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UM NARRADOR DO SEGUNDO ESCALÃO

A SECOND-TIER NARRATOR

Resumo

No artigo, identifica-se o perfil socioeconômico do conselheiro Aires, personagem que "escreveu" os diários que se transformaram no romance Memorial de Aires e que serviram de base para a narrativa, também composta por Aires, publicada com o título Esaú e Jacó. A partir dessa identificação, evidencia-se como a escolha de um funcionário de segundo escalão da burocracia imperial, para suposto autor dessas obras, serviu ao propósito de Machado de Assis de criticar a ausência de mudanças sociais significativas ocorridas no período republicano e a manutenção de uma estrutura de poder excludente semelhante à existente durante a Monarquia.

Palavras-chave:
Machado de Assis; História do Brasil; Literatura Brasileira

Abstract

This article identifies the social-economic profile of Counselor Ayres, the character who "wrote" the diaries that became the novel Counselor Ayres' Memorial and were used as the inspiration for the story, also written by Ayres, published as Esau and Jacob. These findings show how the decision made by a second-tier officer in the imperial bureaucracy, the supposed narrator of these novels, perfectly fit Machado de Assis's objective of criticizing the lack of any meaningful social changes during the early republican era and the maintenance of a power structure very similar to that in effect during the monarchy.

Keywords:
Machado de Assis; History of Brazil; Brazilian literature

A partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, os romances de Machado de Assis passaram a ter, com frequência, narradores que são personagens das histórias que contam, às vezes, como protagonistas, outras vezes, não. Segundo uma já longa tradição interpretativa, com possível destaque para Roberto Schwarz e John Gledson, o escritor se preocupou - e foi incrivelmente bem-sucedido - em escrever obras que de fato parecem produto de um membro da elite brasileira, oferecendo, como afirmou Pedro Meira Monteiro, “verdadeiros flashes de consciência de classe” (2016MONTEIRO, Pedro Meira. Outono da escrita: as últimas páginas de Machado de Assis e a promessa não cumprida no Brasil. Novos estudos CEBRAP, v. 35.02, p. 227-239, jun. 2016., p. 230), por meio dos comentários desses narradores, de seus silêncios ou até da própria estrutura narrativa.

Ainda que esses personagens tenham sempre uma condição privilegiada, estão longe de equivalentes. Elite é um termo vago e, no final do século XIX no Rio de Janeiro, especialmente impreciso, pois nesse período alguns grupos sociais, sobretudo urbanos, estavam em ascensão, enquanto outros, como os tradicionais proprietários de terras e escravos, declinavam. Raymundo Faoro, em Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, definiu esse contexto como “o encontro entre dois mundos, o mundo que se despede e o mundo que chega”:

Nitidamente, há uma estrutura de classes - banqueiros, comerciantes e fazendeiros - sobre outra estrutura de titulares, encobrindo-a e esfumando-lhe os contornos. É a camada da penumbra que decide os destinos políticos, designa deputados e distribui empregos públicos. [...] Duas faixas se separam, com clareza, no conteúdo e no conceito, na ação social, não raro entrecruzando-se e se confundindo. Para simplificar [...]: a classe em ascensão coexiste com o estamento. (FAORO, 1988FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro: Globo, 1988., p. 15-16).

Voltaremos a essa análise adiante, por hora basta afirmar que os personagens narradores de Machado de Assis ilustram momentos distintos e posições diversas desse choque do “estamento” com as “classes”, separados por questões de educação, tradição familiar e proximidade com o poder político. É preciso observar os detalhes para compreender esses narradores e, consequentemente, as histórias que estão contando. Os romances ganham novos significados se forem interpretados a partir da identidade socioeconômica desses personagens - e, como veremos, é exatamente o que acontece com Esaú e Jacó e Memorial de Aires, quando deciframos o Conselheiro Aires.

Os enredos dos romances de Machado de Assis, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, cobrem de meados do século XIX até o seu final. Em quase todos os casos, sendo Quincas Borba a única exceção, o autor criou um personagem que narra uma história da qual participou e ela representa, de alguma maneira, um contexto histórico específico. Brás Cubas, por exemplo, era um típico membro da elite tradicional do Rio de Janeiro no momento que, para Machado de Assis, fora o auge do Segundo Reinado, os anos 1850-1860 (GLEDSON, 2003______. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003.). Vivia da riqueza da família escravocrata, estudou na Universidade de Coimbra e foi deputado, seguindo à risca a cartilha da camada superior da sociedade naquele momento, chamada de estamento por Faoro. Por isso, encontramos um narrador confiante, abusado, que não se importa em revelar seu lado egoísta e manipulador para o leitor (SCHWARZ, 1990SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1990.).

Casa velha foi o romance seguinte a sair na imprensa em forma de folhetim e, mais uma vez, com um narrador que participa da história, ainda que não como protagonista. Embora haja um debate sobre a obra ser ou não um romance, vale a pena analisar algumas questões sobre o personagem narrador. Parece claro que o autor não ficou satisfeito com o resultado da obra, posto que nunca o publicou em livro, algo que só ocorreu nos anos 1940, devido à pesquisa de Lucia Miguel-Pereira. Gledson (2003______. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003.) argumenta que Machado de Assis aproveitou inúmeros elementos desse romance, tanto características de personagens como da estrutura, em Dom Casmurro, em que conseguiu rearranjá-los de maneira mais orgânica. Entre os pontos repensados está o narrador. Em Casa velha, trata-se de um padre que conta uma história ocorrida em 1839, quando pesquisava arquivos na casa de um ex-ministro de d. Pedro I. Chama a atenção o pouco que sabemos dele, sobretudo se compararmos com o que o autor nos forneceu sobre Brás Cubas, Bento Santiago e o Conselheiro Aires. Em primeiro lugar, ele não tem nome, fato estranho no universo dos romances machadianos, além de não haver informação sobre o momento preciso em que está escrevendo. As lembranças do período regencial trariam sentimentos diferentes, se rememoradas no final dos anos 1840, quando finalmente a instabilidade política cessou; ou nos anos 1870, momento em que a Monarquia voltou a ser contestada. Outra lacuna crucial é o estrato social do padre. Como de praxe, pertence às camadas superiores, pois se trata de um homem culto e que chegou a Cônego da Capela Imperial, mas isso não basta. Veio de uma família escravista tradicional? De imigrantes portugueses? Da área rural ou urbana? Tudo isso seria importante para entendermos a forma como ele vê o mundo e interpretarmos melhor os eventos narrados. Machado de Assis deve ter refletido sobre essas questões, pois foram resolvidas em Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.

Em Quincas Borba, entretanto, a narração não é em primeira pessoa. A partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas é o único romance do autor cujo protagonista possui origem humilde, tendo nascido e sido criado no interior de Minas Gerais. Como parte do objetivo de Machado de Assis, ao criar seus personagens narradores, era criticar a mentalidade da elite brasileira, de nada adiantaria transformar Rubião em narrador da sua história. Na trama, ele enriquece em função de uma herança inesperada, mas não consegue ser aceito como igual pela boa sociedade da corte e acaba engolido por ela. Ficara rico, mas não tinha o sobrenome e a educação esperadas num momento - final dos anos 1860 e início dos 1870 - em que esses elementos eram tão importantes quanto a riqueza.

Em Dom Casmurro, encontramos novamente um personagem que narra sua trajetória e vem de uma rica família proprietária de escravos, como Brás Cubas. Apesar disso, o contexto histórico é outro. Bento escreve suas memórias em 1899, dez anos após a queda da Monarquia. Trata-se, portanto, de um membro da elite tradicional em seu ocaso e, por isso, o tom de sua narrativa - melancólica, saudosista - não podia ser mais diferente do de Brás. Bento também é manipulador, mas não revela isso claramente, porque sabe que seu momento já passou. Significativamente, revela estar escrevendo para “atar as duas pontas de sua vida, e restaurar na velhice a adolescência” (2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 810). Ele, que fora parte do estamento superior durante a juventude, vivenciou a sua superação pelas classes endinheiradas, representadas pelo burguês Escobar (BOUCINHAS, 2015BOUCINHAS, André. O segredo de Escobar. Piauí, Rio de Janeiro, Editora Alvinegra, v. 105, p. 60-63, jun. 2015.).

Notamos até aqui como nesses romances os personagens narradores só são plenamente compreendidos se tomados tanto pela sua identidade socioeconômica quanto pelo contexto histórico específico, pois são diretamente afetados por ele. Nesse sentido, a obra de Machado de Assis integra o que Auerbach chamou de Realismo moderno, que tem como um de seus fundamentos “o esgarçamento de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea, do pano de fundo historicamente agitado” (2011AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 440). É com isso em mente que devemos olhar para a Esaú e Jacó e Memorial de Aires.

Ambas as histórias são narradas pelo Conselheiro Aires, porém, nesses casos, a relação entre o narrador personagem e o romance se torna menos direta, mais complexa. No prefácio de Esaú e Jacó, há uma nota de um editor não nomeado dizendo que ele próprio escolheu o título e decidiu publicar o texto, apesar de garantir que se trata de obra do Aires, que aparece como personagem secundário na trama. No entanto, Memorial de Aires inicia com o seguinte comentário, na “Advertência”: “Quem me leu Esaú e Jacó, talvez reconheça estas palavras...” e, importante diferença, o editor agora se assina M. de A. e admite que, para tornar o memorial interessante, foi preciso decotar “algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões”. Linhas depois, escreve que a publicação “Vai como estava [o original], mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto” (2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.096).

Sem dúvida, Machado de Assis problematizava os romances em primeira pessoa. Seriam ou não obra desses personagens criados por ele? Abel Barros Baptista (2003BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. Campinas: Editora Unicamp, 2003., p. 382-400) argumentou que, devido à impossibilidade de se ter certeza sobre em que medida os textos foram pensados como do narrador personagem ou não, torna-se estéril discutir as intenções do autor em termos de crítica social, porque é impossível saber se Machado apoiava ou criticava os valores defendidos nos romances. Aqui adotaremos ponto de vista diverso, pois acreditamos que é possível sim diferenciar a posição dos narradores/personagens daquela do romancista. E, especificamente sobre Esaú e Jacó, argumentaremos que ler o romance como uma obra do Conselheiro Aires nos permite iluminar determinadas passagens, notar ironias que passariam despercebidas e, inclusive, apreender mais um significado para o romance.

Uma solução para o quebra-cabeça da “autoria” de Esaú e Jacó, assim como para o fato de o narrador ser um personagem sem admiti-lo, foi dada pelo próprio Baptista: “[...] suponhamos, por exemplo, que Aires projetava publicar o livro com pseudônimo [...]: a presença de Aires personagem reconfigurar-se-ia de todo, a relação entre o autor e o mesmo Aires não seria sequer suspeitada” (2003BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. Campinas: Editora Unicamp, 2003., p. 409). Baptista abandona essa hipótese em seguida, novamente por achar que não existem indícios suficientes para essa leitura, mas pretendemos explorar justamente essa possibilidade, procurando também motivos para o Conselheiro não querer assumir publicamente a narrativa em que descreve a si mesmo.

O enredo de Esaú e Jacó começa em 1871 e termina em 1894, cobrindo, portanto, do começo da crise da Monarquia até o governo do marechal Floriano Peixoto; já Memorial de Aires se concentra entre janeiro de 1888 e o final de 1889. Como este último se trata de um diário, sabemos (desconfiamos?) que foi redigido pelo narrador paralelamente aos eventos descritos. Já para Esaú e Jacó, nada se pode afirmar sobre o momento da sua produção. Entre os diários encontrados do Conselheiro Aires - não temos a data de seu falecimento -, havia um, intitulado “Último”, que continha a história dos irmãos Paulo e Pedro em forma de narrativa, diferentemente dos outros. Não se pode afirmar que foi escrito após os diários, mas o nome do livro parece ser uma evidência nesse sentido. Como a história avança até 1894, devemos supor que foi escrito após essa data, já durante a República.

Até aí encontramos um cenário parecido com o de Dom Casmurro, no entanto, Aires não é Dom Casmurro. E, ao contrário deste e de Brás Cubas, Aires não está contando a sua própria história, mas a de outros - mais um elemento que Machado reaproveitou de Casa velha. Não há praticamente nenhuma informação sobre a infância e a juventude do personagem, e quase tudo o que sabemos é o que o narrador de Esaú e Jacó, Aires, resolve nos dizer sobre um dos personagens secundários do seu romance - o Conselheiro Aires.

O primeiro aspecto que se destaca é o título de Conselheiro. Em nenhum momento explicita-se de onde vem esse título, o que seria importante, pois havia mais de uma possibilidade de se obtê-lo no Império. Um caminho seria fazer parte do Conselho de Estado, um dos órgãos de maior prestígio político no país e cujos membros eram vitalícios; outro era recebê-lo do imperador, em caráter puramente honorífico. Pessoas de diversos grupos receberam essa honra, como juízes do Supremo Tribunal de Justiça, ministros, presidentes dos Tribunais de Relação, bispos, presidentes de províncias. Também houve funcionários de segundo escalão que, tendo realizado com sucesso algum importante trabalho, receberam o título.

Como já notado por Raymundo Faoro (1988FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro: Globo, 1988., p. 44), o caso de Aires certamente é o segundo, pois em seu memorial deixou claro que passou a vida na diplomacia sem participar de nenhum fato político de primeira grandeza: “A diplomacia que exerci em minha vida era antes função decorativa que outra cousa; não fiz tratados de comércio nem de limites, não celebrei alianças de guerra; podia acomodar-me às melodias de sala ou de gabinete” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.142).1 1 Todas as citações de obras de Machado foram retiradas da mesma edição: ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2004, v. 1. A partir de agora, para facilitar a leitura, além do ano e da página, faremos as referências com as duas letras que indicam o romance a que pertencem (MA, Memorial de Aires; EJ, Esaú e Jacó). Se tivesse participado do Conselho de Estado, ele faria questão de se referir ao fato, pelo menos de passagem.

Há somente duas referências específicas a seus cargos: a promoção a secretário de legação no ministério Ferraz (1859-1861) (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.136 - MA) e um período em que foi adido de legação em Caracas (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. l2004 - EJ). O Ministério das Relações Exteriores possuía o maior número de funcionários da burocracia imperial, o que significa dizer, em outras palavras, que era o mais fácil de conseguir uma vaga numa sociedade em que, segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o funcionalismo público correspondia a mais de 15% do total de empregos e era fundamental para prover ocupação para os setores médios urbanos (1996CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996., p. 148-149). Os dois cargos mencionados, aliás, estavam longe de ser os mais cobiçados pela elite dominante. Joaquim Nabuco (1996NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999., p. 82-83), por exemplo, lembrando-se do convite que recebeu para ser adido de legação, afirmou que o encarou como “uma sensível redução de pretensões anteriores”, pois se tratava apenas do “primeiro degrau da carreira diplomática”.

Confirmando a relativa mediocridade da carreira de Aires, lembremos a nota do editor que encontrou seus cadernos após a morte - a única informação sobre Aires que não partiu dele próprio, enquanto narrador: “ele não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se.” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 946 - EJ) Como vimos, o próprio Aires confessou, melancólico, em seu diário, no que constituiu sua carreira. Em Esaú e Jacó, o narrador não se permite uma (auto)crítica como essa, mas podemos encontrar menções interessantes sobre a carreira do Conselheiro: “Aires fora diplomata excelente, apesar da aventura em Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dous verbos parentes” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.070 - EJ). Talvez não tenha sido coincidência que Aires tenha se lembrado dessa experiência de Caracas logo após presenciar a prisão de um ladrão e algumas manifestações populares. Por outro lado, certamente levou para o ofício de narrador a lição de “descobrir e encobrir”.

Começamos a entender melhor o Aires. Sem se destacar profissionalmente, deve ter passado por países de pouco prestígio ou então em postos menores. Nesse processo, recebeu o título de Conselheiro, talvez com a intervenção de algum “padrinho” junto ao imperador, já que não realizou nada extraordinário. Se houve ajuda, o narrador (talvez por orgulho) não disse e ainda procurou despistar o leitor, afirmando que recebera o título diretamente de d. Pedro II (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.015 - EJ), como se existisse outra forma possível.

Não afirmamos com isso que Aires misturava-se com a massa da população, pois fazia parte de uma minoria privilegiada; no entanto, não estava no topo da hierarquia social. Como afirmou Angela Alonso:

Do ponto de vista da classificação social, a sociedade imperial [...] era altamente hierarquizada. O sistema de distribuições de posições de prestígio e de poder produzia critérios de diferenciação social não só entre as camadas sociais, mas também regras de distinção internas a cada uma delas. Assim, não havia igualdade plena nem mesmo entre os membros do estamento superior: as relações sociais, o acesso a prebendas e privilégios os individualizava, prescrevendo-lhes posições quase singulares. (ALONSO, 2002ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002., p. 99, grifo nosso)

Antonio Candido (2007CANDIDO, Antonio. Um funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007.), em um estudo sobre Antonio Nicolau Tolentino, chamou a atenção para a posição social ocupada pela burocracia do segundo escalão do Estado imperial. Vindo de família modesta, Tolentino tornou-se funcionário público trabalhando como escriturário da Contadoria Geral do Tesouro Nacional, passando a inspetor da alfândega e depois a representante brasileiro na junta que discutiu o pagamento da dívida do Uruguai para com o Brasil. Ao voltar dessa missão elogiado pelos seus superiores, aposentou-se como diretor do Contencioso do Tesouro, em 1855, e recebeu o título de conselheiro no mesmo ano.

Depois disso, foi vice-presidente do Rio de Janeiro e, em função da ausência do titular, por alguns meses, presidente da província. Mesmo com cargos de prestígio, Antonio Candido não tem dúvidas sobre o lugar secundário de Tolentino:

Era um alto funcionário com alguns esmaltes de dominação política e outros tantos metais de largueza econômica. Aninhara-se nos níveis superiores daquela espécie de classe média [...] com aspectos parasitários, devido ao clientelismo, que era produto, não causa do jogo constitucional, e ia preenchendo aos poucos os espaços entre os oligarcas e a grande massa dos desvalidos, de cuja proximidade Tolentino emergiu. (2007, p. 135)

É preciso, então, colocar Aires no seu lugar, próximo de Tolentino, longe dos cativos, forros e trabalhadores livres pobres, mas também não ao lado daqueles que, por conta de prestígio político e social, ocupavam os grandes cargos ou, no mínimo, decidiam quem iria fazê-lo. Essa posição se assemelha àquela do próprio Machado de Assis, que foi funcionário público do segundo escalão, mas não circulou na mais alta esfera da política. Esse fato apoia a hipótese de Alfredo Bosi (2007BOSI, Alfredo. O enigma do olhar. São Paulo: Martins Fontes, 2007.) e Luiz Roncari (2007RONCARI, Luiz. O cão do sertão: literatura e engajamento. São Paulo: Editora Unesp, 2007.) de que as opiniões de Aires refletiam mais as do autor do que as de qualquer outro narrador de sua obra. Se era um objetivo de Machado expor sua visão de mundo de forma mais direta sem se revelar - como aconteceria caso o personagem narrador fosse um escritor -, a identidade social do Conselheiro foi uma construção engenhosa. No entanto, como veremos adiante, essa aproximação deve ser feita com cuidado.

Candido afirmou sobre Tolentino: “morto, um homem desses acaba rapidamente, porque funcionou num escalão secundário, que não dá ingresso à História” (2007, p. 131). Aires parece concordar com isso, pois não achou que a sua trajetória merecia ser contada. Ao mesmo tempo, não queria ser esquecido. A radicalização dos liberais na década de 1870 e, mais tarde, o crescimento do republicanismo fizeram circular cada vez mais os princípios de uma sociedade baseada no mérito e na igualdade. Sobre esse período específico, Angela Alonso afirmou:

Tratava-se, pois, de uma sociedade em transição entre dois padrões, que exibia ainda características da estratificação do antigo regime, mas que também já apontava para a formação de uma ordem social competitiva. Estes fenômenos alimentavam processos de mobilidade social - de ascensão e descenso - turvando distinções sociais e esmaecendo os contornos dos próprios grupos sociais. (ALONSO, 2002ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002., p. 99)

A análise de Alonso retoma, em termos semelhantes, a tese de Raymundo Faoro apresentada no início deste texto. Uma figura que pertence aos dois mundos - e, portanto, a nenhum deles de forma integral - é o Conselheiro, como revelam os comentários de Faoro sobre ele. Aires aparece no capítulo sobre o estamento superior, como exemplo de personagem de um de seus níveis mais baixos (1988FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro: Globo, 1988., p. 44), e também na parte dedicada à classe média, como alguém que ascendeu dela. Ainda que o crítico não se atenha a esse ponto, ele confirma a situação intermediária de Aires e, consequentemente, sua instabilidade.

O fortalecimento do discurso meritocrático contribuiu para a parte mais alta da classe média julgar que merecia mais reconhecimento e que também tinha direito de entrar para a “História”, como se referiu Antonio Candido. Um sinal disso são os seis cadernos de diários encadernados e numerados deixados por Aires, prontos para serem lidos; no entanto, até mesmo nos diários ele não passa de um coadjuvante. Deixou também um caderno com a narrativa de uma história da qual participou indiretamente. Aproveitou a chance para falar dele mesmo e lembrar os leitores das suas virtudes e da sua imparcialidade, que toma forma no seu conhecido “tédio à controvérsia” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 965 - EJ). Como não confiar em alguém assim?

A entrada de Aires em Esaú e Jacó é triunfal. Logo depois de ser mencionado pela primeira vez, o narrador começa um capítulo intitulado “Esse Aires”, concedendo-lhe uma primazia que não teve em vida. Só que isso não bastava. Conta-se mais da vida desse personagem do que de qualquer outro secundário na trama e, ao fim do encontro que trouxe o Conselheiro para a narrativa, o personagem comenta a previsão da cabocla sobre os gêmeos:

Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que “a guerra é a mãe de todas as cousas”. Na minha opinião, Empédocles, referindo-se à guerra, não o fez no sentido técnico. O amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se dizer que é um duelo, não de morte, mas de vida - concluiu Aires sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se. (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 967 - EJ)

Para exagerar a força e o impacto do discurso de Aires, o narrador chamou o capítulo de “A lição do discípulo”, pois Santos tentava convencer Aires a ouvir os ensinamentos do amigo espírita, mas acaba recebendo um ensinamento. A fala é interessantíssima: vemos a citação de um filósofo grego, que transmite a erudição do Conselheiro, ainda que ele tenha alterado radicalmente o sentido do pensamento para acalmar os ânimos, exercendo a sua diplomacia. Assim que sai da casa de Santos, este diz ao sacerdote: “E então? - disse Santos -. Não é que o Conselheiro, em vez de aprender, ensina-nos?” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 967 - EJ). Se Aires é o narrador, como pode saber o que foi dito em sua ausência? Não pode. Entretanto, como ele mesmo admitiu em um de seus diários: “gosto de ver e antever, e também de concluir.” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.162 - MA). No romance, o narrador teve tempo para pensar e registrar a conclusão que quisesse, especialmente em relação ao que pensaram e falaram dele mesmo, e não nega que coloca palavras na boca dos outros. Em outra ocasião, afirmou: “Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada”. (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 952 - EJ)

A fala de Aires tem outro ponto importante. Ele se refere a um duelo por amor, de forma abstrata e até um pouco confusa. Capítulos depois, os gêmeos disputam o coração de Flora, deixando a impressão de que a sabedoria do Conselheiro chega ao ponto de prever o futuro, caso nos esqueçamos de que o próprio escreveu tudo isso conhecendo o final da história. E o narrador avisa que não adianta tentar confirmar a sua previsão com os amigos presentes, pois naquele momento “falava baixo”.

Essa primeira aparição de Aires serve de modelo para muitas outras. Vejamos mais uma. Naquele primeiro momento, ele estava só de passagem, em uma de suas licenças no Brasil. Seu retorno definitivo, como não poderia deixar de ser, também foi realçado pelo narrador, que mais uma vez lhe concedeu um capítulo inteiro (XXXII) para explicar como era a vida do ex-diplomata, com direito até a insinuação a casos amorosos. (Claro, o Conselheiro era também um sedutor.)

Ali somos informados que foi por cansaço da solidão que Aires passou a frequentar eventos sociais, como as reuniões na casa dos Santos. O narrador não poderia, de modo algum, confessar abertamente que a verdadeira motivação era o gosto por fofoca, como deixou escapar, capítulos mais tarde, quando explicou por que aceitou dar um passeio com Flora: “Era imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que negue, nem tu, nem ele mesmo”. (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.015 - EJ)

Dois últimos exemplos esclarecedores da bajulação do narrador Aires sobre o personagem Aires. Natividade está para pedir que ele a ajude a unir seus filhos:

( [...] Agostinho não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma já não sinto forças, e então pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de sociedade, hábil, fino, cauteloso, inteligente, instruído...

( Eu, em suma?

( Adivinhou.

( Não adivinhei; é meu retrato em pessoa. (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 995 - EJ)

Aires não tem senso de humor, portanto, não devia estar brincando. Talvez Natividade estivesse e ele não percebeu, ou talvez procurasse ganhar o amigo - que havia sido rejeitado por ela na juventude - para a sua causa, jogando charme e atacando um de seus pontos fracos, a vaidade.

Vaidade essa que reaparece diversas vezes, inclusive em um detalhe: o narrador mente a idade de Aires. Em Esaú e Jacó, afirma que o Conselheiro tinha 60 anos em 1888 (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 994 - EJ); em seus diários, escreve que possuía 62 no início daquele ano (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.099 - MA). Inúmeras outras passagens ilustram o esforço que o narrador faz para tornar seu personagem favorito um homem respeitado, invejado, requisitado, querido, ou seja, tudo o que ele queria ter sido. No entanto, agora podemos passar para o outro lado da questão: como ele era “de verdade”. Aqui, temos de fazer uma leitura ainda mais atenta, pois, como vimos, o narrador de Esaú e Jacó procura criar uma imagem falseada do Conselheiro Aires, mas às vezes acaba se traindo.

Além de características já mencionadas, como a vaidade e o interesse pela vida dos outros, um aspecto fundamental de Aires é seu sentimento de frustração. O narrador de Esaú e Jacó comenta que ele foi rejeitado por Natividade, mas, imediatamente, parece se arrepender da confissão e afirma que “não foi propriamente uma paixão” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 964 - EJ). Não satisfeito com a correção, conta ainda que Natividade não permitiu o seu casamento com a irmã para puni-lo “por havê-la amado” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 965 - EJ), sem dar nenhum motivo para essa justificativa. A frequência com que Natividade elogia-o não passa de mais uma estratégia de compensar no livro o que não teve em vida. Ela, porém, não foi a única frustração amorosa do Conselheiro, pois confessa ter casado “por necessidade de ofício; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro”, mas vivia com a mulher como “se vivesse só” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 965 - EJ).

Não foi o primeiro nem o último homem a casar em prol da carreira. Antonio Tolentino, o funcionário estudado por Antonio Candido (2007CANDIDO, Antonio. Um funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007., p. 26), também se viu obrigado a casar com uma moça “adequada” para poder subir na burocracia.

Se não amava o seu casamento, a falta de filhos foi um dos fatores para isso. A sua aproximação dos gêmeos é uma evidência da dor que essa ausência lhe causava, e ele chega a imaginar como seria bom se ambos fossem seus filhos com Carmen, uma amante - mais uma frustração - que teve em Caracas. Além disso, em Memorial de Aires, confessa sentir um amor paternal por Fidélia.

O envelhecimento também o incomodava, como já se podia antever por mentir sua idade, mas que fica mais evidente em passagens como esta: “Deixa lá dizerem os filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha [...]” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.006 - EJ).

A frustração é a grande marca de Aires: em relação ao casamento, ao trabalho, à idade, ao amor, enfim, em relação àquela sociedade que não lhe deu valor. O narrador de Esaú e Jacó, mesmo se esforçando, não consegue esconder isso dos leitores mais atentos, que encontram nas entrelinhas a razão de comentários que demonstram despeito, vaidade, raiva. Em Memorial de Aires, onde o Conselheiro aparece sob menos máscaras, o tom seco e desesperançado fica mais evidente.

Por essas características levantadas aqui, cruciais para compreendermos o personagem, notamos que uma grande distância separa o Conselheiro Aires de Machado de Assis, homem sabidamente reservado, que alcançou o ponto mais alto da sua carreira e foi reconhecido por isso em vida. Talvez a semelhança entre ambos, que salta aos olhos numa primeira impressão, seja apenas mais uma das traições do autor aos leitores nos seus últimos romances, como sugeriu John Gledson (1985GLEDSON, John. The Last Betrayal of Machado de Assis: Memorial de Aires. Portuguese Studies, Modern Humanities Research Association, v. 1, p. 121-150, 1985.).

Por que Aires resolveu contar a história dos gêmeos Paulo e Pedro? E, junto com isso, por que Machado de Assis criou o Conselheiro Aires para narrar Esaú e Jacó?

A opinião do romancista sobre a República não era das mais positivas, para dizer o mínimo. Nunca falou isso abertamente, mas a leitura atenta de suas crônicas deixa poucas dúvidas. Ao mesmo tempo, Machado não idealizava a Monarquia e conhecia seus defeitos. Como o autor afirmou (em alemão) sobre o Segundo Reinado em uma de suas crônicas: “[...] seria mais fácil provar que o Brasil é uma oligarquia absoluta do que uma monarquia constitucional” (apudGLEDSON, 2003______. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003., p. 148). Como concluiu John Gledson ao analisar a referida crônica, para Machado, a “República nascerá, então, da oligarquia. E, neste caso (como na famosa cena da tabuleta, em Esaú e Jacó), a mudança será, simplesmente, uma mudança de rótulo: antes e depois, a oligarquia governará.” (2003______. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003., p. 149).

Para sugerir isso no romance, Machado de Assis precisava do narrador correto. Outro Bento Santiago não serviria, pois este, que também escreve com a República consolidada, deseja voltar à sua juventude (Monarquia), quando ainda era feliz. O autor precisava de alguém em uma posição para ver que as coisas não eram tão diferentes assim em ambos os sistemas. Aí entra o Conselheiro Aires: um funcionário culto do segundo escalão que vivenciou o auge político do Império, mas que não tinha muitos motivos para lamentar a sua queda. Conviveu por toda sua carreira com o estamento superior, sem nunca ser visto como parte dele; passou a vida inteira próximo do poder, sem jamais estar nele de verdade. Diferentemente de Rubião, Aires sabia o seu lugar e por isso não enlouqueceu; mas por ter a consciência de que não conseguiria ascender mais naquela sociedade de cartas marcadas, nem chega a tentar e passa a vida frustrado.

Esse sentimento se intensificou com a República, porque a mudança do sistema gerou em muitos a esperança de transformações sociais, uma vez que o ideal republicano evoca maior participação eleitoral, meritocracia, progresso etc. No Brasil, porém, o que se viu foi mais do mesmo: o poder nas mãos das grandes famílias oligárquicas, que o distribuíam de forma patrimonial. Segundo Lilia Schwarcz:

Todo o panorama otimista que antecedeu à República [...] levou a um sentimento bastante generalizado de que era possível “erguer-se da escravidão”, “sair do gueto”, liberar-se do isolamento e acreditar na promessa da inclusão e da mobilidade ascendente. [...]

Tudo parecia sinalizar para uma integração sem obstáculos e barreiras intransponíveis. Contudo, tal abertura social - experimentada no Brasil no final do século XIX, mas não apenas - seria freada por novos critérios de alteridade racial, religiosa, étnica, geográfica e sexual. (SCHWARCZ, 2012SCHWARCZ, Lilia Moritz. A abertura para o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012., p. 19-21)

Difícil dizer quais exatamente eram as expectativas de Aires em relação à República, mas deve ter sido contaminado pelo “panorama otimista” (mais do que Machado, já bastante cético em relação a ambos os sistemas políticos no momento da Proclamação) e, da mesma forma, se desiludido com o que veio. Tanto em Esaú e Jacó como em Memorial de Aires é possível apreender essa frustração, pois foram escritos quando o novo regime estava estabelecido, com muito dos vícios do anterior. Como sintetizou Pedro Monteiro, o Conselheiro escrevia sobre um “futuro abolido” (2016MONTEIRO, Pedro Meira. Outono da escrita: as últimas páginas de Machado de Assis e a promessa não cumprida no Brasil. Novos estudos CEBRAP, v. 35.02, p. 227-239, jun. 2016., p. 236). Aires escreveu o livro para poder “entrar para História” por outra porta, já que pelo funcionalismo público, sem uma família rica e tradicional, existia um limite. Além de transformar a si próprio em um homem importante, Aires denunciava o regime republicano, sem que isso significasse saudade da Monarquia. Aliás, o problema era justamente a semelhança entre ambos. Não à toa, desenvolve um enredo sobre gêmeos idênticos, um monarquista e outro republicano. Assim, em Esaú e Jacó, Machado de Assis criticava o novo sistema, sem idealização do antigo. Para isso, o romancista lançou mão de um personagem narrador que tinha mais motivos do que ele para se sentir frustrado, justamente por ter estado tão próximo do topo, almejado alcançá-lo, porém permanecido fora dele.

O Conselheiro narra uma história na qual os dois protagonistas representam regimes distintos: um representa a Monarquia; o outro, a República. Paulo, republicano, compra o retrato de Robespierre, estuda em São Paulo e é mais expansivo; Pedro, monarquista, mesmo nome do imperador, mais equilibrado, prefere o retrato de Luís XIV. Os dois nascem em 1870, ano do primeiro Manifesto Republicano no Brasil e do início da crise monárquica. Quando jovens, disputam o amor de Flora - que pode representar o próprio Brasil -, pois, segundo José Augusto Pádua (2007PADUA, José Augusto. Natureza e sociedade no Brasil monárquico. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. Brasil Imperial: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. III, p. 331-332.), durante o Império, consolidou-se a exaltação da nossa natureza como parte fundamental da nação. As identificações são tão diretas que um leitor de Machado de Assis pode estranhar, mas temos de lembrar que é uma história contada por Aires, de uma forma diferente do que aconteceu em Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.

Em Memórias póstumas e Dom Casmurro só sabemos dos eventos que Bentinho e Brás presenciaram. Em Esaú e Jacó, somos informados de que a história se baseou nos diários do Conselheiro Aires, mas há diversas passagens da trama em que ele não se encontrava no ambiente ou mesmo no Brasil. Ainda assim, temos acesso às falas e pensamentos íntimos de diversos personagens. Como vimos, Aires não nega que complementa o (pouco) que sabe com a sua imaginação, portanto, ele admite que manipula os eventos narrados.

Isso nos ajuda a entender a pouca sutileza na identificação dos irmãos com a Monarquia e a República. Explica também a insistência na principal mensagem que Aires queria passar sobre ambos: sua indistinção. Para começar, são gêmeos idênticos que até os pais tiveram de diferenciá-los com uma fita. “Tinham o mesmo peso e cresciam por igual medida” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 958 - EJ). A semelhança é ainda maior para aquela que precisa escolher entre os dois, a ingênua Flora. Essa situação adoece Flora, que começa a delirar: “Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinárias” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.048 - EJ). Logo antes de morrer, ao ser avisada de que ambos os irmãos querem vê-la, pergunta: “ambos quais?” (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 1.079 - EJ). Para realçar o seu significado, o narrador faz dessas as últimas palavras de Flora e também o título do capítulo CVI. O falecimento ocorre no mesmo dia em que Floriano Peixoto decretou estado de sítio, suspendendo as liberdades por 72 horas. Aires - e também Machado - devia ver naquele ato o fim de qualquer esperança possível em relação ao regime republicano, representado também pela morte de Flora. No entanto, a morte da amada não encerra a disputa entre os dois irmãos, que logo voltam aos conflitos sob novas bandeiras.

Paulo e Pedro são idênticos e vivem brigando, numa alusão também aos embates dos partidos brasileiros. Ao discutir questões políticas, por exemplo, Gledson nota que não só revelam suas semelhanças, como chegam mesmo a defender aspectos característicos dos modelos a que teoricamente se opõem:

Para ambos, política é poder e os dois são atraídos pelos aspectos de cada regime que lhes permitem (contra os supostos princípios de ambos) exercê-lo. [...] na verdade, cada gêmeo, secretamente, quer o tipo de poder mais usualmente associado com o outro regime. (GLEDSON, 2003______. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003., p. 198-199)

Quando discordam sobre as razões para a cor que vemos na Lua, Pedro afirma que são nuvens, enquanto Paulo diz que se trata de um problema na visão dos homens (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 995 - EJ). As duas explicações estão erradas, ainda que o narrador não se dê ao trabalho de explicitar. Na disputa entre Monarquia e República não importam os argumentos, pois são intercambiáveis e, muitas vezes, igualmente incorretos.

Os poucos pontos em que estão de acordo são bastante significativos. Os dois querem conquistar Flora, representando a ambição pelo poder, mencionada anteriormente. O episódio mais interessante, porém, é quando os pais recebem o título de nobreza:

Que os dous gêmeos participassem da lua de mel nobiliária dos pais não é cousa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava a explicá-lo, mas acresce que [...] Pedro e Paulo concluíram ter recebido com ele um mérito especial. Quando, mais tarde, Paulo adotou a opinião republicana nunca envolveu aquela distinção da família na condenação das instituições. (ASSIS, 2004ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1., p. 976 - EJ)

Ambiciosos, arrogantes e vaidosos. Como seus pares, enxergavam mérito onde existia favor; exibiam o título honorífico como um certificado justo que os diferenciava do restante da população. Na República, os títulos desapareceram, mas o poder continuou como monopólio das oligarquias que o utilizavam para manter (ou aumentar) o fosso entre eles e a maioria do povo.

É bem verdade que os títulos não desapareceram totalmente. Naquela sociedade hierarquizada e excludente, as pessoas não abriram mão dos símbolos de status. Muitos barões e viscondes continuaram a ser chamados assim mesmo após a Proclamação da República, reforçando a semelhança entre os dois sistemas. Se os títulos eram importantes para os que formavam o topo da hierarquia, imagina para aqueles que, através de anos de trabalho e alguma sorte, obtiveram um desses símbolos que os aproximavam dos mais privilegiados? Esses, sim, lutariam com toda força para que sua distinção não fosse esquecida.

Por fim, voltamos ao Aires. Mesmo escrevendo durante a República fez questão de marcar que era Conselheiro. Isso foi o máximo que conseguiu em vida e não o abandonaria facilmente. No entanto, sabia que não era suficiente. Escreveu um romance e deixou diversos diários organizados, na esperança de ser lembrado e admirado por mais tempo. Como afirmou Gabriela Betella, “como romancista, (Aires) cria uma personagem de si mesmo - nada menos que o mais sensato da história - para observar-se no mesmo plano dos outros” (2007BETELLA, Gabriela K. Narradores de Machado de Assis. São Paulo: EdUsp, 2007., p. 140).

O Conselheiro Aires procurou, com o ato de escrever, entrar para a História e escapar do esquecimento que parecia o destino daqueles que não nasciam nas grandes famílias. Um caminho para muito poucos, como bem sabia Machado de Assis.

Referências

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  • AUERBACH, Erich. Mimesis São Paulo: Perspectiva, 2011.
  • BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
  • BETELLA, Gabriela K. Narradores de Machado de Assis São Paulo: EdUsp, 2007.
  • BOSI, Alfredo. O enigma do olhar São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • BOUCINHAS, André. O segredo de Escobar. Piauí, Rio de Janeiro, Editora Alvinegra, v. 105, p. 60-63, jun. 2015.
  • CANDIDO, Antonio. Um funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007.
  • CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem Teatro de sombras Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
  • FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
  • GLEDSON, John. The Last Betrayal of Machado de Assis: Memorial de Aires Portuguese Studies, Modern Humanities Research Association, v. 1, p. 121-150, 1985.
  • ______. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
  • MONTEIRO, Pedro Meira. Outono da escrita: as últimas páginas de Machado de Assis e a promessa não cumprida no Brasil. Novos estudos CEBRAP, v. 35.02, p. 227-239, jun. 2016.
  • NABUCO, Joaquim. Minha formação Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
  • PADUA, José Augusto. Natureza e sociedade no Brasil monárquico. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. Brasil Imperial: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. III, p. 331-332.
  • RONCARI, Luiz. O cão do sertão: literatura e engajamento. São Paulo: Editora Unesp, 2007.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. A abertura para o mundo Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1990.
  • 1
    Todas as citações de obras de Machado foram retiradas da mesma edição: ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2004, v. 1. A partir de agora, para facilitar a leitura, além do ano e da página, faremos as referências com as duas letras que indicam o romance a que pertencem (MA, Memorial de Aires; EJ, Esaú e Jacó).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2020
  • Aceito
    04 Jun 2020
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