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RAPCHAN, Eliane Sebeika. 2019. Somos todos primatas. E o que a antropologia tem a ver com isso? Curitiba: Appris. 130 pp.

RAPCHAN, Eliane Sebeika. . 2019. Somos todos primatas. E o que a antropologia tem a ver com isso?Curitiba: Appris. 130 pp.

Segundo consta na contracapa, este livro da antropóloga Eliane Sebeika RapchanRAPCHAN, Eliane Sebeika. 2019. Somos todos primatas. E o que a antropologia tem a ver com isso? Curitiba: Appris. 130 pp. parte da seguinte pergunta: “É viável produzir uma antropologia que aborde as complexas e múltiplas relações possíveis entre humanos e outros animais”? Este questionamento, efetivamente, orienta boa parte das discussões encontradas ao longo das mais de 100 páginas que compõem o volume. Contudo, um leitor mais atento reconhecerá que a contribuição da obra ultrapassa, em muito, as possíveis respostas a esta questão inicial. Em boa medida, tanto no título quanto no seu conteúdo, Somos Todos Primatas se apresenta ao mesmo tempo como uma provocação e como um estímulo para se pensar a própria Antropologia. Isso porque o livro tangencia também algumas das questões fundantes da disciplina, e que permanecem dotadas de relevância científica e filosófica incontornável até hoje: a origem e a evolução do Homo sapiens; o fato de a humanidade se apresentar sob a forma de uma unidade biológica associada a uma vastíssima plasticidade sociocultural; a emergência do pensamento simbólico. Em tempos em que, ao menos no universo da Antropologia brasileira, tais discussões são comumente relegadas a um segundo plano ou mesmo ignoradas, o livro de Rapchan é uma amostra ímpar de um conjunto mais amplo e fascinante de discussões que podem ser consideradas de ponta hoje no meio científico internacional.

O livro é fruto de mais de uma década de investimentos no universo da Primatologia que, embora comumente associada à Biologia e a à Psicologia, também se constitui como um dos principais ramos da Antropologia pelo menos desde o século XIX. Este dado, por si só, já responderia positivamente à questão-título do livro. Ademais, nos últimos anos, Rapchan tem publicado diversos trabalhos acerca das relações entre humanos e primatas não humanos, de modo que Somos Todos Primatas também pode ser tomado como um esforço de síntese desse histórico. Mas a ideia de síntese ela mesma pode ser estendida a como a autora conjuga temas como evolução humana, comportamento animal, pensamento simbólico, linguagem, cognição, ecologia e ética, para citar apenas alguns. Ao fazê-lo, transita por diferentes frentes do conhecimento acadêmico, dentro e para além da Antropologia: Antropologia Biológica, Antropologia Sociocultural, Arqueologia, Biologia Evolutiva, Etologia, Filosofia, Linguística, Psicologia, Semiologia, Zoologia e, claro, Primatologia (dentro e fora da Antropologia), entre outros.

Esta busca por alianças disciplinares está expressa nos cinco capítulos que compõem o livro. Ao longo deles, grosso modo, se, por um lado, Rapchan defende a relevância dos estudos em Primatologia como via para questionar a centralidade conferida aos humanos no rol das relações com o mundo natural (especialmente no que se refere aos animais), reinserindo-os, portanto, na natureza, por outro, ela advoga a existência de um traço humano distintivo: o pensamento simbólico (cujas relações com o processo evolutivo biológico não podem ser ignoradas, como na menção aos estudos sobre a fluidez entre os módulos de cognição). Assim sendo, poderíamos falar de diversos atributos compartilhados, por exemplo, entre humanos e outros primatas, como os chimpanzés, tal qual o fabrico de ferramentas, o comportamento social etc. Contudo, ao menos por enquanto, ainda não disporíamos de dados e elementos que nos permitiriam atestar a produção de símbolos associados a significados (e vice-versa) entre outras espécies animais, mesmo primatas. O que se depreende deste esforço analítico é que, a princípio, a Antropologia (especialmente a Antropologia Sociocultural) poderia falar de uma singularidade humana (pensamento simbólico), mas esta mesma singularidade humana não nos autorizaria, antropólogos ou não, a nos pensarmos como seres à parte da natureza e muito menos como hierarquicamente superiores aos demais animais.

No que se refere aos conteúdos específicos de cada capítulo, cumpre destacar, por exemplo, a defesa de uma Antropologia das relações entre humanos e outros animais já no primeiro deles, em face das pesquisas realizadas em outras áreas do conhecimento científico que têm colocado em xeque a ideia de uma singularidade humana superior às especificidades de outras espécies animais, como aludido no parágrafo anterior. Esses estudos apontariam para, entre outras coisas, a obsolescência do antropocentrismo característico da Antropologia, e a possibilidade de se estender a ideia de cultura ao universo animal (como no caso específico do que se tem entendido por “culturas de chimpanzés”, tema desenvolvido mais detalhadamente no terceiro capítulo).

Se o segundo capítulo, intitulado “sobre semelhanças e alteridades: a cultura é realmente relevante?”, apresenta-se como uma importante incursão histórica ao universo das pesquisas em Primatologia desde o final do século XIX, mas com ênfase naquelas desenvolvidas a partir dos anos 1950 (em que entram em cena as longas observações de primatas em seus habitats naturais), o terceiro capítulo pode ser entendido como seu desdobramento, em que as possibilidades de interlocução entre a Antropologia e a Primatologia permanecem no foco da atenção. Para costurar ainda mais esta aliança, a antropóloga recorre a algumas das áreas mencionadas na parte inicial desta recensão crítica (Arqueologia, Genética Humana, Antropologia Sociocultural e Semiótica) e, a partir delas, versa mais especificamente sobre o fabrico de ferramentas, a comunicação e o comportamento social entre primatas (elementos correspondentes à ideia de “culturas de chimpanzés”, já mencionado).

Analisar e entender as diferenças e as semelhanças cognitivas e comportamentais entre humanos e demais espécies de primatas por intermédio de comparações não esgota as relações possíveis entre nós e esses seres. Tal empreendimento exige, ele mesmo, outros tipos de reflexão ou, mais precisamente, uma nova postura ética, tópico discutido no quarto e penúltimo capítulo de Somos Todos Primatas. Esta discussão ética pressupõe outra, a respeito dos direitos dos animais não humanos. Para introduzi-la, Rapchan se remete a dois casos jurídicos, um na Argentina, envolvendo um chimpanzé fêmea, e outro nos Estados Unidos, envolvendo dois chimpanzés machos. Entre casos bem e malsucedidos relacionados às demandas desses animais, a autora chama a atenção para o fato de que, nas últimas décadas, tem havido um grande debate e uma grande mobilização em torno da questão dos direitos dos animais inteligentes, o que, ainda de acordo com ela, implica reconhecermos que quanto mais nos aproximamos desses animais e mais aprendemos sobre eles, maiores se tornam as nossas responsabilidades em relação à sua sorte e ao seu bem-estar.

Como se pode depreender do que foi exposto até aqui, e retomando um argumento inicial, o livro de Rapchan se soma aos cada vez mais numerosos estudos que questionam a dicotomia natureza e sociedade, e é este o foco do quinto e último capítulo. Seu argumento final é o de que não podemos falar de uma “cultura de chimpanzés” nos moldes observados entre os humanos, mesmo porque os estudos sobre a presença de uma teoria da mente entre esses animais são inconclusivos. Neste ponto, a autora se afasta de parte da Primatologia e se mantém fiel à Antropologia Sociocultural, quer dizer, para ela, haveria sim uma marca humana distintiva em relação aos demais animais, inclusive primatas, tópico já adiantado nos parágrafos iniciais: o pensamento simbólico. Ora, essa distinção, contudo, nem inviabilizaria os estudos comparativos e nem implicaria uma relação hierárquica entre os seres. Aqui, especificidade não se traduz em soberania humana.

Como assinalado no início desta resenha, a contribuição de Somos Todos Primatas ultrapassa as discussões acerca das possibilidades de termos uma Antropologia das relações entre humanos e outros animais, discussão de ponta, sem dúvidas, e que tem sido desenvolvida de maneira engenhosa tanto por ela quanto por outros estudiosos. Mas ao defender o pensamento simbólico como marco distintivo da espécie humana, automaticamente Rapchan evoca uma discussão que, insisto, permanece fundamental para a Antropologia desde os seus primórdios no século XIX: a origem e o desenvolvimento biocultural do Homo sapiens, inclusive no que se refere à emergência do pensamento simbólico. Com efeito, a autora tangencia essa discussão porque os próprios estudos sobre primatas não humanos a têm como alvo, a despeito das muitas limitações que, ainda segundo ela, talvez só possam ser superadas à medida que as Ciências Naturais olharem com maior simpatia para as abordagens hermenêuticas caras às Ciências Humanas e Sociais. Mas isso não é tudo.

Não é tudo porque a pergunta “o que faz de nós humanos?”, e que aparece como slogan da série de podcasts da revista eletrônica Sapiens,1 1 Disponível em: https://www.sapiens.org/sapiens-podcast/. Acesso em 17/08/2020. da Wenner-Gren Foundation For Anthropological Research, não é feita apenas pela Antropologia. Diversas outras áreas do conhecimento o fazem. E como aquilo que diz respeito aos humanos envolve concomitantemente processos biológicos, ambientais, psicológicos e socioculturais, entre outros, perder isso de vista poderia acarretar, para a própria Antropologia, caso ela permaneça afeita a certos provincianismos, alguma obsolescência em face de outras áreas do conhecimento. O que a Antropologia tem a ver com o fato de sermos todos primatas é a pergunta-título deste livro. E ao procurar respondê-la, sua autora nos presenteia com uma discussão ao mesmo tempo rica, ousada e inspiradora, e que nos remete ao que, em alguns círculos de discussão internacionais, tem se convencionado chamar de uma Antropologia Integrada. Logo, seu livro é um exemplo de como a Antropologia ela mesma tem muito a contribuir para outras áreas do conhecimento científico ao mesmo tempo em que pode se beneficiar desse diálogo.

Referência

  • RAPCHAN, Eliane Sebeika. 2019. Somos todos primatas. E o que a antropologia tem a ver com isso? Curitiba: Appris. 130 pp.
  • 1
    Disponível em: https://www.sapiens.org/sapiens-podcast/. Acesso em 17/08/2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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