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A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM BRASILEIRA EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS E ANTIBRASILEIRA DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS: LEONARDO FILHO E BRÁS CUBAS

THE DIALECTIC OF BRAZILIAN MALANDROISM IN MEMOIRS OF A MILITIA SERGEANT AND ANTI-BRAZILIAN MALANDROISM IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF BRÁS CUBAS: LEONARDO FILHO AND BRÁS CUBAS

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar as personagens Leonardo Filho, de Memórias de um sargento de milícias, romance de Manuel Antônio de Almeida; e Brás Cubas, de Memórias póstumas de Brás Cubas, ficção de Machado de Assis, como tipicidades que representam respectivamente duas ontologias dialéticas da malandragem, no contexto histórico de um país submetido a saber: a popular, brasileira; e a antipopular e antibrasileira.

Palavras-chave:
Realismo estético; realismo grotesco; estrutura colonial de produção; dialética da malandragem; ritornelo romântico e clássico

Abstract

This article analyzes the characters Leonardo Filho, from Memoirs of a Militia Sergeant, a novel by Manuel Antônio de Almeida; and Brás Cubas, from Posthumous Memoirs of Brás Cubas, fiction by Machado de Assis, as types that represent respectively two ontologies of the dialectics of malandroism, in the historical context of a subordinate country. These ontologies are the popular and Brazilian, and the anti-popular and anti-Brazilian.

Keywords:
Aesthetic realism; grotesque realism; colonial structure of production; dialectic of malandroism; romantic and classical ritornello

1. Uma introdução

O estudo da relação entre a classe proprietária e a não proprietária é de importância fundamental para a compreensão das complexas relações de classes no Brasil da segunda metade do século XIX, sendo o objetivo deste artigo investigar a interface entre Leonardo Filho, protagonista de Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida (doravante MSM), com Brás Cubas, o narrador-personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (doravante MPBC), considerando: 1) que as relações sociais de produção no período eram escravocratas; 2) que Leonardo Filho tipificou um perfil de classe, embora livre, sem propriedades; 3) que Brás Cubas é a caracterização da classe proprietária, senhor de escravos e dono de terra; 4) que a violência, ainda que latente, define a relação da classe senhorial com a não proprietária e a escravizada, com uma sobrecarga maior sobre esta última, por razões óbvias: a desumanização absoluta.

A respeito da relação entre a classe proprietária e a não proprietária, Roberto Schwarz (2001______. O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis. In: ______. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 84-104.), em "O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis", argumentou o seguinte: "O leque dos destinos disponíveis, de amplitude vertiginosa e catastrófica para a parte pobre, é, para a parte proprietária, o campo das opções oferecidas ao exercício do capricho" (SCHWARZ, 2001______. O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis. In: ______. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 84-104., p. 89).

No trecho citado, Schwarz referia-se à relação entre Brás Cubas e Eugênia, especialmente considerando os capítulos XXX, XXXI, XXXII e XXXIII de MPBC, salientando o requinte de crueldade sem limites do primeiro para com a segunda e assim da classe proprietária para com a classe sem propriedade, no contexto de uma arquitetura social escravocrata em que a violência é proporcional às relações sociais entre as diferentes posições de classe.

Neste artigo, partimos do pressuposto de que Brás Cubas possa ser analisado como tipicidade representativa das classes proprietárias brasileiras, argumento que desenvolveremos tendo em vista dois referenciais teóricos, a saber: do próprio Machado de Assis e de Nelson Werneck Sodré.

Do Bruxo do Cosme Velho, o destaque advém do trecho a seguir de "Notícia da atual literatura brasileira":

Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo. (ASSIS, 1962______. Obras completas. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. v. III, p. 801., p. 801).

Conscientemente, Machado seria o escritor que interrogou sem cessar a vida nacional, tendo compreendido mais do que ninguém de seu período histórico o deslocamento de poder de Lisboa para Londres, o que possibilitou um olhar mais plástico em relação à produção literária brasileira que o precedeu, assim como as transitoriedades das relações de poder, que deixavam de ser coloniais para se transformarem gradativamente em capitalistas.

Em interlocução com Nelson Werneck Sodré de A ideologia do colonialismo (1961), a aliança da metrópole com a classe senhorial é o fundamento de uma "estrutura colonial de produção" (SODRÉ, 1961______. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: MEC; Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1961., p. 8), compreendida como ausência de independência política, econômica e cultural, tendo como efeito trágico no cotidiano o conflito interclasses, ora latente, ora explicitado, ressaltando as diferentes formas de requintes de crueldade da classe senhorial em relação às duas outras que superexplora: a escravizada e a sem propriedade.

Considerando que Machado escreveu MPBC 28 anos após a publicação de MSM; e também o fato de que tinha como referência ficcional escritores das metrópoles que estavam na vanguarda de relações capitalistas de produção, como Paris e Londres, a comparação interclasses entre Leonardo Filho e Brás Cubas, neste artigo, será realizada em retrospectiva; do Realismo estético (nunca escolar) do Bruxo do Cosme Velho para o Romantismo de Almeida.

2. Dialética da malandragem e ideologia do colonialismo: Leonardo Filho e Brás Cubas

No que diz respeito à classe proprietária, retratada como "espécies do oco dentro do oco", o capítulo "Genealogia", de MPBC, é singular, pois objetiva o que está em jogo, a saber: o trabalho e especialmente o horror das classes proprietárias ao trabalho; e não apenas no sentido de ganhar a vida com o suor do rosto, mas também sob o ponto de vista de uma irônica metafísica genealógica das origens supostamente aristocráticas dos senhores de terra e de escravos. Não é por acaso a propósito o seguinte trecho da narrativa: "Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour" (ASSIS, 1961ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, 1961., p. 28).

E existirá algo mais metafísico e "espécies de oco dentro do oco" que a genealogia sem relação com o trabalho? Existirá capricho mais cínico e violento que escapar ao trabalho nas "asas de um calembour", às custas do trabalho escravo e da superexploração do trabalho da classe não proprietária? Seria possível, ampliando o zoom, argumentar que Brás Cubas possa ser interpretado como uma tipicidade das classes proprietárias brasileiras?

No capítulo "Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: romance de formação das tipicidades do estatuto colonial brasileiro", do livro O estatuto (contra) colonial da humanidade, assinado por um dos autores deste artigo, é possível ler o seguinte fragmento sobre a caracterização de Brás Cubas, esse personagem calembour:

Esse é o caso do realismo estético de Machado de Assis, que tem no narrador-personagem, "Brás Cubas", de Memórias póstumas de Brás Cubas, a tipicidade humana que melhor representa as circunstâncias típicas do estatuto colonial brasileiro, sendo o pivô de uma estrutura piramidal de classes que dominou o período colonial escravista do Brasil desde a segunda metade do século XVIII, que é: 1. A dos proprietários, inclusive de escravos; 2. A intermediária, sem propriedades; 3. A dos escravizados (SOARES, 2021SOARES, Luís Eustáquio. Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: romance de formação das tipicidades do estatuto colonial brasileiro - ideologia do colonialismo e racismo estrutural. In: ______; BARBOSA, Diana C. de Souza; ZAIDAN, Junia. O estatuto (contra) colonial da humanidade: literatura e política. Montes Claros: Inmensa, 2021., p. 196-197).

Brás Cubas, sob o ponto de vista de Soares, seria um personagem satirizado por Machado, representando o perfil das classes proprietárias do estatuto colonial da humanidade, em sua versão brasileira e em perspectiva trans-histórica, uma vez que o país ainda não conseguiu romper com a estrutura colonial de produção.

Ele seria a caracterização senhorial da ideologia do colonialismo, com seu ranço aristocrático, traduzível, também, como "enciclopedismo tácito clássico no uso das referências culturais", para dialogar com o capítulo "Uma desfaçatez de classe", do livro Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, de Schwarz (2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000., p. 23). Como tipicidade do estatuto colonial brasileiro, torna-se caricatura da ideologia do colonialismo produzida na metrópole, encarnando-a com a empáfia oca da "desfaçatez de classe senhorial".

E Leonardo Filho, de MSM, como pode ser definido no interior de uma estrutura de classes em que figura como homem livre, embora sem propriedade? Para tratar dessa questão, dialogaremos com o seguinte trecho de Vanguarda, história e ideologia da literatura (1985), de Fábio Lucas:

Numa estrutura imperialista, a afinidade entre o Núcleo do Núcleo hegemônico e o Núcleo da Periferia dependente, por identidade de objetivos, promove um circuito de comunicação harmônica de uma forma tal que, na lógica do sistema, o Núcleo dependente assume posição mais intransigente na defesa da ideologia que resguarda a própria lógica do sistema (LUCAS, 1985LUCAS, Fábio. Vanguarda, história e ideologia da literatura. São Paulo: Cone, 1985., p. 25).

Embora o escritor e crítico literário mineiro, Fábio Lucas, descreva, no trecho citado, uma estrutura de dependência do período imperialista do capitalismo, em linhas gerais tal estrutura assim se constitui: 1) há um Núcleo hegemônico, o da metrópole imperialista ou colonizadora de referência; 2) há um Núcleo do Núcleo hegemônico, cujos integrantes defendem de forma mais intransigente o sistema ideológico e, assim, as apologéticas do mundo existente do Núcleo hegemônico; 3) há a periferia ou as periferias do Núcleo do Núcleo hegemônico.

Essa arquitetura de dependência, em relação à metrópole colonizadora, existe como efeito de uma estrutura colonial de produção, constituindo-se por circularidade tal que o Núcleo do Núcleo hegemônico (por exemplo, São Paulo, como centro econômico do país) detém a tendência de incorporar e defender o sistema ideológico produzido no Núcleo hegemônico de forma mais essencialista, intransigente e substancial que o próprio centro do sistema colonial, geralmente plástico e insubstancial, uma vez que objetiva dominar e não defender ideologias como se estas fossem verdades transcendentais.

Nesse contexto, as periferias do Núcleo do Núcleo (outros estados brasileiros, por exemplo) ecoam a ideologia do Núcleo hegemônico, por meio da mediação do Núcleo do Núcleo, colaborando, desse modo, para, ideologicamente, ratificar a estrutura colonial de produção em conformidade aos interesses da metrópole de referência.

Essa estrutura colonial de dominação não se limita à dimensão econômica, pois se manifesta ideologicamente nas práticas políticas hegemônicas, no sistema de ensino, na superestrutura institucional, no cotidiano, atualizando-se subjetivamente nos corpos e nos comportamentos e, assim, nos estilos de vida.

Nossa hipótese, para caracterizar Leonardo Filho, a propósito, parte do seguinte argumento: seria um personagem que encarnou a periferia do Núcleo do Núcleo hegemônico, na pressuposição de que o lugar das classes populares, de alguma forma representado pelo personagem pícaro de MSM, deva ou até possa ser satírico em relação às classes subalternas e intermediárias, mas jamais em relação às senhoriais e, portanto, em relação a Brás Cubas, o que possibilita evidenciar o latente conflito interclasses da sociedade brasileira do período e o ocultamento das relações escravistas de produção por meio, também, da interface entre não proprietários livres e proprietários senhores de terra e de escravos.

Leonardo Filho, nesse caso, referencia-se, quanto ao comportamento caprichoso, em perfis como o de Brás Cubas, sendo que este se expressa como uma tipicidade do Núcleo do Núcleo hegemônico e aquele como um típico representante da periferia, orientado subjetivamente pelo comportamento das classes proprietárias. Comparemos, a propósito, os dois meninos, pais dos homens, de Manuel Antônio de Almeida e de Machado de Assis, começando pelo primeiro:

Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. (ALMEIDA, 1977ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977., p. 28).

Sobre o segundo, é possível ler, nas penas de Machado:

Desde os cinco anos, merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo: um dia quebrei a cabeça de uma escrava porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos (ASSIS, 1961ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, 1961., p. 25).

Partimos da hipótese de que essas diferenças e semelhanças objetivem a estrutura de dependência colonial do Brasil do século XIX e principalmente a relação entre as classes intermediárias e as proprietárias, tendo em vista a forma em que as duas narrativas adjetivaram seus protagonistas, na infância: "o menino flagelo" de MSM se relaciona com os objetos e as coisas, destruindo-os; o "menino diabo", por outro lado, de MPBC, violenta caprichosamente escravizados e, desse modo, pessoas, não tendo limites para humilhá-las ao máximo.

De qualquer forma, antecede a essa questão o fato de o romance de Manuel Antônio de Almeida não ser facilmente classificável no que diz respeito ao gênero, se histórico, se de costume, se picaresco; ou mesmo quanto à dimensão estética, se romântica, se realista, como a rigor destacou de forma exemplar Antonio Candido no ensaio "Dialética da malandragem: caracterização das Memórias de um sargento de milícias", ao argumentar o seguinte:

Mais ainda: a humildade de origem e o desamparo da sorte se traduzem necessariamente, para o protagonista dos romances espanhóis e os que os seguiram de perto, na condição servil. Em algum momento na sua carreira ele é criado, de tal modo que já se supôs erradamente que a sua designação proviesse daí, ¬ o termo "pícaro" significando um tipo inferior de servo, sobretudo ajudante de cozinha, sujo e esfarrapado [...]. Mas o nosso Leonardo fica tão longe da condição servil, que o Padrinho se ofende quando a Madrinha sugere que lhe mande ensinar um ofício manual no Arsenal de Guerra, a famosa Conceição; o excelente homem quer vê-lo padre ou formado em direito, e neste sentido procura encaminhá-lo, livrando-o de qualquer necessidade de ganhar a vida. (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem: caracterização das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970., p. 69).

Mais que entrar na polêmica se o romance de Manuel Antônio de Almeida era ou não picaresco, gostaríamos de nos fixar na particularidade das narrativas picarescas clássicas do Século de Ouro espanhol, destacada pelo crítico literário paulista, a saber: as personagens representavam no geral servos, o que pressupõe uma estrutura social de produção feudal ou mais precisamente de decadência, no sentido epigonal, das relações de produção feudais, circunstância histórica que motivou a caracterização de personagens - de origem camponesa - como errantes, burlescas, tagarelas, pícaras.

Com Candido, MSM não se constitui como um romance pícaro e nem poderia ser, porque Leonardo Filho não era uma personagem típica das circunstâncias típicas do mundo feudal em decomposição; não representava um servo, mas o homem livre sem propriedade no Brasil do início da segunda metade do século XIX; um representante, como argumentamos, do eixo periférico do Núcleo do Núcleo e, assim, uma caricatura popular de Brás Cubas, tendo sido plasmado, sob o ponto de vista da data da publicação da obra, quase três décadas antes.

É por isso mesmo que o malandro (assim como o pícaro do final da Idade Média) não pode ser mistificado. A esse propósito o livro Era no tempo do rei: atualidade das Memórias de um sargento de milícias (2016OTSUKA, Edu Teruki. Era no tempo do rei: atualidade das Memórias de um sargento de milícias. Cotia: Ateliê, 2016.), de Edu Teruki, suplementa o ensaio "Dialética da malandragem", de Antonio Candido, por destacar o conflito interclasses sem deixar de analisar as traquinagens de Leonardo Filho como manifestações latentes de uma sociedade de relações escravistas de produção, sob regime monárquico.

Trata-se, pois, da desmitificação do malandro, que é tanto o objeto de uma sociedade violenta, a do rei e seus séquitos, quanto o sujeito que também pratica a violência, assim como o capricho. É por isso que pensamos ser importante objetivar a hierarquia: o malandro, compreendido como parte da classe não proprietária, é antes de tudo o objeto da violência com origem na classe senhorial, motivo suficiente para retomar o diálogo com Schwarz de "O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis":

Não sendo proprietários nem escravos, estas personagens se formam entre os elementos básicos da sociedade, que lhes prepara uma situação ideológica desconcertante. O seu acesso aos bens da civilização, dada a dimensão marginal do trabalho livre, se efetiva somente através da benevolência eventual e discricionária de indivíduos da classe abonada (SCHWARZ, 2001______. O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis. In: ______. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 84-104., p. 87-88).

Leonardo Filho, agora em interlocução com Schwarz, ecoando a análise marcada no trecho citado, assim como a classe não proprietária do Brasil na segunda metade do século XIX, estaria, por sua própria condição objetiva, igualmente vulnerável aos caprichos das classes proprietárias, como Eugênia, d. Plácida e Marcela, de MPBC.

A violência, objetivada nas relações de produção, torna-se a regra. O capítulo "O vergalho", de MPBC, é exemplar a respeito, pois oportuniza a seguinte interpretação: até mesmo um ex-escravo como Prudêncio pode, uma vez livre e dono de escravo, ser sujeito da violência de que fora vítima.

Isso não significa de forma alguma que a violência seja da natureza humana. É historicamente determinada e, no caso em análise, constitui-se como um efeito objetivo de uma estrutura colonial de produção. Nesse contexto, a figura do malandro, como suposta tipicidade das classes populares, não seria uma deriva social da ideologia do colonialismo, reproduzindo a ordem dominante? Haveria a possibilidade de pensar a dialética da malandragem a partir de outro ponto de vista, sem mistificar o malandro?

Pensamos que o realismo estético, com a contribuição sobretudo de Engels (1888/1974) e György Lukács (1938/2016), possa nos fornecer subsídios importantes para interagir com essas questões, em interlocução com Gilles Deleuze e Félix Guattari, sobretudo tendo em vista o modo como interpretaram, em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980), a relação entre a dimensão clássica, romântica e moderna, no âmbito da história, da cultura e da arte.

3. O realismo romântico/malandro de MSM e o realismo estético de MPBC: ritornelo romântico e ritornelo moderno

Realismo e Romantismo são perspectivas trans-históricas. Não se limitam a períodos históricos e se constituem pela plasmação de "personagens típicas em circunstâncias históricas típicas", para lembrar Engels (1974ENGELS, Friedrich. O realismo de Balzac. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. Tradução de Albano Lima. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1974. p. 194-198., p. 196), tendo em vista a potência ascendente do trabalho, em clave desalienante, no caso do primeiro; e pela relação com as forças da Terra, como o povo, assim como as forças da natureza, como é exemplo, dentre outros, o romance de Júlio Verne, Viagem ao centro da TerraVERNE, Júlio. Viagem ao centro da Terra. Tradução de Cid Knipel Moreira. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994., de 1864, por representar o interior do planeta em dimensão colossal.

Essa forma de conceber o Romantismo deriva de uma interlocução que realizamos com Gilles Deleuze e Félix Guattari, sobretudo considerando o quarto volume de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, em que é possível ler a propósito o seguinte:

E justamente essa defasagem que forja o estatuto do artista romântico, dado que ele não mais afronta a fenda do caos, mas a atração do Fundo. A musiquinha, o ritornelo de pássaro mudou: ele não é mais o começo de um mundo, ele traça na terra o agenciamento territorial. Com isso, ele não é mais feito de duas partes consonantes que se buscam e se respondem; ele se dirige a um canto mais profundo que o funda, mas também choca-se contra ele, arrasta-o consigo e o faz desafinar. (DELEUZE, GUATTARI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4., p. 135).

Existiriam, segundo Deleuze e Guattari, ritornelos, blocos de conteúdos próprios à música, a saber: o clássico, em que o ritmo ou conteúdo musical emerge do efeito da relação entre o caos e a casa, o caos e a linguagem ou o caos e a civilização; o romântico, em que o ritmo se inscreve na relação entre território e Terra, constituindo as pulsações dos corpos, das matérias; o moderno, em que as forças cósmicas interagem com as forças da Terra, sendo capturadas e manipuladas por tecnologias imperialistas de dominação.

Em um primeiro momento, o Romantismo foi uma estética da burguesia revolucionária, a mesma que esteve envolvida com a luta de classes contra a superestrutura de Estado feudal, ainda dominante na Europa no século XVIII, assim como o Iluminismo foi a sua expressão filosófica. Haveria a possibilidade, nesse contexto, de existência de uma estética realista romântica, por objetivar as forças da Terra, sobretudo as populares, na contramão da aristocracia e do clero, classes tipicamente feudais.

Essa reflexão somente é possível se não nos limitarmos aos chamados estilos de época e, assim, à fragmentação positivista do tempo histórico, recortando-o em Barroco, Neoclássico e assim por diante, até chegarmos ao Modernismo, ao Pós-Modernismo e finalmente ao contemporâneo.

O problema do Realismo estético, como destacou Lukács em "Marx e o problema da decadência ideológica" (2016LUKÁCS. György. Marx e o problema da decadência ideológica. In: ______. Marx e Engels como historiadores da literatura. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 100), reside fundamentalmente na sua relação com os períodos históricos de decadência ideológica, em que a ideologia das classes dominantes se impõe, conformando as classes dominadas às apologéticas do mundo existente, razão suficiente para analisá-lo como um fenômeno de períodos históricos de lutas de classes abertas, de laicidade, de disputa do porvir. Em épocas de decadência ideológica, entretanto, torna-se um realismo crítico, de plasmação de particularidades lutando contra as diferentes formas de alienação.

Realismo crítico e Romantismo revolucionário, nesse sentido, não se opõem, formando um mesmo bloco de ritornelo relacionado às forças da Terra, afirmando o porvir dos povos, sob a liderança da burguesia revolucionária, no contexto europeu dos séculos XVIII e XIX. Há, no entanto, o Romantismo reacionário, quando se expressa como fuga da história, ao deslocar-se do presente para o passado, como foi o caso das obras literárias que se inspiraram na Idade Média.

Defendemos, neste artigo, que a identidade brasileira, em clave popular, constitua-se como uma variação importante de um Romantismo crítico, de perspectiva realista, porque a estrutura colonial de produção, com sua consequente estrutura de dependência, tem sido e é refratária à expressão do ser nacional, quando inseparável da soberania política, econômica e cultural.

É nesse contexto que talvez seja possível analisar MSM como narrativa a um tempo romântica e realista, sobretudo em três aspectos (sem deixar de considerar a presença, na obra, também, de um romantismo reacionário), quais sejam: o da plasmação estética da figura histórica do brasileiro em perspectiva popular; o da tendência da cultura popular, com a sua classe correspondente, de reproduzir a ideologia da colonização representada pela classe proprietária; o da dialética da malandragem da classe popular, razão suficiente para apresentar o seguinte trecho do ensaio homônimo de Candido:

O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores. Já notamos, com efeito, que Leonardo pratica a astúcia pela astúcia (mesmo quando ela tem como finalidade safá-lo de uma enrascada), manifestando um amor pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto [...]. Por isso, Mário de Andrade estava certo ao dizer que nas Memórias não há realismo em sentido moderno; o que nelas se acha é algo mais vasto e intemporal, próprio da comicidade popularesca. (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem: caracterização das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970., p. 71).

MSM inaugurou, no âmbito da literatura brasileira, um gênero: o do malandro, compreendido como um tipo humano que, diante das múltiplas adversidades, torna-se astucioso perante a estrutura burocrática de um Estado que tem funcionado como Núcleo do Núcleo do Estado central, considerando a estrutura de dependência em voga, se colonial, lusa; se liberal, inglesa; ou se neoliberal, norte-americana.

Ao definir o gênero da malandragem como dialético, Candido provavelmente referendou-se em Hegel de Ciência da lógicaHEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Lógica: 1. A doutrina do ser. Tradução de Christian G. Iber, Marloren L. Miranda e Federico Orsini. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2016. (1816), para quem a dialética se constitui pela relação entre a diferença, aquilo que não existe (um porvir de alteridade), e a identidade, referenciada na existência do mundo e seus seres.

Haveria, assim, uma diferença importante, no que diz respeito à estrutura de dependência, tendo em vista duas variações, a saber: 1) a da relação de identidade entre o Núcleo do Núcleo, tipificada, por exemplo, por um Brás Cubas, e o seu entorno periférico, representado por Leonardo Filho; 2) a da possibilidade de uma relação da periferia com sua própria alteridade, a partir de seu lastro popular, indissociável da luta pela sobrevivência e pela emancipação nacional.

Um exemplo da dimensão de identidade, em relação à classe proprietária, por parte de Leonardo Filho, pode ser apresentado através do seguinte trecho da narrativa: "Afinal o menino tomou um dia uma resolução última e propôs ao padrinho que o fizesse sacristão [...]. A princípio a ideia deslumbrou o padrinho [...]. O menino tinha nisso duas enormes vantagens, satisfazia seus desejos e saía da escola, poupando assim as remessas diárias de bolos" (ALMEIDA, 1977ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977., p. 90).

A figura do padrinho constitui-se, assim o interpretamos, como a metonímia da estrutura de dependência. É nesse sentido que, para mencionar Candido, a astúcia de Leonardo Filho se faria de fato como uma dialética da malandragem, ao negá-la e afirmá-la ¬ a estrutura de dependência. Nega-a, em diferença, ao se constituir, ao menos em potência, como alteridade brasileira, distanciando-se do Núcleo do Núcleo; afirma-a, em identidade, por ser tutelado pelo padrinho, que faz vistas grossas às suas brasilidades; às suas astúcias, ao mesmo tempo romanticamente realistas e romanticamente reacionárias.

4. A título de conclusão

O realismo estético de MPBC, não tendo traços românticos, afirma o distanciamento em relação à própria estrutura de dependência, objetivando as suas tipicidades contraditórias por meio de um narrador que Roberto Schwarz, em "O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis", designou como faccioso, considerando o seguinte trecho: "Atrás do narrador faccioso, que à primeira vista é revoltante, mas para o qual já não há substituto senão de outra facção, abre-se a cena moderna da luta social generalizada, a que não escapam os procedimentos narrativos" (SCHWARZ, 2001______. O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis. In: ______. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 84-104., p. 104).

Ressaltamos que usamos o argumento de Schwarz de "narrador faccioso", anterior ao "narrador volúvel" de Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990), não em oposição absoluta a este último, uma vez que não dissentimos dos argumentos do autor de Cultura e política, no que diz respeito à análise das classes proprietárias brasileiras como ideologicamente volúveis.

Adotamos a categoria do narrador faccioso, em vez do narrador volúvel, pelas seguintes razões contraponteadas: 1) o narrador volúvel diz respeito à posição da classe senhorial oitocentista brasileira, dissimulada de liberal em um contexto em que é o pivô interno de relações escravistas de produção; 2) o narrador faccioso que adotamos assume como referência uma escala mundial de relações entre classes, como a da classe do Núcleo do Núcleo hegemônico em face à classe do Núcleo hegemônico da metrópole.

Com isso, queremos dizer que as relações de produção são internacionais, de modo que a escravidão no Brasil, diretamente imposta pela camada senhorial do país, não isenta aquela que defende o liberalismo no centro do sistema colonial planetário. Pelo contrário, tal classe foi a que mais se beneficiou das relações escravistas de produção nos países colonizados, tomando para si os benefícios, em termos de lucros, incomparavelmente muito maiores, sem contar o próprio monopólio do comércio internacional de escravizados.

É nesse sentido que o narrador faccioso, sendo também volúvel, é perspicazmente faccioso, na forma e no conteúdo, em Machado, porque o é em relação às classes não proprietárias e aos escravizados, internamente; tornando-se volúvel sobretudo em relação às classes do Núcleo hegemônico, ao imitá-las sem explicitar as relações escravistas de produção. O capítulo LXVIII de MPBC, intitulado "O vergalho", para retomá-lo, tornou-se exemplar, a propósito, no que se refere às técnicas narrativas do narrador faccioso de Machado. Consideremos a respeito o seguinte trecho:

Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com algo juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (ASSIS, 1961ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, 1961., p. 117).

O narrador faccioso de que tratou Schwarz no ensaio em tela, o é em relação aos próprios procedimentos narrativos de Machado, experimentados com uma astúcia realista singular, em função de que seu lado volúvel é parte de sua dimensão facciosa, sendo volúvel para fora, a metrópole; e faccioso internamente, com as tipicidades humanas das classes não proprietárias e das escravizadas, resultando daí o irônico nome do menino torturado na infância: Prudêncio.

Há algo de mais faccioso que isso? A volubilidade, inseparável de sua dimensão facciosa, constitui-se ao estilo calembour. Entretanto, esses jogos de palavras, na relação com as classes não proprietárias e escravizadas, não são nada volúveis, sendo caprichosas facciosidades, como é possível evidenciar com a análise do capítulo que interage, em interlocução, com o mencionado "O vergalho", o XI, relativo à infância de Brás Cubas, em que é possível ler o seguinte trecho:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, ¬ algumas vezes gemendo, ¬ mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: ¬ "Cala a boca, besta!" (ASSIS, 1961ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, 1961., p.41).

O andarilho Brás Cubas, essa tipicidade voluvelmente fidalga do estatuto colonial brasileiro, já adulto encontrou-se por acaso com Prudêncio e dessa vez assistiu ao ex-escravo batendo violentamente em seu próprio escravo. Recrimina-o e depois se lembra da infância e de sua própria crueldade. A comparação entre esses dois momentos da narrativa põe em cena a sutileza técnica do narrador faccioso, sobretudo tendo em vista o desfecho do capítulo LXVIII: "Vejam as sutilezas do maroto!" (ASSIS, 1961ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Cultrix, 1961., p. 117).

Ora, de que maroto, de Prudêncio ou do próprio Brás Cubas? Emerge, nesse contexto, não uma nova dialética, mas literalmente uma perspectiva antidialética, por não perspectivar a diferença em relação a uma identidade. É a antidialética da facciosidade, tendo Brás Cubas como sua representação, essa caracterização estilizada do Núcleo do Núcleo central.

A antidialética de Brás Cubas é diversa da dialética da malandragem de Leonardo Filho porque não detém a ambiguidade malandra deste último, que ora replica, como uma cópia, os caprichos do proprietário colonizado; e ora afirma a potência de si mesma, como periferia sem centro; como brasileiro.

Tal antidialética, a da volúvel facciosidade, sabe que existe o Núcleo central e estiliza-o, por meio de comportamentos volúveis, multiplicando o seu próprio requinte de crueldade. É indissociável de uma consciência cínica em relação à estrutura de dependência, de que é uma parte fundamental, tendo em vista a aliança que mantém com a ideologia de dependência do Núcleo central, objetivamente estabelecida porque economicamente ratificada.

O narrador faccioso de Machado plasmou antes de tudo os procedimentos de dominação da classe proprietária. Se, com Schwarz, à primeira vista, parece revoltante, à segunda, acionada por um leitor perspicaz não menos realista, sinaliza o desafio: não é a representação da realidade que é cruel; é a própria realidade tal qual. O Bruxo do Cosme Velho conseguiu em sua ficção antecipar o ritornelo moderno: as forças do cosmos perante as forças da Terra, sobretudo considerando as forças alienadas e alienantes da estrutura de dependência brasileira.

Com isso plasmou a particularidade de Brás Cubas como parte da antidialética da facciosidade oligárquica, fundamentalmente antibrasileira, no interior de uma estrutura colonial de produção, o que vale para a presente época, considerando suas especificidades e diferenças em relação ao conturbado período (e qual não tem sido?) da segunda metade do século XIX e princípio do XX.

MSM, por outro lado, é fundamentalmente uma narrativa de ritornelo romântico, desafiado a caracterizar o brasileiro, esse ser Macunaíma, sem casta. O lado mais instigante da narrativa de Manuel Antônio de Almeida é este, pois: a particularidade da dialética da malandragem do brasileiro no interior de uma estrutura colonial de produção, negando-a ao se expressar, na contradição, como brasileiro, esse "herói sem nenhum caráter", para lembrar o subtítulo do romance de Mário de Andrade, MacunaímaANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Agir, 2008., de 1928.

Por sua vez, o lado mais deplorável é o seu romantismo reacionário, compreendido como reprodução comportamental da classe proprietária, reencenando seus caprichos e seus requintes de formas de violência, sobretudo considerando a volúvel relação que mantinha com tipicidades de sua própria classe, reproduzindo a ordem escravocrata dominante e ao mesmo tempo contribuindo para ocultar as relações escravistas de produção historicamente constituídas.

A verdadeira astúcia da dialética da malandragem brasileira, sem abandonar o ritornelo romântico, porque afinal somos seres terráqueos, não pode prescindir do ritornelo moderno e, assim, de um Realismo que esteja apto a tipificar a totalidade histórica da estrutura de dependência, com seu Núcleo central, seu Núcleo do Núcleo e suas periferias, sem deixar de visualizar e contestar a facciosidade oligárquica, inclusive desmascarando o seu lado calembour, volúvel, sendo por essas razões que escrevemos este artigo em retrospectiva histórica, de MPBC para MSM, do Realismo estético de Machado para o Romantismo da dialética da malandragem de Almeida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
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