Acessibilidade / Reportar erro

Um testamento à Brás Cubas

Em 26 de novembro de 1904, o Diário de Notícias, de Lisboa, publicava um artigo intitulado “Testamento interessante”. Nele, reproduzia trechos do documento em que Miguel de Novais, morto havia pouco mais de uma semana, registrava suas últimas vontades e dava destino aos seus bens. Entre os nomes citados, constava o de J. M. Machado de Assis, marido de Carolina, a qual junto com sua irmã, Emília, herdava os “35 ou 36 contos de réis” a serem divididos em partes iguais, ficando Carolina obrigada a dar à terceira irmã, Adelaide, enquanto viva “o necessário para uma vida modesta mas decente”. Carolina, que havia morrido em 20 de outubro, não foi diretamente beneficiada, o que criou uma situação em que Machado teve de tratar de assuntos de herança com os sobrinhos Arnaldo Braga e Sara Costa, filhos de Emília.

Enriquecido no primeiro casamento, com a viúva do conde de São Mamede, de quem se tornaria herdeiro, Miguel era o segundo filho do casal Antonio Luiz de Novaes e Custódia Emília Xavier de Novaes, tendo como irmãos Faustino, Henrique, Adelaide, Emília e Carolina. Era, portanto, cunhado de Machado de Assis, com quem conviveu enquanto morou no Rio de Janeiro, do final da década de 1860 ao final da década de 1870. Retornado a Portugal, manteve longa correspondência com o escritor, cuja obra acompanhou, deixando em cartas suas reações a quase todos os escritos publicados a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas.

Miguel foi provavelmente quem acompanhou com mais atenção e constância a obra de Machado de Assis em Portugal, deixando em suas cartas raros registros das reações de um leitor não especializado à obra machadiana (Miguel, que estudou belas artes no Porto, era pintor diletante). Foi também intermediário importante para fazer circular os livros de Machado naquele país, entre escritores e amigos de juventude do escritor.1 1 Sobre as relações pessoais e literárias entre Machado de Assis e Miguel de Novais, cf. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. "Um leitor de Machado de Assis". In: Avanços em literatura e cultura brasileiras – séculos XVI a XIX. Santiago de Compostela: Através Editora, 2012, p. 77-100.

O interesse pelo testamento, tanto em 1904 quanto na republicação da notícia hoje pela MAEL, está menos nas disposições testamentárias do que no tom extravagante com que foi escrito. Esse tom foi lembrado também pela revista portuense O Tripeiro, que na sua edição de novembro de 1954 transcrevia trechos do testamento acompanhados do seguinte comentário:

Aberto, em Lisboa, o testamento do portuense Miguel de Novais (irmão do famoso poeta satírico Faustino Xavier de Novais, que fora casado, em primeiras núpcias, com a viúva do conde de S. Mamede, e se matrimoniara, depois da morte de sua primeira esposa, com D. Rosa Augusta de Paiva Gomes), verifica-se que o referido documento é o mais sério-jocoso do gênero.

Apesar das tentativas, não foi possível localizar o texto integral do testamento nos arquivos e cartórios portugueses. As transcrições feitas nos periódicos mostram um documento pontuado pelos gracejos de um homem morto, no qual Miguel parece ter buscado a inspiração do famoso defunto-autor inventado pelo cunhado.


Foto de Miguel de Novais pertencente ao acervo do Museu da República, no Rio de Janeiro

  • 1
    Sobre as relações pessoais e literárias entre Machado de Assis e Miguel de Novais, cf. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. "Um leitor de Machado de Assis". In: Avanços em literatura e cultura brasileiras – séculos XVI a XIX. Santiago de Compostela: Através Editora, 2012, p. 77-100.

TESTAMENTO INTERESSANTE

O Sr. Miguel Narciso, em seu testamento, começa nos seguintes termos:

“Até que chegou a hora de fazer o meu testamento”.

Declara ser católico, em cuja religião tem vivido até aos 73 anos de idade, ter nascido na cidade do Porto e ser filho de Antonio Luiz Novaes e Custódia Emília Xavier, casado em 1876 com D. Joanna Maria Ferreira Felício, viúva do conde de S. Mamede, sendo hoje falecida, tendo ele testador sido usufrutuário da terça de seus bens.

Contraiu segundas núpcias com D. Rosa Augusta de Paiva Gomes, e que é à data deste testamento sua legítima mulher e não existe nem dum ou doutro consórcio filho algum.

Os seus bens são:

A casa e quinta das Calvanas, no Lumiar, em que habita, e tudo quanto nela se encontra: réis 38:000$000 nominais de inscrições da dívida interna, 5 ou 6 ações da Companhia do Açúcar de Moçambique, do valor de 50$000 réis cada, ações que lhe custaram, em número de 60, 600$000 réis, e o juro que recebeu desde a sua organização até hoje (quantos anos!) foi o de lhe reduzirem o capital à metade, ficando-lhe as 60 ações de réis 10$000 por 6 de 50$000 (nominais) – já é favor.

Mais alguns papéis tem de companhias idênticas, que não valem 10 réis.

O valor destes papéis, com algum dinheiro que existe em depósito em mão de J. H. Totta ou no Monte-pio Geral, poderá calcular-se em 20:000$000 réis; e o valor da propriedade da quinta das Calvanas, com o que encerrar em si, pelo preço de 30:000$000 réis.

As cousas estão assim em abril de 1903, época em que faz o seu testamento.

Ora, na ocasião da sua partida para o outro mundo, pode ter mudado tudo de feição para melhor ou para pior.

No primeiro caso, em benefício dos seus herdeiros, no segundo em seu prejuízo; em todo o caso não têm remédio senão conformarem-se com a sorte.

Declara que por diversas vezes sua esposa lhe recomendou que não quer ser sua herdeira, satisfazendo-se com alguma lembrança que porventura lhe queira deixar.

Faz diversas recomendações particulares.

Declara mais que a casa que costuma habitar no inverno na Avenida da Liberdade, isto é, o seu conteúdo, pertence a sua esposa, assim como as pratas que se encontrarem com a firma dela também lhe pertencem.

Deixa aos condes de S. Mamede, seus filhos e mais pessoas da família dele testador e de amizade, diversos objetos d’uso pessoal. Tais como de ouro e prata e adornos de casa.

Ao visconde de Carcavello deixa um relógio em forma de lira e suas jarras de Saxe.

Deixa um quadro – Guacho – de Cerdo Bossolli ao governo, a fim de ser colocado no Museu de Belas Artes, às Janelas Verdes.

Sua esposa, que será sua testamenteira, poderá reservar para si alguns dos objetos no mesmo testamento mencionado.

Deixa ao seu amigo Antonio Maria Queiroz de Lacerda, um castão de bengala, esperando que ele faça uso dele, pelo menos nos dias de gala.

Das inscrições ou d’outros quaisquer papéis em que porventura tenham sido trocados, terá sua mulher depois de consultar o seu amigo Totta de tomar o necessário para produzir a renda anual de 200$000 réis que mandará entregar em duas prestações durante o ano, sendo uma em começo de maio e outra em 1º de novembro à sra. D. Maria da Luz Penalva, viúva, residente no Porto, e se esta falecer antes do testador, o capital de 4:000$000 réis, que pouco mais ou menos produzirá a renda de 200$000 réis, será distribuído do seguinte modo, pela sua mulher: 1:000$000 réis para o asilo de D. Pedro V, no Campo Grande, 300$000 réis para o Asilo da Infância Desvalida do Lumiar, 500$000 réis para o asilo dos pobres velhos a cargo da Misericórdia e os 200$000 réis restantes, serão por ela distribuídos por instituições de caridade que ela julgue dignas de proteção excluindo quanto possível as que forem dirigidas por padres, frades ou irmãs de caridade.

Se esta senhora D. Maria Penalva lhe sobreviver, ser-lhe-á entregue a referida pensão em quanto viva, e só depois de sua morte será este dinheiro dividido pela forma acima exposta.

Deixa à sua comadre D. Maria Lima residente em Barcelos e a sua filha Julieta 500$000 réis a cada uma.

À sua afilhada Lina filha e seu sobrinho Arnaldo Braga, residente no Porto, a seu afilhado Francisco de Campos, filho do visconde de Carcavelos, residente em Braga, a Nuno de Campos filho do mesmo visconde 1:000$000 réis a cada um e a este último por nome Nuno deixa-lhe as obras de Camilo Castelo Branco.

Deixa a seu afilhado Jayme, filho do barão de Vasconcellos, residente no Rio de Janeiro; a seu afilhado, filho de D. Sara Braga; ao seu afilhado Alfredo Felício, filho do conde de S. Mamede, réis 1:000$000 a cada um.

À sua comadre e amiga a condessa de S. Mamede 1:000$000 réis, para comprar umas lunetas.

À D. Sophia de Brito, viúva do conselheiro Elvino de Brito e a D. Maria Januária Caldas Ferreira, 1:000$000 réis a cada uma.

A sua testamenteira comprará uma joia para oferecer a sua sobrinha Isabel Soares, para o que poderá dispor de 300$000 réis, ou dar-lhe esta quantia, e igual quantia a seu sobrinho Jorge de Paiva.

À sua antiga serva Maria Augusta e seu marido José Madeira, 150$000 réis a cada.

A Gregório d’Almeida, arrendatário da sua quinta das Calvanas 100$000 réis.

Do seu amigo e enteado o conde de S. Mamede, espera, tome o lugar de 2º testamenteiro assim como dos seus amigos Pedro Guimarães e Antonio Queiroz de Lacerda, prestem qualquer pequeno serviço de que [ilegível].

Autoriza sua mulher a vender as inscrições ou quaisquer papéis de crédito que existam por ocasião do seu falecimento a levantar o dinheiro que em nome dele testador se achar depositado ou a proceder ao leilão da propriedade de Calvanas, móveis para poder satisfazer os legados.

As vinhas legadas aos afilhados e pessoas de amizade importam, segundo o cálculo do testador, em 15:000$000 e o resto será, segundo também calcula, de 35 ou 36 contos de réis, que serão divididos em partes iguais e entregue metade a sua irmã Emília, viúva de Arthur Braga, e a outra metade a sua irmã Carolina, casada com J. M. Machado de Assis, ficando porém esta obrigada a dar à irmã Adelaide enquanto viva o necessário para uma vida modesta mas decente.

Deseja ser enterrado depois de morto, já se vê, ao lado do jazigo n. 10, no cemitério do Lumiar.

Estava ele testador, à data da fatura deste testamento, em diligências para comprar à câmara municipal um terreno junto ao referido jazigo onde existem dois covais que devem ficar devolutos para o mês de agosto do corrente ano. Declara que se morrer antes, “do que duvida, mas também não tem a certeza do contrário” espera que os testamenteiros empreguem todos os meios para a realização do seu desejo.

A campa deve ter a seguinte inscrição: – “Aqui jaz Miguel de Novais. Nasceu no Porto em 11-6-29 e morreu...” o resto é com os testamenteiros.

Pede à sua esposa que o não mande para o cemitério sem terem passado pelo menos 24 horas. – Não confia muito no que dizem os médicos. Não, que isto de enterrar a gente viva não é negócio de brincadeira.

Não quer luxos; apenas um carro funerário “puxado por 1 ou 2 burros de 4 pés cada um”; nada de acompanhamentos, nem tochas, nem flores nem cordas, nada de decorações “como as que se fizeram pela chegada do rei Eduardo – ainda que a sua morte se dê pelo carnaval. Não quer habilitar-se a ganhar o prêmio”. Para o acompanhar basta-lhe o seu amigo reverendo, prior do Lumiar, Francisco de Paula da Fonseca Neves, que depois do enterro rezará uma missa por alma dele testador, recebendo por este serviço piedoso 50$000 réis e outros 50$000 réis para distribuir pelos pobres da freguesia do Lumiar “que não forem bêbedos”.

Declara não ter dívidas de espécie alguma e põe fim ao seu testamento.

Pede ainda a sua mulher que venda 6 ações da Companhia do Açúcar de Moçambique e o produto seja dado como lembrança a D. Augusta de Araújo, de Viana do Castelo.

O testamento tem a data de 18 de abril de 1903 e foi aprovado pelo notário Henrique Pinheiro Leal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016
Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: machadodeassis.emlinha@usp.br