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“Esse sonho é a vida de nosso planeta”: por uma aproximação entre arte, vida e antropologia através de Metamorfoses

“Este sueño es la vida de nuestro planeta”: por un acercamiento entre arte, vida y antropología a través de Metamorfosis

“This Dream is the Life of Our Planet”: Towards a Rapprochement Between Art, Life, and Anthropology Through Metamorphosis

Resumo

Este ensaio é uma tentativa de traçar possíveis convergências entre arte, vida e antropologia através do recém-lançado livro de Emanuele Coccia no Brasil, Metamorfoses. Minha proposta é comentar sobre o livro oferecendo um panorama dos principais conceitos que atravessam os caminhos metamórficos apresentados por Coccia, cujos argumentos entrelaçam arte e vida a partir de uma espiral em que o fio condutor é o conceito de metamorfose. Como pretendo demonstrar, um diálogo entre Coccia e a antropologia pode nos ajudar a pensar abordagens antropológicas em relação à vida que perpassam o caminho da arte, sobretudo se pensarmos a arte como uma experiência vital e sensorial.

Palavras-chave:
Antropologia; Arte; Linhas; Metamorfose; Vida

Resumen

Este ensayo es un intento de trazar posibles convergencias entre arte, vida y antropología a través del libro de Emanuele Coccia recién publicado en Brasil, Metamorfosis. Mi propuesta es comentar el libro ofreciendo una visión general de los principales conceptos que atraviesan los caminos metamórficos presentados por Coccia, cuyos argumentos entrelazan arte y vida a partir de un espiral en la que el hilo conductor es el concepto de metamorfosis. Como pretendo demostrar, un diálogo entre Coccia y la antropología puede ayudarnos a pensar acercamientos antropológicos a la vida y sus cruzamientos con el camino del arte, especialmente si pensamos en el arte como una experiencia vital y sensorial.

Palabras clave:
Antropología; Arte; Líneas; Metamorfosis; Vida

Abstract

The present essay is an attempt to outline the possibilities of convergences between art, life, and anthropology through Emanuele Coccia’s newly released book, Metamorfoses. My proposal is to comment upon this book by offering an overview of the main concepts presetnin the metamorphic path presented by Coccia, whose arguments interlace both art and life following a spiral conducted by the concept of metamorphosis. As I intend to show, tracing a dialogue between Coccia and anthropology can help us to think of new anthropological approaches towards life as it runs through art, especially if we think of art as a vital and sensational experience.

Keywords:
Anthropology; Art; Life; Lines; Metamorphosis

Os animais são como os humanos.

Davi Kopenawa

As tentativas de aproximação entre antropologia e arte são historicamente marcadas por conflitos epistemológicos referentes à própria noção de arte (Cesarino 2016). Sob tensão, o conceito de arte, sobretudo no âmbito da etnologia, não desempenha função analítica apropriadamente álter quando refletimos junto a povos não ocidentais, para os quais, em geral, arte é uma categoria não local. O que aconteceria então se, reinserindo a vida na antropologia, pensássemos a arte não em função do outro, mas dos processos vitais? O filósofo Emanuele Coccia nos diz, em um bate-papo com o artista plástico Luiz Zerbini, que “é a arte que permite o ser vivo tanto de explodir na sua vitalidade, sua força, como tornar-se o mais bonito possível”, 1 1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebNAjCiQQQs nos proporcionando, desta forma, um ponto de partida interessante para entrever encadeamentos possíveis entre arte, vida e antropologia. Coccia é um filósofo italiano, atualmente professor e pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Embora sua área de formação seja em filosofia medieval, nos últimos anos seus trabalhos têm focado em investigações sobre diferentes concepções da vida, tendo escrito livros como A vida sensível ( 2010COCCIA, Emanuele. 2010. A vida sensível. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie .) e A vida das plantas ( 2018COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.), ambos com tradução para o português. Metamorfoses ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.) emerge como parte desse projeto de repensar a vida por outros meios. Neste caso específico, trata-se de refletir sobre a vida através da metamorfose. Tradicionalmente entendida como um processo biológico dos insetos, Coccia expande o conceito, entendendo-o como um processo vital.

A conversa entre Coccia e Zerbini se deu em função dessa nova publicação de Coccia no Brasil, MetamorfosesCOCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226., ilustrado por Zerbini e lançado pela editora Dantes - organizadora do bate-papo. É a partir deste livro e de seus conceitos que pretendo ensaiar sobre as interseções de arte, antropologia e vida, tanto por seu arcabouço teórico quanto pela experiência particular proporcionada por esta edição, em que as ilustrações de Zerbini mesclam-se às palavras de Coccia, dando-lhes contornos para além da escrita. Não à toa, na conversa entre os dois, Zerbini nos diz que seu ateliê de pintura é um espaço vivo fundamental para a execução de suas obras e que a vivacidade deste espaço está nas borboletas e nos beija-flores que invadem o ateliê pelas janelas. Enquanto espera a pintura falar e se modelar, as vidas acontecem, Zerbini diz a Coccia, ou seja, enquanto a vida transpassa o ateliê, Zerbini cria um novo tipo de linguagem para falar com a pintura. Para Coccia, este tipo de relação que o artista estabelece com o seu ateliê assemelha-se a um casulo, isto é, “um espaço onde as coisas entram e tudo sai metamorfoseado”. 2 2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebNAjCiQQQs O autor conta que sempre sonhou em fazer parte de um casulo, ou seja, de poder experimentar tornar-se outro. Ao notar que a metamorfose é um processo vital, Coccia percebe que seu sonho é, na verdade, a forma como vivemos nossas vidas.

Deste modo, o livro é um convite sensível à imersão na vida através de uma chave analítica já reconhecida na ecologia, mas deslocada do emprego usualmente adotado pelos ecólogos: metamorfose. Como veremos mais à frente, metamorfose é um mecanismo da própria vida que não se restringe a A ou B, pelo contrário, o conceito tem uma permeabilidade única. E é interessante observar o que faz Zerbini sob as lentes da metamorfose. Neste livro vemos a metamorfose ganhar corpo nos conceitos e nas ilustrações do pintor, que atravessam o livro nos fazendo lembrar que a metamorfose é um princípio gerador, atrelado à vida desde a nascença. Mulheres disformes, corpos gestantes e placentas agigantadas estampam o livro, exaltando a beleza dos dizeres, sublinhando e fazendo ecoar as ideias e os conceitos pujantes das metamorfoses distribuídas ao longo das páginas. Tendo em vista que o princípio da metamorfose “é verdadeiramente o dinamismo fundamental de todos os viventes”, 3 3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebNAjCiQQQs as ilustrações do livro são um tipo de arte metamórfica, entrelaçando-se ao ensaio de Coccia. Em vista disso, o trabalho de Zerbini não deixa de ser uma tradução, uma vez que suas ilustrações desempenham papel comunicacional com o leitor, enriquecendo nosso imaginário e nos estimulando para além dos ditos. Isto gera uma experiência multissensorial com a metamorfose.

Coccia, por sua vez, faz um percurso narrativo de adensamento do potencial teórico da metamorfose, passando por cinco capítulos: nascimentos, casulos, reencarnações, migrações e associações. Capítulos que se expandem e dialogam entre si por meio de trajetos cíclicos. Junto do leitor, Coccia caminha através da metamorfose propondo uma interação não estática diante da vida, nos revelando uma perspectiva que aproxima os processos vitais todos. Isto porque a narrativa de Coccia é interespecífica, transmutando o conceito de metamorfose entre as vidas humanas e não humanas: “a metamorfose é o princípio da equivalência entre todas as naturezas e o processo que produz essa equivalência” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:19).

Para pensarmos a metamorfose somos provocados a nos deslocar do mundo dos insetos para o planeta Terra, condicionando nosso olhar a enxergar as metamorfoses das vidas. Cabe dizer que a narrativa interespecífica não é novidade na trajetória de Coccia. Também em A vida das plantas ( 2018COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.), o autor nos lembra a todo momento a qualidade da união entre as espécies através da vida ela mesma. Isto se torna particularmente visível através dos conceitos de atmosfera e de mistura. A mistura é uma qualidade onipresente: “tudo no mundo produz mistura e se produz na mistura. Tudo entra e sai de toda parte: o mundo é abertura, liberdade de circulação absoluta, não lado a lado, mas através dos corpos e dos outros. Viver, experienciar ou estar-no-mundo significa também se fazer atravessar por toda coisa” ( 2018COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.:70). Já a atmosfera é um espaço de mistura: “a atmosfera não é algo que se acrescentaria ao mundo: ela é o mundo enquanto realidade da mistura dentro da qual tudo respira” ( 2018COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.:64). Ao respirarmos o mesmo ar que circula a atmosfera, todos os seres estão, de alguma forma, correlacionados.

Neste ponto podemos refletir junto com Anna Tsing (2015TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the End of the World: On the possibility of life in capitalist ruins. New Jersey: Princeton University Press.), para quem a pureza é um ideal impossível em vista do fato de que estamos constantemente nos contaminando uns com os outros. Não existe vida sem a contaminação, nos diz Tsing. Tampouco existe diversidade sem a contaminação. A noção de contaminação da autora pode nos ajudar a entender um pouco melhor Coccia, uma vez que, ao pensar a metamorfose como parte integrante de nossas vidas, o autor cria uma ideia similar à ideia de contaminação proposta por Tsing, isto porque a metamorfose é integrativa, viva, presente e contínua. Se a vida está presente em todos os lugares, também está a metamorfose, pois este é o princípio através do qual a vida reverbera. Deste modo, um resultado do pensamento metamórfico é a compreensão de que a vida é um atravessamento do eterno presente: “o milagre da metamorfose é então o de uma vida em partilha que não pode ser associada a uma identidade anatômica precisa ou a um mundo específico” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:202).

Atento às formas de vida, Coccia nos lembra das transformações corpóreas através do tempo, anteriores ao próprio nascimento: na barriga de nossas mães, partilhamos do mesmo corpo enquanto nos metamorfoseamos em seres humanos. Assim, para Coccia, é necessário trazer o nascimento para o centro do debate sobre a vida - outrora renegado pela tradição filosófica que pensa a vida em decorrência do patriarcado. O nascimento deve ser retomado sobretudo porque é a partir dele que somos continuamente modificados pela passagem temporal, que provoca, em nossos corpos, uma multiplicidade de formas; neste sentido, “a metamorfose é, a um só tempo, a força que permite a todos os seres vivos espalharem-se simultânea e sucessivamente por várias formas e o sopro que permite às formas conectarem-se entre si, passarem de uma para outra” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:20). A experiência compartilhada do nascimento é, então, o princípio da vida humana, pois é o nascimento ele mesmo a negação da forma de vida: “viemos sempre de uma outra forma, somos a sua deformação, variação, anamorfose” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:39). É a partir da forma, tal e qual proposta por Coccia, que proponho pensarmos em interseções de antropologia e vida.

É importante termos em mente que, assim como a relação entre antropologia e arte é carregada de conflitos, também a relação entre vida e antropologia é ruidosa. Isto porque, tradicionalmente, a prática etnográfica mantém a vida descentralizada das experiências. No entanto, há um movimento de retomada da vida para o debate em ciências sociais muito interessante, advindo de uma miríade de autores. Destaco os trabalhos de Das (2020DAS, Veena. 2020. Vida e Palavras. A violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.), Fassin (2018FASSIN, Didier. 2018. Life: a critical user’s manual. Cambridge: Polity Press.), Kohn (2013KOHN, Eduardo. 2013. How Forests Think: Toward an Anthropology Beyond the Human. Berkeley, Los Angeles: University of California Press.), Pitrou (2017PITROU, Perig. 2017. “Life as making”. In: Life Under Influence [avec D. Lestel]. NatureCulture, 4:1-37. Disponível em: http://natureculture.sakura.ne.jp >. Acesso em 21/07/2022.
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) e Tsing (2015TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the End of the World: On the possibility of life in capitalist ruins. New Jersey: Princeton University Press.). Como vemos nesses trabalhos, pensar a vida junto da antropologia nos aproxima de outros campos, como o da biologia e o da filosofia. Para Tim Ingold (2015INGOLD, Tim. 2015. “A antropologia ganha vida”. In: INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento, descrição. Petrópolis, RJ: Vozes.), por exemplo, a prática antropológica deve mirar a vida e reconhecê-la como um movimento de abertura e não de fechamento. Em seu trabalho isto se faz a partir da aproximação com outros campos, como a arte, a arqueologia e a arquitetura. Neste primeiro momento me interessa, particularmente, o conceito de linhas de que fala Ingold. Vive-se a vida através de linhas, ele nos diz. Para Ingold, são essas linhas as propulsoras de transformação na antropologia, uma vez que, encarando a vida enquanto um processo de abertura, o etnógrafo deve acompanhar os caminhos dessas linhas - rastrear os caminhos do rio - trazendo a antropologia de volta à vida.

O convite de Coccia para rastrear os caminhos da vida por meio da metamorfose é complementar à proposta de Ingold. Há um potencial vívido em Metamorfoses de pensar a vida através das linhas metamórficas, conjugado a uma observação atenta dos processos da vida a partir da germinação, o que nos incita a ver a antropologia através deste prisma, reafirmando a vivacidade dos processos metamórficos e nos conduzindo pelas linhas da vida desde o nascimento. A metamorfose não é transformação, avisa-nos Coccia. Não é nem conversão e nem revolução. Uma vida metamórfica não é nem sua forma anterior e nem sua forma seguinte.

Se é verdade que a metamorfose é uma passagem entre os mundos, e o ovo é a expressão da capacidade metamórfica e “a técnica - o casulo - é a forma que todo ser vivo mantém com ele mesmo e que o conduz a modificar radicalmente seu corpo e identidade” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.: 91) e é, por fim, através da técnica que construímos casulos e os casulos estão por toda parte, pois nos relacionamos com o mundo e conosco mesmos através deles, o potencial analítico do casulo está em sua natureza metamórfica. Desta forma, o casulo é a prova de que não vivemos da pureza mas da contaminação e da multiplicidade: “toda forma de vida é um casulo: a gestação contínua de uma metamorfose cujo resultado revela-se apenas no futuro” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:101). O casulo é a força da metamorfose, pois ele é uma síntese dos vários mundos presentes nas mudanças de formas: “o espaço não é mais o que contém a vida, mas a própria vida desdobra várias formas e vários mundos a partir de um só corpo que encarna em si uma cartografia diferida, diacrônica do cosmos” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:73).

Nos caminhos da metamorfose, Coccia nos revela o poder dos ciclos pela perspectiva da reencarnação e da nutrição. Pensando na alimentação, o autor nos diz que “a vida vai de corpo em corpo, de espécie em espécie, sem jamais estar plenamente satisfeita com a forma sob a qual ela se encontra” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:110). Estamos continuamente ocupando os corpos e as casas dos outros e o processo de alimentação é metamórfico e interespecífico por excelência, ainda mais se invertermos a perspectiva do ciclo alimentar: os seres humanos são também alimento dos outros seres. Assim, “toda morte é uma continuação da vida sob outros rostos” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:117). Há uma corrente que conecta todos nós, através da reencarnação planetária, que são os genes. A genética e a forma como operam os nossos genes são provas do caráter metamórfico da vida.

Não obstante, a metamorfose não se encontra só no interior dos seres: “o verdadeiro sujeito de toda metamorfose é o nosso planeta” ( Coccia 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:141). Deste modo, há uma vitalidade em Gaia. Todo ser vivo é a reencarnação da Terra. Por conseguinte, a vida conecta tudo e todos, percorrendo e transmutando tudo que é vivo. A metamorfose é uma necessidade. A Terra é um ser vivente e “a vida do planeta é uma metamorfose imensa e incessante” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:141). É por Gaia ser um corpus vivo que todos os seres estão não somente sujeitos à metamorfose, mas inter-relacionados. Somos todos planetários.

A partir deste entendimento, Coccia debruça-se sobre os espaços, começando por uma reflexão acerca da migração: somos planetários e, portanto, a migração é uma característica de todo ser vivente. Com isto, Coccia afirma que não precisamos ser nômades para estar em movimento, uma vez que a Terra está em constante animação. Pelo contrário, estamos condicionados a migrar por estarmos no mundo. Isto porque a migração, em Coccia, não aparece como um deslocamento pelo mundo, mas como um movimento contínuo e perpétuo, que diz respeito à própria vida. Criamos casas, nos distinguimos dos outros a partir de nossa habitação, contudo, é o planeta a nossa casa:

Todos os seres vivos fazem da sua relação com o espaço um meio de metamorfose de si próprio e do mundo que eles habitam. Instalar-se em um lugar significa transformá-lo: a casa é apenas a cicatriz de uma metamorfose do mundo que esquecemos ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:174).

Disso decorre que as cidades são espaços pulsantes de metamorfose. A intensidade da vida citadina é locomotiva para Gaia, reverberando seus sentidos metamórficos.

Em sua proposta de reflexão sobre as cidades, Coccia nos provoca a pensar também sobre os ecossistemas, a partir de uma quebra com a oposição que se faz entre natureza e cultura. Os espaços que conspiram a favor da metamorfose não podem (e não devem) se prender a referenciais analíticos humanos, pois eles são insistentemente desagregadores. Por isso, “o selvagem, o natural, existe apenas para a cidade e para o cidadão humano” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:180). Desta forma, o autor subverte a excepcionalidade humana, propondo uma ferramenta analítica de combate às divisões entre espécies em que Gaia aparece como um ser vivente e promotor da metamorfose, visto que estamos constantemente nos relacionando com ela. O ensaio de Coccia é um convite para ir além dos corpos, imaginando a metamorfose como uma linha - lembremos Ingold - da vida, da qual não podemos escapar e que em tudo está.

Vamos retomar Tim Ingold. Falei das linhas como uma forma de pensar transitividades possíveis entre metamorfose e antropologia. A noção de habitação também é rica para nos ajudar a aproximar a filosofia de Emanuele Coccia da teoria antropológica. Segundo nos diz Ingold, a habitação é uma forma de estabelecer caminhos pelo mundo. Para os antropólogos, especificamente, a habitação é uma ferramenta que nos possibilita superar a divisão entre natureza e cultura (assim como faz Coccia), por causa de sua capacidade de “reinserir o ser humano e o devir no interior da continuidade do mundo da vida” ( Ingold 2015INGOLD, Tim. 2015. “A antropologia ganha vida”. In: INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento, descrição. Petrópolis, RJ: Vozes.:26). Habitar significa, então, “iniciar um movimento ao longo de um caminho de vida” ( 2015INGOLD, Tim. 2015. “A antropologia ganha vida”. In: INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento, descrição. Petrópolis, RJ: Vozes.:38). Novamente somos levados a refletir sobre os caminhos da vida para antever possibilidades de reinserção dos processos vitais na antropologia, desta vez pela arquitetura. Neste sentido, a metamorfose também aparece enquanto uma ferramenta analítica propulsora de superação do abismo criado entre vida e antropologia. Uma vida metamórfica “é uma vida capaz de habitar e abrigar simultaneamente diversas formas e faz desse caráter anfíbio sua força” ( Coccia 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:63). Ademais, “nada do que habita em nós é novo. Tudo vem de outros corpos, de outros lugares, de outros tempos” ( Coccia 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:129). Assim como Ingold, Coccia se dirige à arquitetura para pensar a relação dos seres com o seu meio, afirmando que “a arquitetura não é apenas um assunto humano, não é apenas um fato cultural, nem sequer a relação entre uma espécie e o espaço, uma forma de vida e seu mundo. É o paradigma da relação interespecífica” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:188).

É também neste sentido que Coccia compreende que nenhuma associação é natural. Toda associação entre espécies é técnica e construída, assim como as cidades, ou seja, viver envolve negociar o espaço com outras espécies e eventualmente invadir espaços já ocupados. Isso quer dizer que todos os seres arquitetam os espaços para que neles possam viver. Até mesmo o ar é modificado pelos seres a partir de suas respirações. Somos artistas e arquitetos de nossos meios ambientes. Portanto, associar-se com outros seres vivos é um princípio vital.

Desde a arquitetura-habitação podemos criar linhas dialógicas entre arte, vida e antropologia. Das considerações de Coccia sobre as cidades e sobre a arquitetura, deriva uma discussão pontual acerca da arte, além da transversalidade da arte no livro. Seja nas ilustrações de Zerbini, seja na linguagem ensaística-poética de Coccia, seja no conteúdo do livro, somos constantemente levados a refletir sobre os processos artísticos. Há uma beleza nada desinteressada nas ilustrações inacabadas de Zerbini que são sobrepostas e aparecem no livro junto dos desenhos já acabados. Seus desenhos ganham contornos, formas, se metamorfoseiam através das páginas, nos convidando também a observar o movimento das imagens através dos processos de feitura. No entanto, a relação entre arte e vida em Metamorfoses não se resume a essa metanarrativa estabelecida entre o artista e o autor. Está presente no entendimento da própria vida, afinal de contas.

A história da Terra é uma história da arte, eterna experiência artística. Nesse contexto, cada espécie é simultaneamente o artista e o conservador de outras espécies. E, inversamente, cada espécie é simultaneamente uma obra de arte e uma performance de espécies, cuja evolução ela representa, mas também o objeto de uma exposição que tem como curadores as próprias espécies que a fizeram emergir ( Coccia 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:194).

Coccia nos conduz aos processos artísticos nos lembrando que eles são inerentes às formas de vida metamórficas. Superando conflitos epistemológicos concernentes ao conceito de arte, o autor reflete sobre a arte contemporânea para pensar a evolução. Isto quer dizer que a arte contemporânea é para a cultura o equivalente à evolução para os modos de vida. Assim, se “a arte é o espaço no qual uma sociedade consegue tornar visível o que ela não pode confessar, pensar ou imaginar” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:197), a vida é uma constante intervenção no meio.

Retomo Tim Ingold (2012INGOLD, Tim. 2012. “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes Antropológicos [on-line], v. 18, n. 37:25-44.). Parafraseando Paul Klee, Ingold nos diz que a arte não é a replicação de formas, ao invés disso, a arte age junto às forças vitais, que são elas mesmas propulsoras da forma. Neste sentido, Ingold pensa as formas como surgimentos da própria vida, a partir do momento em que a vida se apresenta como uma capacidade geradora que se dá em razão das relações. Ao distinguir as coisas dos objetos, Ingold propõe que pensemos em função das coisas, pois elas são antes acontecimentos que promovem entrelaçamentos. Se os objetos estão em função de um sujeito, as coisas estão em movimento, pois são vivas. A vida das coisas está, então, na descarga e no vazamento, pois elas transbordam. Quando Ingold pensa o artista em função das coisas, ele nos incita a ver o artista antes como itinerante, cujo trabalho está necessariamente atrelado à sua trajetória de vida.

Para Coccia, a natureza não é intocada como imaginamos: todos os seres estão continuamente criando habitações e mudando paisagens. A natureza é, sempre, uma metamorfose do presente e, “nesse exercício virtuoso da imaginação, as cidades, tanto estética quanto naturalmente, tornam-se prática de uma metamorfose coletiva das espécies” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:198). Habitamos espaços modificados e a metamorfose é a evidência de que a vida que habita em nós é também a vida que nos rodeia. A arte é resultante desta vida que nos rodeia; implicada radicalmente na metamorfose.

Ao sugerir a metamorfose enquanto um conceito para pensar a vida, Coccia está também criando meios de interagir com a vida ela mesma, em um esquema que desloca nossas perspectivas em direção a processos que, em uma cultura naturalista, estão desfocalizados. Por isso ele nos conta de seus sonhos de metamorfoses, de se refugiar em casulos, de atravessar as mudanças. Ele está consciente de que suas ideias são contagiosas: para Coccia, as ideias são “eus” itinerantes, assim, “o eu não é uma substância, não tem uma estrutura pessoal, é apenas uma musiquinha que nunca deixa de invadir as mentes, de colonizar os corpos, sem nunca ser definitivamente adotada por um corpo mais do que por outro” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:127). Além disso, “o intelecto não é uma coisa, é uma relação. Ele não existe em nosso corpo, mas na relação que nosso corpo estabelece com muitos outros corpos” ( 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.:190).

Deixar-se contaminar pelas ideias de Coccia é metamórfico.

Referências

  • CESARINO, Pedro. 2017. “Conflitos de pressupostos na Antropologia da Arte: relações entre pessoas, coisas e imagens”. Revista Brasileira de Ciência Sociais 32, n. 93.
  • COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses Rio de Janeiro: Dantes Editora. p. 226.
  • COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.
  • COCCIA, Emanuele. 2010. A vida sensível Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie .
  • DAS, Veena. 2020. Vida e Palavras A violência e sua descida ao ordinário São Paulo: Editora Unifesp.
  • FASSIN, Didier. 2018. Life: a critical user’s manual Cambridge: Polity Press.
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  • INGOLD, Tim. 2012. “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes Antropológicos [on-line], v. 18, n. 37:25-44.
  • KOHN, Eduardo. 2013. How Forests Think: Toward an Anthropology Beyond the Human Berkeley, Los Angeles: University of California Press.
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  • TSING, Anna. 2015. The Mushroom at the End of the World: On the possibility of life in capitalist ruins New Jersey: Princeton University Press.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Aceito
    30 Maio 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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