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Entre a distração e o esquecimento: a colonização da fronteira Brasil-Guiana segundo leituras históricas e míticas

Between Distraction and Forgetting: the colonization of the Brazil-Guyana fronteir in historical and mythical readings

Entre la distracción y el olvido: la colonización de la frontera Brasil-Guayana a partir de lecturas históricas y míticas

Resumo:

No livro Absent-minded Imperialism, o antropólogo Peter Rivière reconstitui o litígio do Pirara, que definiu a fronteira entre o Brasil e a Guiana Britânica de então. Em contraste com as percepções de colonizadores ingleses, manifestas nas fontes privilegiadas pelo autor, este artigo examina leituras dos povos Kapon e Pemon de aspectos da colonização da Guiana, os quais também se revelaram em episódios específicos do litígio. Essas leituras são inerentes a narrativas míticas de origem da religião Areruya - uma cristalização de antigos movimentos proféticos kapon e pemon. Muitos deles foram liderados por pajés, que conviveram periodicamente com missionários cristãos. Hoje, os adeptos da religião indígena negam que ela tenha influência missionária. Para refletir sobre essa percepção, considero tanto o que as próprias narrativas míticas relativas obliteram quanto o que elas preservam da história do contato dos profetas pioneiros com missionários. Por fim, sugiro que a versão mais claramente mitificada condiz melhor com o lugar na colonização no sistema conceitual de Areruya.

Palavras-chave:
Kapon e Pemon; Colonização da Guiana Britânica; Profetismos; Mito e História; Cristianismo na Amazônia

Abstract:

In Absent-minded Imperialism, the anthropologist Peter Rivière retraces the Pirara litigation that defined the border between Brazil and former British Guiana. In contrast to the English colonizers’ perceptions in the primary sources privileged by the author, this article examines Kapon and Pemon understandings of aspects of the colonization which also informed specific episodes in the litigation process. These Indigenous readings are inherent to mythic narratives about the origin of the Areruya religion, itself a crystallization of ancient Kapon and Pemon prophetic movements. Many of these were led by shamans who had intermittent contact with Christian missionaries. However, contemporary Areruya followers do not acknowledge missionary influence over their religion. My reflection on this perception takes into account that which related mythic narratives both preserve and discard from the history of contact between pioneering prophets and missionaries. Finally, I suggest that the more mythified narrative has greater consistency with Areruya’s current conceptual system and the place of colonization in it.

Keywords:
Kapon and Pemon; British Guiana’s colonization; Prophetic movements; Myth and History; Christianity in Amazonia

Resumen:

En el libro Absent-minded Imperialism, el antropólogo Peter Rivière, reconstituye el litigio de Pirara, que definió la frontera entre Brasil y la Guayana británica. En contraste con las percepciones de los colonos ingleses, identificadas en fuentes primarias privilegiadas por el autor, este artículo examina las lecturas de los pueblos Kapon y Pemon sobre aspectos de la colonización de Guyana, que también se revelaron en episodios específicos de la disputa. Estas lecturas son inherentes a las narrativas míticas de la religión Areruya -una cristalización de antiguos movimientos proféticos kapon y pemon. Muchos de ellos fueron dirigidos por chamanes, que convivieron periódicamente con misioneros cristianos. Hoy, los adeptos de la religión indígena niegan que esta tenga alguna influencia misionera. Para reflexionar sobre esta percepción, considero tanto lo que las relativas narrativas míticas suprimen, como lo que preservan de la historia del contacto entre los profetas pioneros y los misioneros. Finalmente, sugiero que la narrativa más mitificada tiene mayor coherencia con el sistema conceptual de Areruya y el lugar que reserva a la colonización.

Palabras clave:
Kapon y Pemon; Colonización de la Guayana británica; Profetismos; Mito e Historia; Cristianismo en la Amazonía

Introdução

Desde os primórdios da invasão europeia, a tríplice fronteira amazônica Brasil-Guiana-Venezuela tem atraído a cobiça de diferentes nações e fascinado colonizadores com perfis variados, seja pela vulnerabilidade geopolítica relativa ao afastamento das capitais das antigas três colônias e de outros centros de poder, seja pela abundância de minérios, por ser rica em biodiversidade, com numerosas espécies animais e vegetais endêmicas, ou pelas belas paisagens, constituídas de formações geológicas magistrais, como a do monte Roraima. Há bons relatos históricos sobre a região e seus habitantes indígenas, com destaque para as crônicas de viajantes relacionados ao império britânico, que se expandia no século dezenove.

Os povos indígenas em questão são os Kapon (Akawaio, Ingarikó e Patamona) e Pemon (Arekuna, Kamarakoto, Makuxi e Taurepan), falantes de línguas homônimas da família karib. Em narrativas míticas e ritos, eles registram elaborações de antepassados, intelectuais e práticas, sobre determinados processos coloniais na região. Neste artigo, faço uma leitura antropológica de tais compreensões indígenas, comparando-as com as de colonizadores.

Tenho como foco eventos reconstituídos pelo antropólogo Peter Rivière, no livro Absent-minded Imperialism: Britain and the Expansion of Empire in Nineteenth-century Brazil, de 1995. Eles são relativos ao litígio historicamente reconhecido como “Questão do Pirara”, que definiu a fronteira entre o Brasil e a Guiana Britânica de então. Os eventos tratados por Rivière, em conjunto, formam um modelo reduzido da história da colonização da Guiana Britânica, tal como narrada por outros pesquisadores e revelada por cronistas.1 1 Há também um artigo de Rivière (1998) que resume o argumento de Absent-minded Imperialism, porém, com foco na participação de Robert Schomburgk nos mesmos eventos examinados.

Embora eu privilegie o diálogo com este livro de Rivière, inspiro-me, menos explicitamente, em sua etnografia The Forgotten Frontier. Ranchers of Northern Brazil, de 1972, que já em seu título revela o esquecimento da região do monte Roraima no processo de colonização do Brasil. Esta foi também uma marca da presença inglesa na Guiana e determinou a natureza das elaborações dos Kapon e Pemon sobre sua relação com os colonizadores. Abordo, então, estudos de Rivière que, não obstante o valor historiográfico e a qualidade etnográfica, são desconhecidos até mesmo por etnólogos amazonistas e foram dignos de pouca atenção em coletâneas dedicadas à obra do antropólogo.2 2 Refiro-me às edições organizadas por Rival (1999) e Rival e Whitehead (2001).

Em Absent-minded Imperialism, o autor justifica ter privilegiado fontes inglesas, em função de elas serem mais abundantes que as brasileiras. Não pretendo, neste artigo, corrigir esse desequilíbrio, mencionando outras leituras dos mesmos eventos; por exemplo, a de Joaquim Nabuco (1903NABUCO, Joaquim. 1903. Fronteiras do Brazil e da Guyana Ingleza. O direito do Brazil. Primeira Memória apresentada em Roma a 27 de fevereiro de 1903. Paris: A. Lahure.), o encarregado pela defesa do direito brasileiro ao território disputado. Interessa-me resgatar os eventos sob a ótica dos ingleses. Em comparação com os brasileiros (ou os portugueses) e os demais colonizadores da região (espanhóis e holandeses), eles têm maior importância na história oral e na cosmologia dos Kapon e Pemon, habitantes da região fronteiriça entre Brasil e Guiana. Proponho evidenciar alguns dos princípios de colonos britânicos e contrastá-los com as formulações indígenas sobre o processo colonial.

Elas tratam da origem da religião Areruya - uma cristalização de movimentos proféticos que sublevaram os Kapon e Pemon, principalmente, durante o século dezenove. Muitos deles foram liderados por pajés que, a partir do convívio efêmero com missionários cristãos, passaram a anunciar o advento de um cataclismo, associado à promessa de salvação indígena no paraíso cristão e, em alguns casos, à conquista dos bens dos colonizadores. Atualmente, Areruya tem adeptos kapon e pemon na Guiana, na Venezuela e no Brasil. Os Ingarikó, cuja religiosidade foi tema de minha pesquisa de doutorado, praticam semanalmente suas cerimônias, constituídas por rezas, cantos e uma dança coletiva circular. Assim como outros Kapon e Pemon, eles negam que Areruya tenha influência missionária. Ao longo do artigo, discuto esta percepção dos Ingarikó, apontando seus fundamentos xamânicos e míticos, em contraste com as relações motivadoras dos profetismos precursores, que nos são reveladas por relatos de cronistas e pela própria reconstituição histórica de Rivière. Proponho que a memória coletiva dos praticantes de Areruya contemporâneos é coerente com o esforço dos antigos profetas, versados em técnicas xamânicas, em contatar espiritualmente o deus cristão sem a mediação missionária. Por outro lado, sugiro que a comparação entre mitos de origem da religião e destes com os eventos históricos relativos revela uma transformação diacrônica da compreensão dos Kapon e Pemon sobre sua relação com os colonizadores, inclusive, os missionários. Comecemos pela história dos ingleses tal como reconstituída por Rivière.

A Questão do Pirara: imperialismo distraído

No contexto das guerras subsequentes à Revolução Francesa, a Holanda cedeu à Inglaterra suas três colônias nos rios Essequibo, Demerara e Berbice - território que os ingleses ocuparam definitivamente a partir de 1803 e unificaram em 1831, quando passou a ser chamado Guiana Britânica.3 3 Em 1966, a colônia tornou-se independente do Reino Unido. A partir de 1970, passou a ser reconhecida como República Cooperativa da Guiana ou, popularmente, como Guiana. Recuperando uma expressão do historiador Ronald Hyam (1976) relativa ao desinteresse do público inglês pela expansão territorial de sua nação no século dezenove, Rivière (1995:177)RIVIÈRE, Peter. 1995. Absent-Minded Imperialism: Britain and the Expansion of Empire in Nineteenth-Century Brazil. London and New York: Tauris Academic Studies. considera que o episódio do Pirara revela o caráter “distraído” da própria política imperialista britânica.

Para o autor, os primeiros relatos de colonos ingleses na Guiana sugeriam o relativo desinteresse do governo britânico pelo interior da colônia e seus habitantes. Em contraste, os anglicanos iniciaram em 1829 um expressivo projeto de catequização das populações indígenas, com a criação da missão de Bartica Point, na confluência dos rios Essequibo e Mazaruni. Exemplar foi a obstinação do jovem catequista anglicano, Thomas Youd, para fundar outra missão entre os Makuxi habitantes do rio Pirara, região que o governo brasileiro reconhecia como parte de seu território, em consonância com o Tratado de Utretch de que Portugal fora signatário. A persistência de Youd desencadeou impasses diplomáticos entre ingleses e brasileiros acerca da definição da fronteira entre Brasil e Guiana. Como o missionário tinha o hábito de registrar seus feitos em um diário, além de manter uma dinâmica troca de cartas com outros anglicanos, Rivière, que teve acesso a essa documentação, pôde lhe dar o protagonismo que veremos a seguir.

Em 1833, Youd foi convocado pela Church Missionary Society para auxiliar o catequista John Armstrong na recém-fundada missão de Bartica Point. Pouco tempo depois da chegada do ajudante, Armstrong foi à Inglaterra tratar da saúde. Quando voltou, em 1835, Youd havia abandonado sua casa e transferido a missão para um local próximo, mais salubre, que ficou conhecido como Bartica Grove. No ano seguinte, Armstrong foi transferido da Guiana, deixando a nova missão sob a responsabilidade de Youd. O missionário aliciou seus primeiros catecúmenos, do povo kapon Akawaio, em uma de suas viagens às aldeias dos arredores para pregar aos adultos e escolarizar as crianças.

O Reverendo J.H. Bernau (1847:76-82, 99)BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw., substituto de Armstrong a partir de 1837, relata que Youd viu sua missão prosperar nos primeiros anos: todos observavam cotidianamente os serviços religiosos e se submetiam à educação escolar. As crianças estavam progredindo nos estudos e os adultos garantiam a provisão agrícola. Porém, em 1836, logo após a saída de Armstrong, a missão foi assolada por uma epidemia de sarampo que matou cerca de setenta pessoas. Quase todos os sobreviventes indígenas desertaram e alguns responsabilizaram o missionário pela tragédia. Assim, quando Bernau chegou a Bartica, encontrou Youd solitário, em uma missão completamente abandonada. Quase um ano depois, a primeira esposa de Youd também faleceria enferma, não se sabe de qual moléstia.

Antes de viajar à Inglaterra, em 1833, Armstrong havia feito uma expedição pela bacia do Rupununi e alcançou o rio Pirara, situado a meio caminho do rio Branco, território de domínio brasileiro, que havia sido efetivamente ocupado pelos portugueses em 1777, com a inauguração do Forte São Joaquim. No Pirara vivia uma populosa aldeia makuxi, cujos habitantes demonstraram interesse em receber uma missão anglicana. Entusiasmado com o projeto, Youd se tornaria seu principal porta-voz, também estimulado pelo prussiano Robert Schomburgk que, entre 1835 e 1836, esteve com aqueles Makuxi em sua primeira expedição científica pelo interior da Guiana Inglesa a serviço da Royal Geographical Society.

Com a chegada do missionário Bernau a Bartica, Youd pôde retomar suas expedições de catequização e, no primeiro semestre de 1838, viajou ao Pirara, onde os Makuxi já haviam sido instruídos a construir uma capela e uma casa para o missionário. Rivière procura ressaltar que, em nenhum momento, Youd obteve a permissão da Church Missionary Society para erguer uma missão no local. As correspondências da época revelam que o comitê da instituição em Georgetown autorizou a doação de verba para uma missão exploratória de Youd no interior, mas não para sua permanência. Mesmo depois de instalado no Pirara, Youd recebeu cartas de superiores da Society, que o aconselhavam a abandonar o local dadas as incertezas sobre seu pertencimento ao território britânico. Compartilhavam dessa preocupação autoridades como Sir Henry Light, o governador da Guiana, e o cônsul britânico em Belém, August Cowper. O livro de Rivière apresenta relatos de intelectuais e oficiais brasileiros com suposições sobre a atuação de Youd em prol dos interesses expansionistas da Inglaterra. Já o antropólogo procura revelar que o missionário agiu movido sobretudo pelo proselitismo, chegando a desobedecer superiores de sua ordem anglicana e a contrariar agentes do governo britânico.

A nova missão de Youd no Pirara conquistou uma adesão jamais vista em Bartica. Sua primeira missa foi assistida por um público de 400 ou 500 indígenas. Em diversos depoimentos, o missionário declarava haver um grande interesse makuxi pela instrução religiosa. Frequentemente, ele sustentava que sua presença na região era almejada sobretudo pelos habitantes indígenas, que receavam incursões escravagistas brasileiras e viam os ingleses como melhores aliados.

Embora Youd não estivesse seguro sobre a situação territorial do Pirara, acreditava que, mesmo que o rio integrasse o território brasileiro, as autoridades locais não se importariam com a presença de um missionário anglicano em local tão remoto. Ele não poderia estar mais enganado, conforme constatou em uma visita ao Forte São Joaquim, onde os militares brasileiros trouxeram o assunto à tona. Voltou preocupado dessa viagem e chegou a acertar com os Makuxi um novo lugar para a missão, caso fosse expulso. Entretanto, em agosto de 1838, uma incursão de militares brasileiros, que aprisionou quarenta indígenas nos arredores do Pirara com o pretexto de recrutá-los para a Marinha, foi decisiva para que Youd e Robert Schomburgk passassem a pleitear o domínio do governo colonial guianense sobre aquele território. Desde então, o argumento antiescravagista seria a tônica da contestação britânica.

A partir da abolição inglesa da escravatura na década de 1830, o governo da Guiana Britânica preocupou-se predominantemente com a demanda das oligarquias locais por mão de obra para as plantations da região costeira. De acordo com Rivière, este foi o contexto do relativo desinteresse britânico pela ocupação do interior da colônia. Os documentos reunidos pelo antropólogo sugerem que, com o passar do tempo, o acirramento das relações diplomáticas com o Brasil e o apoio do ilustre Schomburgk à causa do missionário influenciaram uma mudança de postura, sobretudo do governador Light. Ele também assumiria o discurso antiescravagista, defendendo a necessidade de a Inglaterra instaurar uma comissão de fronteiras capaz de definir, com precisão, os limites territoriais da Guiana Britânica e, assim, garantir a seus habitantes indígenas a condição de “sujeitos britânicos” a fim de protegê-los de abusos dos brasileiros (Rivière 1995:95).

Em 1839, um destacamento do Forte São Joaquim ocupou a aldeia do Pirara e exigiu a retirada imediata do anglicano, que decidiu fundar uma nova missão em um local próximo, chamado Urwa, do qual ele foi novamente expulso pelos brasileiros. Para evitar maiores problemas diplomáticos, a Church Missionary Society o instruiu a se instalar nas corredeiras de Waraputa, território seguramente britânico, para onde foi em maio de 1840. Ali seu trabalho prosperou rapidamente e, em menos de um ano, ele foi capaz de reunir quase cem indígenas, muitos deles egressos do Pirara. Enquanto isso, as negociações diplomáticas entre Inglaterra e Brasil prosseguiam e ficou decidido que os representantes de ambos os países deveriam deixar o Pirara até que seus respectivos estudos de demarcação fossem finalizados. Depois de uma série de mal-entendidos, associados à lentidão da correspondência entre representantes dos dois países, o governo colonial britânico decidiu enviar ao local uma tropa, que deveria ser acompanhada pelo missionário Youd, em quem os habitantes tinham maior confiança. O grupo alcançou a aldeia do Pirara em fevereiro de 1842, onde havia apenas quatro famílias makuxi e dois soldados brasileiros. A permanência de seis meses dos militares britânicos foi desastrosa: não havia provisão suficiente e o tédio era generalizado. Muitos se entregaram ao alcoolismo e criaram problemas às famílias indígenas. Contrariado, Youd resolveu seguir as recomendações da Church Missionary Society e voltar à Waraputa em junho, mas encontrou sua missão saqueada e quase abandonada.

A segunda esposa do missionário havia morrido em 1839, quando uma crise de febre atingiu toda a missão de Urwa. As condições em Waraputa não eram mais salubres e Youd, já com a saúde bastante comprometida, decidiu deixar a Guiana temporariamente enquanto a situação no Pirara não se resolvesse. Segundo o naturalista Richard Schomburgk (1922:100)SCHOMBURGK, Richard. 1922. Travels in British Guiana 1840-1844. Vol II (trans. W.E. Roth). Georgetown: Daily Chronicle., ele morreu em um navio a caminho da Inglaterra, entre julho e agosto de 1842.

Pouco tempo depois da morte de Youd, os militares britânicos se retiraram do Pirara, que permaneceu como zona neutra até 1904, data da decisão final de uma arbitragem negociada pelos reclamantes. O árbitro italiano estipulou que a fronteira entre o Brasil e a Guiana Britânica seria desenhada pelos rios Maú e Tacutu, de modo que o Pirara passaria a integrar o território britânico - decisão que os brasileiros julgaram mais favorável aos adversários. Os relatórios das comissões de fronteira dos dois países haviam sido concluídos na década de 1840. Para Rivière, o intervalo de quase meio século entre a conclusão desses estudos e a arbitragem final revela o quão pouco empenhados estiveram ambos os países durante todo o litígio. Mencionei previamente as prioridades do governo colonial britânico em meados do século dezenove. Já o governo da província do Grão-Pará, então administrador da bacia do rio Branco, ocupava-se naquela época de questões mais urgentes, como as revoltas da Cabanagem e a disputa com a França do atual território do Amapá. De qualquer maneira, vista desde a sede do Império brasileiro no Rio de Janeiro, a região do rio Branco era demasiado remota e de difícil acesso para que recebesse maiores investimentos.

Desde aquela época, Roraima era a “fronteira esquecida” que Rivière (1972RIVIÈRE, Peter. 1972. The Forgotten Frontier: Ranchers of North Brazil. New York: Holt, Rinehart and Winston., 2000RIVIÈRE, Peter. 2000. “Indians and Cowboys: Two Fields of Experience”. In: P. Dresch; W. James & D. Parkin (eds.), Anthropologists in a Wider World. Oxford: Berghahn. pp. 27-43. ) conheceria pessoalmente na década de 1960, quando conduziu uma etnografia entre uma comunidade pecuária local. Nesse contexto de esquecimento da região pelas autoridades brasileiras, não foi tão difícil para as tropas inglesas permanecerem e reivindicarem aquele território que os brasileiros percebiam como parte inequívoca de sua nação. Se os militares do Forte São Joaquim tivessem recebido maior apoio de sua corporação ou do governo do Pará, é provável que o destino geopolítico do Pirara fosse outro. Ao contrário do que supuseram os brasileiros, tanto os estudiosos do litígio quanto os oficiais diretamente envolvidos nele, os ingleses não planejaram estrategicamente a ocupação daquele rio mediante a instalação de Youd. Tampouco sua preocupação humanista com a integridade das populações indígenas da fronteira era necessariamente falsa.

Em suma, a reconstituição histórica de Rivière sugere que os ingleses não tinham um projeto preliminar de ocupação do Pirara e nem mesmo meditavam sobre as estratégias que os brasileiros lhes imputaram. Não fosse a obstinação de alguém como Youd, a Inglaterra talvez não tivesse, através da colonização da Guiana, acesso navegável ao rio Branco e à bacia do Amazonas.

Traços gerais da colonização da Guiana Britânica

A história da disputa pelo Pirara, contada no livro de Rivière, é como um modelo reduzido da história da colonização da Guiana Britânica, tal como reconstituída por outros pesquisadores e revelada por cronistas, ou seja, aspectos da política colonialista britânica, que Rivière identificou naquele litígio, manifestaram-se em outros episódios da Guiana do século dezenove, registrados em diferentes fontes primárias e secundárias. Por exemplo, o desinteresse inicial do governo colonial pela ocupação do interior e da correlata “indiferença” às populações indígenas, que em sua maioria viviam longe da costa (Whitehead 1990:165WHITEHEAD, Neil. 1990. “The Snake Warriors - Sons os the Tiger’s Teeth: a descriptive analysis os Carib warfare, ca. 1500-1820”. In: Haas, J. (org.), The Anthropology of War. Cambridge: Cambridge University Press.; também Menezes 1978MENEZES, Mary Noel. 1978. “Introduction”. In: W. Hillhouse, Indian Notices. Georgetown: National Commission for Research Materials on Guyana. pp. i-xii.). Essa indiferença associou-se à suspensão oficial da antiga política escravocrata dos holandeses, que doavam presentes aos aliados indígenas que lhes entregassem cativos. Vimos que, naquele momento, os ingleses iniciavam uma campanha para o fim da escravidão no mundo ocidental. Na Guiana, o rompimento com a prática holandesa visava pressionar lideranças indígenas para cessar incursões de captura de cativos. Todavia, sabemos através de Bernau (1847:74, 174-176)BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw. que, “em casos de emergência”, agentes governamentais ingleses presenteavam indígenas em troca de favores. E Robert Schomburgk (2006a:181-82)SCHOMBURGK, Robert. 2006a. The Guiana Travels of Robert Schomburgk 1835-1844. Vol I (ed. Peter Rivière). London: The Hakluyt Society. denunciou a exploração da força de trabalho de homens indígenas por civis que, através do pagamento com mercadorias e barris de rum, mantinham-nos em um sistema de endividamento.

Pouco comentados por antropólogos e historiadores foram os surtos epidêmicos que se alastravam à medida que a colonização avançava, impactando gravemente as populações indígenas do interior.4 4 Surtos epidêmicos foram registrados por Robert Schomburgk (1848:264), Bernau (1847:100-101, 110-113, 136-144, 207-213) e Brett (1868:145-146, 185-192, 197-199, 223-229). Entretanto, eles não escaparam a Rivière, que recuperou vários casos de epidemias nas primeiras missões anglicanas da colônia. O próprio Youd adoeceu diversas vezes, além de ter visto suas duas esposas morrerem enfermas.

Por fim, e em consonância com a narrativa de Rivière, os cronistas evidenciaram o protagonismo anglicano na relação colonialista com os povos indígenas da Guiana. Desde a instalação dos missionários Armstrong e Youd em Bartica, em 1829, outras missões anglicanas foram criadas no interior da colônia. Temos boas informações delas principalmente graças às crônicas dos Reverendos Bernau (1847BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw.) e Brett (1851BRETT, William H. 1851. Indian missions in Guiana. Londres: Bell & Daldy., 1868) BRETT, William H. 1868. The Indian Tribes of Guiana. Londres: Bell & Daldy . , eles próprios bastante dedicados à conversão indígena ao cristianismo. De tais relatos ressalta o grande interesse de povos indígenas pela catequese, inclusive daqueles que, como os Kapon e Pemon, habitavam locais remotos, que não sediaram missões antes do século vinte. Alguns eram frequentadores intermitentes das missões anglicanas mais próximas à costa da Guiana. Ao que parece, foram atraídos pelos métodos heterodoxos dos missionários: as catequeses itinerantes, a formação de catequistas indígenas para divulgar as mensagens cristãs em lugares onde os ingleses mal podiam chegar (Bernau 1847:155BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw.) e a distribuição de livretos com passagens bíblicas, traduzidas em diferentes línguas indígenas (Brett 1868:263-266BRETT, William H. 1868. The Indian Tribes of Guiana. Londres: Bell & Daldy . ).

Como observado pela antropóloga Audrey Butt Colson (1998:22-23)BUTT, Audrey. 1998. Fr. Cary-Elwes S. J. and the Alleluia Indians. Georgetown: University of Guyana., experiente estudiosa da religião Areruya, a plasticidade daqueles métodos, associada à considerável distância das missões (e à sua insalubridade, eu acrescentaria), parece ter contribuído para que os Kapon e Pemon tivessem um acesso sui generis ao conhecimento cristão durante o século dezenove. E provavelmente deu condições à emergência dos movimentos proféticos abaixo comentados.

Profetismos kapon e pemon

Portugal, Países Baixos e Espanha inauguraram a colonização da Guiana Ocidental. No século dezessete, os holandeses formaram três colônias nos rios Essequibo, Demerara e Berbice, que integram o território da atual República da Guiana. Desde então, eles investiram no escambo com populações indígenas do interior, às quais forneciam bens manufaturados em troca de escravos, cuja crescente captura decorreu da intensificação das guerras interétnicas. Já os espanhóis e os portugueses apostaram em políticas indigenistas “civilizatórias”, mediante o confinamento massivo de populações indígenas, que eram submetidas a rotinas de catequese e trabalho forçado. Em meados do século dezessete, os primeiros ocuparam as bacias do Orinoco e do Caroni com as chamadas “reduções”, cristãs e seculares, que sobreviveram tropegamente às epidemias e às incursões guerreiras do povo Karinya. Foi somente na metade do século seguinte que os capuchinhos se estabeleceram na região, inaugurando seu expressivo projeto missionário, muito embora tenham sido expulsos, em 1816, durante a guerra de independência da Venezuela. Já os portugueses se instalaram definitivamente na bacia do rio Branco em 1777, com a criação do Forte São Joaquim. No mesmo ano, eles consolidaram seis “aldeamentos” seculares para onde arregimentaram mais de mil indígenas, que eram vistos pelo governo colonial como possíveis aliados para a proteção territorial contra a cobiça dos vizinhos. Depois de duas décadas de revoltas, mortes e fugas, a política de aldeamentos foi abolida por Carta Régia e a colonização do rio Branco se viu fracassar (Dreyfus 1993DREYFUS, Simone. 1993. “Os empreendimentos coloniais e os espaços políticos indígenas no interior da Guiana ocidental (entre o Orenoco e o Corentino) de 1613 a 1796”. In: E.Viveiros de Castro & M. Carneiro da Cunha (eds.), Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: USP/Fapesp. pp. 19-42.; Farage 1991FARAGE, Nádia. 1991. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Anpocs.; Whitehead 1990WHITEHEAD, Neil. 1990. “The Snake Warriors - Sons os the Tiger’s Teeth: a descriptive analysis os Carib warfare, ca. 1500-1820”. In: Haas, J. (org.), The Anthropology of War. Cambridge: Cambridge University Press.).

Quando os ingleses chegaram à Guiana, na passagem para o século dezenove, as populações indígenas da colônia e regiões adjacentes viam-se dizimadas por guerras interétnicas (acirradas pela demanda escravocrata dos parceiros de troca holandeses) e por epidemias (agravadas pelos regimes de confinamento espanhol e português). Estavam também entretidas em relações de exploração, que descaracterizaram suas redes políticas tradicionais. Desse modo, as doenças e os abusos dos colonizadores ingleses só ampliaram a catástrofe que elas viviam desde o século anterior.

Tudo isso deve ter motivado os profetas kapon e pemon que passaram a anunciar uma futura reordenação cósmica, capaz de transformar a assimetria colonialista. Muitos deles diziam ter contatado o deus cristão ou prometiam aos seguidores a possibilidade de contatá-lo. Em alguns casos, as transformações necessárias sucederiam o advento de um cataclismo.

Divulgado pelo historiador James Rodway (1917:296-297)RODWAY, James. 1917. “Indians to be transformed to whites”. Timehri: The Journal of the Royal Agricultural and Commercial Society of British Guiana, IV:296-97., o primeiro profetismo de que se tem notícia teria ocorrido por volta de 1797, no início da ocupação britânica das três colônias holandesas. Uma notificação foi enviada ao Protetor de Indígenas da época: nas imediações do rio Essequibo, um homem akawaio convocava indígenas rumo a um local onde dois homens reuniam gente de diversas aldeias. Eles diziam que Deus estava escondido no mar e anunciavam a transformação do mundo. Os indígenas se transformariam em brancos, os quais tendo inversamente assumido a pele dos primeiros, seriam por eles governados e presenteados com artefatos, que já vinham sendo armazenados em uma casa construída para esse fim.5 5 O mais antigo dos profetismos kapon e pemon precedeu a chegada dos anglicanos à região e já abordava a existência do deus cristão. Convém então ressaltar que a catequização anglicana não foi a única influência cristã sobre tais movimentos. É possível que o profeta akawaio em questão tenha tido contato prévio com missionários morávios ou capuchinhos. De qualquer maneira, os profetismos kapon e pemon proliferaram a partir de meados do século dezenove, período da expansão anglicana na Guiana Britânica.

O acesso aos bens materiais dos brancos foi tematizado em outros movimentos proféticos, como o que foi relatado ao naturalista Carl Appun (1893:341-347)APPUN, Carl Ferdinand. 1893. “Roraima”. Timehri: The Journal of the Royal Agricultural and Commercial Society of British Guiana, VII:318-348. por seu intérprete taurepan, Wey-Torreh. Na década de 1840, o pajé Awacaipu atraiu para o vale do Kukenan uma multidão disposta a conquistar condições de “igualdade com o povo branco”. O fato de Awacaipu ter sido empregado por algum dos irmãos Schomburgk pode ter contribuído para suas elaborações proféticas, pois ele tomou como amuleto as folhas do jornal Times, que seu empregador usara para secar exemplares de espécies vegetais. Três pedaços desses papéis eram entregues a cada família que chegava ao local. Em troca, elas lhe davam facas, tesouras, miçangas, espelhos, munição etc. Awacaipu anunciava que “o grande espírito” não queria que seu povo trabalhasse para os brancos, que seriam superados quando suas armas de fogo, mulheres e peles claras fossem conquistadas por quem se entregasse a uma intensa atividade ritual marcada por cantos, dança e bebida fermentada em abundância. Aqueles que desejassem se transformar deveriam morrer em três dias, até que, na próxima noite de lua cheia, ressuscitariam claros como os brancos e partiriam do monte Roraima para governar quem desobedecesse às ordens. Disso teria resultado uma matança generalizada. Com o passar do tempo, a profecia não se confirmou, a comida se tornou escassa e o pai de Wey-Torreh deu um fim ao pajé.

A importância da atividade ritual nos profetismos kapon e pemon é também revelada por um episódio que ocorreu na região do alto Mazaruni, entre 1845 e 1846, e foi noticiado pelo Reverendo Brett (1868:180-192; 257-259BRETT, William H. 1868. The Indian Tribes of Guiana. Londres: Bell & Daldy . ; 1880:158BRETT, William H. 1880. Legends and myths of the aboriginal Indians of British Guiana. Londres: W.W. Gardner.). Centenas de indígenas, inclusive “todos” os Akawaio, deixaram suas aldeias exortados por um “impostor” para ver Deus. Ele professava a destruição da terra, exceto daquele local, nas imediações do rio Kako, para onde seus seguidores deveriam atrair mais gente. Dizia ainda que, ali, obteriam grande quantidade de mandioca a partir de uma única haste de maniva plantada. Aparentemente, tais transformações dependeriam de intensa prática ritual, pois um karinya aprendiz de Brett contou-lhe, contrariado, que as pessoas só faziam dançar e consumir bebida fermentada. Alguns akawaio disseram-lhe que, quando chegaram ao local, a constatação de que ali cresciam bananeiras que prescindiam de cultivo convenceu-os de estarem em uma terra abençoada pelo “Senhor” Makunaima, seu ancestral mitológico.6 6 Nos relatos de Appun e Brett, o herói mitológico Makunaima é considerado como propulsor dos movimentos proféticos. É possível que as testemunhas indígenas tenham dito que as lideranças proféticas contataram o deus cristão e que os próprios Appun e Brett o tenham confundido com o herói. Era comum os cronistas reconhecerem Makunaima e outros personagens mitológicos indígenas como Deus ou como o “grande espírito”. Este foi o caso de Hillhouse (citado por Alexander 1832:244) e Bernau (1847:49). Permaneceram meses até que se desiludiram com as profecias. No momento de sua partida, o profeta entregou-lhes um papel com hieróglifos, escritos pelo próprio Makunaima. Temerosos de que tudo aquilo poderia ser obra do Diabo, livraram-se rapidamente do documento.

Um aspecto desse episódio repercutiu em outros profetismos kapon e pemon: o uso ritual de papéis (associados à Bíblia) e de outros elementos litúrgicos cristãos, como a vestimenta eclesial e o próprio vocabulário dos missionários. Tomemos como exemplo as cerimônias da aldeia makuxi Konkarmo, testemunhadas, em 1884, pelos agentes coloniais E. Im Thurn (1885a:501IM THURN Everard. 1885a. “The Ascent of Mount Roraima”. Proceedings of the Royal Geographical Society, VII:497-521.; 1883:276-277IM THURN Everard. 1883. Among the Indians of Guiana. London: Kegan Paul/ Trench, & Co.) e H.I. Perkins (1885:526-527)PERKINS. Harry. 1885. “Notes on a Journey to Mount Roraima, British Guiana”. Proceedings of the Royal Geographical Society, VII:522-534.. Diante de um altar decorado com um recorte do Illustrated London News e o livro de um novelista britânico, os participantes pronunciavam sílabas em uma língua que, segundo os visitantes, parecia ser o inglês ensinado na catequese. Alguns dos anfitriões makuxi contaram a Im Thurn que regressavam de um local, a quatorze noites de distância, onde uma multidão indígena fora reunida por dois homens brancos. Estes ensinaram-lhes uma nova língua, deram-lhes roupas e afundaram-nos na água para que, dali em diante, eles se tornassem brancos. Os mesmos makuxi admitiram que sua pele ainda não havia sido transformada, pois isso levaria algum tempo. Entretanto, eles ponderavam que já se assemelhavam aos dois estrangeiros por terem aprendido sua fala. Na aldeia taurepan Teuonok, os agentes coloniais presenciaram a chegada de populações vizinhas para a celebração de uma festa natalina, que atravessou a madrugada com dança, bebida fermentada em abundância e gritos incessantes de “Hallelujah” (Im Thurn 1885b:266-267IM THURN Everard. 1885b. “Roraima”. Timehri: The Journal of the Royal Agricultural and Commercial Society of British Guiana, IV:256-267.). Butt Colson foi a primeira de muitos pesquisadores a especular se aquele seria um embrião do que viria a ser o culto Areruya, testemunhado pelo etnólogo alemão Koch-Grünberg (1981a:75, 120)KOCH-GRÜNBERG. Theodor. 1981a [1917]. Del Roraima al Orinoco. Tomo I. Caracas: Ernesto Armitano. , em 1911, entre os Taurepan, e pelo padre jesuíta Cary-Elwes, em 1917, entre os Akawaio, que já lhe atribuíam o estatuto de religião (Bridges 1985:101-107BRIDGES, John. 1985. Rupununi Mission: the Story of Curthbert Cary-Elwes among the Indians od Guiana. London: Jesuit Missions.; Butt 1960:67BUTT, Audrey. 1960. “The Birth of a Religion”. The Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 90(1):66-106.; Butt Colson 1998:79-81BUTT, Audrey. 1998. Fr. Cary-Elwes S. J. and the Alleluia Indians. Georgetown: University of Guyana.).

Poucos anos depois, em 1898, o zoólogo J.J. Quelch (1921:lxv-lxvi)QUELCH, John. 1921. “Itinerary”. In: The birds of Bristish Guyana. Vol II. London: Charles Chubb & Bernard Quaritch. pp. v-lxxviii., de passagem pela aldeia taurepan Kauariana, surpreendeu o líder local, Jeremiah, oficiando os serviços religiosos claramente inspirados nas cerimônias cristãs. Às suas rezas ele acrescentou a numeração de um a dez e o alfabeto, ambos em inglês - e a congregação repetia a original ladainha. O mais curioso era sua vestimenta feita de mosquiteiro, que improvisava a sobrepeliz dos missionários. Koch-Grünberg (1981a:67)KOCH-GRÜNBERG. Theodor. 1981a [1917]. Del Roraima al Orinoco. Tomo I. Caracas: Ernesto Armitano. dá notícias do serviço religioso do makuxi William, um rapaz da aldeia Koimelemong. Ele extraía suas orações de um livro didático de inglês, no qual se podia ler: “A vaca nos dá leite. Obrigado, boa vaca”.

Possivelmente, os dois homens brancos, aos quais os Makuxi de Konkarmo se referiram na conversa com Im Thurn, eram padres que batizaram uma multidão indígena em sua missão ou em alguma peregrinação catequética. Os indígenas diziam que o uso das roupas doadas por tais missionários os tornaria brancos, conferindo-lhes uma função eminentemente ritual, similar à da vestimenta eclesial que Jeremiah emulou com um mosquiteiro. Mas não apenas a elas: os papéis, os recortes de jornal e livros, inclusive os didáticos, a língua inglesa dos missionários e seus próprios métodos de alfabetização - tudo isso parece ter sido percebido pelos Kapon e Pemon, especialmente os profetas, como meios de acesso às divindades cristãs.7 7 Para leituras interessantes sobre a relevância dos papéis nos profetismos Kapon e Pemon, veja Abreu (2004:107); Butt Colson (1998:132-33); Copello Levy (2003); Déléage (2010).

Atenhamo-nos à expectativa profética de transformação à imagem dos brancos, manifesta em vários desses movimentos. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que, muitas vezes, os discursos proféticos foram hostis aos brancos e tematizavam a desvantagem indígena na relação colonialista, a ser superada mediante transformações radicais, geralmente, pela via ritual. Nos dois primeiros episódios narrados, o de 1797 e o de Awacaipu, essa superação consistiria em uma óbvia reversão: os brancos seriam subjugados pelos indígenas, que também tomariam posse de suas mercadorias. Todavia, percebe-se por meio do movimento de 1797 que, além da privação tecnológica, um aspecto a ser revertido era a direção da relação entre doador e receptor. Os brancos passariam a receber presentes de seus governantes indígenas, assim como estes recebiam dos holandeses, aos quais se viam subjugados.

Mas há exemplos de tensão mais explícita, como o de um profeta kapon que, em 1873, tentava persuadir seus seguidores a abandonar os missionários, cujos ensinamentos não os poupariam de doenças, tampouco da morte. Pelo contrário, estariam submetidos ao poder incontrolável de “maus espíritos”, que os pajés já não podiam combater (Dance 1881DANCE, Charles. 1881. Chapters from a guianese log-book. Georgetown. :293-294). Se aqui os brancos foram diretamente associados à morte, os Patamona da aldeia Waipa fizeram-no de modo ainda mais radical quando, em 1871, foram visitados pelo geólogo Barrington Brown (1876BROWN, Charles Barrington. 1876. Canoe and camp life in British Guiana. London: Eduard Stanford.:281-283) e disseram-lhe que sua chegada anunciava uma catástrofe.

Embora muitos dos profetismos kapon e pemon associassem a morte indígena e a correlata necessidade de reordenação cósmica ao fatídico encontro com os colonizadores, eram motivados por um aparente desejo de ser como eles e, mais do que isso, de ter sua pele branca. Como entender essa ambiguidade?

Atualmente, os líderes de Areruya dizem que sua religião poderia conduzir seus adeptos mais fervorosos a uma troca de pele: eles se transformariam à semelhança de seres divinos imortais, assumindo sua claridade que, diferente da brancura europeia, é brilhante. Todavia, creio que os profetas de outrora associavam a noção de imortalidade divina aos colonizadores de pele clara. E se os líderes religiosos de hoje já não o fazem, é porque a “troca de pele” é mais uma das diversas metáforas que sofreram transformações semânticas entre os profetismos passados e a religião contemporânea. De qualquer maneira, a associação entre os brancos e a imortalidade, embora recorrente no universo ameríndio, é pouco evidente. Ela aparece de forma indireta nas Mitológicas de Lévi-Strauss,8 8 Em História de Lince, Lévi-Strauss (1993) explorou um conjunto de mitos ameríndios que tematizam uma gravidez intempestiva, cujos protagonistas puderam eximir-se da mortalidade de seus pares superando sua degradação moral. Esses mitos se transformam em outros, que abarcam a existência dos brancos. e diretamente na mitologia de povos como os Barasana, que a conjugam também aos temas da superioridade tecnológica e da inferioridade moral dos brancos. Seu herói cultural, ~Waribi, foi rechaçado do grupo familiar e acabou privilegiando os brancos com a arma de fogo, a epítome de sua capacidade técnica. Porém, como eles não paravam de ameaçar os indígenas, afastou-os para longe da floresta, a leste. Certa feita, ~Waribi ofereceu cera de abelha ao ancestral indígena, que a recusou. Já aqueles que a aceitaram compartilham a capacidade de trocar de pele, ou seja, de rejuvenescer: as aranhas, as cobras, as mulheres (que menstruam), e os brancos (que trocam de roupa). Por isso, diz o mito, as mulheres vivem mais que os homens e os brancos são tão numerosos.

A narrativa barasana, registrada e brilhantemente analisada por Stephen Hugh-Jones (1988:142-144)HUGH-JONES, Stephen. 1988. “The gun and the bow: myths of the white man and Indians”. L’Homme, 106-107:138-155., relaciona, de modo bastante evidente, duas capacidades que muitos povos ameríndios atribuíram aos brancos: “engenho técnico e imortalidade relativa” (Viveiros de Castro 2000:52VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2000. “‘A história em outros termos’ e ‘Os termos da outra história’”. In: C. A. Ricardo (ed.), Povos Indígenas no Brasil (1996-2000). São Paulo: Instituto Socioambiental. pp. 49-54.). Ela sugere que, à maneira dos animais que trocam de pele e podem rejuvenescer, os brancos trocam de roupa e proliferam incessantemente. Como Viveiros de Castro (2000:52)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2000. “‘A história em outros termos’ e ‘Os termos da outra história’”. In: C. A. Ricardo (ed.), Povos Indígenas no Brasil (1996-2000). São Paulo: Instituto Socioambiental. pp. 49-54. observou, se a relação entre a troca de roupa (“uma pele cultural”) e a vida longa consiste em uma equivalência simbólica da capacidade de rejuvenescimento dos animais que trocam de pele, a incessante reprodução dos brancos não é nada simbólica: são “imortais, portanto, no sentido de que é inútil matá-los; sempre chegarão outros em seu lugar”. Vê-se, pois, que as cosmologias ameríndias concebem a imortalidade dos brancos em relação à mortalidade indígena em vários sentidos, que podem se confundir: a proliferação incessante; a capacidade tecnológica que, no extremo, é a capacidade predatória da arma de fogo; a troca da pele cultural, a roupa; a pele clara, que lembra a aparência de seres extraordinários;9 9 A pele clara é característica que diferentes cosmologias ameríndias atribuem a seres imortais dotados de capacidades extraordinárias, a exemplo dos maï araweté (Viveiros de Castro 1986:520) e dos xapiri yanomami que, aliás, são hiperclaros, brilhantes (Kopenawa & Albert 2015). a capacidade de cura, que é também a capacidade de escapar da morte. Parece-me que, nos profetismos de outrora, a noção de “virar branco” abrangia todos esses sentidos e, mais do que isso, tornou-se um equivalente da ideia de “troca de pele” enquanto metáfora da imortalidade.

Roy Wagner (2010:67, 71)WAGNER, Roy. 2010 [1975]. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac & Naify . definiu como “antropologia reversa” os cargo cults melanésios, nos quais os profetas indígenas prometiam acesso às mercadorias dos brancos. Mas ele observou que, à diferença do que o materialismo europeu nos permitiria supor, o que estava em jogo em tais cerimônias era dar sentido às relações humanas; e a mercadoria era uma das metáforas empregadas pelos indígenas para significar sua relação assimétrica com os brancos, de modo que acessá-la serviria principalmente à superação daquela assimetria. Tratava-se, porém, de “um gênero pragmático de antropologia”, no qual a compreensão da relação de alteridade se dá de “forma ativista”. Em consonância, percebo aqueles elementos rituais e conceituais, recorrentes nos profetismos kapon e pemon, como termos de uma antropologia reversa dos profetas, mediante os quais eles significaram sua relação assimétrica com os brancos: Deus, a troca de pele, o fim do mundo, as mercadorias, os papéis, as roupas, o aprendizado da língua estrangeira, o batismo e outros aspectos das liturgias cristãs10 10 Poderíamos pensá-los, alternativamente, como ‘atos tradutórios’ (Fausto e De Vienne 2014) ou como ‘traduções pelo corpo’ (Vilaça 2016). . Termos que lhes possibilitaram compreender (ativamente, aliás) a condição de dominação e, sobretudo, de morte revelada pelos “imortais” e mortíferos brancos. “Virar branco” era, nesse sentido, uma questão de reverter ou superar tal condição.11 11 Como Kelly (2005) observou sobre o conceito de “virar branco”, fundamental na antropologia reversa yanomami, cumpre não esquecermos que até mesmo “branco” é um conceito relacional, que diz respeito aos colonizadores e também aos indígenas, ou melhor, ao que os indígenas não são em relação aos colonizadores. No caso yanomami, “branco” é a posição de quem assume, sobretudo, as funções de inimigo e de provedor de objetos.

Hoje, muitos dos termos da antiga antropologia profética subsistem no sistema conceitual da religião Areruya e alguns com sentido consideravelmente transformado. São como vestígios das traduções de outrora. Uma ausência notável é a da expressão “virar branco” (e de suas variáveis: “ser como os brancos”; “ter a pele dos brancos” etc.). Ausência que, provavelmente, é relativa à negação dos Ingarikó e outros Kapon e Pemon de toda e qualquer influência não indígena sobre Areruya, cujas próprias condições de emergência foram, nesse sentido, obliteradas. Há, portanto, um importante lugar para o esquecimento dos brancos nas cosmologias kapon e pemon. Mas não de modo absoluto, conforme veremos nas narrativas orais sobre a origem da religião.

As origens de Areruya segundo os Kapon e Pemon

A seguir, resumirei quatro narrativas sobre a origem de Areruya. Duas são versões de uma mesma narrativa akawaio, que atribui a fundação da religião ao profeta makuxi Iisiwon. A primeira consiste em uma compilação de Butt Colson, a partir de depoimentos que ela recolheu entre os Akawaio do alto Mazaruni, na década de 1950. A segunda foi narrada por um líder religioso da aldeia akawaio Amokokupai. As outras duas têm como pioneiros profetas distintos: uma é contada pelos Makuxi da região da Raposa, a outra, pelos Ingarikó.12 12 Eu mesma registrei as três últimas, entre 2015 e 2017. Samuel Camilo Williams, professor ingarikó, me ajudou a traduzir a versão de Iisiwon contada por Pantaraite e três versões da narrativa de Pîraikoman.

Iisiwon, por Butt Colson

De acordo com Butt Colson (1960BUTT, Audrey. 1960. “The Birth of a Religion”. The Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 90(1):66-106.), é consenso entre os Akawaio que o profeta fundador de Areruya foi Iisiwon, um makuxi das montanhas Kanuku. Iisiwon foi trabalhar em uma missão próxima a Georgetown. O missionário, seu tutor, resolveu levá-lo para casa - na Inglaterra ou em algum lugar da costa guianense conhecido como England. Sentiu-se traído quando escutou o homem dizendo à sua família que não lhe mostraria Deus, tampouco lhe daria acesso à palavra divina. Certa vez, todos viajaram e deixaram a casa sob a responsabilidade de Iisiwon, que fora advertido a não sair. Sentindo-se muito sozinho e triste, tanto desejou que conseguiu encontrar o caminho que o conduziu ao paraíso. Deus lhe disse que os brancos o enganavam e lhe apresentou Areruya, sua verdadeira palavra. Deu-lhe também uma garrafa com um remédio branco, músicas e um pedaço de papel, a Bíblia indígena. Disse-lhe para trancar essas coisas em sua maleta e só retirá-las no retorno à sua terra natal. Iisiwon gostou do paraíso e queria ficar, mas, como ele ainda não havia morrido, Deus negou. Disse-lhe que ele deveria ensinar Areruya à sua família.

De volta à casa dos missionários, ele resolveu abandonar seus ensinamentos e também a Bíblia. Agora tinha Areruya. Chegando a Georgetown, viu que acumulara muitos bens e chamou seus parentes para carregá-los. Na cidade, eles venderam cestaria e papagaios domesticados, e puderem comprar mercadorias. Já em casa, Iisiwon abriu a maleta que recebera de Deus, onde estava o papel, que consistia na Bíblia indígena. Quando sua esposa ia para a roça, Iisiwon trancava a porta de casa, dormia e seu espírito subia ao encontro de Deus, no paraíso, onde ele visualizava Areruya. Em algumas dessas situações, a filha lhe fazia companhia e a mãe acusou-o de incesto. Iisiwon explicou-lhe que eles apenas dormiam para poder visitar o paraíso. Desde então, a mulher passou a rezar com o marido.

Alguns achavam-no mentiroso, mas outros o seguiram. Além do conhecimento religioso, Iisiwon tinha roças produtivas. Dotados de alimentos em abundância, ele e sua esposa passaram a promover festas generosas. Foi assim que despertou a inveja alheia. Depois de ter sido atacado três vezes por canaimé, não resistiu e morreu.13 13 Canaimé é a forma aportuguesada do termo kapon kanaimë que, segundo os Ingarikó, designa um matador capaz de se metamorfosear. O termo conota também o assassinato, que ocorre através de procedimentos rituais. Os Kapon e Pemon atribuem muitos de seus óbitos a tais ataques, cujos efeitos são tidos como irreversíveis. As acusações conformam-se a um sistema de hostilidade interétnica, que repercute antigos conflitos bélicos. Em todas elas, o assassino o cortava em pedaços, mas sua esposa conseguia juntá-los e recompor seu corpo com a ajuda do remédio divino. Iisiwon foi para o paraíso e seus ajudantes continuaram seu trabalho.

Iisiwon, por Pantaraite

A versão de Pantaraite, líder da igreja akawaio de Amokokupai, enriquece bastante a compilação de Butt Colson. Ela foi narrada ao público de uma assembleia ingarikó, em 2016. Vejamos apenas os acréscimos.

Iisiwon era empregado dos missionários. Quando eles resolveram partir para Georgetown, ele quis ir junto. No caminho, pararam para pernoitar. Iisiwon, fingindo que dormia, escutou a conversa dos missionários e entendeu que estava sendo enganado. Eles diziam que iriam buscar karapa para batizar os brancos, e pretendiam batizar os Kapon com água.14 14 Segundo os Ingarikó, karapa é uma substância cheirosa, armazenada em frascos de vidro, que confere capacidades extraordinárias a quem possuí-la, inclusive a de multiplicar os alimentos agrícolas. Estavam tramando para que os Kapon não envelhecessem e morressem ainda jovens. Iisiwon não gostou do que ouviu e resolveu partir com eles, atrás de Deus. Foram buscar karapa, “que poderia ter sido dos Kapon” - observou o narrador.

Depois de cruzar o mar, chegaram à Inglaterra. À diferença da versão anterior, Iisiwon resolveu sair de casa à procura de Deus. Quem lhe mostrou o caminho do paraíso foi um homem indígena que ele encontrou em frente a um tapiri. Em seguida, outro indígena indicou-lhe o destino final. Iisiwon chegou a Deus, contou-lhe que os brancos iriam batizar os Kapon com água e quis confirmar se ele mesmo os havia instruído assim. Deus negou, completando: “Eu lhes disse para falar aos Kapon sobre minha palavra. Minha boa palavra. A palavra do paraíso”. Deus abriu a porta do paraíso e deixou Iisiwon entrar. De lá mesmo, ele viu sua mulher, seus filhos e sua roça. Quis descer direto para sua casa, mas Deus negou: “Não. Você deve voltar por onde veio. Jesus, aquele que eu fiz descer por aqui mesmo, morreu. Mataram-no. Os brancos não são bons. São assassinos”. Disse ainda que ele só poderia ficar no paraíso depois que morresse. Deu-lhe três papéis escritos, que eram como bilhetes de meios de transporte, e uma maleta cheia de dinheiro. Iisiwon voltou depressa para a casa dos brancos, antes deles. Resolveu conferir a maleta e não pôde mais fechá-la, pois o dinheiro divino era abundante e não parava de se multiplicar.

Quando chegou a Georgetown, tudo se passou como na compilação de Butt Colson. Iisiwon chamou seus filhos, que levaram animais e artefatos para trocar na cidade. Porém, e à diferença da outra versão, eles encontraram seu pai transformado em homem branco. De volta para casa, ele ensinou Areruya à filha, à mulher e aos demais parentes. A narrativa de Pantaraite prossegue com informações adicionais que, embora interessantes, não cabem neste artigo. Passo, então, a uma seleção de trechos da narrativa da região da Raposa, divulgada por Celino Raposo, professor makuxi da Universidade Federal de Roraima, em 2015.15 15 No seminário “Povos Indígenas: transformações no mundo e na antropologia”, promovido pela UFRR.

Sîroren

Segundo os Makuxi da Raposa, a religião Areruya foi fundada por Sîroren, daquela mesma região. Quando criança, ele perdeu o pai, e já adulto, a mãe. Muito triste, viu-a brilhante em um sonho glorioso. Decidiu reencontrá-la. Saiu à sua procura na direção leste. Depois de dias sem comer e beber, estava bastante fraco. Alguém o encontrou e lhe ofereceu ajuda.

Chegaram em Aakan, cujo nome significa “lugar eternamente iluminado”. Um paraíso sem sol, sem estrela, mas iluminado por si próprio. Em um primeiro momento, ele foi conduzido para um lugar de sofrimento. De acordo com seu guia, todos aqueles que praticassem o mal deveriam dirigir-se diretamente para lá. Em seguida, Sîroren encontrou a mãe, com quem conversou bastante. Estudou com os espíritos divinos, aprendeu orações, participou de ritos e, depois de um tempo, foi dispensado. Ele deveria voltar para casa e transmitir o que aprendera. A princípio, ele se recusou, pois não queria deixar aquele lugar bom. Explicaram-lhe que ele ainda estava vivo e que precisaria morrer para permanecer no céu.

Sîroren voltou para casa e falou aos parentes sobre Deus e os pecados. Atraiu muita gente interessada em seu conhecimento, mas também ganhou opositores, que o achavam mentiroso. Foi assim que ele iniciou os ritos de Areruya. Os Makuxi dizem “Areruia”, já os missionários falam em “Aleluia” - palavras que Celino entende terem o mesmo significado, conforme pôde constatar em uma pesquisa sobre o termo em português. Parece-lhe, então, que um termo “coincidiu” com o outro ou que, talvez, “Aleluia” e “Areruia” sejam um mesmo termo. Sîroren morreu, mas deixou muitos seguidores e a religião se expandiu.

Pîraikoman

A narrativa subsequente sintetiza seis versões, bastante similares, que ouvi entre os Ingarikó. Contam eles que a religião Areruya surgiu com Pîraikoman, no tempo de Noé, o criador da Bíblia. Pîraikoman era indígena, não se sabe de qual povo. Vivia dançando e cantando, mas era acompanhado apenas pela sogra e a irmã mais nova de sua esposa. Já Noé, que era branco, tinha dinheiro e muitos seguidores.

Como Pîraikoman era feio, com a pele cheia de feridas, sua mulher não lhe dava atenção e namorava Noé. O marido não se importava, só queria praticar Areruya e ir para a roça. Lá ele trocava de pele. Tirava a que tinha e transformava-se em um homem bonito, sem que ninguém o percebesse. Antes de voltar para casa, colocava novamente a pele com feridas. Um dia, a mulher foi embora com Noé. Eles não tinham roça e roubavam a de Pîraikoman, que deu origem a muitos alimentos que os Kapon conhecem hoje: mandioca, batata-doce, abóbora etc. Ele não se incomodava. Sabia que um dia subiria ao paraíso. E foi assim: um dia ele subiu, levando consigo a sogra e a cunhada. Os seguidores de Noé correram para arrancar todos os alimentos de Pîraikoman, mas, quando chegaram à sua roça, só encontraram a pele feia que ficara para trás. As feridas eram seus antigos pecados. Ele havia trocado de pele e subiu sem morrer, tornou-se imortal. O lugar havia virado floresta e todas as suas plantas subiram com ele.

Pîraikoman encontrou Deus e, lá de cima, fez chover muito, provocando o dilúvio. Deus orientou Noé a construir um barco onde ele colocaria todos os animais. E assim ele fez. Noé, a ex-mulher de Pîraikoman e os animais ficaram dias trancados no barco, esperando a água baixar lentamente. Em uma versão, os animais ficaram com fome e resolveram sair atrás de comida. Foi assim que eles se espalharam. Depois que a água baixou, os tripulantes encalharam. Não morreram. Mas também não subiram, à maneira de Pîraikoman. Seu barco está por aí, encalhado.

Dizem que Pîraikoman sentia a palavra de Deus dentro de si. Não era necessário que Deus lhe dissesse o que fazer. Ele apenas agia e Deus o aprovava. Já Noé precisava da orientação divina. Tinha medo de errar, medo de tudo, então ouvia Deus antes de agir. Em contraste com Pîraikoman, ele não tinha expressão própria. Então fez riscos dizendo que aquelas eram palavras divinas. Foi assim que surgiu a escrita. E também a diferença entre as religiões: as bíblicas e Areruya.

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Notemos que a maioria dessas narrativas encerra a mesma tensão colonialista manifesta nos profetismos kapon e pemon. Os bens conquistados pelos pioneiros míticos consistem exatamente nos termos da antropologia reversa dos movimentos de outrora: as palavras divinas, os papéis, a garrafa com remédio (ou o frasco de vidro com karapa), as mercadorias (ou o dinheiro para obtê-las) e a “troca de pele” (na versão de Pantaraite, Iisiwon torna-se branco, e Pîraikoman torna-se imortal - o que dá no mesmo). Termos que os profetas articularam para compreender sua relação assimétrica com os brancos e, ao mesmo tempo, transformá-la. Ocorre que as narrativas orais, embora não neguem que essa relação tenha determinado o surgimento da religião indígena, recusam ou apagam totalmente a influência missionária sobre ela. Seja por Areruya consistir no que Iisiwon descobriu apesar dos brancos, seja por consistir no que Sîroren descobriu sozinho e, no entanto, “coincidir”, em alguma medida, com a religiosidade dos brancos, seja, ainda, porque na narrativa de Pîraikoman o contraste entre as religiões indígena e bíblicas está dado desde um passado remoto mítico. Considerando que muitos dos antigos profetas de Areruya eram pajés, Audrey Butt (1960:74)BUTT, Audrey. 1960. “The Birth of a Religion”. The Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 90(1):66-106. observou que a hostilidade de Iisiwon e outros pioneiros aos missionários devia-se também à frustração de sua expectativa xamânica de contatar Deus diretamente. Diante da ineficácia da mediação missionária, os profetas resolveram acessá-lo por si próprios, através de seus antigos métodos: as viagens espirituais, sobretudo, as oníricas. Parece-me que isto diz muito do processo de obliteração da influência missionária, intrínseco à narrativa de Sîroren, que levou os Kapon e Pemon a afirmar a origem exclusivamente indígena de sua religião.

Mais do que as outras, a narrativa de Pîraikoman marca o antagonismo entre indígenas e colonizadores. É possível dizer, inclusive, que o ancestral indígena, inventor de Areruya, e o branco, inventor das religiões bíblicas, foram transformados em típicos gêmeos da mitologia ameríndia: os quais não são exatamente gêmeos, posto que suas “respectivas origens e naturezas diversas afastam progressivamente um do outro” (Lévi-Strauss 1993:202LÉVI-STRAUSS, Claude. 1993 [1991]. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras . ). Esse antagonismo é acompanhado de uma subversão da assimetria colonial em todos os seus aspectos. Para além da imortalidade relativa de Noé, Pîraikoman conquista a imortalidade absoluta. Ainda que seus descendentes permaneçam mortais, herdaram uma religião que lhes possibilita trilhar o mesmo caminho.

No que diz respeito à superioridade tecnológica, de que adianta construir um barco para ficar eternamente encalhado em algum lugar da terra? Notemos, aliás, que a narrativa ingarikó deixa de atribuir ao ancestral indígena competência técnica (posse de mercadorias ou dinheiro) para valorizar, justamente, aquilo que os brancos não têm: roça. Essa valorização do que é propriamente indígena revela-se também na superioridade conferida às visões xamânicas em detrimento da escrita bíblica, definida com desdém e certa incredulidade: uns rabiscos que os brancos “dizem” tratar-se das palavras de Deus. Ainda hoje, as lideranças de Areruya tendem a conceber seu conhecimento religioso como mais verdadeiro que o bíblico. Explicam-no em função de guardarem as palavras de Deus em seu corpo. Noé, pelo contrário, incapaz de internalizar a palavra divina, precisou exteriorizá-la em um papel para que ela fosse guardada. Assim, condenou os brancos, seus descendentes, a acessá-la apenas por mediação da leitura, um modo enfraquecido de conhecer o mundo.16 16 Interpretações semelhantes sobre a escrita são compartilhadas pelos Ye’kwana (Gongora 2017:430-39) e o Yanomami Davi Kopenawa (Kopenawa & Albert 2015:76-77). Compreendemos, então, por que Iisiwon, logo que contatou Deus e internalizou suas palavras, pôde dispensar a Bíblia e os próprios missionários.

Em suma, a narrativa de Pîraikoman e a religião Areruya contemporânea potencializam a crítica à colonização, presente nos antigos profetismos kapon e pemon e na narrativa de Iisiwon. Talvez os Ingarikó e os demais Kapon e Pemon tenham passado a compreender que nada dos brancos poderia compensar sua degradação moral e redimi-los de sua inferioridade humana. Nem mesmo a tecnologia.17 17 Há narrativas míticas kapon e pemon que dizem que o herói cultural Makunaima - ou seu irmão Siikë - inventou artefatos que, posteriormente, foram apropriados pelos brancos: sapato, carro, helicóptero, avião etc. Talvez elas datem de um momento em que a desilusão dos Kapon e Pemon relativa à imoralidade dos brancos ainda não havia se sobreposto à admiração por sua habilidade tecnológica.

Da história ao mito


Mapa com distribuição aproximada dos Kapon e Pemon e regiões de narrativas sobre a origem de Areruya

A narrativa de Iisiwon, contada pelos Akawaio do alto Mazaruni, tem um lastro histórico que não se vê nas outras duas sobre a origem de Areruya: as de Sîroren e Pîraikoman. Das três, é a única que nos permite adivinhar o contato do profeta pioneiro com missionários anglicanos, explicando a correlata presença de conceitos de origem inglesa no vocabulário religioso contemporâneo. A estrutura da narrativa de Sîroren não difere tanto da de Iisiwon. Basicamente, ambas dizem que, através de uma viagem espiritual ao paraíso divino, um profeta pioneiro trouxe Areruya à humanidade. Mas, como vimos, a primeira oblitera totalmente a influência missionária. Suspeito que essa diferença seja relativa às distintas compreensões históricas de seus respectivos narradores, os Akawaio, do alto Mazaruni, e os Makuxi, da região da Raposa.18 18 Em expedições pela Guiana ocidental, Robert Schomburgk teve como intérprete Sororeng, um indígena de etnia desconhecida, que ele levou posteriormente a Londres para ser exibido em uma exposição com curiosidades da floresta amazônica (Rodway 1889:10; Schomburgk 2006a:287; 2006b:45). É possível que Sororeng seja o Sîroren dos Makuxi da Raposa ou mesmo o Iisiwon da narrativa akawaio: um homem indígena que, levado à Inglaterra por homens brancos religiosos (padres ou um leigo como Schomburgk), sentiu-se sozinho e resolveu encontrar Deus.

Entre os Kapon e Pemon, os Akawaio foram os primeiros a estabelecer um contato regular, ainda que intermitente, com os anglicanos (e até mesmo com os holandeses, já no século 17). Quanto aos Makuxi da região da Raposa, não sabemos se eles chegaram a frequentar alguma das missões anglicanas na Guiana antes da passagem do século 19 ao 20 - momento de provável consolidação de Areruya, conforme revelam os cultos, de inspiração litúrgica cristã, testemunhados por Im Thurn (1885b:266-267)IM THURN Everard. 1885b. “Roraima”. Timehri: The Journal of the Royal Agricultural and Commercial Society of British Guiana, IV:256-267. e Perkins (1885:526-567)PERKINS. Harry. 1885. “Notes on a Journey to Mount Roraima, British Guiana”. Proceedings of the Royal Geographical Society, VII:522-534.. É possível que sim. Eles podem ter frequentado a missão de Youd, entre 1838 e 1839, no rio Pirara, da qual não estavam tão distantes; ou ter se deslocado para os rios Potaro e Rupununi, onde os anglicanos realizavam trabalhos de catequese itinerante em aldeias patamona e makuxi, nas décadas de 1880 e 1890. Em todo caso, mesmo que os Makuxi da Raposa tenham acessado a catequese anglicana, as crônicas dos missionários nos permitem afirmar que ela não os impactou com a mesma intensidade com que impactou os Akawaio, inclusive, os do alto Mazaruni (Bernau 1847:155BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw.; Brett 1868:256-269BRETT, William H. 1868. The Indian Tribes of Guiana. Londres: Bell & Daldy . ; Butt Colson 1998:11-14, 22BUTT, Audrey. 1998. Fr. Cary-Elwes S. J. and the Alleluia Indians. Georgetown: University of Guyana.). E isso teria repercutido na memória de cada povo.19 19 Objetar-se-ia que a narrativa de Iisiwon, reconhecido como um Makuxi que vivia nas imediações das montanhas Kanuku, pode ter sido difundida pelos Makuxi daquela região, antes de chegar aos Akawaio. Mas isso não contraria minha hipótese de que as histórias orais dos Kapon e Pemon que se relacionaram mais intensamente com os anglicanos registram esse contato com nitidez - à diferença das outras histórias orais, nas quais ele é obliterado ou ignorado. As montanhas Kanuku estão próximas do rio Pirara, onde o anglicano Youd ergueu sua missão que, apesar de breve, atraiu uma multidão indígena, sobretudo, makuxi. Além disso, a região das montanhas Kanuku integrava a rota de viajantes europeus, inclusive dos anglicanos, durante o século dezenove. Se a catequese anglicana teve alcance entre os Makuxi da Raposa, não há dúvida de que foi menos intensa entre os Makuxi da região das montanhas Kanuku.

No artigo “Como Morrem os Mitos”, Lévi-Strauss (1976)LÉVI-STRAUSS, Claude. 1976 [1973]. “Como Morrem os Mitos”. In: LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. pp. 261-274. demonstrou como um mito indígena da região da Columbia Britânica, compartilhado por povos vizinhos, foi diferentemente transformado por cada um deles. A narrativa, ricamente contada por um povo do interior, aparecia empobrecida nos vizinhos falantes de uma língua da mesma família. Ao cruzar uma fronteira (linguística e territorial), a narrativa recuperava sua riqueza, embora sofresse uma inversão estrutural. Na transposição de outra fronteira, passava a assumir um caráter romanesco, testemunhando o contato de seus narradores com a tradição oral europeia. Por fim, ela aparecia historicizada entre os Cree. Tratava-se de um povo da família linguística Algokin, cujo vasto território se estendia até a costa do Atlântico e que, em comparação com os vizinhos, mantinha relações mais antigas e cooperativas com os colonizadores. De acordo com Lévi-Strauss (1976:274)LÉVI-STRAUSS, Claude. 1976 [1973]. “Como Morrem os Mitos”. In: LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. pp. 261-274., os Cree adaptaram o mito à sua experiência histórica com a intenção de “justificar” a opção pela colaboração com os brancos.

Embora não possamos ter certeza, é possível que a narrativa de Iisiwon, tal como contada pelos Akawaio, consista na adaptação de um mito à história do contato dos Kapon e Pemon com a religião dos ingleses.20 20 Através da etnografia de Costa (2017:93-94) entre os Kanamari, sabemos que povos do oeste e o sudoeste da Amazônia cultivam uma narrativa similar à de Iisiwon, na qual uma ou duas crianças indígenas são sequestradas por um estrangeiro, eventualmente não humano, com quem aprendem um ofício ritual que transmitirão a seus parentes. Os Kanamari teriam adaptado essa narrativa a seu convívio com seringueiros, que os ensinaram a extrair borracha e os envolveram em redes de acesso a mercadorias. Na região circum-Roraima, os Pemon contam que os primeiros pajés humanos eram crianças, que foram sequestradas por um ogro que lhes ensinou as técnicas xamânicas. Já adultas, elas regressam ao lar e colocam em prática seu conhecimento (Armellada 2003:303-05; Koch-Grünberg 1981b:63-66). De qualquer maneira, ela registra esse evento mais claramente que as outras. Se fizermos o exercício de Lévi-Strauss no caminho inverso, poderemos imaginar que essa narrativa foi sendo mitificada ao cruzar fronteiras e ser contada por grupos Kapon e Pemon com pouca ou nenhuma experiência de colonização britânica. Através da narrativa de Iisiwon, os Akawaio ou os Makuxi das montanhas Kanuku teriam procurado “justificar” um novo rito, cuja criação estava intrinsecamente relacionada à natureza ambígua de sua relação com os brancos. A narrativa justificaria, enfim, por que calhou aos indígenas engajarem-se em relações espirituais que lhes foram mal apresentadas pelos brancos e, ao mesmo tempo, manterem-se afastados deles. E é exatamente esse dado histórico, o da relação conflituosa ou ambígua dos profetas de outrora com os brancos, que desaparece na estória de Sîroren, contada pelos Makuxi da Raposa.

Em comparação com os demais, os Ingarikó permaneceram relativamente isolados da colonização por mais tempo (possivelmente, até a segunda metade do século vinte). Eles são, justamente, os donos da narrativa de origem de Areruya que, entre todas acima reproduzidas, é a mais mitificada. Assim como é possível especular sobre a narrativa de Iisiwon, a de Pîraikoman coloca a ocorrência histórica do encontro colonial a serviço de esquemas míticos arcaicos. Trata-se, aliás, de esquemas difundidos em todo o continente americano, como Lévi-Strauss demonstra nas Mitológicas.21 21 O mito de Pîraikoman relaciona diretamente dois grandes conjuntos temáticos: um articula o tema da vida breve (indígena) ao da origem dos brancos (e sua engenhosidade técnica); o outro associa o tema da vida breve ao da origem das plantas cultivadas. Eles foram separadamente analisados por Lévi-Strauss em História de Lince e em O Cru e o Cozido. Mas não apenas: embora o mito ingarikó não eclipse completamente a correlação entre a religião e o contato com os brancos (e com sua mitologia bíblica), situa-a nos primórdios, no tempo da origem das plantas cultivadas e, conforme uma das seis versões, no tempo em que os animais se espalharam pelo mundo.

Terence Turner (1988TURNER, Terence. 1988. “History, Myth and Social Consciousness among the Kayapó of Central Brazil”. In: J. Hill (org.), Rethinking History and Myth: Indigenous South American Perspectives on the Past. Urbana and Chicago: University of Illinois Press. pp. 195-213.) havia identificado uma situação similar entre diferentes grupos kayapó, que cultivavam duas narrativas sobre a origem do grupo Gorotire. Uma delas, com estrutura histórica, era contada pelos próprios Gorotire e outros subgrupos descendentes. A outra, com evidente estrutura mítica, era contada pelos Tchikrin (Xikrin), inimigos tradicionais dos Gorotire, que viviam mais afastados deles e, portanto, dos episódios que determinaram seu surgimento enquanto grupo. Na visão do autor, a primeira, divulgada por aqueles que participaram ou estiveram mais próximos dos eventos registrados, manifestaria maior “consciência” social que a segunda.

No que diz respeito às versões sobre a origem de Areruya, eu não diria que aquelas mais históricas, no conteúdo e na forma, têm narradores mais conscientes dos efeitos sociais da colonização. Até porque se concordássemos com Turner (1988:212)TURNER, Terence. 1988. “History, Myth and Social Consciousness among the Kayapó of Central Brazil”. In: J. Hill (org.), Rethinking History and Myth: Indigenous South American Perspectives on the Past. Urbana and Chicago: University of Illinois Press. pp. 195-213. que uma consciência social mais aguçada supõe “a compreensão de que certos eventos e condições tiveram consequências irreversíveis para a ordem sociocultural”, deveríamos indagar se este não é o caso do mito de Pîraikoman, que dissipa toda a ambiguidade presente na narrativa de Iisiwon para definir um antagonismo absoluto entre indígenas e brancos. O que dizer, contudo, do esquecimento constitutivo dessas narrativas, sobretudo as de Sîroren e Pîraikoman? Não seria ele um claro sintoma de alienação ou, nos termos daquele antropólogo, de uma incapacidade “de formular possibilidades e riscos da ação presente em termos de um entendimento das condições e dos efeitos das ações e eventos do passado” (1988:212TURNER, Terence. 1988. “History, Myth and Social Consciousness among the Kayapó of Central Brazil”. In: J. Hill (org.), Rethinking History and Myth: Indigenous South American Perspectives on the Past. Urbana and Chicago: University of Illinois Press. pp. 195-213.)?

Outros autores se depararam com problemas etnográficos semelhantes entre povos indígenas da Amazônia peruana. Fernando Santos-Granero (2007)SANTOS-GRANERO, Fernando. 2007. “Time is Disease, Suffering and Oblivion. Yanesha Historicity and the Struggle against Temporality”. In: C. Fausto & M. Heckenberger (orgs.), Time and Memory in Indigenous Amazonia: Anthropological Perspectives. Gainesville, FL: University Press of Florida. pp. 47-73. conta que, em um passado possivelmente pré-colombiano, os Yanesha incorporaram elementos litúrgicos dos Incas e, a partir da colonização, de padres católicos. Embora mantenham ambas as tradições rituais no presente, eles obliteraram suas origens e o próprio fato de que elas consistiram em apropriações. Considerando que, em ambos os casos, as apropriações supunham relações de dominação desvantajosas para os Yanesha, o autor sugeriu encararmos tais processos de esquecimento como estratégias políticas: “Com o esquecimento, os Yanesha desempoderam os outros para que eles mesmos se empoderem” (Santos-Granero 2007:62, tradução minhaSANTOS-GRANERO, Fernando. 2007. “Time is Disease, Suffering and Oblivion. Yanesha Historicity and the Struggle against Temporality”. In: C. Fausto & M. Heckenberger (orgs.), Time and Memory in Indigenous Amazonia: Anthropological Perspectives. Gainesville, FL: University Press of Florida. pp. 47-73.).

No livro An Amazonian Myth and its History, o antropólogo Peter Gow (2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford: Oxford University Press.) discute os mecanismos da construção da memória coletiva dos Piro. Em consonância com suas reflexões, poderíamos imaginar que o “empoderamento”, sugerido por Santos-Granero, é a maneira de um povo dar sentido aos eventos vividos conforme seus interesses presentes que, mais do que uma manipulação consciente de episódios históricos, consiste em um rearranjo mítico, ritual e sociocosmológico, em coerência com determinadas transformações históricas. Inspirado em Lévi-Strauss (2004:35)LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1964]. O Cru e o Cozido. São Paulo: Cosac & Naify., que definiu os mitos como “máquinas de suprimir o tempo”, Gow revela que, frequentemente, a harmonia desse rearranjo sistêmico depende da obliteração mítica de determinados eventos e preocupações intelectuais obsoletas. Seu livro é, desse modo, dedicado à demonstração de que os Piro contam mitos, que transformam outros mitos e obliteram alguns de seus antigos interesses para valorizar aqueles que são coerentes com o estilo de vida que eles optaram por levar, inclusive a partir das transformações históricas que sofreram após sucessivas ondas de colonização. Mas o autor revela também que pessoas isoladas podem narrar mitos e, até certo ponto, manipulá-los em consonância com seus projetos, intenções políticas e com o que, em determinado momento histórico, parece significativo a elas e seu povo. O problema seria imaginar que aquilo que os Piro consideram interessante e relevante para sua reprodução social corresponde ao que um pesquisador não indígena perceberia como digno de apreensão conforme os critérios de seu próprio modelo de memória coletiva.

Quanto às narrativas de origem de Areruya, o fato de elas obliterarem uma provável relação colaborativa que tenha existido entre os profetas pioneiros e missionários sugere que, em algum momento da história, prevaleceu entre os Kapon e Pemon praticantes da religião uma compreensão dos colonizadores como inimigos - ladrões e preguiçosos, na narrativa de Pîraikoman; assassinos e mentirosos, nas de Iisiwon. Alguns dos profetismos comentados acima revelam que, entre certos subgrupos, esta é uma compreensão que data, pelo menos, do fim do século dezenove. De qualquer maneira, vimos que a narrativa ingarikó, mais do que as outras, marca o antagonismo entre indígenas e brancos, desvalorizando tudo o que lhes seja associado. Vimos também que, atualmente, os Kapon e Pemon não apenas refutam influência missionária sobre Areruya, como advogam que todos os elementos que compõem sua cosmologia religiosa têm capacidades superiores às daqueles não indígenas que lhes serviram de inspiração e consistiram nos termos da antropologia reversa dos antigos profetas: o dinheiro, os papéis, a tecnologia, a própria mensagem divina etc. Ora, é justamente a versão mais mitificada sobre a origem de Areruya, a de Pîraikoman, que melhor condiz com o que seus adeptos contemporâneos compreendem sobre a colonização.

Considerações finais

No início deste artigo fiz um resumo da história da Questão do Pirara, tal como reconstituída por Rivière em Absent-minded Imperialism. O antropólogo privilegiou as fontes primárias britânicas, mais abundantes que as brasileiras. Seu trabalho nos dá, então, acesso ao ponto de vista de agentes que protagonizaram o litígio em favor dos interesses britânicos, como o anglicano Youd, o governador Light e Robert Schomburgk. Todos eles se colocaram como aliados das populações indígenas da fronteira em face das ameaçadoras incursões escravagistas brasileiras. Youd, aliás, costumava afirmar que a presença de sua missão no local era uma demanda dos próprios indígenas. Há dados que corroboram as impressões do missionário. Entre eles, o sucesso de suas missas no Pirara, frequentadas por centenas de indígenas, e o fato de dezenas deles terem-no acompanhado em sua retirada para Urwa e depois para Waraputa. É possível, portanto, que o anglicano e os ingleses tenham sido, de fato, considerados bons aliados pelos Makuxi e outras populações indígenas da região.

Aqui, recorro novamente a Gow (2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford: Oxford University Press.), que observou que também os Piro diferenciaram os colonizadores entre ruins e bons. Para o autor, o que explicaria o fato de um antigo profeta piro ter previsto a chegada de brancos do segundo tipo, apesar de sua experiência traumática com a colonização, seria o princípio de gemelaridade que Lévi-Strauss (1993)LÉVI-STRAUSS, Claude. 1993 [1991]. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras . identificou nos sistemas intelectuais ameríndios, princípio este que permitiu que mitos de diversos povos das Américas abarcassem a existência dos europeus, como subtipos de figura de alteridade, não muito tempo depois de seu aparecimento. O mesmo mecanismo teria conferido a Tsla, o herói mitológico piro, irmãos “gêmeos” brancos. Ora, se o mito de Tsla dizia que os seres humanos se diferenciavam entre indígenas e brancos, estes poderiam - eis o ponto de Gow - se diferenciar entre ruins e bons, ou seja, embora o antigo profeta piro desconhecesse brancos do segundo tipo, sua chegada seria o desdobramento lógico da chegada dos colonizadores perversos que escravizaram seu povo. De fato, os Piro receberam, posteriormente, missionários evangélicos, com os quais conviveram pacificamente durante décadas e que, portanto, lhes pareceram bons. Transformaram, porém, sua compreensão sobre tais “gringos” quando eles optaram por abandoná-los para viver em cidades próximas. Entenderam que os missionários, afastando-se, deixaram de vê-los como humanos, isto é, de reconhecer a humanidade compartilhada que ambas as partes vinham construindo através do convívio. Com o tempo, passaram a vê-los como predadores e comerciantes de pele indígena.

O livro de Rivière identifica causas do esquecimento da região fronteiriça entre Brasil e Guiana Britânica, por parte de seus respectivos governos, ao longo do século dezenove. Em consonância, sugeri que os movimentos proféticos dos Kapon e Pemon, que proliferaram no mesmo período, devem ser compreendidos à luz do relativo desinteresse colonialista por aquela fronteira, associado à experiência cristã sui generis de tais povos indígenas, que se limitaram a acessar esporadicamente as missões anglicanas próximas à costa da Guiana. Afinal, convém lembrarmos que, desde a partida de Youd, em 1842, até a resolução do litígio do Pirara, no início do século vinte, a região circum-Roraima se viu livre de missões cristãs permanentes.22 22 Eu não estenderia aos anglicanos a afirmação de que, no século dezenove, os colonizadores britânicos se esqueceram daquela fronteira e de seus habitantes indígenas. Os próprios relatos de Youd, recuperados por Rivière (1995), e os depoimentos de missionários mais ou menos contemporâneos, como Bernau (1847) e Brett (1851, 1868), revelam que eles tinham interesse em alcançar todas as populações indígenas da colônia britânica, embora não dispusessem dos recursos humanos e materiais necessários. Outros povos karib da macrorregião das Guianas, como os Waiwai e os Tiriyó, também adotaram o cristianismo após sofrerem quedas demográficas decorrentes de epidemias difundidas por não indígenas, além de outros efeitos nefastos da colonização (Rivière 1981RIVIÈRE, Peter. 1981. “‘The wages of sin is death’: some aspects of evangelisation among the Trio Indians”. Journal of the Anthropological Society of Oxford, 12:1-13.; Caixeta de Queiroz 1999CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben. 1999. “A Saga de Ewká: epidemias e evangelização entre os Waiwai.” In: Robin Wright (org.), Transformando os Deuses. Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp.; Grupioni 2005GRUPIONI, Denise Fajardo. 2005. “Tiriyó”. Site Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tiriy%C3%B3 . Acesso em 20/07/2022
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:T...
). É digno de nota que nenhum deles se engajou em movimentos proféticos como os que sublevaram os Kapon e Pemon no passado, tampouco apagou de sua memória coletiva a influência missionária no novo estilo de vida que decidiu adotar. Possivelmente, há diferentes razões para esse contraste. Penso que uma delas diz respeito à permanência de missões cristãs e missionários estrangeiros nos territórios de tais povos, com os quais estes conviveram por um longo prazo e dos quais assimilaram princípios religiosos menos heterodoxos que os dos profetismos kapon e pemon. “Esquecidos” pelos governos brasileiro e britânico e inalcançados por projetos catequéticos permanentes, os profetas kapon e pemon tiveram certa liberdade para se apropriar do cristianismo e formular suas compreensões intelectuais e práticas sobre a fatídica experiência da colonização.

Talvez o período de ausência de missões da região circum-Roraima, superior a sessenta anos, tenha sido suficiente para dissipar, entre os Makuxi do Pirara e os povos vizinhos, a imagem de aliados que ingleses do século dezenove buscaram construir. O conjunto de narrativas sobre a origem de Areruya sugere que os Kapon e Pemon, que eventualmente tenham tomado os anglicanos como bons parceiros, compreenderam que eles, ao se retirarem, tornaram-se menos humanos. E não deixa de ser irônico que a mitologia das populações indígenas, defendidas por aqueles ingleses de humanismo incipiente, tenha reservado a eles a mesma condição atribuída a quaisquer outros colonizadores: a de inimigos. Com o passar do tempo e a consolidação de cultos como Areruya, foi a vez de os Kapon e Pemon se esquecerem, parcial ou completamente, dos colonizadores, isto é, de quaisquer relações colaborativas com missionários cristãos que possam ter influenciado as elaborações religiosas de seus ancestrais.

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Notas

  • 1
    Há também um artigo de Rivière (1998)RIVIÈRE, Peter. 1998. “From Science to Imperialism: Robert Schomburgk’s Humanitarianism”. Archives of Natural History, 25 (1):1-8. que resume o argumento de Absent-minded Imperialism, porém, com foco na participação de Robert Schomburgk nos mesmos eventos examinados.
  • 2
    Refiro-me às edições organizadas por Rival (1999)RIVAL, Laura (org.). 1999. JASO 30/3. e Rival e Whitehead (2001)RIVAL, Laura M. & WHITEHEAD, Neil L. (orgs). 2001. Beyond the visible and the material: the amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford: Oxford University Press . .
  • 3
    Em 1966, a colônia tornou-se independente do Reino Unido. A partir de 1970, passou a ser reconhecida como República Cooperativa da Guiana ou, popularmente, como Guiana.
  • 4
    Surtos epidêmicos foram registrados por Robert Schomburgk (1848:264)SCHOMBURGK, Robert. 1848. “On the Natives of Guiana”. Journal of the Ethnological Society of London, I:253-276., Bernau (1847:100-101, 110-113, 136-144, 207-213)BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw. e Brett (1868:145-146, 185-192, 197-199, 223-229)BRETT, William H. 1868. The Indian Tribes of Guiana. Londres: Bell & Daldy . .
  • 5
    O mais antigo dos profetismos kapon e pemon precedeu a chegada dos anglicanos à região e já abordava a existência do deus cristão. Convém então ressaltar que a catequização anglicana não foi a única influência cristã sobre tais movimentos. É possível que o profeta akawaio em questão tenha tido contato prévio com missionários morávios ou capuchinhos. De qualquer maneira, os profetismos kapon e pemon proliferaram a partir de meados do século dezenove, período da expansão anglicana na Guiana Britânica.
  • 6
    Nos relatos de Appun e Brett, o herói mitológico Makunaima é considerado como propulsor dos movimentos proféticos. É possível que as testemunhas indígenas tenham dito que as lideranças proféticas contataram o deus cristão e que os próprios Appun e Brett o tenham confundido com o herói. Era comum os cronistas reconhecerem Makunaima e outros personagens mitológicos indígenas como Deus ou como o “grande espírito”. Este foi o caso de Hillhouse (citado por Alexander 1832:244ALEXANDER, J.H. 1832. “Notices of the indians settled in the interior of British Guiana by William Hillhouse”.Resenha da obra de Willian Hillhouse, Indian Notices. 1825. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 02:227-249.) e Bernau (1847:49)BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw..
  • 7
    Para leituras interessantes sobre a relevância dos papéis nos profetismos Kapon e Pemon, veja Abreu (2004:107)ABREU, Stela Azevedo de. 2004. Aleluia e o banco de luz. Campinas: Centro de Memória Unicamp.; Butt Colson (1998:132-33)BUTT, Audrey. 1998. Fr. Cary-Elwes S. J. and the Alleluia Indians. Georgetown: University of Guyana.; Copello Levy (2003)LEVY, Gabriela Copello. 2003. Vozes inscritas: o movimento de San Miguel entre os Pemon, na Venezuela. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas.; Déléage (2010)DÉLÉAGE, Pierre. 2010. “Rituels du livre en Amazonie”. Cahiers des Amériques latines, 63-64:47-62. .
  • 8
    Em História de Lince, Lévi-Strauss (1993)LÉVI-STRAUSS, Claude. 1993 [1991]. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras . explorou um conjunto de mitos ameríndios que tematizam uma gravidez intempestiva, cujos protagonistas puderam eximir-se da mortalidade de seus pares superando sua degradação moral. Esses mitos se transformam em outros, que abarcam a existência dos brancos.
  • 9
    A pele clara é característica que diferentes cosmologias ameríndias atribuem a seres imortais dotados de capacidades extraordinárias, a exemplo dos maï araweté (Viveiros de Castro 1986:520VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Anpocs.) e dos xapiri yanomami que, aliás, são hiperclaros, brilhantes (Kopenawa & Albert 2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015 [2010]. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 10
    Poderíamos pensá-los, alternativamente, como ‘atos tradutórios’ (Fausto e De Vienne 2014FAUSTO, Carlos & DE VIENNE, Emmanuel. 2014. “Acting translation. Ritual and prophetism in twenty-first century indigenous Amazonia”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, 4(2):161-191.) ou como ‘traduções pelo corpo’ (Vilaça 2016VILAÇA, Aparecida. 2016. Praying and preying: Christianity in indigenous Amazonia. Berkeley: University of California Press.).
  • 11
    Como Kelly (2005)KELLY, José. 2005. “Notas para uma teoria do virar branco”. Mana, 11 (1):201-234. observou sobre o conceito de “virar branco”, fundamental na antropologia reversa yanomami, cumpre não esquecermos que até mesmo “branco” é um conceito relacional, que diz respeito aos colonizadores e também aos indígenas, ou melhor, ao que os indígenas não são em relação aos colonizadores. No caso yanomami, “branco” é a posição de quem assume, sobretudo, as funções de inimigo e de provedor de objetos.
  • 12
    Eu mesma registrei as três últimas, entre 2015 e 2017. Samuel Camilo Williams, professor ingarikó, me ajudou a traduzir a versão de Iisiwon contada por Pantaraite e três versões da narrativa de Pîraikoman.
  • 13
    Canaimé é a forma aportuguesada do termo kapon kanaimë que, segundo os Ingarikó, designa um matador capaz de se metamorfosear. O termo conota também o assassinato, que ocorre através de procedimentos rituais. Os Kapon e Pemon atribuem muitos de seus óbitos a tais ataques, cujos efeitos são tidos como irreversíveis. As acusações conformam-se a um sistema de hostilidade interétnica, que repercute antigos conflitos bélicos.
  • 14
    Segundo os Ingarikó, karapa é uma substância cheirosa, armazenada em frascos de vidro, que confere capacidades extraordinárias a quem possuí-la, inclusive a de multiplicar os alimentos agrícolas.
  • 15
    No seminário “Povos Indígenas: transformações no mundo e na antropologia”, promovido pela UFRR.
  • 16
    Interpretações semelhantes sobre a escrita são compartilhadas pelos Ye’kwana (Gongora 2017:430-39GONGORA, Majoí Fávero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.) e o Yanomami Davi Kopenawa (Kopenawa & Albert 2015:76-77).
  • 17
    Há narrativas míticas kapon e pemon que dizem que o herói cultural Makunaima - ou seu irmão Siikë - inventou artefatos que, posteriormente, foram apropriados pelos brancos: sapato, carro, helicóptero, avião etc. Talvez elas datem de um momento em que a desilusão dos Kapon e Pemon relativa à imoralidade dos brancos ainda não havia se sobreposto à admiração por sua habilidade tecnológica.
  • 18
    Em expedições pela Guiana ocidental, Robert Schomburgk teve como intérprete Sororeng, um indígena de etnia desconhecida, que ele levou posteriormente a Londres para ser exibido em uma exposição com curiosidades da floresta amazônica (Rodway 1889:10RODWAY, James. 1889. “The ‘Schomburgks’ in Guiana”. Timehri: The Journal of the Royal Agricultural and Commercial Society of British Guiana , 3 (n.s.):1-29. ; Schomburgk 2006a:287SCHOMBURGK, Robert. 2006a. The Guiana Travels of Robert Schomburgk 1835-1844. Vol I (ed. Peter Rivière). London: The Hakluyt Society. ; 2006b:45SCHOMBURGK, Robert. 2006b. The Guiana Travels of Robert Schomburgk 1835-1844. Vol II (ed. Peter Rivière). London: The Hakluyt Society . ). É possível que Sororeng seja o Sîroren dos Makuxi da Raposa ou mesmo o Iisiwon da narrativa akawaio: um homem indígena que, levado à Inglaterra por homens brancos religiosos (padres ou um leigo como Schomburgk), sentiu-se sozinho e resolveu encontrar Deus.
  • 19
    Objetar-se-ia que a narrativa de Iisiwon, reconhecido como um Makuxi que vivia nas imediações das montanhas Kanuku, pode ter sido difundida pelos Makuxi daquela região, antes de chegar aos Akawaio. Mas isso não contraria minha hipótese de que as histórias orais dos Kapon e Pemon que se relacionaram mais intensamente com os anglicanos registram esse contato com nitidez - à diferença das outras histórias orais, nas quais ele é obliterado ou ignorado. As montanhas Kanuku estão próximas do rio Pirara, onde o anglicano Youd ergueu sua missão que, apesar de breve, atraiu uma multidão indígena, sobretudo, makuxi. Além disso, a região das montanhas Kanuku integrava a rota de viajantes europeus, inclusive dos anglicanos, durante o século dezenove. Se a catequese anglicana teve alcance entre os Makuxi da Raposa, não há dúvida de que foi menos intensa entre os Makuxi da região das montanhas Kanuku.
  • 20
    Através da etnografia de Costa (2017:93-94)COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship - Asymmetrical relations in Indigenous Amazonia. Chicago: Hau Books. entre os Kanamari, sabemos que povos do oeste e o sudoeste da Amazônia cultivam uma narrativa similar à de Iisiwon, na qual uma ou duas crianças indígenas são sequestradas por um estrangeiro, eventualmente não humano, com quem aprendem um ofício ritual que transmitirão a seus parentes. Os Kanamari teriam adaptado essa narrativa a seu convívio com seringueiros, que os ensinaram a extrair borracha e os envolveram em redes de acesso a mercadorias. Na região circum-Roraima, os Pemon contam que os primeiros pajés humanos eram crianças, que foram sequestradas por um ogro que lhes ensinou as técnicas xamânicas. Já adultas, elas regressam ao lar e colocam em prática seu conhecimento (Armellada 2003:303-05; Koch-Grünberg 1981b:63-66KOCH-GRÜNBERG. Theodor. 1981b [1924]. Del Roraima al Orinoco. Tomo II. Caracas: Ernesto Armitano . ).
  • 21
    O mito de Pîraikoman relaciona diretamente dois grandes conjuntos temáticos: um articula o tema da vida breve (indígena) ao da origem dos brancos (e sua engenhosidade técnica); o outro associa o tema da vida breve ao da origem das plantas cultivadas. Eles foram separadamente analisados por Lévi-Strauss em História de Lince e em O Cru e o Cozido.
  • 22
    Eu não estenderia aos anglicanos a afirmação de que, no século dezenove, os colonizadores britânicos se esqueceram daquela fronteira e de seus habitantes indígenas. Os próprios relatos de Youd, recuperados por Rivière (1995), e os depoimentos de missionários mais ou menos contemporâneos, como Bernau (1847)BERNAU, J. H. 1847. Missionary labours in British Guiana with remarks on the manners, customs and superstitious rites of the aborigines. London: J. F Shaw. e Brett (1851BRETT, William H. 1851. Indian missions in Guiana. Londres: Bell & Daldy., 1868)BRETT, William H. 1868. The Indian Tribes of Guiana. Londres: Bell & Daldy . , revelam que eles tinham interesse em alcançar todas as populações indígenas da colônia britânica, embora não dispusessem dos recursos humanos e materiais necessários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    19 Maio 2022
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