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A Europa e o mundo conteporâneo

RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O BRASIL

ARTIGOS

A Europa e o mundo conteporâneo* * Tradução de Cícero Romã o Rezende de Araújo

Ignácio Ramonet** ** Ignácio Ramonet esteve no CEDEC em março de 1989, ocasião em que teve um diálogo com os pesquisadores do Centro, que aqui reproduzimos. Sua presença no Brasil deu-se por ocasião do seminário "Política Internacional e Cooperação", promovido pela FUNDAP, Depto. de Ciência Política da USP e CEDEC.

Editor-chefe do Le Monde Diplomatique

O tema essencial do meu texto é o seguinte: estamos vivendo um período muito importante da historia mundial, que eu chamo de mudança de era. Se do ponto de vista da revolução científica e técnica isso já parecia evidente, do ponto de vista da I política internacional podemos hoje afirmar que esta mudança de era já está se efetivando.

Dois acontecimentos consideráveis indicam isso: a política de reformas de Gorbatchev e o Tratado de Washington, de eliminação dos mísseis nucleares de curto e médio alcance. Eles assinalam a entrada num período em que uma espécie de "febre de paz" parece ter-se apoderado do planeta. Curiosamente, ao mesmo tempo, uma série de iniciativas de pacificação começam a surgir: na África Austral, no Sudeste Asiático, na América Central.

Iniciativas que parecem indicar que a dinâmica da paz passa a ser mais importante que a dinâmica da confrontação, que se tornou dominante após a Segunda Guerra Mundial. Por isso muitos observadores dizem hoje que a guerra fria acabou, ao nível das relações Leste-Oeste.

Na realidade, porém, todo esse esforço deixa de fora o r que chamamos de Terceiro Mundo. Ou melhor, os Terceiros Mundos. Acho Terceiro Mundo um conceito muito estreito, em todo caso singular; devemos pluralizá-lo: há o Terceiro Mundo representado pela América Latina, que tem várias características - talvez a dívida externa seja a mais importante; há o Terceiro Mundo africano, que se encontra numa situação infinitamente mais desesperadora. Efetivamente, nestas sociedades a confrontação continua sendo o que preside suas políticas internas. Estas fazem com que a dinâmica de pacificação, à medida que é apenas um desejo das superpotências, não logre uma pacificação real. Pode-se chegar a um acordo em Angola ou no Camboja, contanto que fundamentalmente estabelecidos pela União Soviética e Estados Unidos. Muitos países, porém, possuem uma dinâmica interna que nem sempre depende das superpotências.

Assim, nessa mudança de era que vivemos, talvez possamos chegar a uma reativação do intercâmbio comercial entre as grandes áreas do Norte (e só há três: Estados Unidos - Canadá, Europa e Japão); a uma dinâmica efetivamente reformista no Leste da Europa; e, marginalizada da dinâmica de paz, à continuidade da dinâmica de confrontação interna no Terceiro Mundo. Neste quadro, penso que o mundo ainda não chegará à paz efetiva enquanto a confrontação continuar sendo um elemento importante. Esta é, em suma, a tese que defendemos.

Tullo Vigevani - Um tema de grande interesse mundial hoje é a perspectiva aberta com a unificação da Europa em 1993. Gostaríamos de entender como a Europa se vê, nesse processo, em relação ao resto do mundo, em particular Estados Unidos, Japão e Leste Europeu.

Ramonet - A dimensão mais importante da política interna e externa dos países europeus hoje é a unificação de 1993.

Efetivamente, o mercado unido que se almeja vá criar uma nova superpotência (do ponto de vista comercial). Esta é a nova utopia européia. O grosso das energias da região convergem para essa unificação.

Neste sentido, por um lado, tal dinâmica faz com que a Europa se interesse menos pelo resto do mundo. Por outro lado, faz com que uma parte do mundo veja a unificação com um certo receio. Em primeiro lugar os Estados Unidos, que assistem ao surgimento de uma potência comercial rival. Em segundo lugar o Leste Europeu, que vê o aparecimento de uma potência política, que pode tornar-se potência militar, o que no momento não é.

A construção européia cria já dois acontecimentos importantes: primeiro, no Leste, onde o discurso de Gorbatchev começa a falar da "causa comum européia", que quer lembrar à Comunidade Européia a existência do resto da Europa, o Leste, à medida que compartilham o mesmo projeto de civilização. Em segundo lugar, começam a surgir movimentos de unificação de países em outras regiões: por exemplo, no Maghreb. Houve recentemente uma conferência dos cinco países do Maghreb (Marrocos, Tunísia, Mauritânia, Argélia e Líbia), que tomaram a decisão de pôr em marcha o projeto do Maghreb Unido, um grupo federativo que negociaria em conjunto com a Comunidade Européia.

Assim, a unificação mesma da Europa cria em torno dela uma série de movimentos políticos importantes, provocando uma diminuição do interesse pelos problemas do Terceiro Mundo. Vemos agora, por exemplo, a timidez com que a Europa intervém nas questões latino-americanas. O mesmo acontece com relação aos problemas africanos, apesar de a Europa ser, potencialmente, um interlocutor privilegiado desta região, especialmente no plano econômico.

Isso não quer dizer que, internamente, não haja problemas na unificação européia. Do exterior, talvez se imagine que esse processo se dê sem entraves. Na realidade, há problemas de todo tipo: políticos, pois caminham para edificar um Estado Federal; desejamos uma unificação monetária, um só Banco Central (no momento isso não parece possível, já que a Grã-Bretanha não o deseja); também não é simples a questão de um sistema único de defesa europeu.

Evidentemente, um Estado que não tem uma moeda comum, nem uma língua comum, não corresponde à noção que tradicionalmente temos de Estado-Nação. Na Europa está surgindo um novo conceito de união, de Estado-Nação, inclusive do ponto de vista cultural.

Vigevani - Você colocou que o elemento básico da unificação é o comercial. Há uma continuidade do intento iniciado em 1953 pelos seis países fundadores da Comunidade Européia. Mas espera-se uma unificação que vá além do interesse pela supressão das barreiras alfandegárias. Você falou da gestação de uma nova idéia de nacionalidade. Mas em outros campos há avanços reais na Comunidade Européia ou o ponto de vista neoliberal tem prevalecido? A iniciativa dos grandes grupos econômicos, inclusive norte-americanos, tem sempre prevalência sobre as iniciativas estatais?

Ramonet - Primeiro, efetivamente o mercado único de 1993 não é só comercial. A unificação européia tem um sentido mais amplo e não reage unicamente a concepções neoliberais.

No campo dos investimentos, por exemplo, se permitirá o intercâmbio de capitais em julho de 1989. A partir de 1990, o intercâmbio de capitais poderá ser totalmente livre na Europa. A unificação também supõe o alinhamento das políticas fiscais: se pagará o mesmo tipo de imposto em cada um dos países. Vai haver o mesmo tipo de Justiça, as mesmas normas de proteção ambiental, de proteção à saúde e de higiene para os produtos alimentícios e os automóveis.

Do ponto de vista tecnológico, também há uma vontade de desenvolvimento unificado. Já no campo do ensino, por exemplo, o mercado único prevê que a partir de 1993 todos os estudantes europeus poderão estudar em qualquer universidade da Comunidade. Todos os professores - e, de modo geral, todos os cidadãos - poderão exercer sua profissão em qualquer um desses países. Isso vai provocar um trânsito humano muito importante, já que as diferenças lingüísticas deixarão de ser fatores limitantes. O ensino poderá ser feito em qualquer das línguas da Comunidade, daí a unificação dos diplomas.

Além do mais, desenvolve-se uma série de programas voluntários: por exemplo, o Programa Erasmus, que visa à intensificação de intercâmbios de professores e estudantes. Também existe a vontade de lançar programas de investigação tecnológica subvencionados por empresas privadas, estatais ou diretamente pelo Estado. Temos o Programa Eureka, o Programa Hermes, de investigação espacial, e o Programa Ariadne. Há também um programa em matéria de televisão e audiovisual, que busca desenvolver uma tecnologia propriamente européia, em particular para a TV de alta definição (a Europa determinou uma norma para esta tecnologia que é diferente da norma japonesa e norte-americana). A unificação, portanto, não está submetida apenas às leis de mercado.

Regis de Castro Andrade - Você disse que a política de pacificação deverá coexistir com políticas de confrontação nos países da África e América Latina. Mas quando penso em política de paz, penso na negociação entre países, e isso que você chamou confrontação se dá internamente em cada país. A questão é a seguinte: nesses países em que você identificou o predomínio da política de pacificação, também não existe, internamente, uma política de confrontação? Não é apenas uma diferença de grau, em relação aos países do Terceiro Mundo?

Ramonet - Sim, também existem tensões internas nos Estados Unidos, na Europa e na URSS. Mas é difícil imaginar que na sociedade norte-americana e na européia as tensões não sejam canalizadas de tal forma que impeçam uma gestão relativamente harmoniosa. Em todo caso, falo dos Estados Unidos e da Europa. Não o afirmaria na União Soviética, onde Gorbatchev poderá encontrar tensões internas excessivamente fortes ao colocar em prática suas reformas.

Agora, é correto dizer que os acordos de pacificação internacional não suprimem as tensões internas. Volto a dizer que os conflitos do Terceiro Mundo vão além da confrontação Leste-Oeste. Os norte-americanos se equivocam quando pretendem satanizar o conflito na Nicarágua, como se fosse resultado exclusivo da ação soviética; ou então quando a União Soviética dizia que o conflito do Afeganistão era unicamente conseqüência da ajuda militar dos Estados Unidos.

Lúcio Kowarick - Talvez valesse a pena falar mais sobre isso no caso da Europa. Parece que lá o que se tem em vista não é uma unificação homogenizadora mas, pelo contrário, um processo que tornará possível, pela eliminação das barreiras alfandegárias, um forte ascenso da diversificação cultural. E a emergência até de novas identidades culturais locais, o que pode ter implicações políticas interessantes...

Ramonet - Sim, estas tensões já existem na Europa...

Kowarick - Não se trata necessariamente de tensões. O que se pode abrir é a possibilidade de eliminar ou diminuir algumas tensões atuais...

Ramonet - Mas há problemas. Um deles é saber qual é a identidade européia. Questão muito difícil de responder. A Europa já tem em seu seio tensões, por exemplo, de grupos minoritários que afirmam sua personalidade identificatória. Há dois casos flagrantes: na Irlanda do Norte, cuja guerra é interminável, e no País Basco.

A Europa vive e conhece esses conflitos: está dividida não só em Estados mas em regiões. Há uma regionalização e em cada um dos Estados europeus há uma política de regionalização. Talvez o país que mais esteja desenvolvido nesse aspecto seja a França, que reconhece as personalidades regionais. É um país que, por sua tradição jacobina, realizou sua reforma regional mais tarde. Vemos também a Alemanha Federal, cuja vida federativa é bem antiga. Na Grã-Bretanha, houve uma reforma regional importante, onde lugares como a Escócia e o País de Gales têm uma autonomia significativa.

Por outro lado, há países que são o resultado da fusão de nações diferentes, como a Bélgica (valões e flamengos), a Espanha, que agora é um conglomerado de 17 nacionalidades, com 17 governos e parlamentos regionais, e Portugal, que não tem uma política definida de regionalização, mas regionalizou seus arquipélagos.

A Europa é um conglomerado de 12 Estados, onde convivem 36 nações. Portanto, o tipo de unificação que se pretende na Europa é sui generis: não se impõe uma identidade nacional. Se se impusesse essa identidade, fatalmente surgiriam resistências nacionalistas. O que se impõe é um funcionamento estrutural-administrativo e, por conseguinte, cada região deverá encontrar nesse funcionamento uma resposta para seus problemas. Também podemos imaginar o parlamento da Comunidade Européia de forma sui generis, em que as regiões se façam representar.

O problema que persiste: afinal, o que é a nação européia? E não podemos respondê-lo negativamente: não é europeu quem não faz parte da CEE (Comunidade Econômica Européia). Essa é uma resposta administrativa apenas, pois em que medida os suíços não são europeus culturalmente? E os suecos? Os austríacos?

Por outro lado, positivamente, o que significa ser europeu? Significa ter uma concepção dos direitos do homem, uma concepção de democracia? Essa é uma identificação de princípios políticos e não de culturas locais. É uma resposta que não cria antagonismos, mas tampouco satisfaz. Pois se não há identificação européia, não se cria a Europa enquanto Estado-Nação.

Castro Andrade - Como foi dito, estamos saindo de uma espécie de trevas da Idade Moderna; os Estados Unidos já não estão mais metidos num Vietnã até o pescoço; não há mais um Brejnev dominando a União Soviética.

Essa reconstrução da rede básica das relações internacionais, que se dão ao nível do Primeiro Mundo, ocorre nas questões mais prementes: o problema da paz mundial e o da guerra econômica sem freios. Pois bem: não é verdade que cada vez mais esta reconstrução é afetada por questões do Terceiro Mundo? A dívida externa é a mais evidente. Não é possível que o Primeiro Mundo se beneficie com a falência dos principais Estados do Terceiro Mundo. Há o problema da Amazônia e da camada de ozônio. O problema da política sul-africana etc.

Posto isso, não percebemos um esforço consciente de reconcepção das relações entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo. Enquanto os problemas centrais estão sendo encaminhados, África e América Latina estão deslizando ladeira abaixo. Por que nada de grandemente inovador está sendo pensado nessa questão?

Kowarick - Nos anos 60 havia um interesse relativamente grande pela América Latina. Isso foi diminuindo: hoje pesquisadores que antes estudavam França e Argentina, estão estudando França e Itália.

Por outro lado, temos a impressão que na Europa, bem ou mal, com o problema do desemprego e outros, o Estado-Previdência continuará muito forte. E os Estados do Terceiro Mundo serão cada vez menos sociais. Para dar um exemplo: até o final do século, para resolver o déficit habitacional do Brasil, serão necessários 120 bilhões de dólares. Isso jamais será resolvido unicamente com recursos internos. Nossa necessidade de investimento nos transportes nos próximos cinco ou seis anos é de 7 bilhões de dólares; energia elétrica idem. Do contrário começará a faltar. Os outros países da América Latina enfrentam problemas idênticos.

Mesmo com transformações internas, eles não serão resolvidos sem uma mudança nas relações internacionais. Contudo, não vemos ninguém pensando mais sistematicamente o que fazer com o Terceiro Mundo.

Ramonet - Esta é uma questão fundamental. Convém repetir que de fato hoje em dia há um mundo - que vocês chamam Primeiro Mundo - que funciona em si, que tem suas próprias preocupações. A nível de Estado e a nível de cidadão, suas preocupações são com os novos problemas da contemporaneidade, por exemplo, de equipar-se tecnologicamente, de continuar o progresso tecnológico, que vem se acelerando terrivelmente. Por outro lado, isso é resultante da consciência de que os problemas do Terceiro Mundo dificilmente são resolvíveis a curto prazo.

O Terceiro Mundo se transformou numa espécie de quebra-cabeça sem solução prática. Por isso os intelectuais se distanciam cada vez mais desse tema, à medida que também as teses de culpabilização do Terceiro Mundo (este seria em grande parte culpado por sua própria situação), defendidas pelos neoliberais, tiveram êxito. Por outro lado, a tese de desculpabilização do Norte, de abandono da consciência pesada, à medida que os Estados Unidos e os países europeus já não têm mais colônias, também vingou. Os estados europeus, não convivendo mais com a má-consciência colonial, passam a ter por preocupação central sua própria unificação, a confrontação com o poder emergente do Japão e a manutenção de uma relativa distância dos Estados Unidos (já que, com o Tratado de Washington, deixa de ser uma ameaça a existência de um bloco do Leste hostil).

Todas essas condições, reunidas, fazem com que o interesse pelo Terceiro Mundo diminua. Ademais, do ponto de vista comercial e industrial, o Terceiro Mundo perde interesse porque não é considerado solvível. Quem interessa, desse ponto de vista? A Comunidade Européia, o norte da América e o Japão, porque, nesse aspecto, são solvíveis. Há a perspectiva de integrar nesta rede a Europa do Leste, à medida que se supõe que a União Soviética tem recursos - fundamentalmente este país, já que muitos países do Leste (Polônia, Iugoslávia e Hungria) estão tão endividados per capita, quanto os países do Terceiro Mundo, e são já considerados não-solviveis.

A União Soviética pensa endividar-se. É possível que daqui a um tempo encontremos enormes dificuldades naquele país: os recursos naturais ali são imensos, mas também são imensos os do Brasil, e este se encontra endividado. Para a União Soviética é muito importante endividar-se, pois trata-se de transformar radicalmente não só a sociedade e a organização social, mas sua base industrial. Trata-se de reindustrializá-la e retecnificá-la com uma tecnologia produzida no exterior, comprável com divisas.

Esta é uma batalha fundamental, mas o Terceiro Mundo não entra nela. Primeiro porque não produz tecnologia. Na realidade, produz cérebros que vão trabalhar nas universidades do Norte, e a pequeno custo, pois são formados em suas universidades de origem. Por outro lado, o Terceiro Mundo não consome. Cada vez mais há uma série de produtos que se usam menos, matérias-primas que se usam menos, processo que se aprofunda com o fato de que as novas tecnologias passam a consumir menos energia ou a utilizar energia produzida no Norte (as pilhas, por exemplo). Por conseguinte, pode-se importar menos petróleo, mesmo que as reservas cresçam. Assim, o Terceiro Mundo é posto à margem.

Vigevani - Todo o discurso recente das autoridades monetárias internacionais - FMI, Bird etc. - tende a dar como certo algum mecanismo de resolução da dívida externa. Quer dizer, de problema central passaria a ser marginal. Mas isso não resolve a questão que é levantada aqui, a da crescente marginalização do Terceiro Mundo.

Autores que estudaram esse problema em séries históricas, colocam que alguns países da América Latina puderam ter um grande desenvolvimento até os anos 50 e 60 por causa de políticas autárquico-nacionalistas e desenvolvimentistas. Ao mesmo tempo, os países asiáticos - sobretudo os grandes - praticamente não tiveram nenhum desenvolvimento. Contudo, o grande salto que alguns destes puderam dar nos últimos vinte anos foi. conseqüência de sua inserção no mercado mundial e de sua abertura neoliberal.

A conseqüência dessa análise é óbvia: a América Latina precisa evoluir nessa mesma direção. Qual é a sua opinião sobre esse tipo de enfoque?

Ramonet - Creio que se deve desconfiar desse tipo de análise. Nós, em todo caso, não aderimos a ela. Os exemplos citados não refletem sobre a seguinte questão: quais são, no mundo, os países que efetivamente conseguiram lograr seu desenvolvimento? São bem poucos os países nesta situação.

Se observarmos bem, quais são as primeiras potenciais do final do século XIX e quais são as de hoje? São praticamente as mesmas. Com algumas diferenças: o Produto Interno Bruto da União Soviética, por exemplo, é enorme comparado com a Rússia czarista. Porém, a União Soviética é cada dia menos uma potência econômica, se é que um dia o foi.

Quais são os países que nos apresentam como contra-exemplo? Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong. Estes dois últimos são cidades-estados, são relativamente fáceis de organizar e ademais são na realidade praças financeiras, não resultaram de um programa de desenvolvimento no sentido autêntico da palavra (desenvolvimento social e industrial).

Taiwan e Coréia do Sul são dois estados cujo desenvolvimento é relativo - a renda per capita da Coréia do Sul, por exemplo, é bem inferior ao país cuja renda per capita é a mais reduzida da Europa, Portugal. A esperança de vida da Coréia do Sul é inferior à do Brasil. A Coréia do Sul apresenta o seguinte quadro: primeiro, seus indicadores de desenvolvimento são ainda típicos de países do Terceiro Mundo. Segundo, são países cujo desenvolvimento relativo correspondeu a uma vontade política não resultante de uma acumulação social tradicional, esta vontade foi dada pelos Estados Unidos, por razões político-ideológicas, de confrontação com o Leste. Terceiro, são países em que as liberdades democráticas não foram reconhecidas, senão muito recentemente.

Este quadro mostra que não só a autarquia é relativa mas também que a democracia é relativa. Foi um Estado forte, que não respeitou as demandas sociais nem as demandas de liberdade política, que criou as condições de desenvolvimento. O problema é saber que tipo de desenvolvimento é esse: na Coréia do Sul, trabalha-se freqüentemente 10 a 12 horas por dia, não há férias, não há direitos sociais respeitados. Trabalha-se freqüentemente de maneira informal e paralela. Por outro lado, a participação do Estado na economia é extremamente importante.

Mas se considerarmos um país como o Japão, por exemplo, que efetivamente se desenvolveu (já no final do século XIX despontava como a quarta potência industrial do mundo), identificaremos uma forma autárquica de desenvolvimento. Mesmo os países que se industrializaram nos anos 40 e 50 mediante a substituição de importações (Brasil, México), veremos que passaram por um processo de revitalização do mercado nacional.

Assim, creio que a ruptura das barreiras do mercado nacional deve ser feita com muita prudência, à medida que não há nenhum exemplo conclusivo que mostre que um país conseguiu desenvolver-se pela abertura milagrosa de suas fronteiras. Em todo caso, essa abertura produz freqüentemente uma sociedade cada vez mais dual num planeta dual. Urna sociedade em que uma minoria tem toda uma série de direitos e proveitos e uma maioria se encontra marginalizada, obrigada a trabalhar por pequenos salários e sem direitos sociais.

Por isso eu seria prudente com as análises que os neoliberais têm desenvolvido. Vejo, por exemplo, o absurdo dessas análises no caso do Peru. É um país em que, por razões de política interna e por razões culturais, assiste-se ao desmoronamento do Estado. E o que diz a oposição de direita? O discurso de seu candidato presidencial (o escritor Vargas Llosa), por exemplo, explica que a causa da situação atual do país é o excesso de Estado. Francamente é uma explicação absurda, porque no Peru é justamente o Estado que escasseia. E o Estado é o único que pode aportar um mínimo de segurança, de responsabilidade, do ponto de vista comunicacional, empresarial e monetário. Eu não vejo como se poderia, no Peru, reduzir ainda mais o Estado. Quanto mais se o reduz, mais uma organização como o Sendero Luminoso - que prega um Estado forte e que, se tomar o poder, ocupará o lugar que o Estado atual vem abandonando pouco a pouco - toma espaço.

Edison Nunes - A tecnologia moderna é amplamente poupadora de mão-de-obra. Neste sentido, deve engajar cada vez menos pessoas na produção. Conseqüentemente, o que se vislumbra a curto prazo é o excesso de produção. Em que medida o Terceiro Mundo não continuará a ser a possibilidade de realização do valor gerado no Primeiro Mundo? Os países do Terceiro Mundo não teriam de ser de alguma forma contemplados nesta nova ordem, ou a perspectiva é a limitação crescente da produção?

Ramonet - Uma das características da Europa hoje é que o nível de desemprego é muito elevado. Em alguns países, como na Espanha, é de 20%. Na Itália, para os jovens menores de 25 anos, é de 40%. Temos um exemplo contrário: a experiência Reagan, nos Estados Unidos, que representa um êxito econômico, já que conseguiu manter uma inflação baixa e ao mesmo tempo criar praticamente pleno emprego.

O problema é que o conceito mesmo de emprego está mudando. Este ganha novas dimensões. Por um lado, estamos hoje em dia mais próximos do que nunca da idéia da redução da jornada semanal de trabalho. Os alemães conseguiram reduzir a jornada semanal para 35 horas sem reduzir o salário (os outros países europeus têm em média 39 horas semanais). E. a Alemanha continua produzindo, exporta, tem um considerável êxito econômico. Cresce então a idéia da redução da jornada para que mais pessoas possam trabalhar.

Um segundo aspecto da mudança do conceito de emprego é o desenvolvimento do emprego temporário, fracionado. É o resultado do número crescente de empresas temporárias que utilizam pessoas por um tempo determinado ou a salários bem baixos. Quando observamos o tipo de emprego que tem sido criado nos Estados Unidos, constatamos a modificação das estatísticas: hoje em dia não se considera que alguém esteja empregado quando trabalha oito horas por dia todos os dias do ano, mas se considera empregado quem trabalha cinco horas por semana: quem lava automóveis na rua está empregado; quem é frentista num posto está empregado, ainda que seja um dia por semana; quem vende hamburguer numa lanchonete uma vez por semana está empregado. Logo, é evidente que se criou emprego. Na França, no período do primeiro-ministro Chirac (um homem relativamente progressista, ainda que de direita), pregou-se a necessidade da criação de pequenos empregos.

Contudo, as novas tecnologias efetivamente diminuem a oferta de emprego. As indústrias que utilizam grandes massas de mão-de-obra estão diminuindo ou desaparecendo. Não é à toa que os tradicionais sindicatos de trabalhadores entram em crise. E, por conseguinte, a combatividade dos cidadãos e dos assalariados diminui.

Outros setores - o de comunicação, por exemplo, o setor terciário de maneira geral - se desenvolvem cada vez mais. Nestes, a pressão que se pode exercer é crescentemente importante.

Há uma outra questão: o Norte é uma soma demograficamente estável ou em decréscimo. Se lá existe estímulo demográfico, é unicamente por razões sociais e não por razões industriais. Na Europa qualquer seguro social - aposentadoria, por exemplo - é pago por quem trabalha: se o número de aposentados fosse maior do que os que trabalham, não se poderia pagar a aposentadoria. Por isso se estimula a natalidade. Isso não significa que uma sociedade numerosa seja condição para ser mais harmoniosa. Acontece que no Terceiro Mundo, quando não há legislação social, é a existência de uma família numerosa, em particular de jovens, que pode socorrer os mais velhos e sustentá-los. Com a introdução de direitos sociais e sua aplicação, o crescimento demográfico no Terceiro Mundo tende a se reduzir.

Na Europa o que se assiste é a um aperfeiçoamento do Estado do Bem-Estar. A França, por exemplo, criou a renda mínima obrigatória, que assegura à pessoa que não trabalha, que não tem qualquer recurso, um soldo mínimo. O que lhe garante o acesso aos serviços públicos.

Assim, o mínimo que os cidadãos do Norte recebem impede o crescimento do problema da superprodução. Além disso, não se pode esquecer a parte do Terceiro Mundo que é mais rica e consome. Como já disse, a economia desses países é dual, assim como se pode falar de uma dualidade da economia do Norte. Só que, por causa do Estado-Previdência, a Europa é menos dual que os Estados Unidos, onde há mais semelhança com o Terceiro Mundo: há uma clara divisão entre um grupo de privilegiados e um grupo de marginalizados.

Convém analisar com mais detalhe a relação entre a dualidade do Terceiro Mundo e o futuro europeu.

Qual a situação da Europa até dez anos atrás? A Europa passou um período de dupla crise. Primeiro, uma crise de tipo de produção. Do outro lado do Atlântico, produzia-se de maneira diferente, mais inteligente, mais racional e tecnologicamente mais avançada. Percebia-se que a Europa estava equipada obsoletamente.

Segundo, a idéia de que não havia recurso cultural suficiente na Europa. Havia o que podemos chamar de um declive da Europa, já que esta não exercia mais tanta influência no exterior.

As superpotências, definitivamente, não tinham em conta a existência da Europa para nenhum dos problemas principais, nem para as negociações Leste-Oeste - que transcorrem em território europeu, o que é uma humilhação terrível -, nem para nenhuma das crises internacionais (a Europa não interviu na crise do Oriente Médio, tampouco na crise da África e assim por diante). Logo, a necessidade de recriar o Primeiro Mundo, para a Europa, era uma necessidade vital.

Reindustrializar-se de maneira tecnologicamente moderna e em pouco tempo era uma necessidade vital. Pode-se imaginar o traumatismo social que dominou a Inglaterra, França, Espanha, Itália, com o desmantelamento da siderurgia, da indústria têxtil e da indústria naval, com o desemprego de centenas de milhares de trabalhadores. Houve greves gigantescas. Na França, é do governo socialista este traumatismo. Na Inglaterra, é do governo conservador, marcado pela greve dos mineiros de carvão. No entanto, esses governos o fizeram, porque era isso ou o desaparecimento. Não o desaparecimento político, mas o desaparecimento enquanto potência tradicional. Afinal, a Europa sempre esteve no primeiro plano mundial. Imagine-se o enorme pânico criado com a idéia de que se estava muito próximo do declínio total.

Hoje a Europa tem consciência de que o mundo é grande para cada um dos estados europeus e que é necessária a união dos estados que já viveram momentos históricos importantes - França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal - para obter a salvação tecnológica de seu próprio equipamento.

Mas aproxima-se o momento de saber: bem, temos uma tecnologia. Para quem a venderemos? O Japão pode desenvolver sua tecnologia vendendo-a aos países "solvíveis" (e há dois "solvíveis" no mundo: Estados Unidos e Europa). Mas quem poderá comprar a tecnologia européia? O Japão não compra porque protege seu território.

Portanto, esse problema deve ser resolvido de outra maneira. Deve-se integrar outras regiões, em particular a América Latina, nessa perspectiva. O que exige a resolução da questão da dívida externa. Como já disse antes, há vários Terceiros Mundos: o mais "solvível" é a América Latina. Por conseguinte, há que salvá-la, reduzindo a dívida ou suprimindo-a. Há que reintegrar a América Latina ao movimento econômico internacional, como aconteceu nos anos 30 e 50.

O problema não é simples, obviamente. Porque não só é preciso negociar a dívida, mas também criar uma espécie de Plano Marshall para a região, o que requer investimento. Esta iniciativa extrapola a Europa, que tem poucos recursos, e se encontra lançada num projeto gigantesco de unificação.

Nunes - Castoriadis, há um tempo atrás, tentou contestar a idéia de que a União Soviética estaria muito atrasada do ponto de vista tecnológico. Fazendo comparações em certos setores - por exemplo, programa espacial, indústria bélica - a tecnologia soviética teria resultados bastante significativos em relação à Europa ou mesmo aos Estados Unidos.

Qual a sua opinião sobre isso? Ou estamos falando apenas de tecnologia voltada para o mercado consumidor, que impõe a lógica da compra e venda para funcionar?

Ramonet - O problema é muito maior e convém compreendê-lo. A tese de Castoriadis é parcialmente correta. A União Soviética, efetivamente, tem uma tecnologia de ponta, talvez a melhor do mundo, em matéria espacial.

Além do setor espacial, mesmo no sistema de defesa, a tecnologia soviética é relativamente débil. Em matéria de defesa, ela é posterior à norte-americana e muitas vezes fruto de espionagem industrial. A questão que se coloca é a seguinte: essas pontas tecnológicas que os soviéticos possuem não fluem para o conjunto do país.

Há na União Soviética um tipo de crítica à estagnação que é a seguinte: a técnica chegou a um patamar ótimo, não é preciso progredir mais tecnologicamente. A tarefa agora é, com essa técnica, produzir massivamente. O que essa concepção acarreta? Primeiro, é uma concepção curiosa para progressistas e racionalistas convictos, como em princípio são os comunistas. Segundo, leva a pensar que o progresso científico tem um limite em matéria de produção industrial. Em terceiro lugar, sugere que o que domina é a quantidade da produção e não a qualidade.

Quando não há respeito à qualidade, não há a revolução no sentido que a vivemos no Primeiro Mundo. Isto é, quando falamos em revolução tecnológica, não imaginamos apenas os aparatos "mágicos" que são criados, mas sua qualidade. Observem que as novas máquinas não se quebram facilmente, que duram mais. De modo que há, na nova tecnologia, a chamada produção de excelência: quer dizer, as coisas são de melhor qualidade, duram mais e servem melhor. Por quê? Porque ela é fruto de um novo conceito de democracia, que é o conceito de direito do usuário, de 'direito do consumidor'.

Se o consumidor tem direito, exige do fabricante que faça produtos de qualidade, obrigando-o a fazer progressos tecnológicos. Isso não existe na União Soviética, porque a produção não leva em conta o desejo do consumidor. O que predominou foi o conceito de produzir para equipar o Estado, não de produzir para satisfazer o cidadão. Essa é a idéia que Gorbatchev denuncia hoje como aberrante para uma sociedade socialista que deveria pensar justamente no cidadão. Pelo contrário, pensou-se num cidadão que se contenta sempre com o produto, qualquer que seja ele. O Plano diz: produza-se quinze mil tratores. Mas o Plano não diz que os tratores têm de funcionar.

Esse sistema foi estabelecido durante decênios e emperrou a máquina produtiva. Assim, negando o mercado, criou-se um outro mercado: o negro. Criou, portanto, um cidadão perverso, que mente, que é hipócrita, que é cínico.

A regressão tecnológica é fruto da inexistência de democracia. Por isso Gobartchev diz: perestroika e glasnost. Se o cidadão não é respeitado, não se pode produzir bem.

Quem é Gorbatchev? Ele é produto de uma geração. Precisamente a geração de cientistas soviéticos. Pois a União Soviética é uma máquina de produzir cientistas: lá se formam engenheiros mais do que no mundo inteiro. Mas essa sociedade, que é culta, que lê muito, que é bem formada cientificamente, como vive seu cotidiano? Vive da maneira mais medíocre que se possa imaginar. Isso está em contradição com a sua própria exigência cultural. Gorbatchev foi pessoalmente afetado por esse impasse.

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    Tradução de Cícero Romã o Rezende de Araújo
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    Ignácio Ramonet esteve no CEDEC em março de 1989, ocasião em que teve um diálogo com os pesquisadores do Centro, que aqui reproduzimos. Sua presença no Brasil deu-se por ocasião do seminário "Política Internacional e Cooperação", promovido pela FUNDAP, Depto. de Ciência Política da USP e CEDEC.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1989
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