Não havendo escolas de música, não formamos profissionais. Se hoje existe um teatro brasileiro, um Flávio Rangel, um Celso Nunes e um Ademar Guerra, foi porque na década de 40, com a fundação do TBC, vieram profissionais estrangeiros de alto nível, como o Adolfo Celi, o Giani Rato, etc. Eles é que formaram o nosso know-how de teatro, formaram uma nova safra de profissionais, e é por isso que hoje não temos mais necessidade de importá-los. As orquestras americanas, que são 12 mil, hoje, foram todas formadas, décadas atrás, por músicos estrangeiros. Hoje são plenamente americanas.
Sou completamente contra o costume de se dar bolsas de estudos para que nossos artistas estudem fora. Se eles forem bons, ficam no exterior e não retornam. Precisamos trazer professores que venham para cá e formem muitos outros profissionais.
Oboé é diferente de máquina de escrever
Os políticos brasileiros, principalmente aqueles que trabalham com educação e cultura, precisam entender que a arte exige um investimento especial: escolas, bons salários, casas de espetáculo, etc. Eles não percebem que um oboé é coisa totalmente diferente de uma máquina de escrever. Se uma datilógrafa fica doente, outra pode substituí-la, e se não há datilógrafas, alguém sempre consegue bater a máquina, mesmo que não seja com a mesma perfeição e velocidade. Mas se falta um oboé, um violino, uma trompa na orquestra, ninguém pode substituí-los.
Outra coisa que distingue o músico do datilógrafo é que a máquina de escrever pertence ao escritório, enquanto o instrumento musical pertence ao músico. Com exceção do pianista porque não é possível carregar um piano nas costas todos os músicos levam seus próprios instrumentos para a orquestra, e muitas vezes esses instrumentos custam milhões. Hoje, um violino Stradivarius está valendo uns 300 mil dólares! Mesmo um fagote comum custa 20 mil dólares. O músico, só por isso, deveria ganhar bem.
Estou falando de máquina de escrever e de oboé, não é à toa. Uma vez, estava fazendo uma reportagem para o Sodré, quando ele era governador de São Paulo, sobre o ensino brasileiro no interior, quando encontrei em Santa Bárbara uma casa com a seguinte placa: Leciona-se piano e datilografia. é isso aí... Essa placa existia, eu mesmo a fotografei.
Assim, ser músico no Brasil não digo que seja frustrante, porque não me sinto uma pessoa frustrada envolve dificuldades sérias a serem enfrentadas, sobre isso não há dúvida. No entanto, se ele for bom mesmo, consegue vencer. Porém é preciso ser tenaz, além de talentoso.
Que general vai querer mudar a música?
Quanto às reclamações que se fizeram, ao longo dos últimos anos, alegando que o regime impedia a criação cultural, não acho que isso seja legítimo. A minha criação musical não depende de quem seja o presidente da República, e de estarmos numa ditadura ou numa democracia. Em outros campos da arte isso talvez possa ocorrer, mas na música clássica é impossível. Qual o general que vai pretender mudar minha composição? Bach está fazendo 300 anos, e hoje em dia nem sequer sabemos a que regime político estava sujeito, na época em que compunha. Mas a sua música está aí. Ela é de uma atualidade e de uma beleza tais que ainda hoje podemos desfrutá-la plenamente.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Set 1985